ISSN 2526-9038 • V. 13, Nº 3, setembro/dezembro de 2018 • DOI: 10.12530/ci.v13n3.2018
Carta Internacional é uma revista eletrônica de
publicação semestral dedicada ao debate sobre as
questões mais relevantes das relações internacionais
sob a perspectiva brasileira. As opiniões expressas nos
artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de
seus autores e não expressam as opiniões da Associação
Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).
A Revista Carta Internacional foi fundada em 1993
por José Augusto Guilhon Albuquerque, no Núcleo de
Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade
de São Paulo (NUPRI/USP). Em 2011 tornou-se a
publicação científica da Associação Brasileira de
Relações Internacionais (ABRI).
Carta Internacional é publicada pela Associação
Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). A revista
está disponível para download gratuito, em formato PDF,
no endereço <http://www.cartainternacional.abri.org.br.
Editora Chefe:
Matilde de Souza
Editora Associada:
Letícia Carvalho
Editores Assistentes:
Mateus Santos da Silva
Leonardo Agrello Madruga
Diagramação:
Samuel Tabosa
Revisão:
Luís Fernando dos Reis Pereira
Secretaria da Carta Internacional:
Airá Eventos Técnico-Científicos
Conselho Científico:
Amado Luiz Cervo, André Singer, Andrew Hurrell,
Anthony Pereira, Antônio Carlos Lessa, Arlene Tickner,
Carlos Eduardo Lins da Silva, David Mares, Eduardo
Viola, Elizabeth Balbachevsky, Félix Peña, Fernando
Augusto Albuquerque Mourão, Gary Hufbauer, Gilson
Schwartz, Gladys Lechini, Gustavo Vega-Cánovas,
Henrique Altemani de Oliveira, José Augusto Guilhon
Albuquerque, Luis Olavo Baptista, Margarita Silvia
Olivera, Maria Cristina Cacciamali, Maria Regina Soares
de Lima, Paulo Fagundes Visentini, Paulo Lavigne
Esteves, Peter Demant, Rafael Antônio Duarte Villa,
Sean Burges e Tullo Vigevani.
Redes Sociais:
Facebook: Carta Internacional
Twitter: @CartaAbri
LinkedIn: Revista Carta Internacional
Academia.edu: Revista Carta Internacional
Associação Brasileira de Relações
Internacionais (ABRI)
Presidente:
Eugênio Pacelli Lazzarotti Diniz Costa (PUC Minas)
Secretária Executiva:
Layla Ibrahim Abdallah Dawood (UERJ)
Secretário Executivo Adjunto:
Haroldo Ramanzini Junior (UFU)
Tesoureira:
Graciela De Conti Pagliari (UFSC)
Diretores:
Cristina Soreanu Pecequilo (UNIFESP)
Ana Flávia Barros-Platiau (UnB)
Carolina Moulin (PUC-Rio)
Marcos Ferreira da Costa Lima (UFPE)
Conselho Fiscal:
Henrique Altemani de Oliveira (UEPB)
Túlio Sérgio Henriques Ferreira (UFPB)
Correspondência:
Avenida Dom José Gaspar, 500 – Prédio 04 – Sala 01
Coração Eucarístico. Belo Horizonte, MG – CEP: 30535-901
Tel.: +55 (31) 3241-5123
email: cartainternacional@abri.org.br
©
2018 Associação Brasileira de Relações
Internacionais (ABRI). Todos os direitos reservados.
Expediente
Sumário
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS |
Institutional consolidation and outreach: a brief review of BRICS | 5
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia;
Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo: un análisis
de política exterior a la luz de la cuestión energética | As Reformas
Econômicas da China e a Geopolítica do Petróleo: uma análise de política
externa à luz da questão energética | China’s Economic Reforms and the
Geopolitics of Oil: a foreign policy analysis in the light of the energy issue | 27
Rafael Shoenmann de Moura
O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing? |
Brazil in the WTO Dispute Settlement Body: soft balancing? | 59
Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa
Independente | Brazil in the Cold War: heterodox autonomy and the
Independent Foreign Policy | 83
Tiago Gabriel Tasca
A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS: a doação de antirretrovirais
como soft power do Brasil no cenário internacional | Brazilian South-South
cooperation on HIV/AIDS: the donation of anti-retrovirals as soft power of
Brazil in the international scenario | 109
Fabiola Faro Eloy Dunda
A atuação internacional dos governos subnacionais: construções conceituais,
limites e contribuições para o caso brasileiro | The international actions
of the subnational governments: conceptual constructions, limits and
contributions to the brazilian case | 137
Débora Figueiredo Mendonça do Prado
Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura
da Teoria da Modernização | Jeffrey Sachs and the Official Development
Assistance: a rereading of the Modernization Theory | 169
Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Marx e Engels: política internacional e luta de classes | Marx and Engels:
international politics and class struggle | 193
Caio Bugiato
Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas
do Realismo Neoclássico e Construtivismo | The interests and rules:
the Minamata Convention in the perspectives of Neoclassical Realism and
Constructivism | 213
Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse |
Suma Qamaña como estratégia de poder: politizando o Pluriverso | 236
Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
5
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
Adensamento institucional e outreach:
um breve balanço do BRICS
Institutional consolidation and outreach:
a brief review of BRICS
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.727
Leonardo César Souza Ramos
1
Ana Elisa Saggioro Garcia
2
Diego Pautasso
3
Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
4
Resumo
O artigo apresenta uma discussão sobre os processos de institucionalização e expansão do
BRICS ao longo de suas nove cúpulas, destacando duas áreas temáticas: (i) economia política
internacional – particularmente desenvolvimento internacional; e (ii) segurança internacional.
A hipótese é a de que o BRICS vem passando por um processo de adensamento institucional,
cuja maior expressão foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e do Arranjo
Contingente de Reservas (ACR). Nesse processo, embora os temas de segurança internacional
1 Doutor em Relações Internacionais. Professor do Departamento de Relações Internacionais – PUC Minas. Lidera,
junto com o professor Javier Vadell, o Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM). É membro das
seguintes associações: Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), International Gramsci Society
(IGS e IGS Brasil) e Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares (AKET). É coordenador da área temática
de Economia Política Internacional – ABRI (2015-2016; 2017-2018).
2 Doutora em Relações Internacionais. Professora Relações Internacionais – UFRRJ. Professora do Departamento
de História e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenadora do
Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Relações Internacionais (LIERI/UFRRJ). Pesquisadora colaboradora do
Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS). Foi pesquisadora visitante na York University, Canadá.
Tem experiência na área de Economia Política Internacional.
3 Mestre e doutor em Ciência Política também pela UFRGS. Atualmente é professor de Geografia do Colégio Militar
de Porto Alegre. É colaborador da Especialização em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas, bem
como membro do NERINT e do CEBRAFRICA na UFRGS. Atua nas áreas de pesquisa de Relações Internacionais
e Geografia Política, sobretudo em temas como BRICS, China e relações Sul-Sul.
4 Mestranda em Relações Internacionais pela PUC-MG. Pós-Graduada em Gestão de Negócios pela Fundação
Dom Cabral. Professora do Departamento de Administração e Comércio Exterior no Centro Universitário UNA.
É membra da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) e do Grupo de Pesquisa sobre Potências
Médias (GPPM).
Artigo submetido em 06/11/2017 e aprovado em 03/04/2018.
6
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
ganhem importância crescente, isso se deve às transformações na geopolítica do capitalismo
contemporâneo. Além disso, há também um concomitante processo de outreach do BRICS.
Nesse contexto, distintos padrões de adensamento institucional do arranjo podem ser notados.
Concluiu-se que tanto o destaque das questões de segurança internacional quanto o processo
de outreach com relação a outros países sofre uma influência direta do país que hospeda
a cúpula. Ainda assim, o adensamento institucional ocorre em larga medida nas questões
associadas à economia política internacional e, em particular, à questão do desenvolvimento
internacional – uma espécie de “caminho de menor resistência” – embora não se deva perder
de vista os avanços ocorridos nas últimas cúpulas nas questões de segurança internacional.
Palavras-chave: BRICS; segurança internacional; Novo Banco de Desenvolvimento; Sociedade
Civil; Outreach
Abstract
The article aims at present a discussion about the processes of institutionalization and
expansion of the BRICS through its eight summits. It will be emphasised two issue
areas: (i) international political economy – particularly international development – and
(ii) international security. The hypothesis is that the BRICS forum has passed through an
institutional thickening process – see the New Development Bank and the Contingent Reserve
Agreement. In such process, despite the increasing relevance of the international security
issues, this occurs because of the geopolitical transformation on the contemporary capitalism.
Besides that, there is also a BRICS outreach process. In such context, there are different
patterns of institutional thickening directly related to the role of BRICS at the world order.
We conclude that the emphasis on the international security issues and the outreach to other
states is directly influenced by the host countries, generating a pat dependence to the BRICS
and impacting the institutional thickening. Even so, through BRICS history its institutional
thickening occurs mainly on IPE issues, particularly on international development – a kind
of “path of least relevance”.
Keywords: BRICS; International Security; New Bank of Development; Civil Society; Outreach
Introdução
Há mais de 10 anos, em 23 de setembro de 2006, os chanceleres de Brasil,
Rússia, Índia e China se reuniram à margem da 61ª Assembleia Geral das Nações
Unidas, naquele que pode ser considerado o pontapé inicial que levaria à criação
do BRICS. O grupo, que surge a partir de um acrônimo originário do mercado
financeiro, assumiu características e relevância que sobrepujaram tal origem.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
7
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
Na verdade, uma análise mais apropriada do BRICS passa, necessariamente, por
um entendimento desse arranjo a partir de uma abordagem que vá além do prisma
da ideia de “mercados emergentes” apenas. É preciso levar em consideração os
processos mais amplos de institucionalização e expansão do BRICS, vistos a partir
das relações do BRICS com os complexos fenômenos da ordem mundial, para que
se possa explorar criticamente os limites do potencial transformador-subversivo
do BRICS com relação à ordem mundial.
Nesse sentido, o presente artigo apresenta uma discussão sobre tais processos
ao longo de suas cúpulas, destacando duas áreas temáticas: (i) economia política
internacional – particularmente a esfera do desenvolvimento internacional; e
(i) segurança internacional. A hipótese assim é de que, em ambas áreas temáticas,
o BRICS vem passando, desde sua origem, por um processo de adensamento
institucional, cuja maior expressão foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento
(NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas (ACR). Nesse processo, nota-se
que, embora os temas de segurança internacional ganhem importância crescente,
isso se deve em larga medida às transformações na geopolítica do capitalismo
contemporâneo. Além disso, nota-se também um concomitante processo de
outreach do BRICS, que por sua vez apresenta uma série de contradições entre os
atores envolvidos. Nesse contexto, distintos padrões de adensamento institucional
do arranjo podem ser notados, diretamente relacionados ao papel desempenhado
pelo BRICS na ordem mundial.
Em termos metodológicos, para a validação ou não da hipótese acima, será feito
um estudo de caso associado ao process tracing (BENNET, 2010; BEACH; PEDERSEN
2013). Ou seja, será feito um estudo do BRICS bem como de alguns dos múltiplos
mecanismos causais a ele associados a fim de, assim, melhor compreender o
delineamento do processo de constituição de tal arranjo, contribuindo, dessa forma,
para a produção de inferências causais acerca do caso em questão. Mecanismos
causais aqui são entendidos como algo constitutivo do nível ontológico das relações
sociais (BENNETT, 2013), o que nos afasta do positivismo e nos coloca próximos
a interpretações realistas científicas e realistas críticas acerca dos conceitos de
“mecanismo causal”, “causa”, “causalidade” e “causação”.
Os mecanismos causais multiníveis são fundamentais para que se possa
compreender os rumos do BRICS desde seus primórdios. Assim, são destacados
nesta pesquisa os seguintes mecanismos causais: (i) as relações regional/global
presentes na construção da agenda de inserção internacional dos países do BRICS;
(ii) as relações entre o BRICS e a ordem geoeconômica mundial; (iii) em menor
8
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
escala, mas não menos importante, as relações entre BRICS e as forças sociais.
É a partir da identificação desses mecanismos causais – que muito além de serem
variáveis, são entidades ontologicamente constitutivas do processo de construção
do BRICS – que ganham significado inferencial (i) os processos de adensamento
institucional nas áreas de economia política internacional (desenvolvimento
internacional) e segurança internacional e seus respectivos mecanismos de path
dependence; e (ii) processos multinível de outreach.
Para tal empreitada, a ênfase será dada na análise qualitativa dos documentos
produzidos pelas cúpulas, o que será feito em estreita relação com a análise
da literatura existente sobre o tema, bem como com a análise da conjuntura
internacional no período em questão. Primeiro, será apresentado um histórico do
BRICS a partir de suas cúpulas. Em seguida, será discutido o processo de outreach
do BRICS. Desde a II Cúpula em Brasília, em 2010, há menção explícita ao processo
de outreach do BRICS, intimamente relacionado a uma expansão das áreas de
interesse do grupo. Não obstante, no presente artigo, a ideia de outreach focará
explicitamente em dois elementos: (i) o convite a outros Estados para participar
das cúpulas; (ii) o engajamento das forças sociais no processo, particularmente
expresso no fórum de empresários e nas reuniões dos movimentos de contestação
da sociedade civil. Em terceiro lugar, serão explorados os limites do processo de
ascensão do BRICS como potencial polo “contra-hegemônico”, para, por fim, serem
feitas algumas considerações finais e suas relações com a hipótese apresentada.
BRICS: De Ecaterimburgo a Xiamen
As crises econômicas que se acumulam desde meados dos anos de 1990
deixaram evidente que a gestão da ordem mundial não poderia continuar
desconhecendo os avanços dos países emergentes, que até então não participavam
do G8 (G7 + Rússia). Desse modo, no final dos anos de 1990, foi criado o G20
(que até 2008 não incluía uma reunião de chefes de Estado), após a crise asiática.
E, a partir do início dos anos 2000, Brasil, Índia, China e África do Sul, além do
México, passam gradualmente a serem convidados como observadores do G8
(a ideia de G8+5), sem contudo participar dos debates sobre os rumos da economia
mundial. Paralelamente, em 2003, é criado o fórum IBAS (Índia, Brasil e África do
Sul) e, em 2006, ocorre a primeira reunião dos ministros de relações exteriores de
Brasil, Rússia, Índia e China. Assim, a história do BRICS tem sido marcada por
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
9
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
um aprofundamento do grau de institucionalização do arranjo, desde a I Cúpula
do BRIC, em junho de 2009, em Ecaterimburgo, Rússia.
A I Cúpula foi marcada pelos resultados da cúpula do G20, refletindo o
comprometimento do grupo com as decisões acordadas, bem como apontando
para o que seria a cooperação do grupo na cúpula seguinte do G20. Além disso,
o BRIC também enfatizou a importância da reforma das instituições financeiras
internacionais (IFI), a fim de aumentar a participação das potências médias
emergentes na ordem internacional (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES,
2009). A II Cúpula do BRIC ocorreu em Brasília, em 2010, e lidou com uma série
de temas – apesar do destaque para as questões concernentes à governança
global e ao comércio e às finanças internacionais. Tal cúpula se destaca pelo
apoio à reforma da ONU, pela ênfase na importância da estabilidade do sistema
monetário internacional e pela defesa de uma solução para o problema da crise
de legitimidade das organizações internacionais (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2010). Em 2011, em Sanya, ocorreu a III Cúpula do BRICS. Dois
pontos de destaque dessa cúpula foram (i) a inclusão da África do Sul no BRICS
e o fato de que, naquele momento, (ii) todos os países partícipes do BRICS
também se encontravam no Conselho de Segurança da ONU, o que fez com que
a cúpula desse grande destaque para as questões de segurança, como a Primavera
Árabe. Nesse ponto, cumpre destacar que, pela primeira vez, houve referência
explícita na declaração final à reforma da ONU (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2011, “para”8). Além disso, foi reafirmada a importância do G20
na arquitetura financeira internacional e a necessidade de se concluir a Rodada
Doha (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2011). A IV cúpula do BRICS,
em Nova Deli, 2012, apresentou um novo fato: pela primeira vez, foi discutida
a possibilidade de se criar, a partir do BRICS, um novo banco multilateral de
desenvolvimento, o que culminou no compromisso de examinar a viabilidade de
tal banco. Além disso, a declaração final reiterou a importância da cooperação
internacional, embora tenha destacado a necessidade da reforma das IFI, para que
a importância sistêmica dos países do BRICS fosse reconhecida institucionalmente
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2012).
A V cúpula do BRICS ocorreu em 2013, em Durban, e fechou o primeiro ciclo
das cúpulas, além de ser um marco na busca sul-africana por uma maior projeção
internacional (ANDREASSON, 2011). Essa cúpula deu destaque às relações dos
BRICS com países africanos e, assim como nas cúpulas anteriores, foi reafirmado
o comprometimento com o multilateralismo e a busca por uma governança global
10
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
mais democrática. Nesse caso, foi destacada a reforma das IFI, em especial do
sistema de cotas do FMI, conforme acordado em 2010 (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2013, “para”13). Também foi destacado o comprometimento
do BRICS com a conclusão da Rodada Doha, o apoio para que Brasil, Índia e
África do Sul tivessem um papel mais proeminente na ONU e, por fim, o BRICS
manifestou seu apoio para que o diretor geral da OMC representasse os países em
desenvolvimento. Tal questão é relevante, já que o brasileiro Roberto Azevêdo foi
eleito para o cargo em questão.
Foi também criado um fundo de reserva de US$100 bilhões, o que “ajudaria
os países do BRICS a evitar pressões de liquidez de curto prazo” (MINISTÉRIO
DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2013, “para”10), dando continuidade aos acordos
assinados em 2012 entre os bancos de desenvolvimento dos países do BRICS
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2012). Por fim, foi anunciada a
criação de um banco de desenvolvimento do BRICS, que deveria buscar
recursos para projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável
nos BRICS e em outras economias emergentes e países em desenvolvimento,
para complementar os esforços já existentes de instituições financeiras
multilaterais e regionais para o crescimento global e o desenvolvimento
(BRICS 2013, “para”9)
— dando sequência, assim, à discussão de Nova Deli.
A VI cúpula do BRICS, em Fortaleza, 2014, deu início ao segundo ciclo das
cúpulas. Em um dos momentos mais relevantes na história do BRICS e de seu
processo de adensamento institucional, foi assinado o “Acordo constitutivo do Novo
Banco de Desenvolvimento (NDB), com o propósito de mobilizar recursos para
projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável nos BRICS e em outras
economias emergentes e em desenvolvimento” (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES 2014a, “para”11). O banco teria um capital inicial autorizado de
US$100 bilhões – com um capital inicial subscrito de US$50 bilhões. Além disso,
também foi estabelecido o Arranjo Contingente de Reservas do BRICS (ACR) –
US$100 bilhões – e assinado o Memorando de Entendimento para Cooperação
Técnica entre Agências de Crédito e Garantias às Exportações dos BRICS. O primeiro
“terá efeito positivo em termos de precaução, ajudará países a contrapor-se a
pressões por liquidez de curto prazo” e o segundo “aperfeiçoará o ambiente de
apoio para o aumento das oportunidades comerciais” entre os países do BRICS
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2014a, “para”13 e “para”14).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
11
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
A VII Cúpula dos BRICS, que ocorreu em Ufá, 2015, foi acompanhada por
grandes expectativas. O aprofundamento da cooperação econômica foi discutido
no marco da “Estratégia para uma Parceria Econômica do BRICS”, que embora
tenha destacado a importância da cooperação em diversas áreas, não avançou
objetivamente (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2015, “para”17). Com
relação à cooperação comercial, financeira e de investimentos intra BRICS, nota-se
um avanço a partir do aprofundamento do diálogo entre as “Agências de Crédito
às Exportações dos BRICS”, do papel do “Mecanismo de Cooperação Interbancária
do BRICS”, da implementação do “Marco do BRICS de Cooperação em Comércio e
Investimentos” e da importância de um estudo acerca da viabilidade do “uso mais
amplo de moedas nacionais no comércio mútuo” (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2015, “para”13, “para”14, “para”23 e “para”24).
Contudo, ficou claro que a prioridade da cúpula seria o NDB e o ACR. Nesse
sentido, foram discutidos os detalhes sobre a entrada em vigor desses novos
arranjos institucionais. Ora, isso tem relação direta com a situação de crescimento
econômico negativo de Brasil e Rússia naquele momento: para o Brasil, o NDB
deveria favorecer investimentos nas áreas de energia e infraestrutura; já a Rússia
via no NDB a grande oportunidade de atrair o capital chinês. Além disso, foi
apresentada na cúpula a proposta de cooperação entre o NDB e o recém-criado
Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII)
5
– o que seria importante
no financiamento dos projetos de infraestrutura vinculados à Nova Rota da Seda
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2015, “para”15; DANÍLOVA, 2015).
Assim, apesar do BAII ter, em alguma medida, eclipsado a importância do NDB, isto
pode significar, nos médio e longo prazos, menor concorrência e, consequentemente,
maior disponibilidade de recursos do NDB para Brasil e África do Sul.
Já era esperado que em Ufá fosse seguida uma tendência das cúpulas anteriores
de direcionamento da agenda por parte do país anfitrião. Nesse caso, era esperada
uma aproximação entre BRICS, Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e
União Econômica Eurasiática (UEE), o que contribuiu tanto para as discussões na
área econômica quanto na área da segurança internacional. Assim, se destacam
nas discussões sobre segurança: (i) a menção explícita à importância do respeito
à soberania e não intervenção em vários casos (especialmente Afeganistão,
Iraque e Síria); (ii) a existência de um espaço significativo para as questões de
5 O BAII foi criado no mesmo ano que o NDB. Entretanto, ele é composto por 57 membros fundadores (alguns
deles aliados históricos dos EUA, como Inglaterra, Alemanha e França) e tem clara dominação da China, que
detém o poder de veto, a presidência do banco e a localização de sua sede, em Pequim.
12
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
segurança e um aumento exponencial de referências explícitas aos problemas
de segurança no continente africano – o que reflete a preocupação dos países
do BRICS com a estabilidade da região (RAMOS et al., 2012). A despeito das
críticas ao ordenamento vigente e à ação das potências tradicionais, a estratégia
de não confrontação permanece, e os arranjos multilaterais existentes tiveram
sua importância reafirmada (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2015,
“para”11, “para”18, “para”19, “para”26 e “para”66).
A Declaração Final de Goa (2016) reiterou que a paz sustentável requer a
construção de uma “ordem internacional multipolar equitativa e democrática”
com um papel central da ONU. Mas, ao mesmo tempo que destaca o papel da
ONU, o documento reivindica a reforma do Conselho de Segurança, de modo a
torná-lo mais representativo e eficiente (BRICS, 2016, “para”6-8) – tema este que
continua a ter força por pressão da Índia e África do Sul, apesar do esforço menos
significativo do atual governo brasileiro.
Outros pontos importantes foram o apoio à recente decisão do grupo de
trabalho do Comitê para a Utilização Pacífica do Espaço Exterior (COPUOS) da ONU
sobre a intenção de criar um plano-quadro de longo prazo de sustentabilidade no
espaço até 2018 (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016, “para”55-56)
e o apoio à iniciativa russa para elaboração de uma convenção internacional de
proibição do terrorismo químico e biológico, a partir da cooperação em nível
bilateral e internacional (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016,
“para”58). Fica claro, nesse caso, os interesses da diplomacia russa com relação
ao combate ao separatismo checheno e a grupos extremistas internacionais, como
aqueles que lutam na Síria contra o governo de Assad.
A Síria, aliás, também recebeu destaque no documento final. A Rússia, como
principal membro do BRICS envolvido no assunto, fez constar no documento a
posição que sua diplomacia vem defendendo: a construção da paz através de
um diálogo nacional inclusivo e um processo político liderado pelo governo sírio
e baseado no Comunicado de Genebra de 30 de Junho de 2012, nos termos da
resolução 2254 e 2268 do Conselho de Segurança da ONU, bem como no combate
aos grupos terroristas como ISIS e Jabhat al-Nusra (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2016, “para”14; PAUTASSO; ADAM; LIMA, 2015). Dois outros temas
de segurança foram destacados. Primeiro, o conflito palestino-israelense; segundo,
o apoio ao governo afegão para construir a reconciliação nacional (MINISTÉRIO
DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016, “para”15-16).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
13
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
Com relação ao processo de institucionalização do BRICS, destacam-se a
assinatura do Memorando de Entendimento para o Estabelecimento de uma
Plataforma de Pesquisa Agrícola do BRICS (BRICS, 2016, “para”86); a primeira
reunião do grupo de trabalho do BRICS sobre contraterrorismo, em 14/09/2016
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016, “para”60); os avanços
operacionais do NDB; o início das negociações sobre a proposta de criação de uma
agência de risco (rating) do BRICS (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES,
2016, “para”44); a criação de uma plataforma de discussão conjunta entre as
Agências de Crédito às Exportações dos BRICS para cooperação comercial entre os
países do BRICS (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016, “para”13); e o
estabelecimento de um Comitê de Cooperação Alfandegária do BRICS, no marco da
Estratégia para uma Parceria Econômica do BRICS, estabelecida na VII Cúpula, em
Ufá (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2015, “para”17; 2016, “para”48).
A IX Cúpula ocorreu em Xiamen (2017), com destaque para 3 documentos
assinados: (i) Plano de Ação do BRICS para a Cooperação para a Inovação
(2017-2020); (ii) Estrutura Estratégica da Cooperação Aduaneira do BRICS;
(iii) Memorando de Entendimento entre o Conselho Empresarial do BRICS e o
Novo Banco de Desenvolvimento sobre Cooperação Estratégica. Foram adotadas
iniciativas para a promoção futura do desenvolvimento dos Mercados de Títulos em
Moeda Local dos países do BRICS, bem como para o estabelecimento de um Fundo
de Títulos em Moeda Local do BRICS (BRICS, 2017, “para”10), além do “progresso
na conclusão dos Memorandos de Entendimento entre os bancos nacionais de
desenvolvimento dos países do BRICS sobre linha de crédito em moeda local
interbancária e sobre cooperação interbancária na área de classificação de crédito”
(BRICS, 2017, “para”11). Menção foi feita aos avanços do NDB, particularmente
com relação à criação do Centro Regional do NDB na África do Sul – no caso, o
primeiro escritório regional do Banco (BRICS, 2017, “para”31). Com relação ao
ACR, foi acordado o Sistema de Intercâmbio de Informações Macroeconômicas
(SEMI) do ACR (BRICS, 2017, “para”30).
Na área da segurança internacional, foram condenadas as “intervenções
militares unilaterais”, em referência a certas declarações do presidente estadunidense
Donald Trump. Tópicos como terrorismo, Síria e outros conflitos internacionais
também foram mencionados, bem como certas discussões sobre a implantação dos
Padrões Internacionais de Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento
do Terrorismo e Proliferação no FATF (BRICS, 2017, “para”38, “para”11). Pela
primeira vez, a China reconheceu como terroristas grupos baseados no Paquistão
14
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
– Lashkar-e-Taiba, Jaish-e-Mohammad e a rede Haqqani –, o que foi visto como
uma vitória por parte da diplomacia indiana. Além disso, destacam-se a 7ª Reunião
de Assessores de Segurança Nacional do BRICS, realizada em 27 e 28 de julho
de 2017, em Pequim; a segunda reunião do Grupo de Trabalho sobre Terrorismo
do BRICS, realizada em Pequim, em 18 de maio de 2017; bem como a extensa
presença das questões de segurança na declaração final.
A expansão do BRICS: O processo de outreach
Além dos avanços institucionais, destaca-se também o processo de outreach do
BRICS, que desde a II Cúpula em Brasília, em 2010, é mencionado explicitamente
nos documentos finais. No que concerne à expansão das relações do BRICS com
outros Estados, nota-se uma importância significativa do país anfitrião, que
não apenas direciona a agenda das cúpulas, mas também faz os convites para
os países não membros. Nesse sentido, um ponto de inflexão é a V Cúpula, em
Durban: a partir dela, em quase todas as cúpulas houve um engajamento mais
robusto do BRICS com outros países: em Durban (2013), houve uma reunião
com líderes africanos – em clara consonância com os interesses sul-africanos
na região; em Fortaleza (2014), houve uma sessão conjunta com os líderes dos
países sul-americanos, expressão dos interesses brasileiros com relação à região e,
particularmente, com relação à UNASUL; em Ufá (2015), houve uma reunião com
os chefes de Estado e de governo dos países da UEE e da OCX, bem como com
os chefes de Estados observadores da OCX – algo claramente convergente com
os objetivos de inserção internacional da Rússia em um contexto de conflito na
Ucrânia, com amplas repercussões internacionais; em Goa (2016), foi organizada
a cúpula BRICS-BIMSTEC – Iniciativa da Baía de Bengala para a Cooperação
Econômica e Técnica Multissetorial –, da qual participam Bangladesh, Butão,
Índia, Myanmar, Nepal, Sri Lanka e Tailândia. Nesse encontro, foram tratadas
questões sobre cooperação nas áreas de comércio e investimentos (MINISTÉRIO
DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016, “para”5) e, além disso, houve a inclusão do
tema do combate ao terrorismo, o que pode ser interpretado como um ganho da
diplomacia indiana em sua busca por isolar o Paquistão (SAJJANHAR, 2016); e
em Xiamen (2017), a China deu início ao que chamou de cooperação BRICS Plus,
da qual participaram Cazaquistão, Egito, Quênia, Indonésia, México, Tadjiquistão
e Tailândia (BRICS, 2017, “para”6).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
15
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
Aqui cabe uma consideração: os países membros do BRICS têm interesse
fundamental em garantir sua liderança em âmbito regional. Seu protagonismo na
arena global depende, em grande medida, da capacidade de liderar respectivos
processos regionais de integração
6
. Nota-se que suas regiões e os correspondentes
blocos econômicos são historicamente uma prioridade na agenda de todos os
cinco integrantes.
Objetivamente, a China confere grande relevância à OCX, à Associação das
Nações do Sudeste Asiático + China (ASEAN+1) e demais agendas regionais,
incluindo a delicada questão securitária referente às disputas territoriais no mar
do Sul da China. A Rússia busca relançar um bloco, a UEE, em parte devido
à inoperância da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), lançada logo
após o colapso da URSS. A África do Sul dá forte ênfase à Nova Parceria para o
Desenvolvimento da África (NEPAD) e à Comunidade para o Desenvolvimento
da África Austral (SADAC). E, por fim, o Brasil tem historicamente um papel
de liderança na América do Sul, dando prioridade ao MERCOSUL, combinado
com a criação da UNASUL na última década (situação essa que muda, no caso,
a partir do governo Temer). Em suma, isso explica o interesse em envolver os
demais vizinhos nas cúpulas do BRICS, ao mesmo tempo que confere escopo
de influência cada vez mais global ao agrupamento – além de, indiretamente,
fortalecer as organizações regionais em questão. Nesse caso, seguramente tensões
podem aparecer: particularmente, as negociações em torno do “BRICS Plus” têm
despertado certo incômodo e desconfiança em certos setores indianos, que veem
tais declarações como uma tentativa chinesa de tornar o BRICS uma organização
cada vez mais alinhada com os interesses chineses de inserção internacional
(Neelakantan, 2016).
Outra forma de outreach diz respeito ao envolvimento de outros atores para
além dos Estados do BRICS. Nesse caso, destacam-se aqui os atores empresariais,
articulados no Conselho Empresarial dos BRICS, e os movimentos sociais, que têm
desempenhado esforços de articulação e encontros fora das cúpulas oficiais. Garcia
e Bond (2015) apresentam uma pertinente classificação dos posicionamentos dos
atores da sociedade civil com relação ao BRICS. O BRICS from above é a posição
expressada por chefes de Estado e seus aliados das elites corporativas. Esses
utilizam por vezes uma retórica nacionalista e de enfrentamento às potências
6 O que não significa, necessariamente, um engajamento ativo em favor do aprofundamento desses processos de
integração regional. Para uma análise recente sobre a política externa brasileira para a UNASUL, que problematiza
tais questões.
16
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
ocidentais para legitimar o avanço sobre países vizinhos para exploração de recursos
naturais e força de trabalho; o BRICS from the middle é uma posição comumente
vista em instâncias como o Fórum Acadêmico dos BRICS, e alguns think tanks
e ONGs. Esses são esperançosos de que o BRICS possa efetivamente desafiar
as injustiças globais, mas aguardam seus avanços, traçando algumas análises
críticas; por fim, o BRICS from below reflete a posição de movimentos sociais de
base em luta nos países, que podem criar laços comuns de luta e solidariedade
transnacionais. Assim, os autores ressaltam a importância de compreender os
países do BRICS para além do seu sentido estreito (como instituições de autoridade
política), expresso nas cúpulas de chefes de Estado. É necessário enxergá-los em
seu sentido ampliado, examinando as forças na sociedade civil que se articulam
com os Estados e se institucionalizam para impulsionar e sustentar projetos
(contra)hegemônicos (GRAMSCI, 1971).
Nesse sentido, podemos analisar o Conselho Empresarial do BRICS e o Foro
Empresarial do BRICS como instituições do BRICS from above, que envolvem as
grandes corporações multinacionais dos países do BRICS e seus principais setores
econômicos. O Fórum Empresarial do BRICS ocorre desde a segunda cúpula de
chefes de Estado em Brasília, em 2010, e tem lugar paralelamente a todas as cúpulas
desde então. Porém, foi na cúpula de Durban, em 2013, que o fórum deu origem
a um órgão mais permanente: o Conselho Empresarial do BRICS. O conselho se
autodefine como uma “plataforma”, que tem por objetivo “promover e fortalecer
negócios, comércio e investimento” entre os cinco países, assegurar o diálogo
permanente entre a comunidade empresarial e os governos e identificar problemas
e gargalos a serem solucionados. Desde 2013, o conselho se organiza em grupos
de trabalho por setor/indústria, sendo eles: infraestrutura (transporte, estradas,
ferrovias, portos e aeroportos), manufatura (que inclui farmacêuticas, TI, entre
outros), agronegócio, serviços financeiros (como bancos e seguros), energia e
economia verde, e capacitação. Nesse sentido, o conselho tem encontros regulares
e funciona com um papel consultivo junto aos chefes de Estado.
O primeiro relatório anual 2013-2014 do conselho, lançado em Fortaleza em
2014, estabeleceu os grupos de trabalho e as primeiras iniciativas e demandas
aos governos dos países do BRICS. Segundo os empresários, os governos devem
facilitar vistos, harmonizar padrões técnicos, facilitar e apoiar associações
industriais, facilitar o estabelecimento de instituições financeiras e filiais nos países
BRICS, e acelerar o estabelecimento do NDB para promover laços comerciais e de
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
17
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
investimento. Também reforçam a necessidade de melhorar a conectividade e a
logística, promover a infraestrutura e as parcerias público-privadas. Esse relatório
deu especial ênfase às relações do BRICS com terceiros países, especialmente
os africanos. Assim, o conselho sugeriu que os países do BRICS fortaleçam
suas relações com a África do Sul e com alguns governos africanos para manter
um ambiente de negócios favorável, aumentar a cooperação de agências de
financiamento entre o BRICS e a África, investir nos corredores logísticos
Norte-Sul na África, apoiando, nesse sentido, projetos das corporações dos
países do BRICS no continente. O setor de exportação mineral é especificamente
citado. O conselho espera que os países do BRICS apoiem os empresários desse
setor na África, assinando contratos de longo prazo com exportadores africanos
e investindo em logística. Por fim, um conselho para promover o investimento
e comércio BRICS-África foi planejado (BRICS BUSINESS COUNCIL 2013/2014).
Em seu segundo relatório anual (2015-2016), lançado em Ufá, na Rússia,
em 2015, o conselho estabeleceu as prioridades do setor privado para os países
do BRICS. Nele são enfatizados o papel do financiamento público para bens
e serviços e a importância da estabilidade macroeconômica. Nesse sentido, o
NDB é elogiado e colocado como prioridade. Outras prioridades estabelecidas
no documento empresarial são: o estabelecimento de um acordo de facilitação
do comércio, o apoio ao comércio em moedas locais dos BRICS, a facilitação de
viagens empresariais, um ambiente favorável para negócios, a cooperação entre
agências regulatórias, o investimento em infraestrutura e a cooperação para
projetos de infraestrutura física regional, além do reconhecimento do próprio
conselho como plataforma consultiva com comunicação direta com as cúpulas
presidenciais (BRICS BUSINESS COUNCIL, 2015/2016). Essa última prioridade já
foi atingida. Os empresários têm efetivamente um canal direto de diálogo junto
à cúpula presidencial, ao passo que representantes governamentais transitam e
têm espaço privilegiado de fala na programação do Foro Empresarial, tendo sido
assinado um Memorando de Entendimento entre o Conselho e o NDB em Xiamen
(BRICS, 2017, “para”31).
Do “outro lado” da sociedade civil estão os encontros de movimentos sociais
e ONGs, que compõem as “cúpulas dos povos” do BRICS, no sentido do BRICS
from below. Segundo Waisbich (2016), apesar de frequentes obstáculos, houve
um aumento significativo do envolvimento das sociedades civis do BRICS desde
a entrada da África do Sul no bloco, em 2011. Esse envolvimento parte tanto de
discussões no âmbito nacional, quanto de encontros internacionais. O primeiro
18
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
desses encontros ocorreu no contexto da Cúpula de Durban, em 2013, e levou o
nome de Brics from below (JANS, 2013). No ano seguinte, 2014, houve o encontro
em Fortaleza (SEVERO, 2014). Já na cúpula de Ufá, houve uma inflexão: o governo
russo convocou um “encontro oficial” da sociedade civil, o Civil BRICS (CIVIL
BRICS, 2015), que apareceu pela primeira vez como um espaço reconhecido pela
cúpula de chefes de Estado. Contudo, o espaço controlado pelo governo russo
fez com que muitas ONGs não fossem convidadas, enquanto outras declinaram
o convite. Em Goa, em 2016, ocorreram os dois encontros, tanto o Civil BRICS,
organizado pelos governos, como o People’s Forum on BRICS, organizado por
movimentos sociais e ONGs indianas e internacionais (WAISBICH, 2016; PEOPLE’S
FORUM ON BRICS, 2016). Já em 2017, ocorreu apenas o 3º encontro do Civil BRICS
em Fuzhou, em junho. Nesse caso, destaca-se o fato de que, pela primeira vez,
os partidos políticos dos países do BRICS participaram do fórum. Não obstante,
a ausência de diálogos anteriores entre as organizações levou a uma falta de
influência dessas organizações na cúpula de Xiamen (BANDYOPADHYAY, 2017).
De modo geral, os encontros envolvem movimentos sociais, camponeses,
sindicatos de base, organizações ambientalistas e feministas, especialmente
do país sede da cúpula, mas também dos demais países do BRICS. Há trocas e
análises sobre temas específicos locais, nacionais e globais e referentes ao BRICS
e suas instituições. O tom é geralmente dado pela conjuntura dos grupos locais
que auspiciam os encontros: em Durban, os grupos afetados pelo projeto de
porto em South Durban; em Fortaleza, o comitê popular da Copa; em Goa, os
grupos contra o turismo predatório e sexual (WAISBICH, 2016). Por outro lado,
as cúpulas dos povos reúnem discussões comuns às sociedades civis do BRICS,
como posicionamentos críticos quanto às consequências ambientais, sociais e
econômicas de grandes projetos de infraestrutura, bem como reproduz críticas
tradicionais dos movimentos antiglobalização.
Expansão, adensamento e os limites da emergência
A partir dos processos causais anteriormente identificados, nota-se alguns
caminhos percorridos pelo BRICS. Primeiro, questões de segurança internacional
vêm ocupando, cada vez mais, um lugar de destaque nas cúpulas. Nesse caso, a
capacidade de unidade do BRICS tem sido colocada à prova, tendo em vista as
transformações geopolíticas associadas às relações entre EUA e Rússia e, em menor
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
19
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
grau, entre EUA e China. Particularmente, é interessante notar como a crise da
Ucrânia e seus desdobramentos – por exemplo, no âmbito do G7/8 – impactaram
conjunturalmente o BRICS: se, para alguns analistas, a Rússia nem mesmo deveria
ser parte do BRICS, em função de uma suposta ausência de interesses e objetivos
comuns (MACFARLANE, 2006; COOPER, 2006; KHALID, 2014), a partir de 2014,
o que se percebe é um intenso engajamento russo que, em sua busca por manter
sua esfera de influência regional, acaba influenciando significativamente a
agenda do grupo (FORTESCUE, 2014). Somado a isso, nota-se uma convergência
de interesses entre Índia, Rússia e China com relação ao combate ao terrorismo
(NEELAKANTAN, 2016).
Olhando para essa questão dos respectivos engajamentos de cada um dos
países partícipes do BRICS, Brasil e África do Sul parecem caminhar mais a reboque
do grupo: a despeito de um papel mais proativo em determinados momentos da
história do bloco, ambos países aparentam mais um comportamento norm-taker do
que norm-maker – embora deva ser destacado que a África do Sul, em consonância
com certos interesses chineses, logrou êxito significativo em colocar a África como
ponto de preocupação e destaque nas declarações do grupo, mantendo assim seu
objetivo de se apresentar como representante e porta-voz da África nos fóruns
internacionais
7
.
Nesse processo, nota-se que tanto o destaque das questões de segurança
internacional quanto o processo de outreach com relação a outros países sofre
uma influência direta do país que hospeda a cúpula, gerando certa dependência de
trajetória para o arranjo, bem como colocando condições de possibilidade para os
países anfitriões – tendo consequências para o adensamento institucional, como
visto na seção anterior. Ainda assim, ao longo da história do BRICS, o adensamento
institucional ocorre em larga medida nas questões associadas à economia política
internacional e, em particular, à questão do desenvolvimento internacional – uma
espécie de “caminho de menor resistência” (ABDENUR; FOLLY, 2015, p. 106) –
embora não se deva perder de vista os avanços ocorridos nas últimas cúpulas nas
questões de segurança internacional. Ou seja, olhar para os avanços do arranjo
em tais áreas é uma forma pertinente de identificar e relacionar os mecanismos
causais subjacentes aos processos constitutivos do BRICS, bem como serve de
7 Nesse caso, há um descompasso entre a posição brasileira e os rumos atuais do BRICS: se, por um lado, o tema
da reforma do Conselho de Segurança da ONU volta com força por pressão de Índia e África do Sul, por outro,
o Brasil ficará de fora do Conselho de Segurança pelo menos até 2033 – já que não apresentou candidatura nos
últimos anos para uma das vagas rotativas (MELLO, 2017).
20
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
tipos de hoop tests que confirmam a relevância da hipótese apresentada acerca
dos rumos do adensamento institucional do BRICS.
Não obstante, é interessante perceber que, de Ecaterimburgo a Xiamen, o
avanço institucional ocorre em constante diálogo com as instituições internacionais
existentes. Isso fica evidente na constante demanda pela implementação da
reforma das IFI, com destaque para o FMI; a ênfase na inovação como fator chave
para crescimento de médio e longo prazos e de desenvolvimento sustentável –
reafirmando assim a agenda do G20, expressa em 2016, em Hangzhou, bem como
a importância do G20 como fórum para cooperação macroeconômica; a discussão
sobre energia renovável, segurança energética e mudança climática associada
aos Acordos de Paris sobre mudança climática (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2016, “para”54, “para”70 e “para”92) – além das menções feitas
ao Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento
do Terrorismo (FATF/GAFI) e a OMC, por exemplo. Em termos políticos, a agenda
do BRICS não vem sendo de confrontação, mas sim a de reivindicar “um lugar à
mesa” junto às potências ocidentais, para obter mais voz e uma maior participação
dentro das instituições já existentes (GARCIA; BOND, 2015).
Essas questões nos remetem às relações entre BRICS e ordem mundial.
Se, por um lado, nota-se no BRICS uma agenda reformista, de crítica à ordem
mundial vigente e dos ajustes feitos a partir do fim da II Guerra Fria, por outro
lado, é fundamental perceber que esses países se encontram integrados à ordem
mundial, tendo seu processo de “emergência” intimamente conectado aos
processos de globalização neoliberal. Isso é importante, pois ajuda a entender de
maneira menos simplista certos rumos da conjuntura internacional, especialmente
(mas não somente) no que tange aos dois grandes exemplos de adensamento
institucional do BRICS, o NDB e o ACR. Embora sejam novos arranjos multilaterais
intimamente conectados a uma estratégia chinesa mais ampla de financiamento
de infraestrutura (RAMOS; VADELL, 2016), bem como a uma crítica corrente à
estrutura das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), eles mesmos
não se apresentam abertamente como uma alternativa contra-hegemônica (BRICS,
2015, “para”66). O ACR é particularmente interessante: no artigo 5 do Tratado para
o Estabelecimento do Arranjo Contingente de Reservas dos BRICS, que trata do
acesso das partes aos recursos do ACR, é afirmado que o acesso a 70% do máximo
disponível para cada parte depende necessariamente “da existência de um acordo
em curso entre o FMI e a Parte Requerente que envolva o compromisso do FMI
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
21
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
de prover financiamento à Parte Requerente com base em condicionalidades, e o
cumprimento pela Parte Requerente dos termos e condições do referido acordo”
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2014b, art. 5, d, ii, p.5). Ou seja, a
legitimidade do FMI – e em última instância, do Sistema de Bretton Woods – é
reafirmada desde a criação do ACR até a cúpula de Xiamen, quando se defendeu
a necessidade de “promover uma cooperação mais próxima entre o FMI e o ACR”
(BRICS, 2017, “para”30)
8
.
Dessa forma, faz cada vez mais sentido entender o BRICS não como um desafio
coletivo à ordem mundial, mas, sim, como um arranjo conservative globalizer
(KAHLER, 2013, 2016; GARCIA; BOND, 2015) que, nesse sentido, demanda, na
verdade, uma reforma da ordem mundial, seja no sistema ONU (Conselho de
Segurança, p. ex.), seja no Sistema de Bretton Woods. Isso ajuda a entender
também certos processos causais associados às críticas de certos movimentos da
sociedade civil ao BRICS, bem como a falta de diálogo explícito entre o arranjo e
esses movimentos – diferente do que ocorre com o Foro Empresarial do BRICS ou
o Conselho Empresarial do BRICS. Ou seja, em última instância, ajuda a entender
os limites do BRICS como um caso de emergência alternativa
9
.
Considerações finais
Os processos causais associados à emergência do BRICS apontam para
esse como um modelo com caráter diferenciado em um contexto neoliberal
(PIJL,2017), nitidamente: i) reafirmando o papel do Estado na alavancagem de
empresas multinacionais (estatais ou privadas) e na condução de grandes projetos
de infraestrutura e energia; ii) criando entraves à política de recurso à força
liderada pelos EUA, em franco tensionamento com a governança estruturada a
partir da ONU; e iii) projetando novos arranjos políticos e econômicos e criando
novas instituições credoras, como é o caso do NDB e dos bancos nacionais de
desenvolvimento dos países do BRICS.
Assim, se olharmos para a inserção do BRICS no sistema internacional “desde
cima” – partindo da perspectiva da disputa entre os grandes poderes mundiais –,
8 Para uma análise mais detalhada do NDB e do ACR, ver Carvalho et al. (2015).
9 Embora não seja o foco do presente artigo, é importante, nesse caso, para entender tais relações entre Estado e
sociedade civil no BRICS, entender as particularidades de seus respectivos processos de formação capitalista.
Nesse sentido, uma interessante discussão é apresentada por Pijl, 2017.
22
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
podemos observar tensões e desafios vindos desses países individualmente frente
às potências tradicionais. Nesse sentido, podemos considerar que o BRICS busca
acumular capacidades econômicas e políticas (que podem ser traduzidas em maior
capacidade militar) frente às potências hegemônicas. Se, por sua vez, olharmos
para as relações entre os países que compõem o BRICS de forma horizontal,
enxergamos as convergências e disputas entre esses mesmos países, com as
diferenças e desigualdades entre eles. Por fim, se enxergarmos o BRICS de forma
vertical, compreendendo as relações do BRICS com outros países e regiões do
Sul Global, podemos concluir que essas são relações de poder que se enquadram
no marco mais amplo de acumulação capitalista, respondendo a uma lógica de
disputa por recursos naturais, acesso a mercados e mão de obra cada vez mais
barata e superexplorada. Nesse artigo, buscamos mostrar essas diferentes visões,
partindo da identificação e análise de distintos mecanismos causais localizados
em níveis distintos de análise.
Passada, então, mais de uma década, a grande questão que se coloca diz
respeito aos rumos desse arranjo. Como visto, a conjuntura da geopolítica do
capitalismo tem sido um mecanismo com impacto significativo no processo de
evolução, adensamento institucional e de outreach do BRICS. Nesse sentido,
tendo em vista os rumos do arranjo, a atual conjuntura internacional terá também
impactos causais significativos na trajetória do BRICS. Deve-se ter em mente, assim,
i) a real capacidade centrípeta do BRICS de gerar um polo de contraposição aos
EUA sob a presidência de Donald Trump e, concomitantemente, ii) os impactos
gerados pelas próprias mudanças políticas no âmbito dos países do BRICS – como
no caso do Brasil, por exemplo. Certamente a direção e o rumo dos processos de
adensamento institucional (especialmente, mas não exclusivamente, nas áreas de
economia política – desenvolvimento internacional – e segurança internacional)
e de outreach, bem como o espaço às demandas da sociedade civil, tendem
a sofrer impactos dessas e de outras questões; ou seja, os desdobramentos
e entrelaçamentos futuros desses processos causais podem apresentar duros
testes para os avanços futuros do BRICS – em outras palavras, podem ser vistas
como testes complementares da hipótese aqui apresentada acerca dos rumos
do adensamento institucional do BRICS. Não obstante, essas são algumas das
perguntas que podem iluminar pesquisas futuras a respeito do BRICS e de seu
papel na ordem mundial daqui para frente.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
23
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
Referências
ABDENUR, A; FOLLY, M. O Novo Banco de Desenvolvimento e a institucionalização
do BRICS. In: R. Baumann, et. al. BRICS: Estudos e documentos. Brasília: FUNAG,
2015, p. 79-214.
ANDREASSON, S., 2011. Africa’s prospects and South Africa’s leadership potential in
the emerging markets century. Third world quarterly, 32(6), 2011, pp. 1165-1181.
DOI: 10.1080/01436597.2011.584725
BANDYOPADHYAY, K. K. Civil society engagement in BRICS: Mere symbolism? PRIA.
28 de junho de 2017.Disponível em: https://pria.org/pria/?p=3196. Acesso em:
05.nov.2017.
BEACH, D.; PEDERSEN, R. B. Process-Tracing Methods: Foundations and Guidelines. Ann
Arbor: University of Michigan Press. 2013.
BENNETT, A., Process tracing and causal inference. In: BRADY H. E; COLLIER, D.
Rethinking social inquiry: Diverse tools, shared standards. 2
nd
ed. Lanham: Rowman
& Littlefield, pp. 207-219, 2010.
BENNETT, A., 2013. The mother of all isms: causal mechanisms and structures pluralism
in International Relations theory. European Journal of international relations, 19(3),
pp. 459-481. DOI: 10.1177/1354066113495484, 2013.
BRICS INDIA: 2016. 8th Brics Summit: Building responsive, inclusive & collective
solutions. Goa. 15 outubro 2016. Disponível em: <http://brics2016.gov.in/content/
innerpage/8th-summit.php>. Acesso em: 28.abril.2016.
BRICS BUSINESS COUNCIL. Annual Report. 2013/2014. Disponível em: <http://arquivos.
portaldaindustria.com.br/app/conteudo_18/2014/07/15/6862/BRICSBusiness
CouncilAnnualReportDRAFT6-11JulySignature.pdf>. Acesso em: 28.abril.2017.
BRICS BUSINESS COUNCIL. Facing challenges, building confidence. Second Annual
Report 2015-2016. Disponível em: <http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/
conteudo_18/2015/07/09/9148/BRICSRelatrioAnual.pdf>. Acesso em: 28.abril.2017.
BRICS BUSSINESS COUNCIL. Members of the Brazilian BRICS business council, 2016.
Disponível em: <https://www.bricsbusinesscouncil.in/bbc-brazil.php>. Acesso
em 28.abril.2017.
CARVALHO, C. E., et all. O banco e o arranjo de reservas do BRICS: iniciativas relevantes
para o alargamento da ordem monetária e financeira internacional. Estudos
Internacionais, 3 (1), pp. 45-70, 2015.
CHERNOFF, F. 2007. Critical realism, scientific realism, and International Relations
theory. Millennium: Journal of international studies, 35(2), pp. 399-407.
DOI: 10.1177/03058298070350021701
CIVIL BRICS. 2015. Disponível em: <http://www.civilbrics.ru/en/>. Acesso em: 28.abr.2017.
24
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
COOPER, J. M. Russia as a BRIC: Only a dream? European Research Working Paper
Series, n. 13. Birmingham. Centre for Russian and East European Studies, University
of Birmingham, 2006.
DANÍVOLA, G. ¿Cómo va a funcionar el Nuevo Banco de Desarrollo de los BRICS? RBTH.
9.jul.2015. Disponível em: <http://es.rbth.com/economia/2015/07/09/como_va_a_
funcionar_el_nuevo_banco_de_desarrollo_de_los_brics_50813.html>. Acesso em:
10.mai.2016.
FORTESCUE, S. The BRICS and Russia. In: LO,V. I.; HISCOCK M. The rise of the BRICS in
the global political economy: Changing paradigms? Cheltenham: Edward Elgar, 2014.
GARCIA, A.; BOND, P. Introduction. In: BOND, P.; GARCIA, A. BRICS: An anti-capitalist
critique. Sunnyside: Jacana. Pp. 1-14, 2015.
GRAMSCI, A. Selections from the Prison’s Notebooks. Edited and translated by Quintin
Hoare and Geoffrey Nowell Smith. New York: International Publishers, 1971.
JANS, ‘Brics-from-Below’ – counter summit hosted in Durban. EarthLife Africa, 20.mar.2013.
Disponível em: <http://earthlife.org.za/2013/03/brics-from-below-counter-summit-
hosted-in-durban/>. Acesso em: 28.abr.2017.
KAHLER, M. Rising powers and global governance: negotiating change in a resilient status
quo. International Affairs, 89 (3). pp. 711–729, 2013. DOI: 10.1111/1468-2346.12041.
KAHLER, M. Conservative Globalizers: Reconsidering the Rise of the Rest. World
politics review, 2.fev. 2016. Disponível em: <http://www.worldpoliticsreview.
com/articles/17840/conservative-globalizers-reconsidering-the-rise-of-the-rest>.
Acesso em: 10.mai.2016.
KHALID, A. The power of the BRICS in world trade and growth, analysing the
macroeconomic impacts within and across the bloc. In: LO,V. I.; HISCOCK M
The rise of the BRICS in the global political economy: Changing paradigms?
Cheltenham: Edward Elgar, 2014.
MACFARLANE, N. S. The “R” in BRICs: Is Russia na emerging power? International
Affairs, 82 (1), pp.41-57, 2006. DOI: 10.1111/j.1468-2346.2006.00514.x
MEDEIROS, M. A. et all. Cooperação para autonomia? Explicando o paradoxo da política
externa brasileira para a Unasul. Rev. Sociol. Polit. 25 (61). pp. 97-123, 2017.
DOI: 10.1590/1678-987317256106.
MELLO, P. C. Brasil ficará de fora do Conselho de Segurança da ONU ao menos até 2033.
Folha de São Paulo. 17.mar. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
mundo/2017/03/1867280-brasil-ficara-de-fora-do-conselho-de-seguranca-da-onu-ao-
menos-ate-2033.shtml>. Acesso em: 28.abr.2017.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. I Cúpula: Declaração conjunta.
Ecaterimburgo. 16.junho/2009. Disponível em: http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/
categoria-portugues/20-documentos/73-primeiro-declaracao. Acesso em: 10 maio 2016.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
25
Leonardo César Souza Ramos; Ana Elisa Saggioro Garcia; Diego Pautasso; Fernanda Cristina Ribeiro Rodrigues
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL.II Cúpula: Declaração. Brasília.
15.abril/2010. Disponível em: <http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/categoria-portugues/
20-documentos/74-segunda-declaracao-conjunta>. Acesso em: 10 maio 2016.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL III Cúpula: Declaração e Plano de
Ação de Sanya. Sanya. 14.abril/2011. Disponível em: <http://brics.itamaraty.gov.
br/pt_br/categoria-portugues/20-documentos/75-terceira-declaracao-conjunta>.
Acesso em: 10 maio.2016.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL IV Cúpula: Declaração e Plano
de Ação de Nova Delhi. Nova Delhi. 29.março/2012. Disponível em: <http://brics.
itamaraty.gov.br/pt_br/categoria-portugues/20-documentos/76-quarta-declaracao-
conjunta. Acesso em: 10 maio 2016.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL V Cúpula: Declaração e Plano de
Ação de eThekwini. Durban. 27.março 2013. Disponível em: http://brics.itamaraty.
gov.br/pt_br/categoria-portugues/20-documentos/77-quinta-declaracao-conjunta>.
Acesso em: 10 maio 2016.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. VI Cúpula: Declaração e Plano
de Ação de Fortaleza. Fortaleza. 15.julho 2014. BRICS, art. 5, d, ii, p.5. Disponível
em: <http://brics6.itamaraty.gov.br/pt_br/categoria-portugues/20-documentos/224-
vi-cupula-declaracao-e-plano-de-acao-de-fortaleza>. Acesso em: 10 maio 2016.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. VII Cúpula: Declaração de Ufá.
Ufá. 9 julho 2015. Disponível em: <http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/categoria-
portugues/20-documentos/252-vii-cupula-do-brics-declaracao-de-ufa>. Acesso em:
10.maio.2016.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. Tratado para o Estabelecimento
do Arranjo Contingente de Reservas dos BRICS. 2014.Disponível em: <http://brics.
itamaraty.gov.br/images/ACR%20portugues.pdf>. Acesso em: 28.abril.2017
MINISTRY OF EXTERNAL AFFAIRS GOVERNEMENT OF INDIA Brics Bussiness Council.
2016b. Participating companies. Disponível em: <http://www.bricsbusinesscouncil.
in/confirmed-delegates.php>. Aceso em: 28.abril.2017.
MINISTRY OF EXTERNAL AFFAIRS GOVERNEMENT OF INDIA. Agreements between
BRICS Develoment Banks, Nova Delhi. 29.março 2012. Disponível em: <http://www.
brics.utoronto.ca/docs/120329-devbank-agreement.pdf>. Acesso em: 10 maio 2016
MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA. Xiamen
Declaration. Brics 2017 China. Disponível em: 4 de setembro de 2017. <https://
www.brics2017.org/English/Documents/Summit/201709/t20170908_2021.html.>
Acessado em: 05.novembro.2017.
NEELAKANTAN, S. India used Brics-Bimstec summit to outmanoeuvre Pakistan, Chinese
media says. The Times of India. 19.out. 2016. Disponível em: <http://timesofindia.
26
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
Adensamento institucional e outreach: um breve balanço do BRICS
indiatimes.com/india/India-used-Goa-Brics-meet-to-outmanoeuvre-Pakistan-Chinese-
media-says/articleshow/54933030.cms>. Acesso em: 10.mai.2016.
PAUTASSO, D.; ADAM, G.; LIMA, B. R. A política externa da Rússia diante da crise na
Síria. Tensões mundiais. 11 (21), pp. 147-168, 2015.
PEOPLE’S FORUM ON BRICS. The New Development Banks: Why AIIB and NDB should
be monitored. 2016. Disponível em: <https://peoplesbrics.org/2016/10/07/the-
new-development-banks-why-aiib-and-ndb-should-be-monitored/>. Acesso em:
28.abr.2017.
PEOPLE’S FORUM ON BRICS. Building Solidarities for Social, Economic and Environmental
Justice: Goa Declaration of the People’s Forum on BRICS. 14.out. 2016. Disponível
em: <https://peoplesbrics.org/2016/10/24/goa-declaration-of-the-peoples-forum-
on-brics/>. Acesso em: 28.abr.2017.
PIJL, K. The Eurasian Union and the BRICS under attack. Paper for the conference,
Regional Perspectives for China and its Neighbours, Confucius Institute, Leiden
University, 2017.
RAMOS, L. et all. Objetivos, contradições e atuação da África do Sul no G20. Meridiano
47, 13(132), pp. 46-52, 2012. DOI: 10.20889/7131.
RAMOS, L.; VADELL, J. Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB) and beyond: finance,
infrastructure and the seductive claws of the Chinese dragon. Artigo apresentado no
congresso da International Studies Association, Atlanta, 2016.
SAJJANHAR, A. Brics, Bismtec and Anti-terrorism: what did India accomplish?. The
Diplomat. 25.out.2016 Disponível em: <http://thediplomat.com/2016/10/brics-
bimstec-and-anti-terrorism-what-did-india-accomplish/>. Acesso em: 28.abril.2017.
SEVERO, L. Movimentos sociais debatem Os BRICS na perspectiva dos povos. 15.jul.2014.
Disponível em: <http://www.rebrip.org.br/noticias/movimentos-sociais-debatem-
os-brics-na-perspectiva-dos-povos-624d/>. Acesso em: 28.abril.2017.
THE BRICS POST BRICS Bank to lend $2.5 billion in 2017. 17.outubro 2016. Disponível
em: <http://thebricspost.com/brics-bank-to-lend-2-5-billion-in-2017/#.WATH9-
UrIdU>. Acesso em: 28.abril.2017.
WAISBICH, T. Diverse voices: A brief account on the civil society spaces at the margins
of the 8
th
BRICS Summit in India: BRICS ‘civilised’ and ‘popular’ spaces. Sexuality
Police watch. 29.dezembro.2016. Disponível em: <https://sxpolitics.org/diverse-
voices-a-brief-account-on-the-civil-society-spaces-at-the-margins-of-the-8th-brics-
summit-in-india/16206>. Acesso em: 29.abril.2017.
WIGHT, C. Agents, structures and international relations: Politics as ontology. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
27Rafael Shoenmann de Moura
Las Reformas Económicas de China y la
Geopolítica del Petróleo: un análisis de política
exterior a la luz de la cuestión energética
1
As Reformas Econômicas da China e a
Geopolítica do Petróleo: uma análise de política
externa à luz da questão energética
China’s Economic Reforms and the
Geopolitics of Oil: a foreign policy analysis
in the light of the energy issue
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.819
Rafael Shoenmann de Moura
2
Resumen
El objetivo de este artículo es, a partir de la evolución de la estructura energética de China,
evaluar los distintos delineamientos de su política exterior y las implicaciones geopolíticas de
su diplomacia. Después de dilucidar antecedentes históricos, el recorte temporal empleado
será enfático a partir de 1993 – cuando el país asiático se convierte en importador neto
1 Este artigo é uma atualização do debate feito originalmente num trabalho final de disciplina que tive na
Pós-Graduação em Ciência Política do Iesp-Uerj com os professores Carlos Milani e Maria Regina Soares de Lima,
docentes sempre solícitos e incentivadores da submissão do mesmo. E, é claro, um especial agradecimento à
professora Isabela Nogueira, grande referência que tenho em estudos sobre a China; e a Alexandre Palhano,
querido amigo e professor que inspirou meu interesse original pelo “País do Meio”. Felicito também os dois
pareceristas que contribuíram para me auxiliar em mitigar imperfeições da versão original desse escrito.
No mais, todos os equívocos e imprecisões aqui contidos são de minha inteira responsabilidade.
2 Estudante de PhD em Estudos do Desenvolvimento no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da
Universidade de Lisboa. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos (IESP-UERJ), onde é Bolsista FAPERJ Nota 10. Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos
do Empresariado, Instituições e Capitalismo (NEIC) e do INCT/PPED, também é vinculado ao Laboratório de
Estudos em Economia Política da China (LabChina-UFRJ) e à Associação Latino-Americana de Ciência Política
(ALACIP), onde desempenha as funções de consultor e secretário assistente. Organizou ainda, junto com os
professores José Szwako e Paulo D’Avila, o livro “Estado e Sociedade no Brasil: a obra de Renato Boschi e Eli
Diniz” (Rio de Janeiro: Ideia D, 2016).
Artigo submetido em 24/06/2018 e aprovado em 22/11/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
28 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
de petróleo – hasta años recientes, mostrando los impactos y desdoblamientos de décadas
de reformas de apertura, modernización económica y transformaciones productivas. La
hipótesis operada en este trabajo es que la sinergia entre la evolución de los lazos bilaterales
chinos y su respectiva política para el sector energético (específicamente el petrolero) se
encuentra correlacionada en parte al empleo estratégico de su poderío económico para
mitigar vulnerabilidades externas a su ascenso. Como objetos de consulta para validación
analítica empírica y sustantiva, haré uso de informes de agencias de energía y de las propias
firmas petroleras, y también datos secundarios encontrados en el seno de la bibliografía
movilizada. La conclusión encontrada es que la expansión económica china en continentes
como América Latina, África y Oriente Medio posee un fuerte condicionante directo en su
dependencia por recursos naturales, con la energía, en particular, dictando el tono para una
diplomacia más asertiva y ampliación de los los vínculos comerciales.
Palabras clave: China; desarrollo económico; petroleo; geopolítica; dependencia energética.
Resumo
O objetivo deste artigo é, a partir da evolução da estrutura energética da China, avaliar
os distintos delineamentos de sua política externa e as implicações geopolíticas de sua
diplomacia. Após elucidar os antecedentes históricos, o recorte temporal empregado será
enfático a partir de 1993 – quando o país asiático se torna importador líquido de petróleo
– até anos recentes, mostrando os impactos e desdobramentos de décadas de reformas de
abertura, modernização econômica e transformações produtivas. A hipótese operada neste
trabalho é de que a sinergia entre a evolução dos laços bilaterais chineses e sua respectiva
política para o setor energético (especificamente o petrolífero) encontra-se correlacionada
em parte ao emprego estratégico de seu poderio econômico para mitigar vulnerabilidades
externas à sua ascensão. Como objetos de consulta para validação analítica empírica e
substantiva, farei uso de relatórios de agências de energia e das próprias firmas petroleiras,
e também dados secundários encontrados no bojo da bibliografia mobilizada. A conclusão
encontrada é de que a expansão econômica chinesa em continentes como América Latina,
África e Oriente Médio possui um forte condicionante direto em sua dependência por recursos
naturais, com a energia, em particular, ditando o tom para uma diplomacia mais assertiva
e ampliação dos laços comerciais.
Palavras-chave: China; desenvolvimento econômico; petróleo; geopolítica; dependência
energética.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
29Rafael Shoenmann de Moura
Abstract
The goal of this article is, departing from the evolution of China’s energy structure, to
evaluate the different outlines of Chinese foreign policy and the geopolitical implications
of its diplomacy. After elucidating historical antecedents, the time frame will be emphatic
from 1993 – when the Asian country becomes a net importer of oil – until recent years,
showing impacts and ramifications of decades of opening reforms, economic modernization
and productive transformations. The hypothesis of this work is that the synergy between the
evolution of Chinese bilateral ties and their respective policy for the energy sector (specifically
the oil sector) is correlated in part with the strategic use of its economic power to mitigate
external vulnerabilities to its rise. As objects of consultation for empirical and substantive
analytical validation, I will make use of reports from energy agencies and the oil companies
themselves, as well as secondary data found in the bulge of the mobilized bibliography.
The conclusion reached is that China’s economic expansion in continents such as Latin
America, Africa and the Middle East is strongly and direct conditioned by its dependence
on natural resources, with energy in particular setting the tone for more assertive diplomacy
and broadening commercial ties.
Keywords: China; economic development; oil; geopolitics; energy dependency.
Introducción
El presente trabajo investiga las tendencias de la política exterior china en
concordancia con la cuestión energética nacional, particularmente de la demanda
estructural por petróleo. Tomando el período comprendido entre 1993 – cuando
China alcanza la condición de importadora neta de tal commodity – hasta los
días actuales, se buscará establecer interfaces entre la dimensión doméstica
de la economía política del país y la actuación diplomática practicada por el
Partido Comunista de China (PCCh). Esta amalgama entre la esfera endógena y
la exógena facilitará trazar como el imperativo de la seguridad energética impactó
profundamente en las transformaciones ocurridas, con escrutinio de las relaciones
geopolíticas y un mapeamiento de los resultados, riesgos y oportunidades existentes
en tal área.
En una definición general simple, la seguridad energética puede entenderse
como la garantía de recursos suficientes (donde el petróleo es sólo uno de ellos)
para atender requerimientos de las diferentes economías nacionales por las décadas
futuras (YERGIN, 2006). Es un componente fundamental de la propia seguridad
nacional en términos del funcionamiento exitoso de una economía industrializada
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
30 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
moderna; con las fuentes básicas podendo estar posiblemente localizadas en
áreas de recurrentes turbulencias y conflictos políticos. Es necesaria, justamente
por eso, la actuación del Estado; con los gobiernos domésticos asumiendo
tal responsabilidad crítica por medios diplomáticos, económicos y militares
(KLARE, 2016).
Evidentemente, la cuestión adquiere distintas connotaciones según la estructura
productiva de cada nación y momento analizado: para los países desarrollados
(por ejemplo, de la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económicos
– OCDE), la dicha seguridad se refiere a la disponibilidad de fuentes suficientes
a precios “sostenibles”. Para los países exportadores intensivos de energía, el
énfasis atribuido al concepto alude más al mantenimiento de la demanda para sus
ventas externas, garantizando recetas para esos Estados. Por último, para países
como India y China, se refiere a la adaptación rápida a la nueva dependencia de
los mercados globales que adquirieron con su ascenso en el plano geoeconómico
(YERGIN, 2006)
3
.
Por lo tanto, la hipótesis aquí operada trata de la existencia de una posible
correlación entre las relaciones comerciales bilaterales y las exclusivas del ámbito
energético, algo entendible a la luz de la estrategia china de la utilización de
sus herramientas de proyección económica para dilución de riesgos políticos y
viabilidad de su presencia y seguridad en el tablero global de recursos naturales.
La próxima sección buscará hacer una reconstitución histórica de los ejes
orientadores y paradigmáticos de la política exterior de la República Popular de
China (RPC) desde las reformas y apertura al mundo exterior, a partir de la Tercera
Sección Plenaria del 11º Comité Central del PCCh, en 1978, y el gobierno de
Deng Xiaoping. En la sección 2 se adentrará específicamente en el análisis sobre
la evolución de la estructura energética china a la luz de las transformaciones
económicas en boga, discutiéndose sobre las instituciones componentes de las
capacidades burocráticas estatales para el sector del petróleo, exponiéndose también
la división geográfica y social del trabajo dentro de este marco institucional. En
este sentido, las empresas petroleras chinas serán adoptadas analíticamente como
instrumentos sinérgicos del Estado para la ejecución tanto de una política comercial
para atender a la demanda creciente por la commodity como de la política exterior,
3 Yergin (2011) proporciona un panorama interesante sobre la geopolítica de la energía y posibles desdoblamientos
futuros para el inicio del siglo XXI. Ya para una genealogía histórica sintetizando el debate sobre el concepto de
seguridad energética y cómo el mismo adquirió distintos matices en las literaturas de los estudios de seguridad,
economía política internacional y geopolítica, ver Nunes (2013).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
31Rafael Shoenmann de Moura
capilarizando Beijing de influencia en los diversos países y continentes. En la
sección 3, a su vez segmentada en dos subsecciones menores (una discutiendo
los desdoblamientos sobre la estructura del mercado de petróleo y otra sobre las
rutas de transporte del producto al país asiático), se intentará obtener respuestas
a cuestionamientos hechos a partir de la ascensión china y su sed energética, con
sus respectivas características y desafíos, y qué implicaciones geopolíticas pueden
ser abstraídas de las tendencias encontradas. En la cuarta y última sección, por
fin, serán traídas las consideraciones generales incautadas a partir de este estudio.
1 La política exterior china y el imperativo de la estabilidad
económica
Además del notable éxito modernizante de las reformas económicas, los cambios
operados por Deng y la segunda generación de líderes del PCCh se extendieron de
forma bastante curiosa para el dominio de la política exterior de China, con una
interacción intrínseca e continua entre oportunidades y limitaciones, desafíos y
amenazas, tanto a nivel doméstico como externo (HEBRON, 2011; LI, 2012).
En el curso de las reformas, los esfuerzos de dos décadas han contribuido
para que, a finales de siglo, China tenga una estrategia multilateral desplegada en
varios niveles y canales en las relaciones internacionales, desempeñando un papel
frecuentemente sinérgico para el mantenimiento y viabilidad de su trayectoria
de desarrollo. Con objetivo de adecuarse a un patrón de acumulación de capital
y crecimiento donde dependía bastante de las inversiones extranjeras y de la
inserción y amalgama junto a las cadenas productivas regionales y mundiales
para alcanzar crecimiento y generación de ingresos, el gobierno chino estableció
una política exterior coordinada para la construcción económica, denotando la
relevancia de un ambiente periférico estable. Esto requirió, en diversos momentos,
reevaluaciones de su propia situación internacional, con acompañamiento atento de
las tendencias y coaliciones existentes entre los países, así como un pragmatismo
rígido en la línea y actitud de sus gobernantes.
4
4 Zhang denota que la política exterior china representativa de la era Deng está cristalizada básicamente en los ejes
determinados por la 4ª Sección del 6º Congreso Nacional del Pueblo (CNP), en marzo de 1986, destacándose
entre ellos la oposición al hegemonismo, el mantenimiento de los Cinco Principios de Coexistencia Pacífica, la
auto-declaración de su identidad como perteneciente al Tercer Mundo, buscando fortalecer la solidaridad y la
cooperación con otros países en desarrollo, la defensa de la Carta de las Naciones Unidas, entre otros (2012).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
32 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
El enfoque integracionista con la economía regional y global, encontrando
facilitador en la estrategia de crecimiento export-led, requería buenas relaciones
junto a otros países, siendo factor de peso para explicar la mayor participación en
las instituciones multilaterales mundiales (SHI, 2008; LAI; KANG, 2012; SUTTER,
2012). Tal postura cooperativa pareció ser la alternativa más viable ante las
oportunidades de inserción internacional colocadas en la década de los 1990, con la
percepción preocupante sobre el unilateralismo estadounidense y su “hegemonía”
haciendo con que China buscase coaliciones para obligar a la balanza hacia un
multilateralismo un poco más democrático, figurando de forma más prominente
en los asuntos periféricos y mundiales (LI, 2012; SUTTER, 2012). Se resalta, sin
embargo, que la posición china en el multilateralismo a lo largo de las décadas
consiguientes a las reformas de apertura se mostraron relativamente selectivas. Su
grado de compromiso varió según el tema en los más diversos foros e instancias,
con claro privilegio para la esfera económica (comercial) sobre otras, como, por
ejemplo, de los derechos humanos o cuestiones ambientales (CABESTAN, 2010).
Por su parte, en lo que se refiere a las grandes potencias que históricamente
fueron elemento clave para su posicionamiento en la política exterior, China
instrumentalizó las tendencias cambiantes de cada momento para hacer efectivos
al máximo posible resultados positivos, siempre dotada de una postura de no
alineamiento y no-confrontación (ZHANG, 2012).
Por lo tanto, desde las reformas económicas serían perceptibles condiciona-
mientos y complementariedades cada vez mayores entre la estructura interna
de China, concatenando todos los eventos de su integración al capitalismo, y
las distintas fuerzas y actores globales (SHI, 2008; LI, 2012; LAI; KANG, 2012;
SUTTER, 2012; SHAMBAUGH, 2013). Fue también la creciente y ya referida
interdependencia económica, adquirida por la integración paulatina del polo
manufacturero chino a los flujos de capitales circulantes, que habría dado a sus
líderes incentivos para influir en el ambiente externo. Las propias directrices para
asegurar condiciones de estabilidad económica emergieron, entonces, como fuerzas
motrices de su orientación diplomática, donde incluso las metas de seguridad
nacional estarían condicionadas por motivos de naturaleza fundamentalmente
económica y programadas para forjar un “ambiente internacional pacífico” que
endosaría o, por lo menos, no pondría trabas al desarrollo (LAI; KANG, 2012).
Por la forma en que los líderes en Beijing operan las variables para lograr
intereses nacionales, considerando las limitaciones impuestas por los recursos
endógenos y el contexto internacional donde están insertados, es que se puede
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
33Rafael Shoenmann de Moura
evaluar el significado del ascenso de China en el campo externo. Después de los
intentos ad hoc de abordar los desafíos de la insatisfacción de parte de la comunidad
internacional (Occidente) con las respuestas autoritarias a las manifestaciones
de 1989, en Tiananmen, y el desmantelamiento de los regímenes comunistas del
Este Europeo, su política exterior adentró en un “ciclo” aparente de acciones
más sistemáticas y consensuadas, principalmente a partir de 1996 y 1997, dentro
de un conjunto coherente denominado por Avery Goldstein (2001) como “gran
estrategia”.
5
De ese modo, se dibujaban contornos de una línea diplomática que
reflejaba una respuesta pragmática a las circunstancias del país y también a las
lecciones sacadas por sus líderes de las tendencias turbulentas del inmediato
post-Guerra Fría (GOLDSTEIN, 2001).
En la línea de los puntos dilucidados hasta aquí, además del PCCh abordar
preocupaciones inmediatas con su propia supervivencia política, la estrategia de la
pragmática política exterior de China buscó plantear una difícil ingeniería para el
desarrollo económico doméstico necesario para potenciar sus capacidades. Se puede
decir, de cierta forma, que los elementos de esta orientación estaban presentes
desde la era Deng, con la búsqueda de una política exterior independiente que
permitiría lograr ventajas en un ambiente internacional supuestamente menos
amenazador, con la bipolaridad dando lugar a la multipolaridad y a la oportunidad
pacífica de desarrollo.
Finalmente, se atenta al punto con relación a la diplomacia económica china,
pertinente al hecho de que su absorción en el orden capitalista global generó
una necesidad expansiva de enfocar su política exterior en la búsqueda de
ofertas seguras de energía, con pressiones engatilladas por el ritmo fervoroso del
crecimiento industrial observado en el país asiático al largo de las últimas décadas.
En la estela de esta demanda, posiblemente, estará el riesgo de mayores tensiones
con los vecinos en escenarios futuros (LAI; KANG, 2012). Las disputas en torno
a la cuestión de la energía, por lo tanto, adquieren cada vez más relevancia en
las consideraciones políticas conforme la dependencia se intensifica, exigiendo
comportamientos más asertivos por parte de Beijing que pueden fomentar
eventuales desentendimientos o respuestas hostiles de las demás naciones del
globo o del proprio sudeste asiático.
5 La coherencia de tal enfoque sólo fue victoriosa, según el autor, en función del centralismo decisorio del régimen
político chino, facilitando al núcleo del PCCh incrustado en el Estado proveer una dirección amplia dentro de
la cual los actores económicos deberían guiarse (GOLDSTEIN, 2001).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
34 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
2 La trayectoria de desarrollo de China: implicaciones para el
sector energético y su estructuración
En perspectiva global, China surge como la mayor nación consumidora
energética desde 2011, quedando atrás sólo de EEUU en lo que se refiere al
consumo específico de petróleo (U.S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION,
2015).
6
En esta relación, la participación del carbón todavía desempeña el mayor
peso en su matriz (alrededor de dos tercios o 65%), siendo uno de los pocos
recursos minerales detenidos en gran abundancia por el país asiático, a pesar de la
problemática logística de las minas de carbón se concentraren en las provincias de
las regiones Norte y Nordeste (NAUGHTON, 2007; WU; STOREY, 2008; GARRISON,
2011; PALHANO, 2012; CURRIER, 2012). Los diferenciales positivos del carbón
serían sus bajos costos y gran cantidad – hay que subrayar que, además de las
sensibles problemáticas ambientales generadas, este sector contiene altos índices
de precariedad en las condiciones laborales. Sin embargo, ante el enorme tamaño
de tales reservas, sumadas al costeo irrisorio, sigue siendo elemento basilar de la
estructura productiva china, por la propia óptica de la economía (CURRIER, 2012).
Con respeto al crecimiento económico e industrial masivo post-reformas,
incrementando la demanda por bienes de consumo duraderos, se consolidó
una sede energética sin escalas, afectando directamente a los mercados de esas
materias primas y sus derivados, contribuyendo a acelerar y retroalimentar aún
más la integración comercial china junto al resto del mundo. En 1993, China ya
figuraba como importadora neta de petróleo, con su demanda por el producto
prácticamente doblando por los diez años siguientes y la importación con el
tiempo superando la mitad de su consumo total (YERGIN, 2006).
7
El grado de
dependencia creciente de las importaciones alzó la seguridad energética como una
de las mayores preocupaciones destacadas en las consideraciones estratégicas del
PCCh y los planes quinquenales del Partido-Estado chino, con exigencias en tal
área condicionando directamente sus capacidades de maniobra diplomática según
cada caso (WU; STOREY, 2008). Esta sección, por lo tanto, mapeará el camino
evolutivo de la estructura nacional china de energía, tensada por el consumo per
6 En 2012, China figuraba como la segunda mayor consumidora mundial de petróleo, a pesar de contar con sólo
el 20% de su consumo total primario (U.S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION, 2015).
7 Entre 1978 y 2005, por ejemplo, la producción total de energía creció a tasas medias del 4,5% a.a., mientras
que el consumo, en la estela dinamizadora de las reformas, creció el 5,2% a.a. En 1993, ya no era posible para
China coadunar la demanda interna únicamente con la producción doméstica (NAUGHTON, 2007).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
35Rafael Shoenmann de Moura
cápita de petróleo excediendo por márgenes cada vez mayores la producción per
cápita relativamente estancada, atestada por el Gráfico 1 abajo:
Gráfico 1. Evolución Histórica del Consumo y Producción per cápita (Kg)
de Petróleo en China, 1990-2016
0
50
10
0
15
0
20
0
25
0
30
0
35
0
40
0
450
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Producción per capita Consumo per capita
Fuente: Elaboración propia a partir de NATIONAL BUREAU OF STATISTICS, 2017.
Este apetito creciente de China, ahora convertida en el mayor polo manufacturero
global mientras que las economías de la OCDE pasaban por reestructuraciones
productivas y se volvían cada vez más ancladas en el sector de servicios, engendró
nuevas consideraciones para los propios caminos futuros de la geopolítica global.
8
El gigantismo energético chino puede ser atestiguado por el propio aumento de su
participación en el consumo mundial (por millones de toneladas), como muestran
los Gráficos 2 y 3 abajo.
8 A partir de finales de la década de 1970, en medio de los procesos de liberalización financiera, integración
productiva y apertura comercial que los países desarrollados pasaban, con advenimiento de la desregulación
neoliberal y erosión de los “años dorados” del capitalismo del Post-Guerra, hubo un desplazamiento de la base
manufacturera de Occidente hacia el Este Asiático. China, en este sentido, fue una de las últimas beneficiarias
de esta transformación; que posteriormente se intensificara por el influjo de capitales procedentes de Japón
tras el Acuerdo de Plaza en 1985 (PINTO, 2011).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
36 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
Gráfico 2. Evolución de las Parcelas Regionales (%) del Consumo
Total de Energía, 1973-2015
Fuente: INTERNATIONAL ENERGY AGENCY, 2017.
Gráfico 3. Evolución de la Demanda por Petróleo de las Cinco Mayores Naciones
Consumidoras (miles de barriles al día), 1996-2015
0
5000
1000
0
1500
0
2000
0
25000
China EE UU India Japón Rusia
Fuente: U.S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION, 2017.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
37Rafael Shoenmann de Moura
A pesar de los esfuerzos gubernamentales para un mayor aprovechamiento
de sus reservas domésticas, el país se ve cada vez más dependiente de las fuentes
externas de oferta energética, excepto en el caso de energía eléctrica donde logra
atender la demanda interna con sus proprias fuentes hidráulicas y de carbón
(NATIONAL BUREAU OF STATISTICS, 2017). En vista de ello, el crecimiento
dramático de la demanda de petróleo se presenta como justificación política para
la expansión internacional de sus firmas en tal sector – sus National Oil Companies
o NOC (SHAMBAUGH, 2013). Dotada de la mayor población mundial con casi mil
millones y cuatrocientos millones de habitantes, la eventual incapacidad del país
de satisfacer su necesidad interna preocupa tanto a los liderazgos del régimen
dominante del PCCh como para otros países y actores que pueden quizás ver en
su emergencia una posible amenaza a las sus propias disponibilidades de tales
recursos en un horizonte de mediano y largo plazo (CURRIER, 2012; TAYLOR,
2014). Antes de evaluar la validez de tales interpretaciones y temores, lo que se
hará en la próxima parte del trabajo es trazar las facetas institucionales del sector
petrolero chino, su constitución y delineamiento a la luz de una cronología de
las reformas económicas.
En lo que se refiere a esta temática, el marco fundamental e histórico de
China fue el descubrimiento de los campos de Daqing, en 1959, y Shengli, en
1961, importantes por hacer la nación pasar incólume por los adversos choques
del petróleo de la década de 1970, siendo capaz de continuar atendiendo a la
demanda interna, en aquel período aún no tan significativa. Esto sin hablar de
su arregimiento como factor movilizador del orgullo nacional y de fuerza política
por parte de Mao Zedong, principalmente en el período seguido de la racha sino-
soviética (KAMBARA; HOWE, 2007; ANDREWS-SPEED, 2010; TAYLOR, 2014).
9
Con respecto a la estructura burocrática del sector energético, la división
interna en ella existente en este período comprendía dos grandes ramificaciones
gubernamentales: el Ministerio de Geología (MG) y el Ministerio de la Industria
de Petróleo (MIP). El primero se encargaba de la explotación, mientras el segundo
quedaba a cargo de la producción, el refino y el flujo. Pero, a lo largo de la década
de 1960, hubo una fuerte delegación de poderes institucionales al MIP, con los
gobernantes y burócratas chinos ya considerando y calculando políticamente la
9 Se destaca que, en los primeros años de la República Popular, antes del fallecimiento de Stalin
y de la ruptura entre los dos países, la URSS tuvo suma importancia en el auxilio a la formatación y
desarrollo del sector mineral y energético chino, con envío de técnicos para planicación de plantas
y unidades de explotación (ANDREWS-SPEED, 2010).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
38 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
importancia de la centralidad administrativa en el escenario post-desprendimiento
de la URSS (KAMBARA; HOWE, 2007; PALHANO, 2012).
10
De este modo, fue
notorio cómo tal estructura productiva logró atravesar, relativamente blindada,
a episodios más agudos de contestación social del período maoísta, como la
Revolución Cultural o la propia lucha política entre facciones en el seno del Estado
y del PCCh, con la disputa entre la “Gangue de los Cuatro” y el ala reformista
liderada por Deng y Hua Guofeng.
Otros cambios significativos sólo serían operados con el ascenso de Deng,
contando con la importante ayuda de su economista jefe Chen Yun y una
reorientación de la economía en favor de la industria ligera, productora de bienes de
consumo, más intensiva en trabajo y menos en energía. Esto requirió subsiguientes
reorganizaciones institucionales y cambios en el marco de gobernanza que acabaron
debilitando la influencia de la industria del petróleo junto a la alta cúpula del
Estado chino, una vez que las inversiones en la industria pesada a lo largo de las
tres décadas anteriores ya se habían madurado, haciendo que tal sector perdiera la
prioridad que antes tenía en la economía política de planificación central maoísta
(KAMBARA; HOWE, 2007; PALHANO, 2012).
En el marco de las reestructuraciones económicas realizadas por el gobierno en
la década de 1980, reformularon las firmas estatales para engendrar una división
sectorial del trabajo en el cuerpo de las NOC, con la SINOPEC (China Petroleum
and Chemical Corporation) asentada en las actividades downstream mientras
que la CNPC (China National Petroleum Company) y la CNOOC (China National
Offshore Oil Company) asumían responsabilidades upstream en operaciones en
la tierra y en el mar respectivamente.
11
Si antes de la década de 1990 las firmas petroleras estatales chinas actuaban
de modo desagregado y segmentado, enfrentando a la falta de competitividad
e interacción en una cadena productiva amplia, en 1998 se pone en marcha
una reformulación de la organización industrial para integrar verticalmente las
actividades de las NOC y permitir una dinámica de mayor competitividad entre
las mismas dentro de la meta del Partido-Estado de alzarlas como compañías
10 Por gobernantes me refiero específicamente a Mao Zedong, Zhou Enlai y Yo Qiuli (ministro del MIP), repensando
la estrategia de desarrollo a la luz del llamado “Tercer Front”, política de autoconfianza y centralismo en
respuesta al momentáneo aislamiento chino de las dos superpotencias.
11 Las terminologías upstream y downstream se refieren a diferenciaciones dentro de la cadena productiva de
petróleo, donde la primera tangencia los procesos de perforación, explotación y tratamiento del producto,
mientras que la segunda se refiere al transporte, distribución y comercialización.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
39Rafael Shoenmann de Moura
globales (ANDREWS-SPEED; DANNREUTHER, 2011; PALHANO, 2012; NOLAN,
2013).
12
El Cuadro 1 auxilia en el entendimiento de ese esfuerzo integrador con
el objetivo de imprimir mayor coordinación a dichas firmas:
Cuadro 1. Reestructuración de las Esferas de Actuación en el
Segmento Industrial Petrolífero
ActividadAntes de 1998 Después de 1998
Producción,
explotación
y transporte
de petróleo y
gas natural
Refinería,
petroquímica
y
manufactura
Distribución
doméstica y
minorista
Importación
y
exportación
Sinochem
Compañías locales
Sinopec
Compañías locales
CNSPC
CNPC
CNOOC
CNPC Sinopec
CNOOC
Sinochem
Fuente: PALHANO, 2012.
Esta reestructuración debe ser contextualizada a la luz de la aplicación del 9º
Plan Quinquenal (1996-2000) y su política de los “Campeones Nacionales”, bajo
el lema “Grasp the large and release the small” (“Sostenga las grandes y suelte las
pequeñas”). Tal política industrial, emergente de un proceso de experimentación y
combinación de directrices gubernamentales centrales con iniciativas de instancias
inferiores, consistió en la selección de 120 grupos empresariales en sectores
históricamente caracterizados por fuertes economías de escala. Estos grupos
pasarían a gozar de privilegios dentro del planeamiento de las autoridades chinas,
que, a pesar de la trayectoria liberalizadora de la economía, le aplicaban fuerte
dosis de proteccionismo, principalmente arancelaria (NOLAN, 2001).
12 Nolan (2001) destaca aún la división geográfica de la reestructuración de 1998, con Sinopec quedando a cargo
de los activos localizados más en la parte Sur y Este del país, mientras que la CNPC operaba los de las partes
Norte y Oeste.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
40 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
Así, fue engendrado un cambio importante en la propia naturaleza del control
estatal sobre los grandes conglomerados de sectores estratégicos, con el objetivo de
una mayor coordinación y regulación del sector público en mercados importantes,
como de telecomunicaciones, petroquímica, aeroespacial, minería, construcción
civil e infraestructura, etc. La elección por tal política provenía de estudios
inclinados sobre las experiencias desarrollistas exitosas de la industrialización
retardataria en los países vecinos del Este Asiático (principalmente Corea del Sur)
y de la observación de las condiciones existentes en el capitalismo oligopolista
avanzado, así como una cuestión del propio orgullo nacional (NOLAN, 2013). Una
de las consecuencias no pretendidas de tal política de reestructuración industrial
fue la de que las estatales restantes (sin pasar por privatizaciones o cambios en
el régimen de propiedad y organizativo) aumentaron su autonomía gerencial
y margen de poder político para defender sus “propios” intereses, incluso por
veces obstaculizando medidas reformistas defendidas por las autoridades chinas
centrales (TAYLOR, 2014).
Taylor (2014), todavía, deteniéndose en la estructura burocrática estatal,
argumenta que el poder institucional del gobierno central sobre el sistema bancario
y la fijación de precios del petróleo, así como la propiedad de las NOC, aún ha
dotado al PCCh de poder significativo en la determinación de las políticas para tal
sector. Así, fue capaz de promover también otros objetivos de orden económico
(como el control inflacionario), estratégico (fortalecimiento de diferentes sectores
industriales según el momento, principalmente los más sensibles a los costos
de combustibles) y social (empleabilidad). La centralización se muestra, por
lo tanto, imprescindible para la comprensión del proceso decisorio en China,
actuando mediante una serie de instrumentos e instituciones de control.
13
En
función de esto, es posible pensar en términos de un “autoritarismo burocrático”
más fidedigno para análisis concretos de tal sector (del petróleo), precisamente
por centrarse en el papel desempeñado por las elites en el cambio institucional
y en el policymaking orientado arriba-abajo, enfatizando la negociación interna
del sistema de gobernanza en un Estado altamente jerarquizado (TAYLOR, 2014).
13 Se trata principalmente de: la NDRC (National Development and Reform Commission), responsable por la
definición de la estrategia nacional de desarrollo energético y coordinación de los ministerios relacionados con
el dicho tema; la SASAC (State-Asset Supervision and Administration Comission), con supervisión y control,
principalmente de los campeones nacionales; la posición mayoritaria del Estado como accionista en las
estatales de capital abierto; el COD (Central Organization Department); el sistema de nomenklatura (utilizado
para nombramientos en los altos cargos de las estatales, generalmente vinculadas a performances y objetivos
trazados); y finalmente el propio papel de los bancos públicos (marcadamente el Banco de Desarrollo de China
– CDB) en los aportes a las firmas, como se aclarará más adelante en este documento.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
41Rafael Shoenmann de Moura
En la interpretación de algunos autores, no obstante, no se podría asumir las
NOC solamente como meros apéndices del Estado chino, ya que éstos han hecho,
y hacen uso, en diversos casos, de su poder económico y capilaridad política, a
remolque de la propia importancia estratégica adquirida en la economía, para influir
en decisiones gubernamentales a fin de gozar de beneficios o relativa autonomía
decisoria en sus operaciones (ANDREWS-SPEED; MA, 2006; CHEN, 2009; DOWNS,
2010; PALHANO, 2012; TAYLOR, 2014). Un punto pertinente a destacar es que la
disputa por la circunscripción del poder decisorio y definición de políticas por
parte de las autoridades corporativas de las NOC y líderes gobernantes del Estado
chino acaba por reflejar también disputas políticas en el seno del propio PCCh,
con la actuación de algunos ejecutivos del petróleo en el país representando
fuente de patronaje político y desafío al propio presidente en ejercicio Xi Jinping
(TAYLOR, 2014).
14
La próxima sección, segmentada en dos partes, por lo tanto, se dedicará
primero a analizar el modus operandi de la inserción externa de las NOC y sus
consecuencias, además de debatir questiones en lo que se refiere al futuro del
mercado mundial de petróleo. A continuación, se evaluaran las consecuencias
geopolíticas a partir de las rutas de transporte del dicho producto a China,
señalando puntos procedentes o no en los escenarios trazados por la bibliografía
utilizada.
3 China y la geopolítica del petróleo: consideraciones y pronósticos
En esta sección, primero, serán asignadas las consecuencias estructurales
detrás de la lógica de inserción de las NOC chinas en el mercado mundial del
petróleo, teniendo como puntos de partida el examen de cuatro cuestionamientos
planteados por la autora Erica Downs (2010): cuál el peso de la seguridad energética
como determinante eventual para sus inversiones externas (de RPC); el exacto
peso de las NOC sobre el sector upstream global; la influencia de la explotación
de las estatales chinas en lo que se refiere a la disponibilidad del producto; y la
cuestión de cuál es el real impacto del endoso del Estado chino a tales firmas en la
14 Coincidentemente, después de la campaña anticorrupción anunciada por el presidente en 2013, dos relevantes
personalidades presas fueron los ex dirigentes de la CNPC Zhou Yongkang y Jiang Jiemin; cuya vinculación con
el ex líder Bo Xilai – también preso – levantó sospechas en parte de los medios de comunicacción occidentales
sobre expulgos políticos (REUTERS, 2014; BBC; 2015).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
42 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
competición con las IOC (International Oil Companies). Ya en la segunda parte lugar
de esta sección, se discutirán las limitaciones políticas y económicas impuestas por
las problemáticas geográficas y logísticas de transporte, más enfáticamente por el
llamado “dilema de Malaca”, que desde el punto de vista estratégico representa
una preocupación relevante para las autoridades gubernamentales chinas.
a) La inserción externa de las NOC y sus impactos de mercado
Antes de empezar, algunas consideraciones previas son necesarias sobre la
inserción externa china en general: en la búsqueda por recursos, China presentó
una postura contradictoria con respecto a la adopción de una línea de acción única
y coordinada. La escalada de las necesidades de la RPC reforzó la ya existente
inclinación de Beijing de evitar conflictos con Washington y creó posibilidades
de convergencia de intereses entre ambas partes, como el mantenimiento de la
estabilidad en regiones esenciales en lo que se refiere a la exportación de recursos,
como Oriente Medio y el Sudeste Asiático. Al mismo tiempo, China manifiesta
apoyo a regímenes de los vulgos “Estados parias”, repudiados por la política y
retórica estadounidense (por ejemplo, Irán y Corea del Norte), justificándose
por su política desprovista de condicionalidades en lo que se refiere al sistema
político y las estructuras de gobernanza, tenidos como elementos pertinentes
exclusivamente a los actores domésticos de esos países (KAPLAN, 2010). Esta
aparente “contradicción”, sumada a la activa diplomacia de recursos energéticos
de la potencia asiática, contribuyó a sospechas de corto plazo por parte no sólo de
Estados Unidos, sino de diversas naciones occidentales. Por una óptica positiva,
sin embargo, esto engendró una ventana de opciones y oportunidades para Beijing
poner en práctica su estrategia de avance incremental visando una preponderancia
regional y global expandida (FRIEDBERG, 2006).
La lógica de internacionalización de las NOC chinas se mostró diversa y
ramificada en etapas, englobando procesos productivos de diferentes naturalezas
y respondiendo claramente a los desafíos políticos y coyunturales planteados.
En la visión de Andrews-Speed y Ma (2006), la internacionalización de las NOC
podría segmentarse en tres fases: la primera, comprendida entre 1992 y 1997,
asistió a una inserción conducida solamente por la CNPC, con el objetivo de ganar
familiaridad con el ambiente de operaciones y negocios globales, adquiriendo
prácticas y conocimientos corporativos (por veces a través de joint ventures).
En la segunda, que duró de 1997 a 2002, ya sería perceptible un cambio en el
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
43Rafael Shoenmann de Moura
comportamiento estratégico, con la CNPC pasando por la primera vez a invertir en
el desarrollo de proyectos de alto riesgo y manejo de grandes sumas de petróleo,
con la compra de activos de explotación cada vez más sustantivos y prioridades
geográficas más explícitas. Finalmente, en la tercera fase, desde 2002 hasta hoy,
hubo una proyección externa mayor también de CNOOC y la ampliación del alcance
geográfico de las estatales petroleras para incluir otras naciones. En estas obras,
el apoyo gubernamental permaneció considerable, con el uso de la diplomacia
para garantizar la concreción de los negócios en el ramo.
Esta última fase de la internacionalización de las NOC chinas, iniciada pocos
meses después del ingreso del país en la Organización Mundial del Comercio
(OMC), a finales de 2001, es contextualizada dentro de la lógica más grande de
la política “Going Out” (o “Going Global”) del gobierno de la RPC, lanzada en
2002, por Hu Jintao y Wen Jiabao, con el propósito de proyectar con aún mayor
asertividad a las firmas chinas (especialmente estatales) en la búsqueda por mayor
participación en los mercados y activos externos globales (FRIEDBERG, 2006, p.22).
15
A pesar de no justificarse únicamente por tal ingreso y por tal política, la fase de
internacionalización encontró elementos propulsores en ambos, tras la maduración
de la ya citada reestructuración burocrática y ministerial (MEIDAN, 2016).
Con el fuerte aumento del precio del petróleo a partir del mismo año (2002),
la diversificación ganó cada vez más relevancia conforme otras NOC, además de
la CNPC, iniciaban búsquedas por activos fuera del país. Con respecto al ámbito
geográfico, la expansión siguió una lógica objetivando incluir un gran número de
países de África y América Latina, así como del propio Sudeste Asiático. Además
de eso, la escala y la naturaleza de los proyectos pasaron a cubrir una gama
más amplia de actividades petroleras, con las empresas pasando de inversiones
de bajo riesgo y proyectos convencionales para actividades que estaban menos
familiarizadas. Por último, se señala la tendencia creciente de las firmas chinas
a comprar activos de actores ya existentes, negociando de forma directa con las
empresas petroleras y los gobiernos respectivos (FRIEDBERG, 2006).
El objetivo principal, tanto de las firmas petroleras cuanto del PCCh, de forma
general, sería la adquisición de activos de petróleo de una variedad amplia de
oferentes en todo el mundo; y, principalmente a partir de finales de la década
de 1990, el gobierno chino actuó íntimamente con las NOC con el objetivo de
15 Para una evaluación bastante resumida del propio gobierno chino acerca de los éxitos y límites encontrados
por tal política, ver People’s Republic of China (2017).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
44 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
ganar participación en proyectos de importancia estratégica en este sentido.
Justamente por ello, en la política exterior, integración a las instituciones y acuerdos
multilaterales fue la opción más constructiva seguida (ANDREWS-SPEED; MA,
2006). El papel de estas NOC está en consonancia con el deseado por la burocracia,
y sus objetivos son, primordialmente, lograr mayor competitividad vis-à-vis a
las empresas occidentales y asegurar energía suficiente internamente, actuando
de forma intensa en la adquisición de unidades de producción en el globo. Sin
embargo, comparadas a las gigantes de Occidente, las NOC todavía aún tienen
un camino por recorrer en términos de competición, internacionalización (ya que
buena parte de sus negocios se ubica y vuelve a la propia China) y catching-up
tecnológico (DOWNS, 2010).
Pasando ahora a las problemáticas estilizadas del inicio de la sección, en lo
que se refiere al primer punto del peso de la seguridad energética como variable
explicativa para la determinación de sus inversiones externas, se da que, de
hecho, las NOC gozan de mandato gubernamental. No obstante, retratar sus
inversiones como mero proyecto unidireccional concebido dentro de la alta casta
del gobierno o PCCh en Beijing oscurece una lectura apropiada y objetiva de la
lógica e incentivos de mercado, también operando en este juego y guiando la
expansión económica de las petroleras chinas (TAYLOR, 2014).
La diversificación de activos, conveniente a los policymakers gubernamentales
en función de la rigidez del mercado de tal commodity, no se disocia de las
prácticas comunes de los otros grandes actores en esas actividades, mucho menos
de elementos estructurales: como las demás firmas de petróleo, tienen necesidad
constante de adquirir nuevas reservas para sustituir las agotadas. Sin embargo,
lo harían con oportunidades muy limitadas, con las reservas chinas respondiendo
sólo al 1,5% de las reservas petroleras descubiertas y el 2,9% de las reservas de
gas natural mundiales. Como resultado, los activos extranjeros inexorablemente
pasan a configurar fuentes importantísimas para el crecimiento en reservas y
producción (BRITISH PETROLEUM, 2017; INTERNATIONAL ENERGY AGENCY,
2017). Por último, una preocupación pertinente es que las NOC difícilmente
logren producir petróleo suficiente para cubrir todos los requisitos de importación
de China, por el simple hecho de que más de tres cuartas partes de las reservas
mundiales se encuentren en países que no permiten ninguna participación de
capitales extranjeros (DOWNS, 2010).
Pasando al peso de las NOC chinas en las actividades upstream, a pesar de
la más reciente preponderancia asumida por la CNPC a través de su subsidiaria
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
45Rafael Shoenmann de Moura
PetroChina, el real peso de la inserción de las compañías estatales del país en el
terreno competitivo de las industrias de petróleo global debe ser relativizado por
dos factores: primero, al analizarnos su producción bruta diaria, sólo PetroChina/
CNPC haría frente a las principales IOC, con la CNOOC figurando muy atrás (Gráfico
4). Aunque permanecen invirtiendo en proyectos upstream en decenas de países,
sus activos no siempre logran aumentar sustancialmente la producción agregada,
aunque se han valorado bastante a lo largo de la última década y media, como
atestigua el Gráfico 5. En segundo lugar, no siempre compiten de forma directa
con las firmas extranjeras, pues su propia forma de adquisición tiene naturaleza
distinta, visando la acumulación de activos específicos esparcidos por el globo
en lugar de la lógica centrada en la rentabilidad a corto plazo que impregna las
IOC (TAYLOR, 2014).
Gráfico 4. Producción Líquida Diaria Internacional de Petróleo y Gas Natural por
Cías Seleccionadas (millones de BOE/día)
16
, 2017
Fuente: FORBES, 2017a.
16 BOE (Barrel of Oil Equivalent) es la sigla regularmente utilizada por diversas autoridades y estudiosos en
referencia al patrón de medición del equivalente de energía contenido en un barril de crudo o gas natural.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
46 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
Gráfico 5. Las principales compañías de petróleo por valor financiero
de sus activos (miles de millones de dólares)
17
, 2017
Fuente: FORBES, 2017b.
Sobre el tercer punto de Downs (2010), tratando de la real contribución de la
asertividad de las NOC a la adquisición y restricción del monto total de petróleo
disponible en el mercado mundial, es posible ver que, en realidad, éstas expanden la
oferta existente conforme adentran en campos y emprendimientos poco rentables o
atractivos (por los costos elevados). Además, otros factores económicos conectados
a la propia proximidad geográfica ayudan a explicar la distribución espacial de las
remesas de petróleo de las NOC en otros lugares para la propia China, con 45%
de las importaciones del producto, por ejemplo, proviniendo solamente de Oriente
Medio, con 23% del total de sus activos ubicados en Kazajstán (JIANG; SINTON,
2011). Con el desarrollo de la iniciativa de integración lanzada en 2013, “One Belt
One Road”, previendo inversiones logísticas y de corredores de exportaciones en la
región, tales valores incluso deben ser ampliados (CHEN, 2018; HUA et al., 2018).
18
17 Cabe señalar que dos importantes empresas petroleras, las estatales Saudi Aramco y National Iranian Oil Company
(NIOC), respectivamente pertenecientes a Arabia Saudita e Irán, fueron excluidas de esa lista en cuestión por
el hecho de no poseer capital en los mercados accionarios y bolsas de valores. La primera hasta llegó a cogitar
tal medida recientemente, sin embargo volvió atrás en la intención de apertura vía IPO (REUTERS, 2018).
18 Por cuestiones de alcance de este artículo, no podremos adentrar en todas las implicaciones de tal importante
iniciativa. Para una discusión más específica sobre la misma y su correlación con el tablero energético, ver Hua
et al. (2018).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
47Rafael Shoenmann de Moura
Finalmente, la última problematización planteada por Downs parecería ser
corroborada a partir del momento en que el apoyo financiero del Estado chino a
las NOC y sus flujos de efectivo – a través del crédito fuertemente centralizado
en manos de los bancos públicos del país asiático – innegablemente les ha
conferido y confiere ventajas competitivas (subsidios a riesgos) ante las grandes
corporaciones privadas internacionales (TAYLOR, 2014). Sin embargo, sigue siendo
extremadamente problemático medir empíricamente la amplitud de tales ganancias,
no por el aporte de recursos en sí, sino por el hecho de que las firmas chinas no
se comprometan directamente y con asiduidad en competición directa con las IOC.
El fomento al desarrollo proporcionado a los países con los que negocia la entrada
de sus empresas es un facilitador en algunas situaciones, pero no hace menos
complejas tales operaciones. Beijing se utilizó de esas herramientas – en cierto
sentido recurrentes en las experiencias históricas de las otras firmas petroleras en
sus relaciones con los respectivos gobiernos – para expandir internacionalmente
las NOC por al menos dos grandes motivos:
Una percepción generalizada tanto de la alta burocracia gubernamental china
como de la burocracia del sector petrolero es que tales empresas encuentran
desventajas y desequilibrios en la competencia global por reservas de recursos, en
función de la inserción tardía en las negociaciones internacionales. Mientras que
tales estatales iniciaron sus actividades al exterior en la década de 1990, y sólo en
los años 2000 con mayor vehemencia, buena parte de las IOC ya oligopolizaban el
mercado y la experiencia de la industria petrolera, operando por muchas décadas.
(DOWNS, 2010);
El crecimiento de los precios mundiales del petróleo entre 2002 y 2008 amplió
el poder de negociación relativo de los países poseedores de recursos, alentándolos
a fortalecer el centralismo y el control estatal en estos sectores. Fue precisamente
éste el caso de muchos países africanos, los cuales, desprovistos de infraestructura
logística crítica y en medio de dificultades de diversificación de sus economías
enfocadas en el sector primario, capitalizaron esa nueva posición proporcionada
por la coyuntura para amalgamar inversiones también en otras áreas (DOWNS,
2010; TAYLOR, 2014).
En vista de estos elementos, en la subsección siguiente la discusión pasará de
la estructura del mercado de petróleo a la logística de transporte de tal recurso hasta
China, aclarando los principales dilemas geopolíticos y geográficos enfrentados
por las autoridades del país asiático en lo que se refiere al flujo del producto hasta
su destino final, así como algunas iniciativas y respuestas a los mismos.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
48 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
b) El “dilema de Malaca” y los desafíos estratégicos de las rutas de
transporte petrolero
Otro obstáculo fundamental de los gobernantes chinos que debe ser aquí
señalado es el desafío geográfico pertinente al “dilema de Malaca”, término
inicialmente empleado por el ex presidente Hu Jintao en conferencia del PCCh, a
finales de 2003, y referente al estrecho del mismo nombre situado entre la costa
oriental de la isla de Sumatra, Indonesia, y la costa oeste de Malasia. Detentor de
600 millas de largo, provee el corredor y eslabón principal entre el Océano Índico
y el Mar del Sur de China. Este punto geográfico asume proporciones estratégicas
gigantescas tanto de orden económica como geopolítica, ya que pasan por él poco
menos del 80% de las importaciones chinas de petróleo, así como buena parte del
comercio con la Unión Europea, Oriente Medio y África (LANTEIGNE, 2008). En
el Mapa 1 abajo es posible visualizar tal estrecho, así como las principales rutas
de energía (de petróleo crudo y gas natural) que alimentan a China:
Mapa 1. Oleoductos, gasoductos y rutas marítimas de transporte de energía a China
Fuente: CENTER FOR INTERNATIONAL MARITIME SECURITY, 2014.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
49Rafael Shoenmann de Moura
En función de esta importancia, los altos representantes del PCCh y del Estado
chino han concentrado sus esfuerzos en mitigar la inseguridad representada por
la dependencia extrema de tal punto neurálgico, que queda detrás solamente
del Estrecho de Hormus en términos de volumen total de energía transportada
(LANTEIGNE, 2008; CHEN, 2010; ZHAO, 2011). Sus inquietudes se dividen
básicamente en dos tópicos principales:
Terrorismo marítimo (piratería), con aumento de ataques a fragatas y
embarcaciones en los mares del Sudeste Asiático, principalmente a lo largo de
los años 2000;
19
Temores chinos en relación con la dependencia de dicho transporte en una
región periférica tan conturbada, con riesgos eventuales de bloqueo en medio
de rencores históricos y embrollos territoriales. Además, la presencia militar
estadunidense en el Pacífico también representa un problema, en vista de las
acciones ambiguas de tal potencia en intentar contemporizar la creciente influencia
china.
20
Para intentar solucionar este dilema estratégico, China se ancló en una
actuación por diferentes vías: primero, con medidas relativas a la oferta energética,
con la ya destacada diversificación de los socios comerciales de petróleo y
ampliación de rutas. Segundo, a través de una estrategia militar, con adopción
cautelosa de Beijing de un enfoque más constructivo junto a los propios EE.UU.,
para atenuar temores de los vecinos y abrir acuerdos cooperativos multilaterales
de seguridad para una mayor estabilidad en los dichos mares (CHEN, 2010).
Con respecto a la diversificación de oferentes y rutas alternativas de energía,
dos iniciativas en particular son de destaque imprescindible: el oleoducto y
gasoducto construido conjuntamente con Myanmar y también los proyectos
de explotación de la región del Ártico junto a Rusia. Esta primera iniciativa
(también visible en el Mapa 1), que comenzó en octubre de 2009 y se concluyó
en 2017, conectando el litoral de aquel país hasta la provincia china de Yunnan,
representa un proyecto de garantía de seguridad energética en el marco de la
19 Entre 1999 y 2005, por ejemplo, se registraron 1220 ataques de piratería en el Sudeste Asiático, siendo 190
solamente en el Estrecho de Malaca (CHEN, 2010). Este índice decreció un poco a lo largo de los años subsiguientes,
volviendo a aumentar a partir de 2009. De tal año hasta septiembre de 2017, ocurrieron 819 ataques en la región
(INTERNATIONAL MARITIME BUREAU, 2017).
20 Con respecto a este último punto, Lanteigne (2008, p.154) subraya que representan riesgos más virtuales que
reales, teniendo en cuenta que cualquier intento de interdicción de esa ruta comercial para perjudicar a China,
además de ganancias cuestionables, también afectaría dramáticamente a los parceros económicos de Occidente
en el Este Asiático.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
50 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
profundización de las relaciones bilaterales e integración regional (ZHAO, 2011).
Con 771 kilómetros de extensión y participación mayoritaria de la CNPC (que
posee el 50,9% del capital invertido), el oleoducto guarda relevancia geopolítica
extrema por conferir a la RPC acceso al Océano Índico para allá de diversificar
el flujo de la commodity y proveer pasaje a más de 2 millones de toneladas de
crudo al año (CHINA DAILY, 2017).
21
Ya en lo que se refiere a la asociación chino-rusa en el área energética en
el Ártico, la región – con recursos abundantes – ha sido objeto recientemente
de tentativas diplomáticas chinas de alianzas bilaterales junto a sus naciones
circundantes (ALEXEEVA; LASSERRE, 2012).
22
En este sentido, fue con Rusia con
quien más concentró esfuerzos y con quien encontró mayor progreso para ampliar
su presencia económica y geopolítica en la región, en vista de la voluntad de
Moscú de ampliar lazos de cooperación en proyectos de producción y explotación
de recursos naturales. Así, ambos países pasaron a desarrollar una gama de
proyectos conjuntos entre las NOC chinas y las rusas Rosneft y Gazprom, donde
había sinergia en el suministro de materias primas por parte de Rusia y de fondos
financieros y tecnologías por parte de los chinos (ALEXEEVA; LASSERRE, 2012;
SØRENSEN; KLIMENKO, 2017).
Aunque vacilante y cauteloso, el interés chino por el Ártico sigue aumentando
en la estela del desarrollo de posibilidades alternativas de flujo más allá de
Malaca. Para materializar sus anhelos, China aprovechó las vulnerabilidades
geoeconómicas rusas recientes (como la dependencia de las exportaciones de
energía y las sanciones comerciales impuestas por las potencias occidentales tras
el imbróglio ucraniano) para consolidar gradualmente su influencia en la región a
través del aliado estratégico y posiblemente tener acceso en el futuro a un volumen
mayor de petróleo proveniente del oleoducto conectando el Este de Siberia hasta
la provincia de Heilongjiang (SØRENSEN; KLIMENKO, 2017). Esta asociación
puede lanzar una nueva luz, a partir del mediano plazo, a la dependencia china
del estrecho previamente mencionado, modificando tal marco.
No obstante estos proyectos e iniciativas citados, se hace acá otra observación
pertinente: a pesar de la convicción de cierta parte de analistas y gobernantes
chinos de que la diversificación diluiría la dependencia del Estrecho de Malaca, la
idea de satisfacer la demanda energética china sólo con inversiones o flujos por
21 Zhao (2011) constituye una óptima radiografía de las relaciones entre China y Myanmar en el campo de la energía.
22 En este sentido, es imperativo denotar aquí, por ejemplo, las crecientes actividades ejercidas por CNOOC y CNPC
en el norte de Canadá y en el campo de Dreki, situado entre Islandia y Noruega (SØRENSEN; KLIMENKO, 2017).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
51Rafael Shoenmann de Moura
tierra sería poco realista, demostrando una evaluación incompleta tangenciando
la seguridad y las propias particularidades del mercado de petróleo (ERICKSON;
COLLINS, 2011).
23
Los oleoductos, por ejemplo, no son estructuralmente capaces de aumentar
por sí mismos la seguridad de las importaciones chinas de petróleo: frente al
crecimiento exponencial e ininterrumpido de la demanda del país asiático, mismo
una posible ampliación de esos emprendimientos puede no garantizar la estabilidad
de las fuentes energéticas, en función de que no tienen de la misma flexibilidad
que hay en el transporte por mar.
24
Por otro lado, inversiones sustanciales en
iniciativas por la vía terrestre guardan efectividad y atractividad estratégica
también por sus efectos de spillover, generando interdependencia y ramificaciones
económicas y geográficas, apalancando relaciones comerciales y diplomáticas
entre las naciones involucradas con tales proyectos. A pesar de esto, no serían
solución para abordar todas las cuestiones geopolíticas inherentes al paso por
Malaca, que dependerán del éxito del pragmatismo en el enfoque diplomático
chino en relación con los vecinos del Sur y el Sudeste Asiático para alcanzar un
consenso cooperativo, con la amalgama intrínseca y creciente entre las economías
en la cadena productiva regional siendo un ingrediente favorable para su política
exterior (ERICKSON; COLLINS, 2011).
Sin embargo, no se puede perder de vista que, en parte por condiciones
fronterizas terrestres relativamente seguras, China hoy ve margen considerablemente
mayor para operar en mar, en la medida en que prosigue con la constitución de
una marina poderosa, buscando mayor influencia y ocupación en tales aguas.
Es posible señalar incluso que, en el siglo XXI, la capacidad china de proyectar
su hard power se dará mayoritariamente vía rutas marítimas – condiciones
geográficamente más favorables (KAPLAN, 2010). A pesar de tal consideración,
no se puede perder de vista el hecho de que China también enfrenta una serie
de tensiones y hostilidades que van mucho más allá de Malaca, comprendiendo
también puntos nodales relativos a los lechos energéticamente ricos situados en
el Mar del Este de China y en el Mar del sur de China, donde Japón aparece en
la disputa como un rival geopolítico.
23 También es válido resaltar que, con relación a la demanda energética, el gobierno chino (principalmente a partir
de Hu Jintao y Wen Jiabao) viene actuando a través de la ampliación de las inversiones en fuentes de energía
renovables, asentadas en la perspectiva a largo plazo de limpieza de la matriz y reducción de la presencia de
combustibles fósiles (JIANG, 2008; CHEN, 2010).
24 Además, aunque en menor medida, oleoductos también son vulnerables a sabotajes e interdicciones militares.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
52 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
Al concluir esta parte, se vio como el perfil de la RPC, por consideraciones
de propia escala y alcance de la búsqueda global por recursos, se incrementó de
forma sustancial no sólo en Asia, sino en prácticamente todas partes del mundo.
El punto favorable de esta asertividad sería la significativa contribución china
al desarrollo de infraestructuras y capacidades productivas variadas en muchos
países, principalmente naciones pobres o en desarrollo. Y por la óptica de la
estrategia de seguridad, tal diplomacia pluri-direccional contribuye aún a una
imagen relativamente más benéfica de la potencia asiática (FRIEDBERG, 2006).
Pero, evidentemente, al paso que los demás Estados asisten al continuo aumento
del consumo energético chino, sus anhelos sobre las condiciones futuras de oferta
y demanda de commodities inevitablemente van a crecer, pudiendo ocasionar
eventuales cambios en sus estrategias y coaliciones internacionales para actuar de
forma responsiva a su ascenso económico (de China) en el futuro (CURRIER, 2012).
Sintetizando lo que fue visto en el artículo hasta ahora, la demanda por
recursos naturales consolidó los eslabones de China con una gama considerable de
naciones en la parte más baja de las cadenas económicas globales, principalmente
las exportadoras de minerales. Tal vez la dimensión más significativa de estas
relaciones sea la interconexión cada vez mayor entre esas oferentes externas
con el régimen productivo chino y la incapacidad de esos países de sostener los
precios globales de sus productos. Este hecho, por sí solo, puede no trasladarse
directamente a una voluntad por parte de los países productores en alinear sus
políticas con China, pero, sin duda, hace a sus respectivos gobiernos más atentos
con sus directrices y rumbos políticos. De esta forma, la capacidad de Beijing
de extraer dividendos estratégicos en el papel de consumidora (en términos de
acuerdos energéticos favorables, tanto por el prisma de la diversificación como por
la garantía de recursos a largo plazo) dependerá de la profundidad de la amalgama
de las economías productoras junto al mercado chino. El uso político de su poder
de mercado será mayor en situaciones donde China quiere firmar compromisos
estratégicos a largo plazo con los potenciales ofertantes, siendo los exportadores de
commodities tal vez los más prometedores en este sentido. En muchas instancias,
Beijing ahora busca no meramente adquirir lo que necesita en los mercados
internacionales, sino también invertir en la extracción y procesamiento, así como
en ductos, rieles, carreteras y puertos. De tal manera, hace cada vez más creíble y
fácil el flujo de los recursos necesarios para el país, capiéndose aún en términos
de área de influencia política y económica en la periferia que se beneficia, a su
vez, del desarrollo de infraestructura logística (FRIEDBERG, 2006).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
53Rafael Shoenmann de Moura
4 Consideraciones finales
La transición capitalista transformó a la RPC en una gigantesca consumidora e
importadora de energía. Inevitablemente, catapultó la seguridad energética al tope
de las consideraciones de gobierno y Estado. La supervivencia del PCCh se vincula
ampliamente a la resiliencia del progreso productivo y distributivo modernizante
y generador de ingresos, cada vez más dependiente de la aptitud para sostener el
crecimiento económico, anclado en el acceso continuo a los recursos energéticos
(WU; STOREY, 2008; ANDREWS-SPEED; DANNREUTHER, 2011).
El gobierno actuó, en el ámbito doméstico, en la gestión de tal dependencia
creciente de importaciones de petróleo, buscando aumentar su conservación y
eficiencia, además de perpetrar reestructuraciones en sus firmas y en el mercado
interno (JIANG, 2008). Sin embargo, así como en cualquier país industrializado o
en curso de industrialización, su trayectoria de desarrollo en ese sector ha traído
consigo contradicciones y limitaciones, incluyendo desde la infraestructura de los
recursos energéticos domésticos hasta una cierta rigidez institucional oriunda de
las conturbadas relaciones entre las instancias gubernamentales definitorias de la
política nacional. Este trazado traería perspectivas más escépticas sobre cualquier
pronóstico de un cambio político dramático en el segmento referido, con mayor
probabilidad de gradualismos (ANDREWS-SPEED; DANNREUTHER, 2011).
Los impactos de la seguridad energética en las relaciones internacionales
chinas son múltiples, mostrando alta capacidad de engendrar tanto cooperación
como competición con otras potencias. El objetivo central de la política exterior
sigue siendo el mantenimiento de un sistema internacional, por encima de todo,
estable (WU; STOREY, 2008).
El incesante requerimiento de mayores importaciones de petróleo proporcionó
la lógica para la internacionalización de las NOC y la subsiguiente diplomacia de
la energía, que, en términos de frutos rendidos, ha traído al largo de varios años
la presencia china para más de cincuenta países, con vastos activos e inserciones
en tal área – según la multiplicación de las fuentes y suministros extranjeros,
la propia cuestión energética fue instrumentalizada en sintonía con iniciativas
diplomáticas y viceversa (ANDREWS-SPEED; DANNREUTHER, 2011).
Se concluye, sobre la base de todos los puntos enumerados, que la
profundización de las importaciones de energía fue y será un factor altamente
impactante y estratégico para la integración cada vez más latente entre China y el
resto del mundo. Con el objetivo de amalgamarse al sistema político y económico
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
54 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
global sin desafiar directamente los intereses occidentales, los líderes de Beijing
procurarán hacerlo en sus propios términos, expandiendo lazos con el mayor
número de socios posibles, siendo muchos de ellos generalmente simpáticos a
sus ambiciones estratégicas y a su enfoque de mayor intervencionismo estatal en
el direccionamiento económico y en la propia industria petrolera.
Para allá de las relaciones comerciales amplias y su diplomacia asertiva, el
expansionismo económico y militar chino en el Sur Global encuentra otro fuerte
condicionante también en la demanda de energía, con los tres puntos siendo
totalmente indisociables, con énfasis en América Latina, África y Oriente Medio.
25
En este sentido, se concluye que su dependencia de recursos opera en doble vía:
proporciona, por un lado, incentivos para el establecimiento y profundización
de lazos íntimos con diversos países y continentes; y, por otro, sería también
relativamente limitante de su perfil global por su peso económico crítico y por
las fluctuaciones de precios (ZIEGLER, 2011).
Por último, la búsqueda de la seguridad energética por el Estado chino y el
PCCh tangencia dimensiones tanto cooperativas como competitivas: la cooperación
se corporifica en emprendimientos conjuntos con las IOC y en inversiones para
desarrollo logístico y de infraestructura en múltiples países; y las competitivas
lo son en lo que se refiere al problemático ajedrez geopolítico del petróleo,
representando el gran dilema de seguridad de la RPC en sus relaciones interestatales
en la periferia asiática inmediata.
26
Referencias
ALEXEEVA, Olga; LASSERRE, Frédéric. The Snow Dragon: China’s Strategies in the Arctic.
China Perspectives, n. 2012/2013, 2012, p.61-68. Disponible en: <https://journals.
openedition.org/chinaperspectives/5958>.
ANDREWS-SPEED, Philip. Perspectives on the Governance of Energy in China. Journal
of Resources and Ecology, v. 1, n. 2, 2010, p.135-144.
25 En función de que la mayor parte del petróleo disponible se encuentra en el “Sur Global”, fue lógicamente para
allá que Beijing orientó sus miradas. Pero, a diferencia de lo ocurrido durante la Guerra Fría, su carrera por
mayor influencia y presencia en el Tercer Mundo ya no se dirige por la inclinación ideológica, sino por intereses
preponderantemente neomercantilistas y extractivistas (ZIEGLER, 2011).
26 En función, exactamente, de la continuidad de su crecimiento, reverberado por el aumento del consumo de
combustibles o energético de forma general (sea civil, industrial o en el sector del transporte), continuara
planteando tensiones sobre los mercados. Sólo entre 2000 y 2010, China fue responsable del 42,2% del incremento
en la demanda mundial por petróleo (PALHANO, 2012).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
55Rafael Shoenmann de Moura
ANDREWS-SPEED, Philip; DANNREUTHER, Roland. China, Oil and Global Politics.
London: Routledge, 2011.
ANDREWS-SPEED, Philip; MA, Xin. The Overseas Activities of China’s National Oil
Companies: Rationale and Outlook. Minerals & Energy, v. 21, n. 1, 2006, p.17-30.
BBC. Former China energy chief Jiang Jiemin jailed for corruption. 12 octubre 2015.
Disponible en: <https://www.bbc.com/news/world-asia-china-34503469>. Acceso
en: 5 de novembro de 2018.
BRITISH PETROLEUM. BP Statistical Review of World Energy June 2017. Junio 2017.
Disponible en: <https://www.bp.com/content/dam/bp/en/corporate/pdf/energy-
economics/statistical-review-2017/bp-statistical-review-of-world-energy-2017-full-
report.pdf>. Acceso en: 11 de janeiro de 2018.
CABESTAN, Jean-Pierre. La Politique Internationale de la Chine. Paris: Presses de Sciences
Po, 2010.
CENTER FOR INTERNATIONAL MARITIME SECURITY. Strategic Architectures. 12 Febrero
2014. Disponible en: <http://cimsec.org/strategic-architectures/9941>. Acceso en:
11 de janeiro de 2018.
CHEN, Shaofeng. Assessing the Impact of China’s Foreign Energy Quest on its Energy
Security. EAI Working Paper, n. 145, 2009, p.1-18.
CHEN, Shaofeng. China’s Self-Extrication from the ‘Malacca Dilemma’ and Implications.
International Journal of China Studies, v. 1, n. 1, 2010, p.1-24.
CHEN, Shaofeng. Is the Belt and Road Initiative set to enhance China’s energy security?. Asia
Dialogue, 19 abril. 2018. Disponible en: <http://theasiadialogue.com/2018/04/19/
is-the-belt-and-road-initiative-set-to-enhance-chinas-energy-security/>. Acceso en:
6 de novembro de 2018.
CHINA DAILY. Oil starts flowing through China-Myanmar pipeline. 12 abril 2017. Disponible
en: <http://www.chinadaily.com.cn/business/2017-04/12/content_28886175.htm>.
Acceso en: 7 de novembro de 2018.
CURRIER, Carrie Liu. China and the Global Surge for Resources. In KAVALSKY, Emilian
(Ed.). The Ashgate Research Companion to Chinese Foreign Policy. Surrey: Ashgate,
2012. Cap. 12, p.163-175.
DOWNS, Erica. Who’s Afraid of China’s Oil Companies?. In PASCUAL, Carlos; ELKIND,
Jonathan. (eds.). Energy Security: Economics, Politics, Strategy and Implications.
Washington: Brookings Institution Press, 2010. Cap. 4, p.73-102.
ERICKSON, Andrew; COLLINS, Gabriel. Pipelines versus Sea Lanes: Challenges and
Opportunities for Securing Energy Resources. In.: CURRIER, Carrie Liu; DORRAJ,
Manochehr (eds.). China’s Energy Relations with the Developing World. London:
Continuum, 2011. Cap. 9, p.175-194.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
56 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
FORBES. The World’s 25 Biggest Oil Companies. 2017a. Disponible en: <https://www.
forbes.com/pictures/mef45glfe/not-just-the-usual-suspects-2/#5cdd98d03ef5>.
Acceso en: 13 de janeiro de 2018.
FORBES. The World’s Biggest Public Companies. 2017b. Disponible en: <https://www.
forbes.com/global2000/list/#tab:overall>. Acceso en: 13 de janeiro de 2018.
FRIEDBERG, Aaron. Going Out: China’s Pursuit of Natural Resources and Implications
for the PRC’s Grand Strategy. NBR Analysis, v. 17, n. 3, 2006, p.5-34.
GARRISON, Jean. The Domestic Political Context for China’s Quest for Energy Security.
In CURRIER, Carrie Liu; DORRAJ, Manochehr (Eds.). China’s Energy Relations with
the Developing World. London: Continuum, 2011. Cap. 3, p.38-62.
GOLDSTEIN, Avery. The Diplomatic Face of China’s Grand Strategy: A Rising Power’s
Emerging Choice. The China Quarterly, n.168, 2001, p.835-864.
HEBRON, Lui. The Evolution of China’s Grand Strategy with the Developing World. In
CURRIER, Carrie Liu; DORRAJ, Manochehr (eds.). China’s Energy Relations with
the Developing World. London: Continuum, 2011. Cap. 2, p.17-37.
HUA, Yinxiao et al. Oil, Gas and Energy Business under One Belt One Road Strategic
Context. Open Journal of Social Sciences, n. 6, 2018, p.119-134.
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY. Key World Energy Statistics. 2017. Disponible en:
<https://www.iea.org/publications/freepublications/publication/KeyWorld2017.
pdf>. Acceso en: 11 de janeiro de 2018.
INTERNATIONAL MARITIME BUREAU. Piracy and Armed Robbery Against Ships.
2017. Disponible en: <http://www.hellenicshippingnews.com/wp-content/
uploads/2017/10/2017-Q3-IMB-Piracy-Report-Abridged.pdf>. Acceso en: 13 de
janeiro de 2018.
JIANG, Zemin. Reflections on Energy Issues in China. Journal of Shanghai Jiaotong
University, v. 13, n. 3, 2008, p.257-274.
JIANG, Julie; SINTON, Jonathan. Overseas Investments by Chinese National Oil
Companies: Assessing the drivers and impacts. IEA Information Paper, 2011, p.1-48.
KAMBARA, Tatsu; HOWE, Christopher. China and the Global Energy Crisis: Development
and Prospects for China’s Oil and Natural Gas. Cheltenham: Edward Elgar, 2007.
KAPLAN, Robert. The Geography of Chinese Power: How Far Can Beijing Reach on Land
and Sea?. Foreign Affairs, v. 83, n. 3, 2010, p.22-41.
KLARE, Michael. No Blood for Oil? Hydrocarbon Abundance and International Security.
In KLARE, Michael et al. (eds.). The Palgrave Handbook of the International Political
Economy of Energy. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2016. Cap. 17, p.419-440.
LAI, Hongyi; KANG, Su-Jeong. Economic Development and China’s Foreign Policy. In
KAVALSKY, Emilian (ed.). The Ashgate Research Companion to Chinese Foreign Policy.
Surrey: Ashgate, 2012. Cap. 8, p.113-121.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
57Rafael Shoenmann de Moura
LANTEIGNE, Marc. China’s Maritime Security and the ‘Mallacca Dilemma. Asian Security,
Vol. 4, N. 2, 2008.
LI, Mingjiang. International Status: China’s Pursuit of a Comprehensive Superpower
Status. In KAVALSKY, Emilian (ed.). The Ashgate Research Companion to Chinese
Foreign Policy. Surrey: Ashgate, 2012. Cap. 2, p.33-45.
MEIDAN, Michael. The structure of China’s oil industry: Past trends and future prospects.
The Oxford Institute of Energy Studies (OIES) Paper, n. 66, 2016, p.1-58. Disponible
en: <https://www.oxfordenergy.org/wpcms/wp-content/uploads/2016/05/The-
structure-of-Chinas-oil-industry-past-trends-and-future-prospects-WPM-66.pdf>.
NATIONAL BUREAU OF STATISTICS. China Energy Statistical Yearbook. Beijing: China
Statistics Press, 2017.
NAUGHTON, Barry. Growing Out of the Plan: Chinese Economic Reform, 1978-1993.
Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
NAUGHTON, Barry. The Chinese Economy: Transitions and Growth. Cambridge,
Massachusetts: the MIT Press, 2007.
NOLAN, Peter. China and the Global Economy: National Champions, Industrial Policy,
and the Big Business Revolution. London: Palgrave Macmillan, 2001.
NOLAN, Peter. Re-Balancing China: Essays on the Global Financial Crisis, Industrial
Policy and External Relations. London: Anthem Press, 2013.
NUNES, Carlos Costa. O Conceito de Segurança Energética. População e Prospectiva
Working Papers, n. 17, 2013, p.1-63. Disponible en: <http://www.cepese.pt/portal/
pt/publicacoes/colecoes/working-papers/populacao-e-prospectiva/o-conceito-de-
seguranca-energetica/O%20Conceito%20de%20Seguranca%20Energetica.pdf>.
PALHANO, Alexandre. Segurança Energética da China, um estudo das relações entre
Estado e Mercado com foco na indústria de petróleo e gás natural no período de 1978
a 2010. Tesis (Doctorado en Ciencias Económicas), Universidad Federal del Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA. China Going Global: between ambition and capacity.
2017. Disponible en: <https://policycn.com/wp-content/uploads/2017/05/2017-
Chinas-going-global-strategy.pdf>. Acceso en: 6 de noviembre de 2018.
PINTO, Eduardo Costa. O eixo sino-americano e as transformações do sistema mundial:
tensões e complementaridades comerciais, produtivas e financeiras. In PINTO,
Eduardo Costa; LEÃO, Rodrigo Pimentel Ferreira; ACIOLY, Luciana (orgs.). A China
na Nova Configuração Global: impactos políticos e econômicos. Brasília: IPEA, 2011.
Cap.1, p. 19-78.
REUTERS. Inside Xi Jinping’s purge of China’s oil mandarins. 24 julio 2014. Disponible
en: <https://www.reuters.com/article/us-china-purge-cnpc-specialreport/inside-
xi-jinpings-purge-of-chinas-oil-mandarins-idUSKBN0FT2NK20140724>. Acceso en:
5 de noviembre de 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 27-58
58 Las Reformas Económicas de China y la Geopolítica del Petróleo [...]
REUTERS. Exclusive: Aramco IPO halted, oil giant disbands advisers – source. 22 agosto 2018.
Disponible en: <https://www.reuters.com/article/us-saudi-aramco-ipo-exclusive/
exclusive-aramco-ipo-halted-oil-giant-disbands-advisers-sources-idUSKCN1L71TZ>.
Acceso en: 2 de noviembre de 2018.
SHAMBAUGH, David. China Goes Global: The Partial Power. Oxford: Oxford University
Press, 2013.
SHI, Yinhong. The impact of China’s capitalist transition on foreign policy. In MCNALLY,
Christopher (ed.) China’s emergent political economy: capitalism in the dragon’s lair.
London: Routledge, 2008. Cap. 11, p. 209-227.
SØRENSEN, Camilla; KLIMENKO, Ekaterina. Emerging Chinese-Russian Cooperation
in the Arctic: Possibilities and constraints. SIPRI Policy Paper, n. 46, 2017. p. 1-43.
SUTTER, Robert. Chinese Foreign Relations: Power and Policy since the Cold War. 3ª ed.
New York: Rowman & Littlefield Publishers Inc, 2012.
TAYLOR, Monique. The Chinese State, Oil and Energy Security. Basingstoke: Palgrave
Macmillan, 2014.
UNITED STATES ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION. China Overview. 14 mayo
2015. Disponible en: <https://www.eia.gov/beta/international/analysis.cfm?iso=
CHN>. Acceso en: 11 de enero de 2018.
UNITED STATES ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION. International Energy
Statistics. 2017. Disponible en: <https://www.eia.gov/beta/international/data/br
owser/#/?pa=0000001&c=ruvvvvvfvtvnvv1urvvvvfvvvvvvfvvvou20evvvvvvvvvn
vvuvo&ct=0&tl_id=5-A&vs=INTL.5-2-CHN-TBPD.A&ord=CR&cy=2015&vo=0&v
=H&end=2016>. Acceso en: 11 de enero de 2018.
WU, Kang; STOREY, Ian. Energy security in China’s capitalist transition. In MCNALLY,
Christopher (ed.). China’s emergent political economy: capitalism in the dragon’s
lair. London: Routledge, 2008. Cap. 10, p. 190-208.
YERGIN, Daniel. Ensuring Energy Security. Foreign Affairs, 2006. Disponible en:
https://www.foreignaffairs.com/articles/2006-03-01/ensuring-energy-security. Acceso
en: 2 de noviembre de 2018.
YERGIN, Daniel. The Quest: Energy, Security, and the Remaking of the Modern World.
New York: The Penguin Press, 2011.
ZHANG, Baijia. The Path of the CPC: Revolution, Construction and Reform. Beijing:
Foreign Languages Press, 2012.
ZHAO, Hong. China-Myanmar Energy Cooperation and Its Regional Implications. Journal
of Current Southeast Asian Affairs, v. 30, n.4, 2011. p.89-109.
ZIEGLER, Charles. China’s Energy Relations with the Global South: Potential for Great
Power Realignment. In CURRIER, Carrie Liu; DORRAJ, Manochehr (eds.). China’s
Energy Relations with the Developing World. London: Continuum, 2011. Cap. 10,
p. 195-212.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
59Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
O Brasil no Órgão de Solução de
Controvérsias da OMC: soft balancing?
Brazil in the WTO Dispute Settlement Body:
soft balancing?
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.762
Daniel Castelan
1
Leandro Wolpert dos Santos
2
Resumo
O objetivo do artigo é analisar se a atuação do Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias
da OMC (OSC) reflete uma estratégia de soft balancing por parte do governo brasileiro. Para
atingir o propósito, foram realizadas as seguintes tarefas: (i) identificação de se e quando o
balanceamento do poder estadunidense se tornou um propósito da política externa brasileira,
através da análise de discursos e documentos oficiais; (ii) análise dos números de casos levados
pelo governo brasileiro no período, em comparação com países aliados dos Estados Unidos,
para verificar se há algum viés no uso do OSC que indique o uso político desse mecanismo;
e (iii) análise do contencioso aberto contra os EUA sobre subsídios ao algodão, em 2003.
Os resultados indicam que, embora o conceito seja adequado para interpretar algumas
iniciativas de política externa, há limitações em sua aplicação à atuação do governo brasileiro
no OSC, pois as competências para a abertura de casos não eram exclusivas do Itamaraty e
também porque o número de casos abertos contra os EUA reduziu-se bastante no momento
em que, discursivamente, as críticas à concentração do poder mundial se tornavam mais
recorrentes. Sendo assim, recorrer a tal interpretação desvia o analista de buscar explicações
em outros níveis de análise que podem ter sido determinantes no caso em questão.
Palavras-chave: Soft Balancing; Política Externa Brasileira; Estados Unidos; Órgão de Solução
de Controvérsias; Organização Mundial de Comércio.
1 Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ), é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde
integra o Grupo de Análise de Política Externa (GAPE).
2 Doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (IESP/UERJ), é bolsista CNPq e integrante dos grupos de pesquisa GAPE (Grupo de Análise de
Política Eterna), OPSA (Observatório Político Sul-Americano) e NEAAPE (Núcleo de Estudos Atores e Agendas
de Política Externa).
Artigo submetido em 17/12/2018 e aprovado em 02/10/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
60 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
Abstract
The objective of this paper is to analyze whether Brazil’s role in the WTO Dispute Settlement
Body (DSB) reflects a strategy of soft balancing by the Brazilian government. To accomplish
this purpose, the following tasks were carried out: (i) identification of if and when the
balance of US power became a purpose of Brazilian foreign policy, through the analysis of
speeches and official documents; (ii) analysis of the numbers of cases taken by the Brazilian
government in the period, compared to allied countries of the United States, to verify if
there is any bias in the use of the DSB that indicates the political use of this mechanism;
and (iii) analysis of the litigation opened against US cotton subsidies in 2003. The results
indicate that although the concept is adequate to interpret some foreign policy initiatives,
there are limitations in its application to the Brazilian government’s role in the DSB, because
the powers to open cases were not unique to the Itamaraty, and also because the number
of cases opened against the US was greatly reduced at a time when, discursively, criticisms
of the concentration of world power became more recurrent. Thus, recourse to such an
interpretation diverts the analyst from seeking explanations at other levels of analysis that
may have been decisive in the case in question.
Keywords: Soft balancing; Brazilian Foreign Policy; United States; Dispute Settlement Body;
World Trade Organization.
Introdução
Em novembro 2009, a revista The Economist estampou em sua capa uma foto
do Cristo Redentor decolando, abaixo de um título não menos enfático:”Brazil
takes off”. A imagem bem expressava a expectativa, comum à época, de que o
Brasil crescia e, em decorrência, teria mais espaço na discussão dos grandes
temas da política internacional. O reconhecimento não era inédito. Termos
como “emergentes”, “potências médias”, “global players” e “grandes mercados
emergentes” visitaram as análises sobre política externa com a mesma frequência
com que ciclos econômicos de tempos em tempos renovam suas expectativas de
desenvolvimento. Se, no final dos anos de 1970, estiveram em pauta os Newly
Industrialized Countries (NICs), na primeira década dos anos 2000 os holofotes
se dirigiram para os BRICS.
Nesse período, o debate foi acompanhado por análises sobre as estratégias
de política externa perseguidas por tais países com o fim de expandir seu papel
na política internacional, tanto no relacionamento com a região, como com
grandes potências ou instituições internacionais (HURREL, 2009; DESTRADI, 2010;
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
61Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
SCHWELLER; PU, 2011; STEPHEN, 2012; FLEMES, 2013). Parte dessa literatura, de
tradição realista, defendeu a tese de que o Brasil, assim como outros emergentes,
teria adotado uma estratégia de soft balancing (balanceamento brando), com
vistas a conter o poder e a influência das potências estabelecidas, em especial os
Estados Unidos, no processo decisório global, por meio de iniciativas diplomáticas
e institucionais predominantemente não militares, tais como: entendimentos
informais e exercícios cooperativos ad hoc; colaboração através de arranjos
diplomáticos em instituições regionais ou internacionais; reforço da coesão
econômica entre os alinhados, através, por exemplo, da construção de blocos
econômicos regionais, sem a participação dos Estados Unidos; transmissão de
sinais diplomáticos do comprometimento de resistir às ambições do Estado
dominante; entre outros (HURREL, 2009; FLEMES, 2009, 2010; FONSECA JR., 2012;
LOPES, 2017).
O ativismo brasileiro no Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da
Organização Mundial de Comercio (OMC) foi utilizado, pela literatura, como uma
das evidências da estratégia de balanceamento brando na política externa brasileira
(HURREL, 2009; FLEMES, 2009, 2010). Segundo Hurrel (2009), as ações movidas
pelo Brasil contra os EUA no OSC, além de atenderem a interesses comerciais
concretos, teriam visado ao mesmo fim de outras práticas de soft balancing, qual
seja, desconcentrar o poder mundial. Isso porque instituições internacionais como
a OMC permitem que países de menor poder relativo contra-arrastem, ainda
que com limitações, a proeminência das potências dominantes, em particular os
Estados Unidos. Assim, através das instituições internacionais, países como Brasil
e a Índia seriam capazes de
acorrentar Gúliver [em referência aos EUA] de todas as formas possíveis,
independentemente de quão finas as amarras individuais possam ser. Não é
surpreendente, portanto, que o Brasil e a Índia sejam o quarto e o quinto países
que mais ativamente reclamem no mecanismo de solução de controvérsias
da Organização Mundial de Comércio (OMC). (HURREL, 2009, p. 27)
Entretanto, ao defender o argumento de que a política brasileira na OSC
atende à estratégia de soft balancing, Hurrel (2009) não examinou um pressuposto
necessário para sua validade: qual seria a motivação, intenção ou propósito do
governo brasileiro ao abrir os contenciosos na OMC. E, sem avaliá-las, é impossível
qualificar as ações no OSC como estrategicamente voltadas ao soft balancing.
Flemes (2009; 2010) cometeu o mesmo equívoco ao replicar o argumento de
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
62 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
Hurrel (2009) e não fornecer evidências de que os governantes brasileiros foram
motivados por razões de política de poder ao decidirem acionar os Estados Unidos
no OSC. Desse modo, ambos os autores deixaram de levar em conta explicações
alternativas para o ativismo brasileiro no OSC.
O objetivo deste trabalho consiste, pois, em analisar mais criteriosamente se
as ações brasileiras no OSC podem ser qualificadas como soft balancing, como
forma de refletir sobre os rendimentos analíticos desse conceito. Realizamos as
seguintes tarefas com esse fito: depois de apresentar a tese do soft balancing
na seção 1, na seção 2, buscamos evidências gerais de que tal propósito esteve
presente nas diretrizes gerais da política externa brasileira recente, recorrendo a
discursos e documentos oficiais. Em seguida, na seção 3, através do levantamento
de alguns números sobre a atuação do Brasil no OSC e de um estudo de caso
típico, buscamos avaliar o argumento de que o Brasil utilizou tal órgão como uma
estratégia de soft balancing, nos termos definidos pela literatura sobre o assunto.
1 A tese do soft balancing
Com o incremento do unilateralismo na política externa dos Estados Unidos a
partir da “Doutrina Bush” de guerra ao terror e a reação assertiva de países como
Alemanha, França e Rússia contra os planos estadunidenses de invasão militar
do Iraque no início dos anos 2000, parte da literatura ocidental, influenciada
pelos aportes teóricos da corrente realista das relações internacionais, propôs-se
a analisar, teoricamente, a resposta de países de segunda ordem à percepção de
ameaça representada pela potência dominante durante o governo de George W.
Bush. Desses estudos, surgiu a tese do soft balancing, que combinou elementos da
teoria da balança de poder de Waltz (1979) com a teoria da balança de ameaças
de Walt (2002).
De acordo com os proponentes da referida tese, o balanceamento brando,
diferentemente das formas tradicionais de balanceamento, não envolveria tentativas
diretas de confrontar ou constranger as preferências do país dominante por meio
de alianças militares ou mobilização militar, mas sim de estratégias diplomáticas e
institucionais predominantemente não militares, com o propósito de atrasar, frustrar
e minar práticas intervencionistas e políticas unilaterais dos EUA, restringindo a
projeção política de seu poder militar; resistir à pressão econômica, política e até
mesmo militar dos Estados Unidos; aumentar o poder de barganha em negociações
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
63Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
internacionais, sejam elas relacionadas a questões específicas ou a amplos acordos
de governança global; demonstrar aos EUA as limitações de sua influência, isto
é, que nem sempre os demais países irão aceitar resignadamente a imposição das
preferências da potência hegemônica; e desfrutar maior autonomia em relação
aos Estados Unidos (PAPE, 2005; PAUL, 2005; WALT, 2006).
Segundo a tese do soft balancing, o comportamento externo do país dominante
e sua percepção por parte das lideranças políticas nos países de segunda
ordem são considerados fatores decisivos para o surgimento de estratégias de
balanceamento brando. Quer dizer, não basta o unipolo apresentar uma postura
revisionista em sua política externa, é necessário também que os demais Estados
o percebam como uma ameaça indireta ou potencial (PAUL, 2004; PAPE, 2005;
WALT, 2006). Nada obstante, as percepções e motivações dos líderes políticos
dos países de segunda grandeza têm recebido pouca atenção teórica e empírica
na literatura acadêmica sobre o soft balancing. Com efeito, boa parte dos estudos
tem apresentado um forte viés normativo a favor dos condicionantes sistêmicos
desse tipo de comportamento estatal, especialmente a distribuição mundial de
poder e as atitudes da potência hegemônica. Os Estados de segunda grandeza,
via de regra, são tidos como atores unitários, que respondem aos estímulos
sistêmicos a partir da sua posição relativa na hierarquia mundial de poder, de
modo que as motivações originais dos atores políticos têm sido negligenciadas para
a verificação da ocorrência da estratégia de balanceamento brando (ART, 2006;
HE; FENG, 2008). Reproduz-se, dessa forma, o argumento lógico da teoria
neorrealista de Waltz (1979), segundo o qual o equilíbrio de poder surge como
resultado não necessariamente intencional da ação dos Estados, que, levados
pela anarquia internacional a priorizar a segurança nacional como seu interesse
absoluto, acabam costurando alianças e arregimentando forças que levam a um
resultado sistêmico – a balança de poder – nem sempre pretendido.
A negligência das motivações políticas dos Estados que supostamente estão
engajados na estratégia de balanceamento brando ensejou fortes críticas, dentro
da própria escola realista, à tese de soft balancing. Como argumentam Liber
e Alexander (2005), além de difícil operacionalização empírica, o conceito de
balanceamento brando muitas vezes é confundido com a mera barganha política
ou com fricções diplomáticas corriqueiras da política internacional. No mesmo
diapasão, Brooks e Wolhforth (2005) afirmam que a tese do soft balancing se
torna infalsificável ao não considerar explicações alternativas para os fenômenos
que supostamente constituem evidências de balanceamento brando, tais como:
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
64 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
interesses econômicos, preocupações de segurança regional, disputas políticas e
incentivos políticos domésticos. Desse modo, uma forma de falsificar o conceito
seria demonstrar que os Estados que praticam balanceamento brando estariam
dispostos a abdicar de outros interesses para contrariar o país dominante. Em
defesa da tese do soft balancing, Walt (2009) admite que as motivações dos
atores realmente são fundamentais para definir se um comportamento de política
externa constitui um exemplo de balanceamento brando ou não, o que acaba
exigindo maiores esforços daqueles que se propõem a empregar o conceito em
análises empíricas. Para o autor, no entanto, a dificuldade da operacionalização
do balanceamento brando não significa ser ele inútil ou infalsificável.
Nada obstante seu uso inicialmente restrito ao exame das políticas externas de
países de segunda ordem, não demorou muito para que a tese do soft balancing logo
fosse aplicada na análise do comportamento internacional de países emergentes,
especialmente China, Índia, Brasil e África do Sul. Hurrel (2009) certamente foi
um dos pioneiros nesse empreendimento. Para o autor, em um contexto global
de crescente interdependência entre as nações, a relevância e utilidade da teoria
da balança de poder não se restringe aos casos nos quais o Estado dominante
representa uma ameaça militar à segurança dos demais países. Isso porque o
problema do poder não balanceado envolve também a possibilidade de os países
mais poderosos “ditarem as regras do jogo” aos mais frágeis, distorcerem os termos
de cooperação em seu próprio benefício, imporem seus próprios valores e costumes
nas relações internacionais e, desse modo, solaparem as normas essenciais para
a estabilidade do sistema internacional (HURREL, 2009). Nas palavras de Hurrel,
é por esta razão que a percebida necessidade de conter o poder dos Estados
Unidos compõe um elemento muito importante das políticas de Brasil, Rússia,
Índia e China em muitas áreas e muitos assuntos aos quais céticos gostariam de
consignar à área da ‘barganha diplomática normal’“ (2009, p. 36).
Ao definir o que seria uma estratégia de soft balancing, Hurrel (2009), assim
como Walt (2009), enfatiza a motivação e o propósito dos Estados de contrabalançar
a potência estadunidense, estabelecendo, assim, um critério de verificação. Para
ele, apenas as ações externas em resposta à concentração de poder dos EUA,
isto é, com motivações de conter a primazia estadunidense, podem, de fato, ser
representativas do comportamento de balanceamento brando. Essa especificação
coloca uma obrigação de pesquisa ao autor: para provar que as ações dos Estados
de fato caracterizaram-se como soft balancing, é preciso aferir a motivação por
trás das diferentes iniciativas, em vez de deduzi-las do modelo teórico. Hurrel
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
65Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
(2009), entretanto, não examina detalhadamente as intenções dos governantes
brasileiros na abertura dos contenciosos contra os EUA para chegar à conclusão
de que o ativismo do Brasil na OMC é evidência de soft balancing. Outros
autores cometem o mesmo equívoco ao replicar o argumento de Hurrel (2009)
e não fornecer evidências de que os governantes brasileiros foram motivados
por razões de política de poder ao decidirem acionar os Estados Unidos no OSC
(FLEMES, 2009, 2010). Nesse caso, em específico, motivações econômicas e não
políticas podem ter levado o Brasil a abrir os contenciosos contra os Estados Unidos.
Verificar as motivações dos governantes brasileiros, especialmente no âmbito do
Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, é a tarefa que nos propomos nas
seções seguintes.
2 O balanceamento dos Estados Unidos como propósito
da Política Externa Brasileira
As primeiras manifestações, no discurso diplomático brasileiro, do objetivo de
promover a multipolarização da ordem mundial surgiram ao final do segundo governo
de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), sobretudo após o recrudescimento
do unilateralismo na política externa dos Estados Unidos na virada do século XX.
Duas ações importantes dos EUA catalisaram a reação: a aprovação do fast track
no Congresso dos EUA, em junho de 2002, eliminando da mesa de negociações
da ALCA e OMC quase 300 produtos prioritários para o Brasil, e o anúncio da
“Doutrina Bush”, em resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001, claramente
desrespeitando prerrogativas do Conselho de Segurança na manutenção da paz
e ordem internacionais.
À imediata repercussão na mídia mundial, seguiram-se críticas contundentes
por parte da diplomacia brasileira, já no governo Fernando Henrique Cardoso,
expressas a chefes de Estado de países emergentes que assumidamente se
engajavam na construção de um mundo multipolar, como China e Rússia. Em
janeiro de 2002, na esteira dos acontecimentos de 11 de setembro do ano anterior,
o presidente brasileiro afirmou em visita oficial à Rússia:
os acontecimentos de 11 de setembro tornaram ainda mais necessário o
fortalecimento do diálogo político entre o Brasil e a Rússia. Defendemos
uma ordem multipolar, que se oriente segundo a igualdade entre os Estados
e valorize o papel das Nações Unidas (CARDOSO, 2002, p. 36, grifo nosso).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
66 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
A estratégia de multipolarização da ordem global, se foi apenas moderadamente
anunciada por Fernando Henrique Cardoso, tornou-se um dos eixos da diplomacia
de Luiz Inácio Lula da Silva a partir de janeiro de 2003. Tal propósito certamente
pesou na escolha dos dois principais nomes para o Itamaraty durante os governos
Lula – ministro Celso Amorim e secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães –
que há algum tempo expressavam críticas duras à primazia dos EUA na política
internacional do pós Guerra Fria, mesmo antes dos acontecimentos de 11 de
setembro de 2001 (AMORIM, 1998a, 1998b; GUIMARÃES, 2001a, 2001b). De
fato, em entrevista concedida à Gazeta Mercantil em 2002, o embaixador Celso
Amorim, já nomeado chanceler do governo Lula, transmitia o desejo brasileiro
de contribuir para a construção de uma ordem internacional multipolar:
Na realidade global de hoje, todo mundo acentua o grande predomínio
americano, e ele é verdadeiro. Mas há vários outros polos de poder. O Brasil
pode contribuir para a multipolaridade, que é saudável para todos e até
para a grande potência. Podemos contribuir com o diálogo franco com países
europeus, com a China, Rússia, Índia, África. (AMORIM, 2002, p. 327, grifo
nosso)
No mesmo diapasão, Samuel Pinheiro Guimarães, em seu discurso de posse
como Secretário-Geral do Itamaraty, em 2003, colocou a questão nos seguintes
termos:
O mundo multipolar sem hegemonias em que todos os Estados obedeçam
ao Direito Internacional e procurem resolver suas controvérsias de forma
pacífica é o mundo que mais interessa à nação brasileira. Cada dia, cada ato
da Chancelaria, deve procurar contribuir para este objetivo. As organizações
multilaterais, em especial as Nações Unidas e a OEA, devem contribuir para
esses objetivos, e o Brasil nelas atuará de forma ativa. (GUIMARÃES, 2003,
p. 69, grifo nosso)
Certamente, a posição expressa por Amorim e Guimarães fizeram eco à postura
histórica do Partido dos Trabalhadores e de Lula, pois atendiam simultaneamente
a um propósito da política internacional e a uma aspiração das bases do governo,
historicamente críticas dos Estados Unidos (PT, 1994, 1998, 1999). Como relata
Amorim, houve uma imediata identificação entre suas ideias e às do líder de
governo logo na primeira conversa que manteve com Lula. Da mesma forma,
Samuel Pinheiro Guimarães, que havia sido afastado do núcleo decisório da
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
67Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
diplomacia de Fernando Henrique Cardoso pela postura crítica em relação à
participação brasileira nas negociações da ALCA, foi reintegrado ao governo como
segundo homem mais importante das Relações Exteriores. Assim, de elemento
retórico a multipolarização tornou-se um importante motor da política externa a
partir de 2003.
Essa orientação de política externa emergiu com força nas discussões da ONU
sobre a intervenção no Iraque, quando ficou evidente que o predomínio da força
militar dos EUA lhe permitiria ignorar as resoluções multilaterais. Nesse momento,
o Brasil compôs a coalizão intitulada “Frente pela Paz”, junto com Alemanha,
França e Rússia para opor resistência à invasão do Iraque. Ao buscar uma frente
contra a guerra, o governo não defendia apenas o princípio clássico da diplomacia
brasileira da solução pacífica de controvérsias, mas buscava agir concretamente
para obstruir a ação unilateral dos EUA, essa secundada pela “Coalizão da Vontade”,
e impedir que os planos de invasão do Iraque se consumassem (AMORIM, 2013).
Nas palavras do então chanceler brasileiro,
Todos conhecem bem o fato de que o esgotamento da ordem bipolar da
Guerra Fria gerou o que foi chamado por uns de “momento unipolar”, e
por outros de “ilusão unipolar”. No início do século XXI, e especialmente
na esteira dos atentados de 11 de setembro, a unipolaridade conheceu seu
auge. Ao contrário do que pretenderam alguns de seus ideólogos, a primazia
da superpotência remanescente não gerou estabilidade no sistema. Como a
invasão do Iraque em 2003 demonstraria, a extrema concentração de poder
[...] era fonte de instabilidade em nível global. Até porque era um incentivo ao
uso fácil da força. O estímulo aos elementos incipientes da multipolaridade
foi a resposta que o Brasil e outros países procuraram oferecer aos riscos do
desequilíbrio unipolar. A oposição clara à guerra do Iraque e a defesa da
integridade do sistema multilateral das Nações Unidas [...] não deixou de
conter [...] elementos da busca de um melhor equilíbrio do poder mundial.
(AMORIM, 2016, p. 219-220, grifo nosso)
Na rodada Doha da OMC, mesmo quando perseguindo interesses comerciais
concretos, a diplomacia do governo Lula realçou que um dos objetivos ao liderar
a criação do G20 comercial foi justamente “multipolarizar” a estrutura das
negociações comerciais multilaterais, tradicionalmente estribada nos dois polos
capitaneados pelos EUA e pela União Europeia (UE). Conforme Amorim (2011),
até a V Conferência Ministerial de Cancún, a correlação de forças nas negociações
comerciais agrícolas da OMC punha em lados opostos os Estados Unidos, apoiados
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
68 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
pelo grupo de Cairns, na demanda por maior acesso ao mercado agrícola, e a
União Europeia que,à frente de países em desenvolvimento com agricultura
familiar e de subsistência, a exemplo da Índia, esposava uma posição mais
protecionista e obstrucionista. Além de fragmentar a atuação conjunta dos países
em desenvolvimento e, assim, impedir o avanço das negociações agrícolas, tal
estrutura “bipolar” permitia que, ao final, os EUA e a UE chegassem a um acordo
comum que lhes fosse benéfico em detrimento dos países em desenvolvimento.
Após Cancún, portanto, a estrutura negociadora da OMC teria se modificado,
tornando-se “multipolar”, com a introdução do G20 como mais um polo de poder
frente aos Estados Unidos e à União Europeia (AMORIM, 2011, 2015).
Com a criação oficial do BRIC em 2009, o governo Lula se juntou a outras
potências emergentes na preconização de uma ordem internacional multipolar,
supostamente mais equilibrada e justa, a ser alcançada através da promoção
de reformas nas principais instituições internacionais (e.g. Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial e Conselho de Segurança das Nações Unidas) e
de sorte a conter a primazia das grandes potências estabelecidas, garantindo,
assim, maior participação dos países em desenvolvimento no processo decisório
global (BRIC, 2009, 2010). Nas palavras de Amorim (2008, p. 211), a primeira
reunião ministerial do BRIC ocorrida em Ecaterimburgo, que resultaria na
criação oficial do grupo um ano depois, “diz mais sobre a multipolaridade do
que quaisquer palavras”, porquanto Brasil, Rússia, Índia e China “buscam se
fortalecer politicamente como um bloco que ajude a equilibrar e democratizar a
ordem internacional deste início de século”
Por fim, projetos regionais de integração e cooperação – particularmente o
MERCOSUL e a UNASUL – foram igualmente justificados, em diversos momentos,
como necessários para a “multipolarização” da ordem internacional vigente,
fazendo da América do Sul mais um polo de poder dentro de um mosaico mundial
de contornos cada vez mais multipolares (BRASIL, 2004; SILVA 2009). No que diz
respeito ao primeiro projeto de integração, é emblemática a elaboração, em 2007,
do Convênio do Sistema de Pagamentos em Moeda Local no âmbito do MERCOSUL,
que tornou facultativa aos países membros do bloco a utilização de moedas locais
no comércio exterior intrarregional em substituição ao dólar (VADELL; LAMAS;
RIBEIRO, 2009). No que toca à UNASUL, o anseio pela multipolaridade e equilíbrio
de poder no mundo, a ser logrado por meio do aprofundamento da integração
regional, encontra-se explícito logo no preâmbulo do seu tratado constitutivo,
segundo o qual: “a integração é um passo decisivo para o fortalecimento do
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
69Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
multilateralismo e a vigência do direito nas relações internacionais para lograr um
mundo multipolar, equilibrado e justo” (UNASUR, 2018, p. 3, tradução nossa
3
).
Conforme argumentam Cervo e Bueno (2010), a UNASUL, em termos geopolíticos,
criou um polo de poder regional que, embora não se caracterizasse como uma
aliança militar, permitiu que os contenciosos entre os países sul-americanos fossem
resolvidos regionalmente, a partir de suas premissas próprias de segurança e sem
a interferência de forças externas. Assim, foi através da UNASUL, e não da OEA
ou por mediação estadunidense, que se estabilizaram crises políticas na região
como a da Bolívia, em 2008, e entre Colômbia e Venezuela, em 2010. Também
por meio da UNASUL, o governo brasileiro condenou enfaticamente a iniciativa
colombiana de assinar um acordo de cooperação militar com os EUA em 2010, que
previa a instalação de sete bases militares estadunidenses em território colombiano
(VIGEVANI; RAMAZINI JÚNIOR, 2014).
Em suma, na medida em que foram justificadas e efetivamente contribuíram,
ainda que de maneira branda e limitada, para a maior distribuição de poder no
mundo, as iniciativas da política externa brasileira descritas acima evidenciam que,
mais do que um simples jargão retórico, o propósito de promover a multipolarização
da ordem internacional e, consequentemente, balancear o poder dos Estados
Unidos, foi uma das motivações que orientou a diplomacia brasileira sobretudo a
partir do governo Lula (2003-2010). Sendo assim, nesses casos, o conceito de soft
balancing pode ser útil para interpretar a estratégia de política externa do Brasil,
particularmente em relação aos EUA. O problema se coloca com relação a outras
iniciativas de política externa, entre as quais não motivadas explicitamente pelo
desejo de redistribuir o poder mundial, como acontece com a atuação brasileira no
Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Seriam os contenciosos abertos pelo
Brasil contra os Estados Unidos no OSC evidências válidas da tese do balanceamento
brando? Para que assim o seja, respeitando-se as condições de verificação apontadas
pelo próprio intelectual, a atuação brasileira no OSC também deve, no mínimo,
ter apresentado como propósito, entre outros, balancear o poder estadunidense
ou, no discurso diplomático, promover a “multipolarização do mundo”. Na seção
que segue, buscamos verificar se esse propósito realmente se verificou.
3 “La integración es un paso decisivo hacia el fortalecimiento del multilateralismo y la vigencia del derecho em
las relaciones internacionales para lograr un mundo multipolar, equilibrado y justo”. (UNASUR, 2018, p. 3,
versão original)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
70 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
3 A participação brasileira no Órgão de Solução de Controvérsias
Para verificar se a atuação brasileira no OSC foi norteada por considerações
de equilíbrio de poder, nesta seção buscamos os seguintes objetivos: (i) analisar
o processo decisório de uma das disputas mais importantes movidas pelo Brasil
contra os EUA, sobre subsídios concedidos à produção de algodão; e (ii) analisar
de forma desagregada e comparativa as disputas iniciadas pelo Brasil no período,
para verificar se o número de disputas contra os EUA cresceu depois de 2001,
especialmente em comparação com países que, por terem se declarado aliados
dos EUA, indiscutivelmente não adotaram a estratégia de soft balancing.
3.1 Os números
Não obstante a reorientação da diplomacia brasileira após 2003, seja adotando
a “multipolarização” ou a defesa mais vigorosa da “autonomia”, as estatísticas
sobre a abertura de disputas na OMC nos últimos 25 anos (1995-2015) evidenciam
alguns paradoxos. Primeiro, o amplo período 1995-2002 concentra grande parte
das consultas levadas pelo governo brasileiro ao OSC, embora com dois padrões
distintos: entre 1995-1999, há maior dispersão dos países contestados pelo Brasil;
enquanto em 2001-2002, os casos voltam-se, sobretudo, para os EUA (Tabela 1).
Tabela 1: Disputas iniciadas pelo Brasil, por país reclamado (1995-2015)
Reclamado 1995-2000 2001-2002 2003-2009 2010-2015 TOTAL
EUA 3 5 2 0 10
União Europeia 4 2 0 1 7
Outros PDs 2 1 0 0 3
América do Sul/México 3 1 0 0 4
Outros PEDs 1 0 0 2 3
TOTAL 13 9 2 3 27
Média anual 2,2 4,5 0,3 0,4 1,3
Fonte: Organização Mundial do Comércio (www.wto.org). Elaboração do autor, ano.
O ano de 2001 é justamente quando toma corpo o propósito de multipolarização
– evidência a favor da tese de soft balancing –, mas é também quando ocorrem
outros eventos importantes no campo comercial: (i) tramitava no Congresso
dos EUA fast track que retirou produtos agrícolas que o governo brasileiro
esperava ver liberalizados via ALCA ou Rodada Doha; (ii) a legislação brasileira
de propriedade intelectual era questionada pelos EUA, acirrando os ânimos nas
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
71Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
questões comerciais; (iii) a Camex estava em reformulação; (iv) estava se criando a
coordenação de contenciosos no MRE, com a simultânea capacitação de diplomatas
em questões econômicas e (v) ganhava força o grupo desenvolvimentista no
governo. Portanto, há indícios para a tese de soft balancing, embora haja tantos
outros que apontem ser os contenciosos sobretudo um meio de abrir mercados
quando outros espaços se fecham.
Por outro lado, paradoxalmente, o número de disputas contra os Estados
Unidos caiu muito depois de 2003, justamente quando Lula assumiu o governo
e pôs em marcha iniciativas que o próprio Amorim disse estarem voltadas
para “desconcentrar poder mundial”. Nos 13 anos de governo do Partido dos
Trabalhadores, foram abertas apenas 2 consultas contra os EUA, frente a 8
consultas nos 8 anos de governos do PSDB. Esses dados sugerem que o discurso
de multipolarização de Lula, embora possa explicar as coalizões formadas nas
negociações multilaterais, como o IBAS, ou a consolidação dos BRICS, não se
manifestou na atuação brasileira no Órgão de Solução de Controvérsias. Welber
Barral (2015), que foi Secretário do Comércio Exterior do MDIC durante alguns
anos, sugere que esse comedimento no período Lula ocorreu porque, entre 2003
e 2008, o governo esperou abrir mercados na Rodada Doha, aguardando seus
resultados antes de avançar litigiosamente os temas comerciais, muito embora
haja depoimentos que indiquem exatamente o contrário, de que o OSC foi usado
de maneira complementar às negociações multilaterais, seja para forçar a inclusão
de certos temas na agenda, seja para angariar poder de barganha
4
. Outra hipótese
é que a Coordenação de Contenciosos do Itamaraty, criada em outubro de 2001
5
,
4 Segundo Cozendey ([s.d.], p. 6),”assim o sistema de solução de controvérsias passa a ser tanto fonte de
iniciativas de negociação, quanto fonte de poder de barganha no contexto das negociações. Passa, ao mesmo
tempo, a entrar nos cálculos do negociador a opção de não acordar uma nova regra e confiar que os resultados
do sistema de solução de controvérsias lhe serão favoráveis”.
5 O Decreto n. 3.959, de 10 de outubro de 2001, criou a Coordenação de Contenciosos no Ministério de Relações
Exteriores, subordinada à Subsecretaria Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior.
Algumas justificativas à época foram dadas pelo Secretário Geral Seixas Corrêa: “A criação da coordenação-geral
para contenciosos deve-se à importância de um acompanhamento específico e com maior grau de especialização
nas questões por assim dizer “judiciais” (os chamados “panels”) em que o país se encontra envolvido não só no
contexto da OMC, mas também no âmbito dos mecanismos de solução de controvérsias do Mercosul.” (Corrêa,
2001, p 342). Celso Lafer, então ministro, também comentou o assunto em entrevista ao Correio Brasiliense em
29 de janeiro de 2001 (“Mobilização para Negociar a ALCA”): “uma ideia que tenho em relação ao Itamaraty
é criar um departamento de contenciosos econômicos que concentre a competência no âmbito do Itamaraty
e possa fazer essa ponte com acadêmicos e empresários(referência?)(…) tomei a decisão de destinar todos
os diplomatas da última turma do Instituto Rio Branco para as divisões econômicas, com vistas a assegurar
pessoal suficiente para enfrentar a considerável carga de trabalho que implicam as diversas negociações em
que estamos envolvidos” (referência?).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
72 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
em vez de facilitar a abertura de processos, na verdade conteve as demandas
injustificadas do setor privado, fazendo uma “triagem legal” antes de iniciar
contenciosos. Como visto no estudo de caso, esse propósito esteve nítido nas
articulações políticas que levaram ao contencioso do algodão. De qualquer forma,
não parece ter sustentação a ideia de que o governo usou a política comercial
como forma de contra-hegemonia, pelo menos não nas disputas da OMC, pois
sua estratégia de enfrentamento dos EUA não foi acompanhada de mais casos.
Outra maneira de tentar capturar o viés político das disputas comerciais é
analisar o número de casos abertos por um país para cada dólar exportado. Partimos
da suposição de que, quanto mais intenso o fluxo comercial, mais recorrente
deverão ser as restrições comerciais enfrentadas e, portanto, as disputas no OSC.
Restringimos a análise a alguns reclamantes: Brasil e Índia, por supostamente
serem praticantes do soft balancing; Canadá e Japão, pela tradicional aliança
com os EUA; e os países da União Europeia. Além disso, são esses os únicos
países que acionaram o Órgão de Solução de Controvérsias mais de 20 vezes entre
1995 e 2015.
Sob esse prisma, alguns aspectos chamam atenção. Primeiro, Brasil e Índia
são muito ativos no OSC em geral (Tabela 2, linha “Mundo”), e não apenas contra
os EUA: nenhum dos países analisados abriu tantas disputas na OMC por valor de
dólar exportado quanto esses emergentes. Se restringimos a análise às disputas
iniciadas contra os EUA, o valor é ainda mais elevado. Isso poderia indicar um
“viés político” de Brasil e Índia, já que alvejam a potência com maior frequência
do que fazem com outros. Mas, como as disputas iniciadas pelo Japão e pela
União Europeia contra os EUA têm as mesmas características, pode-se inferir que
o elevado índice expressa mais o protecionismo americano do que a orientação
política do resto do mundo. Essa afirmação, aliás, se estende ao Brasil: ele frequenta
o banco dos réus no OSC mais recorrentemente do que se poderia esperar pelo
valor de suas importações (Tabela 2).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
73Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
Tabela 2: Índice de disputas*, por reclamante e reclamado
Reclamado
Reclamante
Brasil Índia Canadá Japão União Europeia
EUA 2,7 2,2 0,28 0,35 0,59
União Europeia (28) 1,2 1,5 0,22 0 .
Outros PDs 1,9 0 0,82 0,36 0,22
Brasil . 2,5 3,6 2,8 0,93
Índia 0 4,1 0 1,8
China 0 0 1,9 0,13 0,41
Outros PEDs e Rússia 1,7 0,31 0,72 0,13 0,33
Mundo 1,1 0,8 0,51 0,18 0,12
* [Disputas iniciadas (1995-2015) / Valor exportado(1995-2014)]*10
8
Fonte: Cálculo dos autores, com dados da UNCTAD (comércio) e OMC (disputas).
Por fim, as disputas iniciadas pelo Brasil e Índia, em comparação com as
de Canadá, Japão e União Europeia, sugerem haver certo viés Norte-Sul nas
disputas: Brasil e Índia têm índices mais elevados em disputas contra UE, EUA e
outros países desenvolvidos; enquanto os valores dos casos abertos por Canadá,
Japão e União Europeia são maiores contra Índia, China, Brasil e outros países
em desenvolvimento. Parece, pois, que países desenvolvidos abrem mais casos
contra países em desenvolvimento, em relação ao valor exportado, do que contra
países desenvolvidos, e vice-versa. Essa observação deve ser lida com cautela:
serve mais como evidência de que a tese de soft balancing não explica bem o
padrão de ação dos países no OSC do que como prova definitiva de que há um
viés Norte-Sul nesse órgão – hipótese que exigiria mais provas para sustentar-se.
3.2 Um caso típico: algodão
Uma forma de averiguar se o Itamaraty utilizou o Órgão de Solução de
Controvérsias para redistribuir o poder mundial é analisar o processo decisório
que levou à abertura de disputas contra os EUA. Assim é possível identificar quem
propôs a saída litigiosa, qual a posição adotada pelo Itamaraty e quais setores do
governo se posicionaram a favor ou contra.
A prova é mais contundente se analisamos casos iniciados após 2003, período
em que o governo brasileiro intensificou as críticas à postura unilateral dos
Estados Unidos. Se o propósito de multipolarização desempenhou algum papel
na diplomacia brasileira, terá certamente sido após esse ano. Dentre eles, o mais
significativo foi a disputa do algodão, com pedido de consultas apresentado à
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
74 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
OMC em setembro de 2002 e de painel em março de 2003, pois questionou um dos
pilares da política agrícola estadunidense, a Farm Bill, ainda durante a vigência
da Cláusula da Paz. O resultado, favorável ao Brasil, dá ideia da importância do
caso: pela primeira vez a OMC autorizou, como retaliação, contramedidas em
matéria de propriedade intelectual para uma disputa sobre bens, em montante
até então nunca alcançado, US$ 147 milhões anuais (AZEVÊDO, 2013).
A disputa foi o ápice de anos de queixa, por parte do governo brasileiro,
com relação aos resultados da Rodada Uruguai do GATT (1986-1994). O Acordo
Agrícola incorporado à legislação da OMC ao final da Rodada, resultado de
barganha entre Estados Unidos e Comunidades Europeias no conhecido Blair
House Agreement, de 1992, nunca satisfez plenamente a diplomacia comercial
brasileira. Desde o encerramento das negociações, diplomatas aproveitaram cada
oportunidade pública para criticar o resiliente protecionismo agrícola nos países
desenvolvidos, mantendo viva a pauta de liberalização para o setor até que, em
novembro de 2001, após frustradas tentativas anteriores, na Reunião Ministerial
da OMC, teve início uma nova rodada de negociações com mandato abrangente
sobre o tema: redução, com vistas à eliminação, de subsídios às exportações e
reduções substantivas em subsídios internos com efeito distorcivo
67
.
Meses antes da reunião de Doha, no início de 2001, círculos do governo
brasileiro já buscavam formas mais céleres e eficazes de atacar os subsídios
agrícolas europeus e estadunidenses por meio do Órgão de Solução de Controvérsias.
O núcleo dessa articulação não partiu do Itamaraty, mas do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, particularmente depois que assumiu a
Secretaria de Produção e Comercialização o ex-presidente da Sociedade Rural
Brasileira Pedro Camargo Neto, durante a gestão do ministro Marcus Vinicius
Pratini de Moraes (1999-2003). Partiu dessa secretaria a iniciativa de avaliar a
legalidade dos subsídios agrícolas à luz do Acordo Agrícola da OMC
8
. O Artigo 13
6 No excerto sobre agricultura, previa-se: nos comprometemos com negociações abrangentes destinadas a:
melhorias substanciais no acesso a mercados; reduções, com vista à eliminação gradual, de todas as formas
de subsídios à exportação; e reduções substanciais no apoio interno que distorce o comércio” (OMC, 2001,,
tradução nossa). A crítica brasileira ao protecionismo agrícola nos países centrais pode ser vista nas diversas
intervenções públicas realizadas no período, compiladas na coletânea Resenhas de Política Externa.
7 Versão original do texto citado na nota anterior: “we commit ourselves to comprehensive negotiations aimed
at: substantial improvements in market access; reductions of, with a view to phasing out, all forms of export
subsidies; and substantial reductions in trade-distorting domestic support.
8 É o próprio Pedro Camargo Neto (2014) quem afirma, em depoimento anos após o contencioso, ter tido a iniciativa
de recorrer à OMC para combater os subsídios estadunidenses: “no início de 2001 iniciamos internamente no
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA – um estudo sobre os subsídios estadunidenses
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
75Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
desse acordo instava as partes a exercerem “duerestraint” – comedimento – nos
recursos ao OSC durante o período de implementação (final de 2003), desde que
subsídios domésticos não excedessem os níveis de 1992. Em estudo sobre a soja
nos EUA, o Ministério da Agricultura brasileiro constatou contribuições financeiras
muito superiores aos níveis de 1992. Estavam dadas assim as justificativas para
recorrer aos tribunais, mesmo enquanto vigente a Cláusula da Paz. E como a
situação repetia-se em outras culturas, o Ministério da Agricultura, em discussões
com produtores e demais membros do governo, definiu preliminarmente três
setores que poderiam sustentar disputas: soja e algodão, contra os EUA, e açúcar,
contra a União Europeia.
Enquanto o Ministério da Agricultura buscava apoio para iniciar a disputa, já
que a palavra final partiria de uma decisão do Conselho de Ministros da Camex
9
,
o Itamaraty tentava freá-la. Essa era a percepção tanto de Camargo Neto, referido
Secretário de Produção e Comercialização do MAPA fortemente engajado no
processo
10
, quanto do ex-Secretário Executivo da Camex Roberto Giannetti da
Fonseca
11
, homem com fortes vínculos com a indústria exportadora paulista e
envolvido no processo de “reestruturação industrial” encampado por Fernando
Henrique Cardoso para recuperar as reservas cambiais a partir de 1999. Camargo
Neto sentiu as resistências do Itamaraty aumentarem ao longo de 2001, quando
alterações nos cargos de chefia do MRE começaram a dificultar o processo de
para a soja. O maior produto agrícola em renda do Brasil vinha apresentando permanente crescimento em área
plantada e produtividade. Tornávamo-nos o líder de hoje. Simultaneamente, coincidência ou não, os estadunidenses
aumentavam os subsídios fornecidos a seus sojicultores […] É importante lembrar que os contenciosos se
iniciaram dentro do MAPA e não provocados pelos setores prejudicados como é o usual” (referência?) Camargo
Neto (2014, p 32).O importante papel de Camargo Neto tem respaldo também em comentário do advogado
responsável pelo caso, Scott D. Andersen, que, em citação de Oliveira (2007, p. 23), teria o classificado como
“o chefão, o visionário dos casos relativos ao algodão e ao açúcar” (referência?) (Oliveira 2007, p. 23).
9 A Camex foi criada pelo Decreto n. 1.386, de 6 de fevereiro de 1995. Quando da criação, sua composição era:
ministro-chefe da Casa Civil; das Relações Exteriores; da Fazenda, do Planejamento e Orçamento; da Indústria,
do Comércio e do Turismo; da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária. Houve alterações posteriores
(FERNANDES, 2010, 2013).
10 Em depoimento citado por Oliveira (2007, p. 23), Camargo Neto afirmou: “Alguns funcionários do Ministério
das Relações Exteriores não desejavam enfrentar a superpotência mundial no terreno das questões agrícolas.
Eu levei até eles um estudo sobre a contestação dos subsídios e eles disseram, ‘Traga-me outro’. A seguir, eu
levei dois e eles me pediram outros quatro”.
11 Em entrevista a Ivan Fernandes (2010, p. 97), o ex-Secretário Executivo da Camex entre 2000 e 2002 afirmou
que o MRE, cujo ministro era Celso Lafer, e o próprio MDIC, dirigido pelo também diplomata Sérgio Amaral,
eram contra a abertura de painel contra os EUA devido à falta de pessoal qualificado para conduzir o tema e por
receio de enfrentar um adversário tão preparado. Ainda segundo Giannetti, a decisão para iniciar o contencioso
foi tomada na própria Camex, por pressões dele próprio, e do ministro da Agricultura Marcus Vinicius Pratini
de Moraes.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
76 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
aprovação do contencioso” (CAMARGO NETO, 2014, p ?30). O ex-funcionário
do MAPA não explica quais foram tais alterações de cargo, mas provavelmente
referia-se ele à criação da Coordenação-Geral de Contenciosos Comerciais no
MRE em outubro de 2001, para onde foi alocado o diplomata e atual diretor geral
da OMC Roberto Carvalho de Azevêdo, já que não houve outras mudanças nos
cargos econômicos do Itamaraty naquele ano. Segundo depoimento de Gianneti,
também o ministro da Indústria e diplomata de carreira Sérgio Amaral fazia eco
às justificativas do Itamaraty: havia grande risco de perder o contencioso; era
grande a chance de “ganhar mas não levar”; seria politicamente delicado acionar
a OMC durante a vigência da Cláusula da Paz; era prudente aguardar os primeiros
sinais da Rodada Doha, que continha um mandato amplo para agricultura; não
havia servidores qualificados para lidar com a disputa.
A relutância do Itamaraty se manteve ao longo de 2002, embora a aprovação
definitiva da Trade Promotion Authority e da Farm Bill nos EUA, completamente
contrárias ao mandato de Doha, tenham contribuído para convencer membros do
governo brasileiro que o litígio era a única saída para debelar os subsídios agrícolas.
Tais decisões do governo estadunidense foram amplamente cobertas pela mídia
brasileira. Notícias da Folha de S. Paulo de maio de 2002 fizeram menção a estudo
crítico publicado pela embaixada do Brasil em Washington e a nota divulgada pelo
MRE, na qual supostamente informavam que “O Itamaraty poderá acionar a OMC
para tentar eliminar subsídios que distorcem a competitividade internacional no
setor agrícola” (DIANNI, 2002, p ?). Contraditoriamente, a ofensiva verbal não
correspondia à posição oficial do ministério. Um mês após veiculação da notícia
na Folha de S. Paulo, na XVI Reunião da Camex, em 6 de junho, o Itamaraty
apresentou e teve aprovado parecer contrário ao pedido de consultas na OMC,
obstruindo a ofensiva pretendida pelo Ministério da Agricultura.
A resistência só foi vencida em setembro de 2002, quando a Camex aprovou
o pedido de consultas à OMC sobre os subsídios ao algodão nos EUA. Segundo
Camargo Neto, pesou na votação a posição do ministro da Fazenda Pedro Malan
(1995-2002), homem forte dentro do governo que apoiou as consultas, além do
ministro da Agricultura Pratini de Moraes, de onde havia partido a demanda pelo
contencioso. A essa altura, o pleito já contava com o respaldo das principais
associações de classe produtoras de algodão no país, e também de ONGs
preocupadas com o impacto dos subsídios sobre pequenos produtores de algodão
em países pobres.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
77Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
Iniciadas as consultas, coube ao Itamaraty formular parecer à Camex detalhando
o programa estadunidense e sugerindo providências. O resultado foi apresentado
na XXII Reunião da Camex, em 6 de fevereiro de 2003, quando o representante
do MRE sugeriu que fosse feita “pronta solicitação do estabelecimento do painel,
se possível na próxima reunião do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC,
que será realizada no dia 18 de fevereiro de 2003”(CAMEX, 2017).
A enfática defesa da abertura do painel pelo Itamaraty na Camex, embora
na contramão da posição até então defendida pelo mesmo ministério, não
surpreende. Àquela altura, era outra a composição das forças políticas no governo.
Com a posse de Lula em janeiro de 2003, fortaleceram-se as políticas ativas de
desenvolvimento econômico, assim como ganharam espaço no Itamaraty as teses
mais “autonomistas” em política externa, herdeiras de uma tradição diplomática
cultivada desde os anos de 1960, muito presente para os ministros Celso Amorim
e o secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães, e também fortemente respaldada
por círculos do Partido dos Trabalhadores incorporados ao governo, como Marco
Aurélio Garcia, que se tornou assessor especial da Presidência da República para
Assuntos Internacionais. Assim como essa recomposição de forças políticas no
Estado implicou negociações mais firmes na ALCA e na OMC, também levou
ao questionamento de práticas ilegais de comércio via Órgão de Solução de
Controvérsias.
Deve-se frisar, contudo, que o contencioso não foi aberto por iniciativa do
Itamaraty, mas de uma pasta mais diretamente envolvida com os produtores rurais
– o Ministério da Agricultura – que, àquela altura, era comandado por Roberto
Rodrigues, figura política de peso junto ao agronegócio, que emprestava apoio
ao governo. A posição inicial do Itamaraty, contrária à demanda, paulatinamente
perdeu apelo ao longo de 2002, com a ampla divulgação midiática do protecionismo
estadunidense manifesto na Farm Bill e na Trade Promotion Authority, e alterou-se
completamente com a ascensão do novo governo brasileiro em janeiro de 2003.
Considerações finais
Em períodos recentes, na medida em que os EUA mostraram que, além de
fortes, não se conformariam às regras internacionais – seja no campo da segurança,
seja no comércio – progressivamente o governo brasileiro, escudado por um
processo de crescimento econômico intensivo que nutria expectativas de grandeza,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
78 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
articulou diversas iniciativas que explicitamente buscavam construir um mundo
multipolar. Obviamente, como em qualquer articulação política, motivações de
poder mesclaram-se com interesses os mais diversos para consolidar uma base
de apoio que sustentasse tais iniciativas. Não nos dedicamos a um estudo mais
pormenorizado dessas motivações, salvo no caso do algodão aberto pelo Brasil no
Órgão de Solução de Controvérsias, onde constatamos a confluência de interesses
diversos que compunham o governo Lula.
Em síntese, houve um grande número de disputas iniciadas pelo Brasil
contra os Estados Unidos, particularmente no ano de 2001, quando o propósito
de “multipolarização do mundo” foi introduzido na agenda da política externa
brasileira. Entretanto, quando desagregamos as disputas por ano, os números
mostram que a eleição de Lula foi acompanhada pela redução das disputas contra
os EUA – lido por certos analistas como uma opção por aguardar as negociações
em Doha – o que nos desautoriza a imputar a ação no OSC exclusivamente ao
acirramento da diretriz multipolar brasileira, que de fato ocorreu no período.
Em segundo lugar, o Itamaraty não tinha competência exclusiva de iniciar os
contenciosos, que era dividida com ministérios, como a Indústria e a Agricultura,
eivados que estavam pelos interesses que representavam. Pelo forte vínculo
mantido com o setor privado, foi deles a iniciativa de questionar juridicamente os
subsídios estadunidenses, e não do MRE. O Itamaraty, ao contrário, inicialmente
tentou contê-la. A proposta ganhou força por uma reorientação político-ideológica
do governo, iniciada em 1999 e com auge em 2003, quando a restauração das
contas externas tomou o centro da política econômica e ganharam espaço grupos
“desenvolvimentistas” no interior do governo, bastante próximos de uma tradição
mais autônoma de política externa que também ascendeu no Ministério. Em meio
a tais mudanças, e com a aprovação do fast track em junho de 2002, ficou cada
vez mais claro que pouco se conseguiria com as negociações, e que alternativas
litigiosas deveriam ser buscadas.
Diante da miríade de interesses confluentes que resultaram na abertura do
contencioso, deve-se refletir: qual a utilidade de resgatar o conceito soft balancing
para interpretá-lo? Para subsidiar essa reflexão, convém retomar a pergunta inicial:
o contencioso foi aberto pelo governo brasileiro com o propósito de oferecer
resistência às políticas estadunidenses? Por um lado, sim. A tradição autonomista
de política externa respaldada por Lula continha elementos de anti-imperialismo,
caros à esquerda, e também a nacionalismos de diferentes estirpes, que muito
bem podem ter mobilizado a Camex, já em 2003, para fazer resistência à expansão
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
79Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
da hegemonia estadunidense. No entanto, notando que o governo brasileiro
abriu um painel no OSC contra os EUA, nos deparamos com a necessidade de
interpretar uma ação política, imputando-lhe um sentido, na clássica noção de
sentido weberiano. E, para tanto, é necessário refletir acerca de certas premissas:
quão desejável é, analiticamente, pressupor que a política externa expressa um
“motivo” ou “intenção” do governo, e não resulta de diferentes motivos, pretensões
e intenções em disputa no Estado?
A nosso ver, considerar, na interpretação, as forças políticas internas ao Estado,
em vez de deduzir o comportamento de modelos teóricos que pressupõem um
Estado unitário, faz diferença. Não tivesse o governo Lula aberto espaço à tradição
autonomista da diplomacia externa brasileira, preservada em círculos importantes
do Itamaraty, e não tivesse ele formado uma coalizão desenvolvimentista que incluía
defensores aguerridos da liberalização agrícola, a composição da Camex teria sido
outra. Falar em soft balancing, nessas circunstâncias, é limitar demasiadamente
a explicação para o contencioso comercial em busca de “parcimônia”.
Referências
AMORIM, Celso. A Reforma da ONU. In: IEA – Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo, Conferência proferida no IEA, em 2 de abril de 1998a.
Disponível em: http://200.144.254.127:8080/textos/amorimonu.pdf. Acesso em:
20/12/2018.
____. Entre o Desequilíbrio Unipolar e a Multipolaridade: o Conselho de Segurança
da ONU no Período Pós-Guerra Fria. In: IEA – Instituto de Estudos Avançadas da
Universidade de São Paulo. Texto do evento realizado no IEA “O Brasil e as Novas
Dimensões da Segurança Internacional”, no dia 11 de setembro de 1998b. Disponível
em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/amorimdesequil_briounipolar.pdf.
Acesso em: 20/12/2018.
AMORIM. Celso. Entrevista do Embaixador Celso Amorim à Gazeta Mercantil, em
18 de dezembro de 2002. In: Resenha de Política Exterior do Brasil, n. 91, ano 29,
2º semestre de 2002, p. 325-327.
____. Artigo do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, intitulado
“Os BRICs e a Reorganização do Mundo”, publicado no jornal Folha de São Paulo.
Brasília-DF, 08/06/2008. In: Resenha de Política Exterior do Brasil, n. 102, ano 35,
1° semestre de 2008, p. 211-212.
____. Conversas com Jovens Diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011, 600p.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
80 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
____. Breves Narrativas Diplomáticas. São Paulo: Benvirá, 2013, 168p.
____. Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva. São Paulo:
Benvirá, 2015, 520p.
____. A grande estratégia do Brasil: discursos, artigos e entrevistas da gestão no Ministério
da Defesa (2011-2014). (Ed.) AMORIM, C.; ROCHA, A. J. R. da [et al]. Brasília:
FUNAG; São Paulo: Unesp, 2016.
ART, R. J. Correspondence: Striking the Balance. In: International Security, v. 30, n. 3, 2006.
AZEVÊDO, R. C. Prefácio. In: (Ed.) BENJAMIN, D. A. O Sistema de Solução de Controvérsias
da OMC: Uma perspectiva brasileira. Brasília: FUNAG, 2013, pp. 23–31.
BARRAL, Webber. OMC e os contenciosos. 2015. Disponível em http://jota.uol.com.br/
coluna-barral-omc-e-os-contenciosos-brasileiros. Acesso em 09 de junho de 2018.
BRASIL. Mensagem ao Congresso Nacional: abertura da 2ª Sessão Legislativa Ordinária
da 52ª Legislatura/Luiz Inácio Lula da Silva. Brasília: Presidência da República,
Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, 2004, 260p.
BRIC. Declaração Conjunta dos Líderes dos Países do BRIC. I Cúpula do BRIC; Ecatarimburgo,
16 de junho de 2009. Disponível em: http://brics.itamaraty.gov.br/category-
english/21-documents/114-first-summit-2. Acesso em 09 de setembro de 2018.
____. II Cúpula: Declaração. Brasília, 15 de abril de 2010. Disponível em: http://brics.
itamaraty.gov.br/pt-br/categoria-portugues/20-documentos/74-segunda%E2%80%
93declaracao%20-conjunta. Acesso em 09 de setembro de 2018.
BROOKS, S. G.; WOHLFORTH, W. C. Hard times for soft balancing. In: International
Security, v. 30, n. 1, 2005, pp. 72-108.
CAMARGO NETO, Pedro de. O caso do algodão. In: Revista Política Externa; São Paulo:
HMG Editora, v. 23, n. 2, 2014, pp. 25-33.
CAMEX. Ata da XXII Reunião da Câmara de Comércio Exterior, de 6 de fevereiro de 2003.
Obtida em solicitação feita através do Portal de Acesso à Informação do Governo
Federal (http://www.acessoainformacao.gov.br/. acesso em 20 de junho de 2017).
CARDOSO, Fernando Henrique. Discurso do Senhor Presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso, por Ocasião da Cerimônia de Assinatura de Atos. Moscou, 14 de
Janeiro de 2002. In: Resenha de Política Exterior do Brasil, ano 29, n. 90, 1º semestre
de 2002, pp. 35-36.
CERVO, A. L.; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2010.
CORRÊA, L. F. DE S. A agenda econômico-comercial e reformas no Itamaraty. In: Resenhas
de Política Exterior do Brasil, n. 88, 1º Semestre 2001;
COZENDEY, C. M. B. O sistema de solução de controvérsias da OMC: para além dos
contenciosos, a política externa. [s.d.].
DESTRADI, Sandra. Regional powers and their strategies: empire, hegemony, and
leadership. In: Review of International Studies, v. 36, 2010, pp. 903-930.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
81Daniel Castelan; Leandro Wolpert dos Santos
DIANNI, Cláudia. Brasil vai à OMC contra subsídio que tira competitividade agrícola.
In: Folha de São Paulo, 4 de maio de 2002.
FERNANDES, I. F. DE A. L. Burocracia e política: a construção institucional da política
comercial brasileira pós-abertura econômica. São Paulo: Universidade de São Paulo.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2010.
____. A construção institucional da política comercial brasileira: a Câmara de Comércio
Exterior (CAMEX) no governo Cardoso. In: Revista de Sociologia e Política, v. 21,
n. 45, p. 123–148, mar. 2013.
FLEMES, Daniel. India-Brazil-South Africa (IBSA) in the new global order: interests, strategies
and values of the emerging coalition. In: International Studies, v. 46, n. 4, 2009.
____. O Brasil na iniciativa BRIC: soft balancing numa ordem global em mudança? In:
Revista Brasileira de Política Internacional; Brasília, v. 53, n. 1, 2010, pp. 141-156.
____. Network Powers: strategies of change in the multipolar system. In: Third World
Quarterly, v. 34, n. 6, 2013.
FONSECA JR, Gelson. BRICS: notas e questões. In: (Org.) PIMENTEL, José Vicente de
Sá. O Brasil, os BRICS e a Agenda Internacional. Brasília, FUNAG, 2012, pp. 13-31;
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos Anos de Periferia: uma contribuição ao estudo
da política internacional. 3ª ed. Porto Alegre: UFRGS; Rio de Janeiro: Contraponto, 2001a.
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Inserção Internacional do Brasil. In: Economia e Sociedade.
Campinas; v. 17, 2001b, pp. 1-31.
____. Discurso do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães por ocasião da Transmissão
do Cargo de Secretário-Geral das Relações Exteriores, em Brasília. In: (Orgs.) SILVA,
L. I. L. da.; AMORIM, Celso; GUIMARÃES, S. P. A Política Externa do Brasil. Brasília;
IPRI/FUNAG, 2003.
HE, Kai; FENG, Huiyun. If Not Soft Balancing, Then What? Reconsidering Soft Balancing
and U.S. Policy Toward China. In: Security Studies, v. 17, n. 2, 2008.
HURREL, Andrew. Hegemonia, liberalismo e ordem global: qual é o espaço para potências
emergentes? In: (Org.) HURREL (et. al.) Os BRICs e a ordem global, Introdução. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2009.
LIBER, K. A.; ALEXANDER, Gerard. Waiting for Balancing Why the World Is Not Pushing
Back. In: International Security, v. 30, n. 1, 2005.
LOPES, D. B. Política Externa na Nova República: os primeiros 30 anos. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2017.
OLIVEIRA, M. F. DE. Multilateralismo, Democracia e Política Externa no Brasil:
Contenciosos das Patentes e do Algodão na Organização Mundial do Comércio
(OMC). In: Contexto Internacional, v. 29, n. 1, 2007, pp. 7–38.
OMC, Doha Ministerial Declaration [WT/MIN(01)/DEC 1], 20 de novembro de 2001.
PAPE, R. A. Soft balancing against the United States. In: International Security, v. 30,
n. 1, 2005, pp. 7-45.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
82 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
PAUL, T. V. Introduction: The Enduring Axioms of Balance of Power Theory and Their
Contemporary Relevance. In: (Orgs.) PAUL, T. V.; WIRTZ, J. J.; FORTMANN, Michel.
Balance of Power Theory and practice in the 21st century. Stanford, California Stanford
University Press, 2004.
PAUL, T. V. Soft balancing in the age of U.S. primacy In: International Security, v. 30,
n. 1, 2005, pp. 46-71.
PT. Lula, presidente: uma Revolução Democrática no Brasil.Bases do Programa de
Governo, 1994.
____. União do Povo – Muda Brasil. Diretrizes do Programa de Governo, 1998.
____. Resoluções do II Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores. O Programa da
Revolução Democrática para a construção de um Brasil livre, justo e solidário. Belo
Horizonte (MG), 24 a 28 de novembro de 1999, 54p..
SCHEWELLER, R. L.; PU, Xiaoyu. After Unipolarity: China’s Visions of International Order
in na Era of U.S. Decline. In: International Security, v. 36, n. 1, Summer 2011, pp. 41-72.
STEPHEN, M. D. Rising Regional Powers and International Institutions: The Foreign Policy
Orientations of India, Brazil and South Africa. In: Global Society, v. 26, n. 3, 2012.
VADELL, J. A.; LAMAS, Bárbara; RIBEIRO, D. M. de F. Integração e Desenvolvimento no
MERCOSUL: Divergências e Convergências nas Políticas Econômicas nos Governos
Lula e Kirchner. In: Revista Sociologia Política; Curitiba, v. 17, n. 33, 2009, pp. 39-54.
VIGEVANI, Tullo; RAMANZINI JÚNIOR, Haroldo. Autonomia, Integração Regional e
Política Externa Brasileira: Mercosul e Unasul. In: DADOS – Revista de Ciências
Sociais; Rio de Janeiro, v. 57, n. 2, 2014, pp. 517-552.
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da
Silva, na Segunda Sessão Plenária da 5ª Cúpula das Américas, em Portof Spain,
Trinidad e Tobago, 18 de abril de 2009. In: Resenha de Política Exterior do Brasil,
a. 29, n. 104, 1º semestre de 2009, pp. 93-98.
UNASUR. Tratado Constitutivo de la Unión de Naciones Suramericanas.Disponível em: http://
www.Unasursg.org/images/descargas/DOCUMENTOS%20CONSTITUTIVOS%20
DE%20UNASUR/Tratado-UNASUR-solo.pdf. Acesso: 09 de setembro de 2018.
WALT, S. M. Keeping the World “Off-Balance”: Self-Restraint and U.S. Foreign Policy. In:
America Unrivaled: The Future of the Balance of Power. Ithaca, cap. 4, New York.:
Cornell University Press, 2002.
____. Taming American Power: the global response to US primacy. Harvard University;
W. W. Norton & Company, 2006.
____. Alliances in a Unipolar World. In: World Politics, v. 61, n. 1, 2009.
WALTZ, K. N. Theory of International Politics. 1 ed. [S.l.]: McGraw-Hill Humanities/
Social Sciences/Languages, 1979.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
83Tiago Gabriel Tasca
O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa
e a Política Externa Independente
Brazil in the Cold War: heterodox autonomy
and the Independent Foreign Policy
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.828
Tiago Gabriel Tasca
1
Resumo
Este artigo oferece um instrumental epistemológico para o debate em torno do conceito de
autonomia no contexto da política externa independente (PEI) brasileira, desenvolvida no
começo dos anos de 1960. No ínterim da Guerra Fria, o conceito de autonomia possibilita
avaliar a participação dos países da América Latina no conflito a partir de uma concepção
endógena da historiografia latino-americana, especialmente a argentina (Juan Carlos Puig) e
brasileira (Hélio Jaguaribe). O objetivo deste artigo é articular e aplicar o conceito de autonomia
a dois casos singulares na PEI: participação parcial na I Conferência de Belgrado (1961) e
mediação na crise dos mísseis de Cuba (1962). Conclui-se que o conceito de autonomia
heterodoxa de Puig, sob bases das perspectivas de viabilidade nacional e permissividade
internacional de Jaguaribe, enquadra-se como lente explicativa para os dois casos.
Palavras-chave: Historiografia Latino-americana. Política Externa Independente. Autonomia.
Guerra Fria.
Abstract
This article offers an epistemological tool for the debate on the concept of autonomy in the
context of Brazilian Independent Foreign Policy (IFP), developed in the early 1960s. In the
interim of the Cold War, the concept of autonomy enables us to assess the participation of
Latin American countries in the conflict, based on an endogenic conception of Latin American
historiography, mainly the Argentinean (Juan Carlos Puig) and the Brazilian (Hélio Jaguaribe)
ones. Therefore, the objective of this article is to articulate and to apply the concept of
autonomy to two singular cases in the IFP: partial participation in the First Conference of
Belgrade (1961) and mediation in the crisis of the Cuban missiles (1962). As a conclusion,
the concept of heterodox autonomy of Puig, based on the perspectives of national viability
and international permissiveness of Jaguaribe, is an interpretive lens for both cases.
Keywords: Latin American Historiography. Independent Foreign Policy. Autonomy. Cold War.
1 Mestre em Relações Internacionais (IREL – UnB).Pesquisador do Centro de Estudos sobre as Relações Internacionais
do Brasil Contemporâneo. Contato: tiagottasca@gmail.com
Artigo submetido em 14/07/2018 e aprovado em 13/12/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
84 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
Introdução
A tessitura contemporânea das relações internacionais carrega consigo uma
gama de conceitos e paradigmas que são utilizados para interpretar o cenário do
teatro internacional. A abordagem histórica, por sua vez, permite decifrar e explicar
os meandros das redes de poder em vários níveis, sugerindo agendas e programas
de pesquisa. São essas agendas e programas de pesquisa que dotam de dinamismo
científico a história das relações internacionais, oferecendo epistemologias que
dilatam os conceitos derivados da ciência política. Nessa esteira epistemológica,
este artigo se propõe a pensar e elucidar proposições conceituais no seio da
historiografia latino-americana para fenômenos internacionais próprios da região.
Tradicionalmente, a América Latina passou por processos sui generis de
desenvolvimento, que oscilaram entre as ideias cepalinas e da teoria da dependência.
Esse movimento peculiar e único sugere que se compreenda a importância de
se repensar as interpretações teóricas desenvolvidas pelo mainstream, isto é,
teorias do Norte Global com realidades distintas daquelas enfrentadas pelos países
latino-americanos. Esse movimento de implementar conceitos latino-americanos,
ao relativizar aqueles desenvolvidos no core das RI, permite uma explicação
mais substantiva das relações internacionais latino-americanas (BERNAL-MEZA,
2016, p. 5; SCARFI, 2018, p. 2), sobretudo no período da Guerra Fria, dilatando
epistemologicamente algumas ideias.
No começo do conflito, a América Latina aparecia como figurante no teatro
da Guerra Fria, os EUA com pouca preocupação estratégica quanto à região.
Todavia, a descoberta de mísseis soviéticos na ilha cubana, no início da década
de 1960, reacendeu a atenção dos policymakers norte-americanos e soviéticos
para esse continente. Nesse ínterim, a maleabilidade da ordem bipolar da Guerra
Fria é uma das características mais marcantes das relações entre os Estados no
período constituído entre 1955 e 1968, como lembra Saraiva (2008, p. 212), abrindo
espaço para explicações historiográficas por conjugar a bipolaridade, arquitetura
internacional de poder, a relativização da ideologia nas relações internacionais e
a instrumentalização de conceitos.
Sem embargo, a abordagem teórico-historiográfica para essa crise tem sido
cunhada pelas lentes teóricas extrarregionais. Por isso, é preciso compreender o
desenrolar da Guerra Fria na América Latina sob o próprio olhar latino-americano,
ou seja, mediante uma abordagem pericêntrica em que esse continente assume
o centro da análise (LOUREIRO, GOMES JR., BRAGA., 2018, p. 2). Compreender
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
85Tiago Gabriel Tasca
as idiossincrasias interpretativas dos países da América Latina sobre sua própria
realidade é o pivô desta análise, cujo recorte metodológico se dará por uma breve
análise de dois casos, aos quais se busca aplicar o conceito de autonomia na sua
dimensão heterodoxa, articulado pela historiografia latino-americana (notadamente
argentina e brasileira). Os dois casos escolhidos foram a participação parcial
brasileira na I Conferência de Belgrado (1961) e o envolvimento do Brasil na crise
dos mísseis de Cuba, de 1962, ambos no auge do conflito ideológico da Guerra Fria.
A adoção desses dois marcos como parâmetros analíticos da questão da
autonomia da política externa brasileira representa, inter alia, uma justaposição
entre as relações Estados Unidos – Brasil, em que pese a autonomia desse último.
Ainda, no que tange ao traço metodológico deste estudo, adota-se a autonomia
brasileira entre 1960 e 1962 como variável dependente, enquanto os dois casos
apresentam-se como variável independente. Além disso, apresenta-se a política
externa independente (PEI) como um elemento interveniente para o qual os dois
eventos escolhidos ampliam ou reduzem seu efeito sobre a autonomia brasileira,
diferenciando-se, por exemplo, do trabalho de Loureiro, Gomes Jr. e Braga (2018),
que trabalha com os limites da PEI ao dotá-la de um caráter de variável dependente,
sob uma ótica institucional, para a tentativa falha de adesão de Cuba à Área de
Livre-Comércio da América Latina.
A presente narrativa percorre quatro momentos. Primeiramente, um desenho
dos principais matizes da historiografia latino-americana, cimentando o aporte
histórico-conceitual regional para a autonomia. Depois, a partir de uma breve
taxonomia conceitual sobre autonomia, este estudo historiográfico concentrar-
se-á em dois expoentes: Hélio Jaguaribe e Juan Carlos Puig, que caracterizam a
autonomia como variável dependente da inserção latino-americana no cenário
global. Por fim, as duas últimas partes arquitetam o cenário da Guerra Fria,
sob a ótica historiográfica, dando subsídios e avançando na aplicação da teoria
autonomizante na política externa brasileira (PEB) do começo dos anos de 1960,
também chamada de PEI.
Historiografia latino-americana: escrevendo a história a partir
da América Latina
Tendo como pano de fundo a historiografia latino-americana, destacam-se
alguns elementos da historiografia francesa, no que diz respeito à importância
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
86 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
dos conceitos para os estudos historiográficos. Primeiro, é necessário reconhecer
tal historiografia como um esforço de se compreender como se criaram as teorias,
identificando seus contextos de nascimento, interesses e preferências, visando a
entender como os acontecimentos e movimentos sociais impactaram as ideias e
produções acadêmicas do campo. Esse campo de estudo está relacionado com o
rompimento da história diplomática, identificando epistemologias e metodologias
próprias ao estudo historiográfico. Enquanto as teorias de relações internacionais
se propõem a descortinar fenômenos do sistema internacional através das noções
de anarquia, hegemonia e equilíbrio de poder, por exemplo, a historiografia
busca ampliar esses referenciais teórico-conceituais, fornecendo uma visão
multidimensional dessas noções.
A gênese da historiografia latino-americana pode ser encontrada na ideia de
defender causas nacionais e regionais, especialmente questões de limites e fronteiras
(HEREDIA, 2008, p. 11). Além disso, o estudo historiográfico latino-americano
é constantemente permeado pelos elementos econômicos, com a existência de
dois polos que atuam como dínamos historiográficos regionais: o pensamento
cepalino e a teoria da dependência. As nuances do desenvolvimentismo, fruto
dessa vertente econômica, dotam a América Latina de consciência para buscar seu
lugar no mundo, adquirindo capacidade para se desenvolver e superar a condição
de dependência (HEREDIA, 2008, p. 23). Essa superação da dependência está
intimamente relacionada à busca de autonomia das nações latino-americanas, cuja
expressão é latente no período da Guerra Fria e posterior. Portanto, a abordagem
historiográfica do conceito de autonomia é imprescindível para se compreender
as relações internacionais latino-americanas para o período da Guerra Fria, que
será adotado nesta narrativa.
Considerando o papel da dependência, Puig (1980, p. 126) comenta que as
teorias e doutrinas em voga têm um ângulo dos recursos de poder que reflete os
interesses dos países desenvolvidos, de posição dominante e hegemônica, em
detrimento de uma abordagem que fosse mais contemplativa aos desafios dos países
em vias de desenvolvimento. De acordo com Bernal-Meza (2013, p. 48), a busca
por uma abordagem própria e pela preservação da autonomia dos países latino-
americanos diante do conflito Leste-Oeste leva os países dessa região a edificarem
conceitos e teorias que reflitam sua própria condição de desenvolvimento.
Primeiramente, é mister reconhecer o lugar dos conceitos dentro dos estudos
historiográficos, a fim de evitar que eles sejam reificados ou alvo de conceptual
stretching. A emergência dos conceitos, conforme sinalizada por Duroselle (2000,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
87Tiago Gabriel Tasca
p. 33), tem uma vida totalmente artificial, mas com propriedades reais. Duroselle
(2000) explica que os conceitos estão calcados em eventos reais porque são
manifestados e visíveis apenas em situações reais. Portanto, ele refuta as debilidades
de interpretar de modo artificial a realidade e atribui esse papel aos conceitos.
Contudo, Duroselle (2000, p. 36) aponta três tipos de simplificações tentadoras
e sugere cuidado com o manejo conceitual para os estudos historiográficos, dentre
elas: 1) explicar um grande número de acontecimentos por meio de um pequeno
número de homens; 2) explicar um grande número de acontecimentos por meio de
uma única causa; e 3) explicar um grande número de acontecimentos por meio de
um conceito reificado. Assim, é preciso cautela em se aplicar um conceito, evitar
sua reificação ou demasiada simplificação dos fatos e buscar sua correspondência
na empiria, nos fatos.
Cervo (2008, p. 21) também aponta quatro características observadas na
origem dos conceitos: construção social, expressão da historicidade, inclusão
de mensagem positiva e produção como exigência da ordem metodológica em
respeito à verdade e ao rigor. Por construção social, entende-se a expressão de uma
cultura. Por historicidade, trata-se das estruturas profundas das coisas concretas.
A mensagem positiva diz respeito a expressar valores de lastro cultural e a inspirar
decisões. Finalmente, a exigência metodológica busca dar rigor acadêmico à
operacionalidade dos conceitos.
Em adição, Cervo (2008, p. 8) defende que os conceitos e teorias atuam
diferentemente no campo das relações internacionais. Segundo o autor, é difícil
uma teoria ter um alcance verdadeiramente universal, uma vez que os “conceitos
expõem as raízes nacionais ou regionais sobre as quais se assentam e se recusam
estar investidos de alcance explicativo global” (CERVO, 2008, p. 8). Isso é
reforçado por Duroselle (2000, p. 36), pois, nas Relações Internacionais, no lugar
de leis generalizantes, trata-se de leis aproximadas, ou quase leis, chamadas de
matematicismo pelo autor.
A partir dessas breves considerações sobre a importância do conceito nos
estudos historiográficos, pode-se inferir que sua importância está calcada em
compreender realidades e problemas específicos, em vez de teorias de cunho
universalizante – para citar a crítica de Cervo (2008). Diante disso, as linhas acima
revelam um terreno fértil na historiografia latino-americana para a articulação e
operacionalização de conceitos próprios e que atendam a contar a história das
relações internacionais dos países da América Latina. A próxima seção explora um
conceito protagonista dos debates historiográficos latino-americanos: a autonomia.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
88 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
Entre a dependência e o ideário cepalino: uma teoria autonomizante
para a América Latina
A historiografia latino-americana apresenta uma panóplia de ferramentas
úteis para se pensar a atuação brasileira no alvorecer dos anos de 1960, mais
precisamente entre 1961 e 1962, sob o ensaio de uma política exterior independente.
Essa reflexão pode ser dada através da aplicação de conceitos munidos de
compreensões latino-americanas, que é o intuito deste estudo. Per se, o conceito de
autonomia evoluiu ao longo do tempo. Passou de um significado de independência
estrita em relação a outros atores, autossuficiência beirando à autarquia até chegar
a uma concepção relacional, heterodoxa e de autonomia decisória, versando e
abarcando questões de interesse nacional, integração regional e cooperação com
países em situação de dependência, como é o caso latino-americano.
Durante as décadas de 1970 e 1980, a autonomia apresentou-se como eixo de
análises e fruto de debate acalorado na historiografia das relações internacionais
latino-americanas. Essa dialética acadêmica surgiu das indagações deixadas pelo
realismo de Morgenthau
2
e da teoria da modernização, que varreu a academia
latino-americana nesse período, gestada e impulsionada pelos países centrais desde
os anos de 1960, sugerindo uma forma de dominação e hegemonia científica.
O conceito de autonomia, sob uma perspectiva latino-americana, pode ser
entendido em termos de capacidade e custos relativos de confronto com o poder
hegemônico (ESCUDÉ, 1992, p. 45). De outro lado, a autonomia é compreendida
como o poder de um país de participar e influenciar de forma efetiva as relações
internacionais (RUSSELL; TOKATLIÁN, 2010, p. 136). Nesse sentido, a ideia de
autonomia também invoca tomada de decisão, cujo processo está diretamente
ligado ao poder nacional e ao ambiente internacional em um determinado momento
(SARAIVA, 2015, p. 239).
Além disso, Vigevani e Ramanzini Jr. (2015, p. 192-194) sinalizam que
autonomia diz respeito a uma política exterior livre de constrangimentos impostos
por outros países, sobretudo as potências globais, para que o país tenha capacidade
de executar decisões com base nos seus objetivos nacionais. Outrossim, a autonomia
pode ser vista como uma ferramenta para resguardar o país dos interesses nocivos
do sistema internacional, em específicos, contextos doméstico e internacional
(VIGEVANI; RAMANZINI JR., 2015, p. 193). Em perspectiva cronológica, Simonoff
2 Ver Morgenthau (2003).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
89Tiago Gabriel Tasca
(2015) assinala quatro momentos que gestaram a teoria autonomista latino-
americana, a saber: momento independentista (por volta de 1830), momento
hispano-americanista (de 1845 e 1870), momento latino-americanista (de 1870 a
1930) e momento nacionalista (entre 1940 e 1960).
Não obstante esse conceito de autonomia, sua compreensão e instrumentali-
zação encontra variações na América Latina. As perspectivas brasileira e argentina,
por exemplo, têm compreensões distintas sobre esse conceito. Enquanto que,
para a brasileira, a autonomia é vista como um meio, a abordagem argentina a
percebe como um fim. Essa finalidade da autonomia, para a abordagem argentina,
encontra em Juan Domingo Perón a formulação da terceira posição, visando a
balancear o peso dos EUA na região, ampliando a autonomia argentina e buscando
a integração regional.
Para o caso brasileiro, a autonomia é vista como meio, ou seja, lograda através
de processo negociatório. Um ensaio da autonomia brasileira, na década de 1960,
pode ser concebido pela política externa independente (PEI). Sob a égide da PEI,
é possível identificar a práxis da política externa brasileira para o contencioso
cubano e para a decisão de enviar membro observador à I Conferência de Belgrado
(1961). Portanto, o conceito de autonomia, ligado ao nexo negocial, é pedra basilar,
ideia-força, para compreender a atuação brasileira nesse movimento decisório da
política internacional.
Diante dessas duas abordagens sul-americanas para um projeto de autonomia,
articula-se uma escola doutrinária sobre a autonomia latino-americana, tendo dois
grandes expoentes: Juan Carlos Puig, na Argentina, e Hélio Jaguaribe, no Brasil
(GRANATO, 2014, p. 82). Essa abordagem, segundo Bernal-Meza (2013, p. 49,
tradução nossa) “é uma interpretação, do ponto de vista da periferia, da estrutura
do poder global e um quadro de referência para um processo de autonomização
para um país onde as classes dominantes decidam por superar a dependência”.
Por isso e diante do contexto em que se insere a autonomia na história da
América Latina, Jaguaribe é peça fundamental. Conforme ilustra Lessa (2013, p. 890),
Jaguaribe fazia parte do elenco que defendia uma abordagem autonomizante e
multidimensional do nacionalismo, cujos reflexos apareciam na trajetória brasileira
desde a década de 1930. Seu papel, na análise da historiografia latino-americana
– e sobretudo brasileira – é de pensar as causas do atraso e as possibilidades do
devir do Brasil (LESSA, 2013, p. 898). Por exemplo, na obra seminal de Jaguaribe,
O nacionalismo na atualidade brasileira, de 1958, a Operação Pan-Americana,
encabeçada por Kubitschek, lança luzes para compreender a autonomia como
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
90 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
mecanismo de negociação da dependência brasileira frente aos EUA (MUÑOZ,
2016, p. 203; LESSA, 2013, p. 883).
Diante disso, observa-se que uma trajetória do alinhamento do Brasil com os
EUA – sob o tratamento de elemento interveniente para a instrumentalização da
autonomia –, vinda desde os anos do Barão de Rio Branco, encontraria desgastes
durante a Guerra Fria, sobretudo no que concerne à tentativa de autonomia
da PEB. Dessa maneira, Jaguaribe (1958) percebe que esse alinhamento era
anacrônico e que deveria ceder espaço ao neutralismo, servindo aos fins últimos
do desenvolvimento e da integração do território nacional (MUÑOZ, 2016, p.
220). O pano de fundo da análise conceitual de Jaguaribe era o estancamento
econômico, político, social e cultural da região, que necessitava superar esses
problemas estruturais (GRANATO, 2014, p. 83). A questão central, então, passa
a ser a instrumentalização da autonomia, isto é, sua efetiva operacionalização.
Essa tendência será aprofundada nos anos auríferos da PEI, em que a liberdade
de movimento diplomático brasileiro estava limitada pela sua delicada situação
doméstica (FRANCHINI NETO, 2005, p. 15). As ideias de Jaguaribe são norteadoras
para se compreender a posição brasileira durante a Guerra Fria. Como aponta
Muñoz (2016, p. 206), o conceito de autonomia, para Jaguaribe, aparecia como
indissociável da ideia de nacionalismo integrador, isto é, uma postura exterior
neutralista vis-à-vis a prevalência da soberania popular no plano doméstico
(JAGUARIBE, 1958, p. 32). Todavia, esse neutralismo é colocado à prova em dois
momentos, durante a Guerra Fria: participação brasileira na I Conferência de
Belgrado, em 1961, e na crise dos mísseis de Cuba, em 1962.
Ainda no período da Guerra Fria, o Movimento dos Não Alinhados, oficialmente
lançado em Bandung, em 1955, coloca em evidência um apreço brasileiro ao
meio-termo e à acomodação (MUÑOZ, 2016, p. 212). Jaguaribe (1958, p. 93)
classifica a autonomia brasileira como autonomia regional, ou seja, restrita a
uma determinada região, sem uma vigência global. O mesmo autor (1958, p. 96)
sugere que a autonomia depende de duas condições básicas: viabilidade nacional e
permissividade internacional, aspectos centrais para se entender a necessidade de
uma relativização da autonomia heterodoxa para o período diplomático brasileiro.
A viabilidade nacional, conforme Jaguaribe (1958, p. 96), depende de o
quanto um Estado dispõe de um mínimo de recursos humanos e naturais. Essa
disposição varia ao longo de um determinado momento histórico, isto é, há períodos
em que haverá maior demanda por recursos humanos e naturais. Esse mínimo
crítico, ademais, é condicionado pelas exigências tecnológicas de cada período,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
91Tiago Gabriel Tasca
pelo nível moral e educacional da população e pela integração sociocultural do
país, indicando que são poucos os países que dispõem de condições estruturais e
funcionais para a exercer a autonomia (JAGUARIBE, 1958, p. 97). Adiciona-se a
esse processo o papel das elites domésticas, uma vez que a passagem da condição
de dependência para a condição de autonomia só poderia ocorrer caso os países
avancem em matéria de viabilidade nacional (BERNAL-MEZA, 2013). Posto isso,
no que concerne à viabilidade nacional ao longo da Guerra Fria, observa-se que a
intelligentsia brasileira, cujas ideias-forças regiam a PEB, estava calcada na ideia
do desenvolvimento nacional.
O fator de permissividade internacional é mais difícil de ser caracterizado
pelo seu grau de abstração, ou de artificialidade, como ensina Duroselle (2000, p.
34). Segundo Jaguaribe (1958, p. 97), a permissividade internacional relaciona-se
com a situação geopolítica de um país e suas relações internacionais, buscando
neutralizar o risco de coação por terceiros países. No caso brasileiro, observa-se
um complicado jogo geopolítico hemisférico ao longo da Guerra Fria, momento
em que dependência e autonomia se fundem como dínamos da participação
brasileira na crise dos mísseis de Cuba. Por fim, Jaguaribe (1973, p. 54) aponta
que a principal permissividade internacional para os países latino-americanos
ocorre quando as suas necessidades pelo capital se chocam com sua necessidade
de afirmação e consolidação nacionais, como se percebe na ação brasileira com
relação a Cuba, constrangida pela necessidade de capital vinda pela Aliança para
o Progresso, projeto que buscava, inter alia, influenciar diretamente a orientação
política brasileira no cenário do conflito ideológico (LOUREIRO, 2014, p. 348).
Sobre a busca de desenvolvimento econômico do Brasil, Jaguaribe (1973, p. 4)
amplia o conceito de autonomia para o processo de tomada de decisões, emergindo
a ideia de autonomia decisória. De acordo com Jaguaribe (1973, p. 4), essa
autonomia decisória consistiria em tomar decisões com base nos interesses próprios
das agências latino-americanas, através de suas próprias perspectivas e com base
nos seus meios de ação disponíveis pari passu a permissividade internacional e
viabilidade nacional. Esse movimento confluiria em uma estratégia autonômica
visando a reduzir a vulnerabilidade brasileira face à potência hegemônica
hemisférica, os EUA.
A permissividade internacional e viabilidade nacional podem ser identificadas,
na chancelaria brasileira, por Lampreia (1998). Para Lampreia (1998, p. 8),
a autonomia brasileira é objetivo essencial para o Brasil e depende de vários
elementos. Isso porque a autonomia implica ampliar a capacidade brasileira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
92 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
atuar no meio internacional com margem de escolha e manobra suficiente – não
completa, evidentemente – para seguir os caminhos delineados pela vontade
nacional, pelas opções e condições do País” (LAMPREIA, 1998, p. 8).
Do lado historiográfico argentino, Puig (1982, p. 44) articula que a política
exterior dos países latino-americanos deve se basear em uma abordagem
autonomista, e não dependentista. Consubstanciado numa visão periférica,
coadunada por Escudé (1992), a visão de autonomia de Puig (1982) sugere
um rompimento das relações de dependência com as superpotências, visando
à autonomia exterior. Ainda, Simonoff (2014, p. 18) lembra que Puig adotou
as teorias cepalinas e dependentistas como suas fortalezas para desenvolver a
abordagem autonomizante latino-americana.
O autor (1982) reconhece também a autonomia como a capacidade de uma
nação optar, decidir e trabalhar por si mesma, levando em conta a configuração
estrutural do sistema internacional (PUIG, 1982). Em outras palavras, a autonomia
traduz elementos de justiça e eficiência, com a experiência histórica mostrando
que as políticas ditadas pelas potências dominantes não são as melhores para
os países em desenvolvimento (PUIG, 1986, p. 40). Assim, e diferentemente
de Hélio Jaguaribe, Puig (1982) sustenta que a integração não é por si só uma
estratégia de autonomia, mas é conditio sine qua non para o desenvolvimento.
Puig (1982) salienta, contudo, que as pretensões autonômicas de um país não
podem ser logradas sem modelos de desenvolvimentos domésticos. Portanto, o
ponto de contato entre o desenvolvimento e a integração ocorre através de meios
infraestatais, isto é, segmentos sociais, como a elite nacional, têm um papel
central como margem de manobra para inserir o país no mundo e atender seus
interesses de forma ampla.
Além disso, a abordagem de Puig mostra que, para a integração fazer parte
do processo de busca de autonomia, os países devem ter dimensões tecnológico-
industriais mais ou menos semelhantes (GRANATO, 2014, p. 85, BERNAL-MEZA,
2013, p. 51). Um possível ponto de contato entre os dois autores é a percepção
que ambos têm do sistema internacional estratificado, mas passível de mudanças
e transmutações, e que autonomia não significa, de forma alguma, isolamento.
Entretanto, os vetores do desenvolvimento e do poder decisório, ponta de lança
do conceito autonômico em Jaguaribe (1958), dão maior espaço ao debate entre
dependência e autonomia em Puig (1982).
Por fim, a obra de Puig, que lançou importantes luzes sobre a política exterior
argentina, oferece uma tipologia acerca da autonomia, que varia entre autonomia
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
93Tiago Gabriel Tasca
pura e dependência pura, que se diferencia em autonomia heterodoxa e autonomia
secessionista. A autonomia heterodoxa sugere, então, um aumento da margem de
manobra de um Estado, ainda que respeitando a liderança da potência hegemônica
em questões estratégicas essenciais. A autonomia secessionista pressupõe a busca
de rompimento com os interesses da potência hegemônica, evitando-se adentrar
a esfera de influência dessa.
Ademais, a autonomia heterodoxa ocorre em um estágio no qual o grupo
doméstico que está no poder continua a aceitar a estratégia do poder dominante,
mas divergindo em três questões: 1) um projeto próprio de desenvolvimento
nacional; 2) ligações internacionais que não são globalmente estratégicas; e 3) a
dissociação entre o interesse nacional da potência e do grupo doméstico (PUIG,
1982). Puig (1952) vai além, sugerindo que a estratégia autonomizante requer
ações domésticas (defesa e economia) e externas (alianças). Diante disso, a
autonomia heterodoxa, combinada com os fatores de permissibilidade internacional
e viabilidade nacional, auxilia a análise da atuação brasileira na crise dos mísseis
de Cuba e na I Conferência de Belgrado.
Corroborando o argumento de Puig (1982), Bernal-Meza (2013, p. 54) aponta
que a América Latina passou por um período de busca por uma autonomia
heterodoxa, sobretudo no final da Guerra Fria. A imposição e aceitação do Consenso
de Washington, de valores ocidentais universalmente aceitos e da guerra contra
o terrorismo podem ser considerados determinantes na edificação da busca de
uma autonomia heterodoxa latino-americana no pós Guerra Fria. Sem embargo,
Rapoport (1990, p. 565) se mostra crítico ao conceito de autonomia heterodoxa,
uma vez que esse conceito é rígido e esquemático demais para o contexto latino-
americano, apesar de considerá-lo como abridor de caminhos para uma linha de
ação e pensamento autônomos da periferia.
Como visto nas concepções de Puig e Jaguaribe, a autonomia (e suas
vertentes: decisória, heterodoxa e relacional) é um importante pivô de análises na
historiografia latino-americana, sobretudo em decorrência da inserção dependente
do continente no sistema internacional. À guisa de exemplo, é possível aplicar o
conceito de autonomia, tanto de Puig quanto de Jaguaribe, à PEI, nos anos em
que o mundo chegou próximo a uma hecatombe nuclear: 1961 e 1962. É para
essa direção que as próximas duas seções apontarão.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
94 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
Brazil in the spotlight: autonomia e Guerra Fria
A démarche da autonomia decisória brasileira pode ser situada nos anos de
1840, em que o Brasil começa a se desvincular dos tratados desiguais firmados
com as potências colonizadoras europeias. Cervo e Bueno (2002, p. 73) apontam
que a extinção dos tratados desiguais dotou de força um novo projeto de política
exterior brasileira, fortalecendo uma vontade nacional calcada no interesse
nacional. Nesse mesmo intuito, a PEB apresenta traços de conciliação doméstica
entre as elites e a sociedade civil, anunciando autonomia relativa nos sistemas
internacional e sul-americano (SARAIVA, 2015, p. 230).
Mais adiante, já nos anos de 1930, a autonomia reveste-se do nacional-desen-
volvimentismo varguista. Nesse período, a interpretação de Gerson Moura (2012)
sinaliza uma autonomia na dependência. O período entre a Segunda Guerra Mundial
e os acontecimentos da vindoura ordem mundial sugerem que a relação entre Brasil
e EUA foi de negociação da dependência brasileira, traduzida pela autonomia. Dito
de outra forma, a autonomia na dependência revelava um mecanismo de buscar
vantagens econômicas e militares com os EUA sem perder de vista a autonomia
decisória brasileira (MOURA, 2012), deflagrando uma barganha nacionalista
(VIZENTINI, 200 3 ao conjugar autonomia e desenvolvimento, em que esse é fim
em si mesmo e condição para a autonomia (MALAMUD; RODRÍGUEZ, 2013, p. 172).
Contemporaneamente, novas abordagens sobre autonomia robusteceram as
análises de estudiosos da área. Gelson Fonseca Júnior (FONSECA JR., 1998) propôs
a distinção entre a “autonomia pela participação” e a “autonomia pela distância”,
enquanto Luiz Felipe Lampreia (1998) ensaiava a diferença entre a “autonomia
pelo isolamento” e a “autonomia pela integração”, constantemente presente no
perfil da atuação diplomática brasileira na esfera multilateral (LESSA; COUTO;
FARIAS, 2010). Dessa forma, esse aggiornamento conceitual de autonomia carrega
consigo um conjunto de ideias-força que atuam como variável independente na
narrativa da política externa brasileira, em particular.
Essa cinemática de forças influenciou fortemente a atuação diplomática
brasileira durante a Guerra Fria. Vizentini (2009, p. 140) indica que o nacionalismo
dos anos de 1950 e a PEI dotavam de complexidade a inserção internacional do
Brasil, que tinha diante de si o desafio de buscar a autonomia diplomática para
o país sob a égide de um sistema internacional altamente fragmentado. Nesse
momento, a PEI configura-se como um importante objeto, cujo marco analítico-
conceitual reside na autonomia decisória, com traços de autonomia heterodoxa.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
95Tiago Gabriel Tasca
A PEI, como traduzida por Vizentini (2009, p. 128), tinha vetores internacionais
que consolidaram sua operacionalização. A emergência da União Soviética como
ator consistente e poderoso, buscando efetivar uma hegemonia no Leste Europeu,
concomitante à reconstrução econômica da Europa Ocidental, a emergência da
Comunidade Econômica Europeia e a dinâmica de descolonização dos países
asiáticos e africanos se apresentam como motores do movimento da barganha
dos países do Terceiro Mundo, que tinham em vista angariar recursos e uma nova
inserção na conjuntura global. Esses momentos permitem reinterpretar o conceito
de autonomia, refletindo os debates, ideologias, preferências e interesses das elites
da política externa (MALAMUD; RODRÍGUEZ, 2013, p. 172; LOUREIRO; GOMES
JR.; BRAGA, 2018).
A gênese da PEI, por sua vez, encontrou terreno fértil no pensamento de San
Tiago Dantas, Araújo Castro e Afonso Arinos de Melo Franco. Segundo Saraiva (2015,
p. 236), a PEI pode ser considerada um laboratório particular em que se gestou
uma série de discursos em torno do conceito de autonomia na política externa.
Demais disso, Bandeira (2014) assinala que a PEI se assemelhava às diretrizes
da terceira posição, articulada por Perón, “constituindo seu point d’honneur a
defesa da autodeterminação e da não intervenção em Cuba” (BANDEIRA, 2014,
p. 918), retórica amplamente empregada ao longo dos debates acerca da crise
dos mísseis cubana.
Ainda, no início da década de 1960, observa-se a relativização da autonomia
brasileira face aos EUA, sobretudo em vista da resultante da permissividade
internacional. Dado o fracasso da invasão norte-americana à Baía dos Porcos (abril
de 1961), os EUA intensificaram a sua influência na política brasileira (BANDEIRA,
2014), cuja saúde macroeconômica estava comprometida. Dois anos mais tarde,
viria a Aliança para o Progresso, cujo intuito era evitar a penetração de regimes
comunistas na América Latina.
Em paralelo à Aliança para o Progresso, a situação doméstica brasileira
(viabilidade nacional) ofertava barreiras à plena execução de uma teoria de
autonomia. Isso porque a economia brasileira estava ancorada em níveis altos de
inflação e necessidade de reformas estruturais declaradas pelo Plano Trienal, que
teriam execução comprometidas sem a ajuda internacional (LOUREIRO, 2016, p. 2).
Assim, a Aliança para o Progresso pode ser adicionada como vetor interveniente
à decisão brasileira no início dos anos de 1960, pois afeta e redimensiona a
autonomia brasileira.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
96 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
Na busca de compreender de que forma se processou a autonomia heterodoxa
brasileira para os dois casos, algumas chaves de análise são lançadas. Primeiro,
retoma-se a compreensão das relações entre Brasil e Estados Unidos como pedra
basilar para se compreender o papel do Brasil nos eventos da Guerra Fria do
começo dos anos de 1960. Por conseguinte, Cervo (2008) enfatiza o conceito de
parceria estratégica para melhor entender o relacionamento entre os dois países
americanos. A ideia de parceria estratégica tangencia questões como “assimetria,
convergência, rivalidade, emergência, relações perigosas e relações triangulares”
(CERVO, 2008, p. 220). Entretanto, foi essa mesma diplomacia triangular (EUA –
Brasil – Cuba) que enfatiza as fissuras das relações entre EUA e Brasil (HERSHBERG,
2004). Portanto, a utilização do conceito de parceria estratégica, e não de aliança
não escrita, por exemplo, revela um esforço multifacetado para se proceder a uma
análise ecumênica e multiproposital das relações entre Brasil e Estados Unidos.
Segundo, as relações triangulares, por seu turno, são chaves de análise para
entender de que forma o Brasil lidou, concomitantemente, com os interesses
cubanos, soviéticos e norte-americanos ao mediar uma solução para a crise dos
mísseis de Cuba. Todavia, o caso da participação brasileira na I Conferência de
Belgrado mostra a influência dos EUA sobre os rumos da PEB para o período,
sugerindo que a autonomia decisória brasileira ficou em segundo plano em
decorrência dessa parceria estratégica com os EUA. Consequentemente, a busca
autonômica brasileira se relaciona com o binômio permissividade internacional
e viabilidade nacional, que sustenta um tripé: necessidade de promover o
desenvolvimento pari passu a relação com os EUA, a promoção dos princípios da
não intervenção e uma zona livre de armamentos nucleares na América Latina
(BERNAL-MEZA, 2016, p. 7).
A autonomia heterodoxa: um caminho alternativo à PEI
La vie politique cubaine, nas palavras de Duroselle e Kaspi (2001, p. 231),
teve uma íntima relação com as relações internacionais dos EUA, cujas relações
bilaterais ficaram tensionadas a partir da ascensão de Fidel Castro ao poder. Em
meados dos anos de 1960, instalava-se, na ilha cubana, uma dictature de gauche
(DUROSELLE; KASPI, 2001, p. 233), deflagrando uma ruptura entre Cuba e EUA,
ainda em 1959, fruto de crises políticas entre esses dois países. Nesse contexto
de Guerra Fria, Cuba declara-se parte do bloco soviético em outubro de 1960,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
97Tiago Gabriel Tasca
redimensionando as preocupações dos EUA para o continente americano.
A aproximação entre Cuba e a URSS fica mais evidente após o fracasso da
invasão da Baía dos Porcos pelos EUA, em 1961, levando Fidel Castro e Che
Guevara a buscar apoio soviético para a “ameaça americana” (DUROSELLE;
KASPI, 2001, p. 238). A situação fica ainda mais delicada com a construção de
bases militares da URSS em Cuba, com o desenvolvimento de bases nucleares.
Essa construção suscitou uma atitude norte-americana para a defesa e segurança
hemisféricas. O caminho adotado pelos EUA foi o da quarentena, isto é, bloqueio
naval dos navios soviéticos que tentassem entrar na ilha cubana para descarregar
armamentos nucleares. Essa medida acirrou o contencioso soviético-americano,
no começo dos anos de 1960, deixando o mundo à mercê de uma perigosa ligação
pelo “telefone vermelho” (DUROSELLE; KASPI, 2001, p. 244).
Para o Brasil, a participação na crise esteve entre duas grandes fronteiras:
exercer a autonomia, instrumentalizando a PEI, e os constrangimentos estabelecidos
pelo parceiro estratégico brasileiro, os EUA. Assim, a estratégia da mediação
feita pela diplomacia brasileira entre EUA e Cuba foi secreta e teve uma gama de
interesses brasileiros como pano de fundo. Primeiro, o Brasil detinha o status de
aliado hemisférico privilegiado dos EUA, procurando ampliar seu papel regional
e global. Segundo, as forças armadas brasileiras estavam menos alarmadas que
os líderes norte-americanos por uma possível ameaça do fidelismo. Terceiro, à
luz dos movimentos dos não alinhados, os líderes brasileiros flertaram com uma
política externa independente através da qual eles poderiam escapar de ser um
mero subserviente dos EUA e ocupar um papel de maior relevância estratégica
entre Ocidente e Oriente. Quarto, havia substancial apoio doméstico brasileiro
tanto ao regime cubano quanto à causa neutralista mediante o Partido Socialista
Brasileiro, por exemplo (HERSHBERG, 2004; ÚLTIMA HORA, 1961b, p. 3).
Em que pese o objeto deste estudo, a importância do conceito de autonomia
para analisar a política externa brasileira (PEB) destaca-se como um alter ego na
formação dos processos decisórios dessa política (SARAIVA, 2014, p. 11). Sem
embargo, alguns autores sugerem que a autonomia já tinha base evolutiva anterior,
tendo sido apropriada pela PEI (SARAIVA, 2014; MUÑOZ, 2016). É possível observar
esse desenvolvimento anterior à PEI em dois momentos: o papel da autonomia
nas negociações tarifárias em que o Brasil participou no GATT e a questão de
informações na área nuclear, capitaneada pelo almirante Álvaro Alberto Mota e
Silva, ambos os casos ainda na década de 1950 (SARAIVA, 2014, p. 18-19).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
98 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
Ainda, apesar de alguns estudos (MEDEIROS; CERIOLI; STADNIK, 2014, p. 15)
apontarem que houve a afirmação dos ideais da PEI e da autonomia diplomática
brasileira face às pressões dos EUA na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres
das Repúblicas Americanas, em 1962, no mesmo ano da Crise dos Mísseis, é
necessário relativizar essa autonomia como uma autonomia heterodoxa. Isso
porque, ao observar que a postura do chanceler brasileiro à época, Afonso Arinos,
evidencia-se uma posição mais favorável às negociações com os EUA e um apoio
popular à sua política de saneamento financeiro e austeridade administrativa, em
que se inseria o auxílio econômico externo (BEZERRA, 2010, p. 44; LOUREIRO;
GOMES JR.; BRAGA, 2018, p. 13).
A partir desse cenário de Guerra Fria e do despertar de um Movimento dos Não
Alinhados, sob os auspícios do conflito ideológico, os dois momentos analisados
aqui apontam que a autonomia brasileira foi relativizada, cujas nuances podem
ser captadas pela historiografia latino-americana. Primeiramente, a participação
brasileira na I Conferência de Belgrado suscita algumas incertezas quanto à
posição de autonomia brasileira. Essa conferência ocorreu em setembro de 1961,
na Iugoslávia, cujo intuito era o de iniciar oficialmente o Movimento dos Não
Alinhados (RAKOVE, 2014).
No auge da Guerra Fria, a decisão brasileira e a tentativa malsucedida
(HERSHBERG, 2007) de enviar um observador à conferência impactou a relação
entre Brasil e EUA. Segundo Hershberg (2007), o alinhamento pleno entre Brasil
e EUA suscitava desconfianças desse último quanto ao primeiro. A participação
brasileira nesse evento era o de levar o peso das nações sul-americanas ao
Movimento dos Não Alinhados, uma vez que Cuba era a única nação latino-
americana a participar da conferência. Desse modo, os iugoslavos temiam que
uma parcela de países chave da Europa, África e América do Sul não participassem
da Conferência por causa da pressão dos EUA, contrário à adesão à conferência
(HERSHBERG, 2007). Por conseguinte, o presidente iugoslavo solicita uma ação
mais direta dos países neutros na crise cubana, dentre eles o Brasil (JORNAL DO
BRASIL, 1962 a, p. 3).
Segundo Hershberg (2004), o ministro das Relações Exteriores, Afonso
Arinos, apoiava a participação brasileira nessa conferência visando a firmar o
posicionamento brasileiro na arena internacional e fortalecendo a posição e o
papel global do Brasil. Essa intenção reforça as diretrizes da PEI, quais sejam, a
coexistência pacífica e a ampliação do mercado externo aos produtos brasileiros
(VIZENTINI, 1994, 2003). Desse modo, é possível apontar duas motivações da
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
99Tiago Gabriel Tasca
participação brasileira na conferência. Primeiro, o presidente Quadros buscava
“marcar seu inconformismo e dizer que o mundo é um pouco mais vasto do
que pensam os líderes dos dois blocos” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1961b, p. 4).
Segundo, o reinício das experiências nucleares por parte da União Soviética,
as pressões pelas descolonizações africanas (Argélia, sobretudo) e pelo mote
do desenvolvimento eram impulsos que materializavam os três D’s da PEI:
desarmamento, desenvolvimento e descolonização (WROBEL, 1993; DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 1961d, p. 17).
Todavia, a decisão de Quadros em participar da conferência foi ambígua:
ora se alinhando com o mundo soviético, ora com os neutros, mas sem deixar de
lado a parceria estratégico-hemisférica com os EUA (HERSHBERG, 2007). Nesse
sentido, apesar da vontade nacional em participar, a pressão norte-americana
não deixou de influenciar os caminhos da autonomia decisória brasileira nesse
momento. Inicialmente, o Brasil mandaria um membro pleno para participar das
decisões da conferência. Contudo, a decisão brasileira foi a de enviar apenas um
membro observador, configurando a vontade brasileira de não se indispor com
Washington.
Como política externa, era o auge da PEI, e o Brasil defendia a autodeterminação
dos povos e diversificação de parcerias econômicas. Entretanto, internamente, o
cenário não era de estabilidade econômica. A renúncia de Quadros, em agosto
de 1961, a uma semana da I Conferência de Belgrado, revela uma dificuldade de
manobrar a viabilidade nacional, como posto por Jaguaribe (1973), para exercer
sua autonomia no cenário internacional. Assim, a autonomia decisória sofre de
cacofonia entre o discurso da PEI e as relações com os EUA. Internamente, a
imprensa nacional reverberou as incertezas brasileiras com relação a uma posição
neutralista (JORNAL DO BRASIL, 1961; DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1961a), salientando
que há diferença entre uma nação não alinhada e nação que deseja ter uma política
externa independente (caso do Brasil) (JORNAL DO BRASIL, 1962 b).
Demais disso, a PEI apresentava rachaduras e falhas na sua aplicação, podendo
ser notada nessa participação parcial brasileira na I Conferência de Belgrado.
De acordo com Hershberg (2007), Washington havia mostrado claramente seu
desapreço pelo neutralismo e não alinhamento do Brasil. Para os EUA, o Brasil
nunca deixara de ser um aliado hemisférico importante. Assim, a participação
brasileira nessa conferência era pertinente aos objetivos da PEI, que buscava uma
maior autonomia brasileira no cenário global, mas era conflitiva com a parceria
estratégica entre Brasil e EUA. Por conseguinte, em julho de 1962, o embaixador
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
100 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
norte-americano no Brasil, Moors Cabot, declara que o Brasil era um país
comprometido com as potências ocidentais e não poderia, portanto, participar da
Conferência de Belgrado (ÚLTIMA HORA, 1961a, p. 6). Em meio ao mote da PEI, da
permissividade internacional – necessidade doméstica de financiamentos externos
–, a decisão final brasileira foi, portanto, de não se indispor com os EUA, exibindo
uma feição frustrada da política externa independente (HERSHBERG, 2007).
Em última análise, Vizentini (2003 1994) sinaliza cinco eixos basilares da
PEI, quais sejam: 1) formulação autônoma do desenvolvimento econômico e
ajuda internacional; 2) emancipação completa de territórios não autônomos;
3) coexistência pacífica e desarmamento geral; 4) não intervenção e autodeterminação;
5) ampliação do mercado externo aos produtos brasileiros. No que tange à
I Conferência de Belgrado de 1961, seus resultados consubstanciam essas
diretrizes. Da declaração geral da conferência, enfatizam-se as seguintes: 1) apoio
à concessão da independência aos povos coloniais, eliminando o colonialismo
antes de 31 de dezembro de 1962; 2) considerar violação da soberania nacional a
presença de bases militares contra a vontade de qualquer povo (ponto específico
relacionado à base estadunidense de Guantánamo em Cuba); 3) afirmação do
direito à autodeterminação; 4) fim do desequilíbrio entre as nações desenvolvidas
e subdesenvolvidas (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1961c, p. 4). Não obstante a
justaposição dos resultados à PEI, a participação moderada do Brasil no evento
revela dificuldades de uma autonomia puramente secessionista.
O segundo evento que lança luz à operacionalização do conceito de autonomia
brasileira é a participação do Brasil na crise dos mísseis de Cuba. Ressalta-se que
um dos motivos pelos quais os EUA solicitaram a mediação brasileira, além da
influência hemisférica de que dispunha o Brasil, era de evitar que o Brasil pendesse
para o lado dos não alinhados e comunistas. Portanto, a mediação fornecida pelo
Brasil foi arquitetada pelos EUA e apenas aplicada pelo Brasil, uma vez que o desejo
da PEB era de colaborar para a edificação de uma área livre de armas nucleares,
temática que recebeu pouca atenção. Esse movimento, portanto, conflui com uma
atuação direta dos EUA na autonomia decisória brasileira (LOUREIRO, 2016, p. 7).
Conforme aponta Hershberg (2004), a atuação da diplomacia brasileira durante
a crise dos mísseis de Cuba foi secreta, para que Fidel Castro não desconfiasse que
os EUA estavam atrás da mediação oferecida pelo Brasil. João Goulart, presidente
durante o período, ofereceu apoio à iniciativa dos EUA de lidar com os mísseis
soviéticos em Cuba, mas defendia, ao mesmo tempo, que a soberania cubana
deveria ser mantida. Já nesse momento, o Brasil tentava manter sua autonomia
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
101Tiago Gabriel Tasca
vis-à-vis seu alinhamento histórico com os EUA, uma vez que Goulart não
apresentava uma posição firme quanto à quarentena aplicada pelos EUA a Cuba
(HERSHBERG, 2004). Assim, a percepção de Washington com relação à posição
brasileira à época foi a da necessidade de uma reavaliação da orientação política
do governo de João Goulart (LOUREIRO, 2016, p. 7).
Como medida de reavaliação, pelos EUA, da orientação política de Goulart, o
compromisso de financiamento firmado entre os EUA e Jânio Quadros, no começo
dos anos de 1960, foi revisto. Como consequência dessa transição e reavaliação,
as condicionalidades dos EUA para os financiamentos de estabilização econômica
brasileira foram mais rígidas e incisivas, adicionando novas condições demanda-
das pelo Fundo Monetário Internacional, sob o pressuposto do posicionamento
de Goulart frente a Cuba e aos países de influência comunista (LOUREIRO,
2014, p. 344). Essas condicionalidades utilizadas pelo governo de Washington
são apontadas como uma forma de enfraquecer as ligações entre Goulart e os
comunistas (LOUREIRO, 2014, p. 348).
O movimento que se observa ao longo da crise cubana é o seguinte: o Brasil
relativiza sua autonomia e contribui diretamente com os interesses da potência
hemisférica (EUA). A diplomacia triangular que se edificou entre Brasil, EUA e
Cuba, durante a Guerra Fria, coloca o Brasil como um ponto de contato entre os
dois países. Não obstante a busca de autonomia brasileira e defesa dos princípios
de autodeterminação e de não intervenção, como se nota na abstenção das votações
de expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA, em 1962),
a PEB acaba sendo instrumentalizada pelos EUA durante a crise dos mísseis de
Cuba e na I Conferência de Belgrado de 1961.
Diante desse breve arrazoado histórico-conceitual, a solução apresentada
pelo Brasil à crise era de uma área livre de armas nucleares na América Latina,
o que imprimia maior autonomia decisória brasileira para o desfecho da crise,
sem se render aos interesses da superpotência norte-americana. Todavia, não foi
isso que ocorreu. Segundo a análise de Puig (1986), o grupo político doméstico
no poder aceitava os desígnios dos EUA para a PEB. Apesar de ter um projeto
próprio de desenvolvimento nacional, buscava parcerias globais (lançando mão
da cooperação com a China e com países africanos) e, ainda que com ressalvas,
havia um interesse nacional em consolidação.
Além disso, a visão de Jaguaribe (1973) também permite inferir de que forma
os dois elementos de sua teoria autonômica se aplicam nos dois casos em análise.
A viabilidade nacional, isto é, a disposição de recursos se coloca à disposição da
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
102 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
potência hemisférica, ao passo que a permissividade internacional pendia para
o jogo geopolítico e ideológico que se desenhava na América. Portanto, diante
do grande peso influenciador dos EUA na PEB, é difícil falar em autonomia
decisória plena no alvorecer dos anos de 1960, sendo, portanto, um caso passível
de autonomia heterodoxa. Ademais, a PEI pode ser vista como uma variável
interveniente na compreensão da autonomia brasileira para os dois eventos da
Guerra Fria em foco, isso porque seus elementos ampliam ou reduzem o impacto
das variáveis independentes (crise dos mísseis e I Conferência de Belgrado) no
elemento dependente (autonomia brasileira) dessa narrativa.
Desse modo, a formulação autônoma do desenvolvimento econômico e
ajuda internacional é articulada por Hershberg (2004) como um movimento de
dificuldade brasileira, uma vez que a participação do Brasil foi limitada dada a
dificuldade de dissuadir os países latino-americanos. Apesar da busca de recursos
mediante a Aliança para o Progresso, o Brasil ficou à mercê de uma retaliação
econômico-financeira dos EUA (LOUREIRO, 2016), ao passo que defendia os
pressupostos de não intervenção em Cuba. Segundo, Loureiro (2014) e Loureiro,
Gomes Jr, e Braga (2018) lançam luz para o vetor financeiro como grande ponta
de lança dos interesses brasileiros com os EUA, sobretudo com o financiamento
potencial da Aliança para o Progresso. Contudo, não se deve perder de vista
o papel político que essa aliança continha: atração e manutenção de países
aliados à causa estadunidense em meio à Guerra Fria. Nessa esteira, sublinha-
se o fator de permissividade internacional: a necessidade doméstica de capital
(pressão inflacionária e déficits comerciais) se coaduna com o afastamento de
uma autonomia secessionista, aquela que pressuporia a busca pelo rompimento
com os interesses da potência hegemônica; ao mesmo tempo, evita-se adentrar
inteiramente a esfera de influência dessa mesma potência. Portanto, nesse jogo
de forças, encontraríamos uma autonomia heterodoxa.
Conclusão
Inicialmente, um esboço historiográfico foi feito para mostrar como a
historiografia latino-americana apresenta-se como panóplia relevante para decifrar
os desafios desse continente visto de forma endógena e particular. A apresentação
de conceitos artificiais, mas consubstanciados empiricamente, revelam a tradição
historiográfica francesa de Duroselle (2000) e traduzem a importância conceitual
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
103Tiago Gabriel Tasca
para a historiografia latino-americana, cujo desenvolvimento econômico tornou-se
variável dependente da história das relações internacionais da América Latina.
Desse modo, o leitmotiv dessa narrativa constituiu-se dos matizes dados pela
historiografia latino-americana ao conceito de autonomia.
Um segundo momento deste trabalho foi dedicado à compreensão da teoria
autonomizante. Guiado pelo desejo de promover o desenvolvimento, o conceito
de autonomia evoluiu ao longo do tempo e desmantelou-se com interpretações
próprias e distintas, como as divergências entre o conceito brasileiro e argentino.
Assim, sob o ponto de vista regional, Puig e Jaguaribe protagonizam uma dialética
epistemológica que leva a um conceito puigiano com bases jaguaribeanas, o de
autonomia heterodoxa, para a PEB, durante a PEI. O esforço foi, portanto, na
direção de que os matizes estratégicos da PEI permitem ampliar ou reduzir o
impacto dos dois eventos aqui analisados (variáveis independentes) na questão
da autonomia brasileira para o período (variável dependente), confluindo em
uma estratégia metodológica hipotético-dedutiva, que congrega o esforço da
aplicabilidade de conceitos dos estudos historiográficos latino-americanos para
eventos regionais.
Para se compreender as raízes conceituais pontuadas pela historiografia
latino-americana sobre autonomia, foram sinalizadas algumas forças morais e
materiais que se dissolvem nas influências do conflito ideológico para o continente
americano. Lançou-se mão do conceito autonômico para os dois casos em
análise, sugerindo que a operacionalização desse conceito perpassa as relações
bilaterais entre Brasil e EUA, bem como os princípios das relações internacionais
brasileiras, como a autodeterminação e a não intervenção. Não raro, a inserção
da autonomia na estratégia internacional brasileira reflete interpretações próprias
da realidade desenvolvimentista brasileira. Entretanto, encontra obstáculos
bifocais: a viabilidade nacional (situação de desequilíbrio macroeconômico
interno) e permissividade internacional (o auge do conflito ideológico vis-à-vis
uma necessidade externa de capital viabilizada pela Aliança para o Progresso),
que foram os mecanismos analíticos utilizados neste trabalho e que confluem em
uma ideia de autonomia heterodoxa, longe daquela secessionista.
Em que pese a autonomia heterodoxa, observou-se possível sua aplicação
na participação parcial do Brasil na I Conferência de Belgrado e para a posição
brasileira na crise dos mísseis de Cuba. Ainda que de forma cautelar, evitando uma
artificialidade do conceito de autonomia – relembrado por Duroselle (2000) –, a
participação brasileira, no desfecho da crise dos mísseis de Cuba, revela pontos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
104 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
de intersecção entre a autonomia heterodoxa de Puig e o conceito de autonomia
de Jaguaribe, apesar das diferentes percepções da historiografia brasileira e
argentina para o conceito, mas que se tocam, ainda que en passant, fortalecendo
as interpretações historiográficas latino-americanas para os assuntos endógenos
à região.
Referências
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: Conflito e integração
na América do Sul. 3
a
Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
BERNAL-MEZA, Raúl. Contemporary Latin American thinking on International Relations:
theoretical, conceptual and methodological contributions. Revista Brasileira de Política
Internacional, v. 59, n. 1, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292016000100205>. Acesso em 14 jul. 2018.
____. Heterodox Autonomy Doctrine: realism and purpose, and its relevance. Revista
Brasileira de Política Internacional, v. 56, n. 2, p. 45–62, 2013. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292013000200003>.
Acesso em 14 jul, 2018.
BEZERRA, Gustavo H.M.. Brasil-Cuba: Relações Político-Diplomáticas no Contexto da
Guerra Fria (1959–1986). Brasília: FUNAG, 2010.
CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São
Paulo: Editora Saraiva, 2008.
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 2002.
O neutralismo e a “independência”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 3 de julho de
1961, p. 59 1961a.
Conferência de Belgrado. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1961, p. 4,
1961b
Mensagem de Belgrado. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1961, p. 4,
1961c
Encontro Rusk-Gromyko. Diário de Notícias Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1961, p. 4,
1961d
DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo Império Perecerá: Teoria das Relações Internacionais.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000.
DUROSELLE, Jean-Baptiste, KASPI, André. Histoire des relations internationales de 1945
à nos jours. 12 ed. Paris: Armand Colin, 2001.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
105Tiago Gabriel Tasca
ESCUDÉ, Carlos. Realismo Periférico, Buenos Aires: Planeta, 1992.
FONSECA, JR., Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais. São Paulo: Paz
e Terra, 1998.
FRANCHINI NETO, Hélio. A Política Externa Independente em ação: a Conferência
de Punta del Este de 1962. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 48, n. 2,
pp. 129–151, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-
73292005000200007&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em 14 jul. 2018.
GRANATO, Leonardo. A autonomia como vetor da ação externa e da integração na
América do Sul: postulações teóricas. OIKOS, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 78–90,
2014. Disponível em: <http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/article/
viewFile/372/210>. Acesso em 14 jul. 2018.
HEREDIA, Edmundo Aníbal. Relaciones internacionales latinoamericanas: historiografías
y teorías. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 34, n. 1, p. 7–35, 2008. Disponível
em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/
viewFile/4522/3449>. Acesso em 14 jul. 2018.
HERSHBERG, James. High-Spirited Confusion: Brazil, the 1961 Belgrade Non-Aligned
Conference, and the Limits of an Independent Foreign Policy during the High Cold
War. Cold War History, v. 7, n. 3, 2007. Disponível em: <https://www.tandfonline.
com/doi/abs/10.1080/14682740701474840>. Acesso em 14 jul. 2018.
____. The United States, Brazil, and the Cuban Missile Crisis, 1962 (Part 1 and 2). Journal
of Cold War Studies, v. 6, n. 2-3, p. 3–20 e p. 5–67, 2004.
Neutralismo. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 de maio de 1961, p.1, 1961.
Dean Rusk: divergência não impedirá a Aliança. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 24 de
janeiro de 1962, p. 5, 1962a.
Tito pede a Goulart ação mais direta dos neutros na crise. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
29 de outubro de 1962, p. 3, 1962b.
JAGUARIBE, Hélio. O Nacionalismo na Atualidade Brasileira. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Cultura/Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1958.
____. Dependencia y autonomía en América Latina. In: JAGUARIBE, Hélio, FERRER,
Aldo; WIONCZEK, M.; SANTOS, Theotônio dos. La dependencia político-económica
de América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, p. 1–85, 1973.
LAMPREIA, Luiz Felipe. A política externa do governo FHC: continuidade e renovação?
Revista Brasileira de Política Internacional, 42 (2): 5-17, 1998. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v41n2/v41n2a01>. Acesso em 9 dez. 2018.
LESSA, Antônio Carlos Moraes. Helio Jaguaribe: a geração do nacional-desenvolvimentismo.
In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento diplomático brasileiro:
formuladores e agentes da política externa (1750–1964). Brasília: FUNAG, v. 3,
p. 877-902, 2013.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
106 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
LESSA, Antônio Carlos; COUTO, Leandro Freitas; FARIAS, Rogério de Souza. Distanciamento
Versus Engajamento: Alguns Aportes Conceituais para a Análise da Inserção do
Multilateralismo Brasileiro (1945–1990). Contexto Internacional, vol. 32, n. 2, julho/
dezembro 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cint/v32n2/v32n2a03.
pdf>. Acesso em 9 dez. 2018.
LOUREIRO, Felipe P.. The Alliance For or Against Progress? US-Brazilian Financial Relations
in the Early 1960s. Journal of Latin American Studies, v. 46, n. 2, pp. 323-351, 2014.
Disponível em: <https://www.cambridge.org/core/journals/journal-of-latin-american-
studies/article/alliance-for-or-against-progress-usbrazilian-financial-relations-in-the-
early-1960s/F9B46E5945FF4ED1949BC42273A7CE24>. Acesso em 14 jul. 2018
____. The Alliance for Progress and President João Goulart’s Three-Year Plan: the
deterioration of U.S.-Brazilian Relations in Cold War Brazil (1962). Cold War History.
DOI: http://dx.doi.org/10.1080/14682745.2016.1254620, 2016. Disponível em:
<https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14682745.2016.1254620?journal
Code=fcwh20>. Acesso em 14 jul. 2018.
LOUREIRO, Felipe Pereira; GOMES JR, Hamilton de Carvalho; BRAGA, Rebeca Guerreiro
Antunes. A pericentric Punta del Este: Cuba’s failed attempt to join the Latin
American Free Trade Area (LAFTA) and the limits of Brazil’s independent foreign
policy.Revista Brasileira de Política Internacional., Brasília, v. 61,n. 2,e003, 2018.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
73292018000200202&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 9 dez. 2018.
MALAMUD, Andrés; RODRÍGUEZ, Júlio. Com um pé na região e outro no mundo:
O dualismo crescente da política externa brasileira. Estudos Internacionais, v. 1, n. 2,
jul-dez, p. 167–183, 2013. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.
php/estudosinternacionais/article/view/6312>. Acesso em 14 jul. 2018.
MEDEIROS, Klei; CERIOLI, Luiza G.; STADNIK, Marjorie. A Política Externa Independente:
uma análise empírica da posição brasileira face à Questão Cubana e à Crise dos
Mísseis. Revista Perspectiva, n. 12, pp. 9–22, 2014.
MORGENTHAU, Hans. A Política entre as Nações. Traduzida por Oswaldo Biato. São
Paulo: IPRI, 2003.
MOURA, Gerson. Relações Exteriores do Brasil 1939–1950. Brasília: FUNAG, 2012.
MUÑOZ, Luciano da Rosa. O conceito de autonomia em Puig e Jaguaribe: uma análise
comparativa intertextual. Revista Carta Internacional, v. 11, n. 2, Belo Horizonte,
p. 200–221, 2016. Disponível em: <https://cartainternacional.abri.org.br/Carta/
article/view/338>. Acesso em 14 jul. 2018.
PUIG, Juan Carlos. La política exterior argentina: incongruencia epidérmica y coherencia
estructural. In: PUIG, Juan Carlos (Org.). America Latina: politicas exteriores
comparadas. Tomo I. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, p. 24–163, 1982.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
107Tiago Gabriel Tasca
____. Doctrinas internacionales y autonomía latinoamericana. Caracas: Instituto de Altos
Estudios de América Latina, Universidad Simón Bolívar, 1980.
____. Integración y autonomía de América Latina en las postrimerías del siglo XX. Revista
Integración Latinoamericana, n. 109, enero-febrero, p. 40–62, 1986.
RAKOVE, Robert. Two roads to Belgrade: the United States, Great Britain, and the first
nonaligned conference. Cold War History, 14:3, pp. 337–357, 2014. Disponível em:
<https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14682745.2013.871528>. Acesso
em 14 jul. 2018.
RAPOPORT, Mario. Problemas y etapas en la historia de las relaciones internacionales
de la Argentina. In: Historiografía Argentina (1958–1988). Una evaluación critica de
la producción histórica argentina. Buenos Aires: Comité Internacional de Ciencias
Históricas, 1990.
RUSSELL, Roberto; TOKATLIÁN, Juan Gabriel. Autonomía y neutralidad en la globalización:
una readaptación contemporánea. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2010.
SARAIVA, José Flávio Sombra. Dois gigantes e um condomínio: da guerra fria à
coexistência pacífica (1947–1968). In: SARAIVA, José Flávio Sombra (Org.). História
das Relações Internacionais Contemporâneas: da sociedade internacional do século
XIX à era da globalização. 2ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
____. Autonomia na Inserção Internacional do Brasil: Um Caminho Histórico Próprio.
Contexto Internacional, v. 36, n. 1, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S0102-85292014000100001&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso
em 14 jul. 2018.
____. El concepto de autonomía decisoria en la política exterior brasileña: una creación
propia del lugar de Brasil en el mundo. In.: RUIZ, José Briceño e SIMONOFF, Alejandro
(Eds.). Integración y Cooperación Regional en América Latina. Editorial Biblos, 2015.
SCARFI, Juan Pablo. Globalizing the Latin American legal field: continental and regional
approaches to the international legal order in Latin America.Revista Brasileira de
Política Internacional, Brasília, v. 61, n. 2, e005, 2018. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292018000200203&lng=en&
nrm=iso>. Acesso em 9 dez. 2018.
SIMONOFF, Alejandro. Las Expresiones Autonómicas del Cono Sur: Jaguaribe, Puig,
Tomassini, Linck y O’Donnell. Cadernos Prolam/USP, 13 (25), p. 13–27, 2014.
Jornal Indonésio Acusa Moors Cabot. Última Hora. Rio de Janeiro, 24 de Julho de 1961,
p. 6, 1961a.
O PSDB e o neutralismo. Última Hora. Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1961, p. 3, 1961b.
VIGEVANI, Tullo; RAMANZINI JÚNIOR, Haroldo. Autonomía, integración regional
y política exterior brasileña: el Mercosur y la Unasur. In.: RUIZ, José Briceño e
SIMONOFF, Alejandro (Eds.). Integración y Cooperación Regional en América Latina.
Editorial Biblos, 2015.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 83-108
108 O Brasil na Guerra Fria: autonomia heterodoxa e a Política Externa Independente
VIZENTINI, Paulo G.. O nacionalismo desenvolvimentista e a Política Externa Independente.
Revista Brasileira de Política Internacional, v. 37, n. 1., 1994.
____. Do nacional-desenvolvimentismo à Política Externa Independente. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida (Orgs.). O Brasil Republicano: O tempo da
experiência democrática 1945/1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
WROBEL, Paulo S.. Aspectos da Política Externa Independente: a questão do desarmamento
e o caso de Cuba. Estudos Históricos, v. 6, n. 12, pp. 191–209, 1993. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1961>. Acesso em
14 jul. 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
109Fabiola Faro Eloy Dunda
A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS:
a doação de antirretrovirais como soft power do
Brasil no cenário internacional
Brazilian South-South cooperation on HIV/AIDS:
the donation of anti-retrovirals as soft power of
Brazil in the international scenario
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.795
Fabiola Faro Eloy Dunda
1
Resumo
A cooperação Sul-Sul brasileira em saúde pode ser visualizada em vários campos da
área, tais como no contexto dos bancos de leite humano, na doação de medicamentos
antirretrovirais, nos projetos de combate à epidemia de HIV/AIDS em parceria com vários
países e na participação com outros países no desenvolvimento de vacinas e medicamentos.
No presente artigo, será analisada a cooperação Sul-Sul brasileira para o combate ao
HIV/AIDS como soft power do país, por meio da doação de medicamentos antirretrovirais
para países das Américas, África e Ásia entre os anos 2003 e 2016. Fontes de soft power –
tais como valores políticos, a personalidade de um líder, as instituições e a política externa
do país – foram utilizadas para verificar como o Brasil exerceu poder de atração para outros
países no sistema internacional, facilitando, nesse sentido, a demanda dos mesmos por
cooperação na área. Conclui-se, ao final, que as fontes de soft power destacadas estiveram
presentes na referida cooperação.
Palavras-chave: Cooperação Sul-Sul; AIDS; antirretrovirais; soft power; política externa
brasileira.
Abstract
Brazilian South-South cooperation in health can be seen in various fields of the area, such
as in the context of human milk banks, in the donation of antiretroviral drugs, in projects
to fight the HIV/AIDS epidemic in partnership with several countries, as well as in the
1 Médica formada pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Mestre em Relações Internacionais pela Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB); Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Artigo submetido em 03/05/2018 e aprovado em 02/10/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
110 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
participation with other countries in the development of vaccines and medicines. This article
will analyze the Brazilian South-South cooperation to fight HIV/AIDS as the country’s Soft
power through the donation of antiretroviral drugs to countries in the Americas, Africa and
Asia between the years 2003 and 2016. Sources of Soft power, such as political values, the
personality of a leader, institutions, and the foreign policy of the country were used to verify
how Brazil exerted power of attraction to other countries in the International System, thus
facilitating the demand of them for cooperation in the area. It is concluded, in the end, that
the highlighted sources of Soft power were present in this cooperation.
Keywords: South-South Cooperation; AIDS; antiretrovirals; Soft power; Brazilian foreign policy
Introdução
O conceito de cooperação Sul-Sul não encontra consenso entre aqueles que o
estudam, mas observa-se que existe aquiescência no que se refere aos princípios
que o regem. Para autores como Leite, Suyama e Waisbich (2013, p.1) a cooperação
Sul-Sul entre países em desenvolvimento é definida como
ação que é regida pelos princípios de diplomacia solidária; é orientada pela
lógica da demanda de países em desenvolvimento; reconhece a experiência
local como parte importante para a execução de projetos, não exige condicio-
nalidades, não vincula interesses comerciais ou fins lucrativos à execução
dos projetos, e evita ingerência em assuntos internos dos países parceiros.
No âmbito brasileiro, o discurso oficial sobre a cooperação ressalta o não
interesse econômico-comercial e a solidariedade entre os países em desenvolvimento
como algumas das principais razões para se estabelecer ações no modelo Sul-Sul
(ABC, 2018). Autores como Corrêa (2010) destacam que a cooperação Sul-Sul
entre países em desenvolvimento preza pelo respeito à soberania; prima pela
não ingerência nos assuntos internos dos países parceiros e apresenta vantagens
comparativas frente à cooperação Norte-Sul, tais como custos operacionais menores,
disponibilização de tecnologias e experiência e boas práticas desenvolvidas entre
países em desenvolvimento.
Puente (2010) ressalta que as motivações de um país ou dos atores envolvidos
na cooperação podem ser de cunho moral, humanitário e altruístico, e essa
vertente estaria baseada em elementos filosóficos e religiosos, os quais fazem
pressupor que países mais ricos e economicamente desenvolvidos teriam o dever
moral de ajudar aqueles países em condições econômicas e sociais desfavoráveis.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
111Fabiola Faro Eloy Dunda
O autor destaca ainda como motivações para a cooperação, a ética, interesses
econômico-comerciais, laços históricas e/ou culturais. Refletindo-se a partir dessas
considerações, a cooperação Sul-Sul brasileira pode ser motivada não apenas pela
solidariedade, como destacado no discurso oficial citado anteriormente, podendo
haver também interesses políticos e econômicos nas ações estabelecidas com
outros países.
O Brasil desenvolve cooperação em vários setores da área de saúde, tais
como o combate à epidemia de HIV/AIDS e os bancos de leite humano (ABC,
2018). Destaca-se neste artigo a cooperação Sul-Sul para o combate ao HIV/AIDS,
que tem na doação de medicamentos antirretrovirais para países da América
do Sul, América Central, África e Ásia a sua vertente humanitária. No contexto
desse modelo, ressalta-se a solidariedade como uma das molas propulsoras para
a cooperação. O relatório da UNAIDS do ano de 2017 informou que existem,
aproximadamente, trinta e seis milhões de pessoas contaminadas pelo vírus HIV
no mundo e, dessas, apenas dezenove milhões estavam recebendo tratamento
com antirretrovirais (UNAIDS DATA, 2017).
Nye (2004) refere que “poder” pode significar influência de um agente (Estado,
instituições, organizações, indivíduo etc.) no sistema internacional e, nesse
contexto, a influência funciona como poder de atração e aquiescência, e pode ser
considerada como um instrumento de poder brando, ou soft power. Analisando-se
a cooperação Sul-Sul brasileira no combate à epidemia de HIV/AIDS, a mesma não
utiliza força ou coerção para estabelecer ações na área, podendo, nesse sentido,
ser enquadrada no conceito de soft power, em que ideias como poder de atração,
influência e persuasão são destacadas.
O tema abordado no presente artigo se justifica, inicialmente, por ser a saúde
um assunto relevante nas relações internacionais e ainda com poucos estudos na
área. A epidemia de HIV/AIDS continua afetando vários países, principalmente
aqueles mais pobres economicamente, como os situados no continente africano.
A cooperação na área é uma forma de tentar diminuir os impactos da doença nas
sociedades atingidas, além de contribuir para que mais pessoas tenham acesso
ao tratamento de uma doença ainda sem cura nos dias atuais.
No campo político, a cooperação na área de saúde é uma forma de atuação
dos países no sistema internacional, destacando-se aqueles que têm mais expertise
e a utilizam como meio de alcançar seus interesses. Nesse contexto, o Brasil,
atuando por meio dessa cooperação específica, procura aumentar seu poder de
influência utilizando instrumentos de soft power.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
112 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
O presente artigo analisa a vertente humanitária da cooperação Sul-Sul brasileira
de combate ao HIV/AIDS por meio da doação de medicação antirretrovirais,
entre os anos de 2003 e 2016. A metodologia utilizada foi o estudo de caso, com
análise qualitativa e quantitativa, por meio de análise de conteúdo e estatística
descritiva, respectivamente. Os dados referentes à doação de antirretrovirais foram
solicitados ao Ministério das Relações Exteriores e ao Ministério da Saúde através
do sistema eletrônico do serviço de informação ao cidadão (e-sic). O referencial
teórico se baseia na teoria do soft power, cujo principal expoente é Joseph Nye,
interconectando o que o autor considera como fontes de soft power e os dados
referentes à doação de antirretrovirais pelo Brasil.
O artigo está divido em uma seção inicial que especifica de forma não
aprofundada os princípios da cooperação Sul-Sul, o discurso brasileiro sobre o
tema, as motivações da pesquisa, bem como o marco teórico sobre o qual o artigo
se assenta e a metodologia utilizada. A seção um interconecta os conceitos de
poder, saúde, política externa e soft power, abordando a relação e a influência
entre saúde e política externa.
Na seção dois, são apresentados os dados referentes à doação de medicamentos
antirretrovirais entre 2003 e 2016, que desagregados demonstram os gastos, os
países, a área geográfica a que pertencem e a quantidade de medicamentos doados
ao longo dos anos e dos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e
Dilma Rousseff. A seção três aprofunda a temática analisando os dados, fazendo
a correlação dos mesmos com as fontes de soft power. O artigo é concluído com
algumas considerações finais.
Poder, saúde, política externa e soft power: onde os conceitos
se encontram?
Poder é um conceito contestado, e que encontra entendimentos diferentes
quanto ao seu significado. Poder pode estar relacionado ao binômio causa-efeito,
ou seja, um agente que possua maior “poder” pode afetar o comportamento, as
ações, as crenças de outro agente (BALDWIN, 1993). Waltz (1979) vai rejeitar
o entendimento causal, e vai expressar a ideia de que o agente mais poderoso
é aquele que tem a capacidade de afetar outros agentes muito mais do que ser
afetado por eles (WALTZ apud BALDWIN, 1993).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
113Fabiola Faro Eloy Dunda
Poder pode ser entendido também como “capacidades”, e nesse sentido seria
uma das formas de analisar a extensão da força de um agente, no caso, um Estado,
no sistema internacional. As capacidades de um Estado poderiam se expressar
através de componentes materiais e/ou imateriais de que o país dispõe, tais como
a força militar, a economia, a cultura, a política doméstica/externa etc. Nesse
sentido, medir-se-ia o poder de um ou mais Estado(s) sobre outro(s) no sistema
internacional (BALDWIN, 1993).
Poder também se relaciona com a ideia de soma zero, ou seja, quando dois
ou mais Estados entram em alguma disputa em determinada área de interesse no
sistema internacional, se um deles obtiver mais vantagem e ganhos que o outro,
esse será um jogo onde aquele que ganha implica necessariamente que o outro
perde tudo (BALDWIN, 1993).
Bobbio (2017), sobre a ideia de poder, discorre sobre três teorias fundamentais
concernentes ao assunto: a substancialista, a subjetivista e a relacional. Na
primeira, poder é entendido como “uma coisa que se possui e se usa como outro
bem qualquer ”(BOBBIO,2017, p. 100); na segunda, o autor faz referência à
interpretação subjetivista do poder
2
onde “poder seria não a coisa que serve para
alcançar o objetivo, mas a capacidade de o sujeito alcançar certos efeitos”(BOBBIO,
2017, p. 101); e a terceira entende poder como “uma relação entre dois sujeitos, dos
quais o primeiro obtém do segundo um comportamento, que, em caso contrário,
não ocorreria ” (BOBBIO, 2017, p. 101)
Poder pode ser definido também como a habilidade de influenciar o
comportamento dos outros para conseguir o(s) resultado(s) desejado(s), atuando
por meio da coerção, da indução ou da atração. Quando um Estado tem capacidade
de atrair outros Estados por meio de estratégias que geram atração, esse poder é
entendido como soft power (NYE, 2004). Em sua essência, o soft power
3
de um
Estado seria a habilidade que o mesmo tem em moldar as preferências de outros
Estados para a consecução de seus interesses e, de forma geral, “a habilidade
2 Ao se referir à teoria subjetivista, Bobbio (2017) reflete no texto à interpretação de poder dada por Locke (1694,
II, XXI) quando este último faz a consideração de que “o fogo tem o poder de fundir os metais” do mesmo modo
que o soberano tem o poder de fazer as leis e, fazendo as leis, de influir sobre a conduta de seus súditos.
3 Soft Power é um conceito desenvolvido por Joseph Nye Jr inicialmente em seu livro Bound to Lead, publicado
em 1990, e inserido no contexto de discussão daquele período, de que a América estava em declínio. O próprio
autor faz referência no prefácio de seu livro Soft Power. The means to success in world politics (2004) sobre
esse fato e de como, a partir da criação desse conceito, o mesmo passou a ser utilizado em discursos públicos
de líderes políticos, bem como no meio acadêmico. O autor retornou a discorrer sobre o tema de forma mais
aprofundada em dois outros livros: The Paradox of American Power, publicado em 2001 e no referido anteriormente,
publicado em 2004.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
114 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
de estabelecer preferência tende a ser associada a bens intangíveis tais como a
personalidade, a cultura, os valores políticos e as instituições, e políticas que são
vistas como legítimas ou tendo autoridade moral”
4
(NYE, 2004, p.6).
As políticas empreendidas pelo país podem ser vistas como legítimas, ou
tendo autoridade moral para serem implementadas, e, nesse sentido, soft power
não seria simplesmente influenciar o sistema, mas também o quanto e como um
Estado conseguiria exercer seu poder de atração no intuito de alcançar o interesse
desejado (NYE, 2004, p. 6). Acrescenta-se que soft power é a “habilidade de atrair,
e a atração frequentemente leva à aquiescência ”
5
, e as fontes desse tipo de poder
é que produzem essa atração, podendo ser encontradas primariamente na sua
cultura, nos seus valores políticos e na sua política externa (NYE, 2004). A cultura
como fonte de soft power tem um espectro abrangente, podendo ser considerada
desde áreas que podem promover o conhecimento e/ou o entretenimento, tais
como arte, literatura, educação, música etc., como também valores universais e
políticas adotadas por determinada sociedade, e que despertam o interesse de
outras sociedades para o compartilhamento daquelas ideias (NYE, 2004).
Soft power é um conceito que também encontra críticas dentre aqueles que
o estudam. Fergunson (2009), discorrendo sobre fontes de poder, considera que
fontes materiais de poder, tais como a militar, econômica e financeira, por exemplo,
podem determinar, mas não necessariamente, que uma nação seja vista como
grande potência no sistema internacional. Para o autor, no mundo globalizado, o
poder militar depende também de crescimento econômico e instituições políticas.
Destacando o papel do soft power, Ferguson (2009) considera que o não uso
da força em domínios menos conflituosos, como a cultura e o comércio, não
necessariamente levará a maior atração e influência de um país mais forte sobre
outro menos forte em termos de poder, fazendo uma crítica direta ao conceito e
ideia desenvolvidos por Joseph Nye nos anos de 1990.
Outro autor que tem um entendimento diferente de Joseph Nye sobre soft
power é Matsuda (2007), que considera que o poder brando seria uma “via de mão
dupla”, ou seja, na relação entre dois países haveria ao mesmo tempo influência
e resistência nessa interação (MATSUDA apud DUTTA, 2018). Gray (2011) propõe
também um olhar crítico sobre a análise do soft power no que tange ao conceito,
4 No original: “The ability to establish preferences tends to be associated with intangible assets such as an
attractive personality, culture, political values and institutions, and polices that are seen as legitimate or having
moral authority”
5 No original: “It is also the ability to attract, and attraction often leads to acquiescence”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
115Fabiola Faro Eloy Dunda
de onde ele vem e quem o controla, e qual é a qualidade e quantidade dessa
potencial influência (GRAY, 2011). Para o autor, “cooptar” um país por influência
não significa, necessariamente, que estaria havendo soft power e que os efeitos
dessa ação seriam automaticamente positivos. Gray (2011) ressalta que, em
algumas situações, a influência de um país sobre outro sem o uso da força e/
ou coerção pode ser negativa, gerando ressentimento, hostilidade e/ou outros
sentimentos e/ou ações negativos não previstos na relação inicial. O autor defende
que, em algumas ocasiões, a atração de países considerados menos potentes no
sistema internacional, quando se refere aos Estados Unidos, pode ser resultado
não necessariamente do poder brando exercido pelo mesmo, mas possivelmente
pela ideia de que os Estados Unidos é visto e considerado como um país guardião
no/do sistema internacional e que pode exercer (e exerce em algumas ocasiões)
o papel de líder na formação de coalizões entre os Estados (GRAY, 2011).
Aprofundando um pouco mais o espectro de análise sobre soft power,
particularmente no que concerne a uma de suas principais críticas – como se
mede esse tipo de poder de um país no sistema internacional? –, McClory (2018)
introduz instrumentos que possibilitam identificar e medir o soft power de forma
mais concreta e menos subjetiva por meio de índices apresentados e expostos
no relatório “Soft Power 30 index” (MCCLORY, 2018). O autor combina dados
objetivos e subjetivos para medir o soft power de um país, colocando-os em ranking
internacional. Os dados objetivos são distribuídos em seis categorias divididas
em subíndices que pontuam individualmente. Os índices são governo, cultura,
empresas, comprometimento global, digital e educação
6
. Os dados subjetivos são
obtidos por meio de pesquisa/enquete internacional, realizadas atualmente em
vinte e cinco países, e que incluem questões curtas que pontuam de 0-10, e se
baseiam na percepção da população estudada sobre questões relativas à interação
com outros países. O autor refere que existem limitações na metodologia aplicada,
principalmente por serem os dados subjetivos difíceis de medir, quando se considera
a complexidade dos mesmos, bem como a complexidade das inter-relações entre
os Estados-nações (MCCLORY, 2018)
Saúde também é um conceito que tem ampla interpretação, podendo o termo
ser entendido como a ausência de doença, como bem-estar ou ainda como valor
social. Hodiernamente o conceito de saúde também está ligado aos determinantes
6 Os dados objetivos são pesquisados em várias fontes, estando as mesmas relacionadas diretamente ao tema
pesquisado. Os dados medidos em cada índice referido no texto podem ser encontrados no apêndice do relatório
The Soft Power 30. A Global Ranking os Soft Power 2018”, disponibilizado nas referências.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
116 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
e condicionantes do complexo saúde-doença (BATISTELLA, 2007).
Atualmente,
defende-se que um conceito amplo de saúde deve considerar não apenas a ausência
de doenças, mas a ausência ou a diminuição de condições socioambientais que
possam causar as mesmas (BATISTELLA, 2007).
Saúde entendida como bem-estar é um conceito que está inserido no contexto
da cooperação internacional, e previsto no documento constitutivo da Organização
Mundial da Saúde de 1948. No referido documento, saúde passa a ser entendida
como “um completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a
ausência de doença ou enfermidade” (BATISTELLA, 2007, p. 57). No contexto
da cooperação internacional, a saúde é uma temática que se inter-relaciona com
a política externa e, dessa estreita relação, a saúde pode ser negligenciada pela
política externa, ou pode servir aos objetivos da mesma. Nesse segundo cenário,
a saúde se transforma em um instrumento de política externa ou parte integral
da mesma (KICHBUSCH, 2013).
No cenário em que a saúde é negligenciada pela política externa, pode-se
usar como exemplo as sanções econômicas ou acordos de comércio e propriedade
intelectual quando esses provocam efeitos deletérios na área de saúde pública.
Exemplo dessa negligência foi o processo de negociação, em 2010, do acordo de
livre-comércio entre a Índia e a União Europeia que, em uma de suas cláusulas,
previa a exclusividade de dados, a extensão do tempo de patentes farmacêuticas
para mais de vinte anos e medidas de fronteiras que podem afetar diretamente
a questão da produção de medicamentos genéricos pela Índia, o que levaria ao
prejuízo nacional e mundial de fornecimento de medicamentos, tais como o
utilizado para o tratamento do HIV/AIDS
(IDEC, 2018).
No outro extremo da relação, a política externa estaria servindo aos objetivos
da saúde. Nesse contexto, a temática da saúde é discutida em fóruns internacionais
e regionais, tais como a OMC, ONU, BRICS, IBAS, o G-20, Mercosul e outros,
trazendo à tona questões de importância tanto para o sistema internacional,
quanto para o âmbito regional e nacional (KICHBUSCH, 2013). Quando a saúde
se torna instrumento e/ou parte integral da política externa, a temática serve aos
interesses nacionais, aumentando a relação entre os países, tais como acordos,
planos de assistência financeira ou humanitária e cooperação em diversas áreas.
No momento em que eclodem problemas globais, tais como a epidemia de HIV/
AIDS, de H1N1 ou a recente epidemia de ebola na África Ocidental, por exemplo,
a saúde é parte integral da política externa dos países, pois a solução de problemas
globais envolve o esforço cooperativo e a participação de Estados que estão
envolvidos direta ou indiretamente no problema em questão (KICHBUSCH, 2013).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
117Fabiola Faro Eloy Dunda
O início da institucionalização entre saúde e política externa remonta ao
século XIX, no contexto da primeira Conferência Sanitária Internacional, em 1851,
para discutir questões relacionadas ao comércio e navegação. Quase duzentos
anos depois, políticas e acordos para problemas de saúde global, incluindo
aqueles que transcendem as fronteiras nacionais, são discutidos principalmente
na Organização Mundial da Saúde, uma das instituições criadas no pós II Guerra
Mundial (KICHBUSCH, 2013). No contexto da relação saúde e política externa,
autores que discutem a saúde global introduzem o conceito de diplomacia
da saúde, entendido como “um método de alcançar compromisso e consenso
em assuntos relativos ao tema, particularmente no caso de outros interesses
relacionados à política internacional, interesses econômicos e valores éticos ”
7
(KICHBUSCH, 2013, p.11).
A política externa como fonte de soft power também pode funcionar como
um instrumento que afeta a preferência de outros Estados (NYE, 2004). Nesse
contexto, Nye (2004) ressalta que governos podem atrair ou repelir outros países
pela influência de seu exemplo. Considerando a cooperação brasileira em saúde
como parte integrante da política externa brasileira, particularmente a que se
estabelece na área de combate ao HIV/AIDS, as ações desenvolvidas na área
podem influenciar a relação do país com outros Estados como, por exemplo,
através da doação de medicamentos antirretrovirais. No Brasil, o acesso universal
ao tratamento pode ser identificado como uma das razões da manutenção da baixa
prevalência da doença entre a população entre 15 e 45 anos, atualmente estimada
em 0,6% (BANCO MUNDIAL, 2018). A cooperação brasileira na área de combate
ao HIV/AIDS permite que mais pessoas em outros países tenham mais acesso ao
tratamento com os antirretrovirais, e naqueles países em que a prevalência da
doença encontra-se ainda elevada, maior acesso ao tratamento pode levar também
à diminuição do número de mortos e pessoas contaminadas, a exemplo do que
ocorre na realidade brasileira.
As boas práticas do combate à epidemia no Brasil, com políticas públicas
específicas orientadas para essa realidade e com resultados positivos quando se
considera o tamanho da população do país e o número de pessoas contaminadas,
refletidos na baixa prevalência da doença, podem ser fontes de atração de outros
países para estabelecer cooperação na área.
7 No original: “[..] a method for reaching compromise and consensus in matters pertaining to health, usually in
the face of other interests related to international politics, economics interests, and ethical values”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
118 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
A doação brasileira de medicamentos antirretrovirais
A resolução A/RES/46/182, de 1991, da Organização das Nações Unidas,
estabeleceu que a assistência humanitária tem importância fundamental para
vítimas de desastres naturais e outras emergências, e deve ser fornecida de acordo
com os princípios de humanidade, neutralidade e imparcialidade. A soberania,
integridade territorial e a unidade nacional dos Estados afetados devem ser
respeitadas e, nesse contexto, a assistência humanitária deve ser fornecida com o
consentimento do Estado afetado, que fará o apelo por assistência à comunidade
internacional (ONU, 2016a).
Em 2004, a A/RES/58/114 reafirmou a necessidade de fortalecimento da
coordenação para a assistência de emergência humanitária e os princípios de
humanidade, neutralidade e imparcialidade. A resolução enfatizou ainda a
importância da discussão sobre políticas no campo da assistência humanitária e a
necessidade de aumentar a cooperação entre países, e também com organizações,
para garantir a assistência à pessoa humana (ONU, 2016b).
No Brasil, a criação da Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária
Internacional e combate à fome (CGFome), em 2004, e a criação do Grupo de
Trabalho Interministerial sobre Assistência Humanitária (GTI-AHI), em 2006
(IPEA,/ABC, 2016), serviram como bases institucionais para a concretização e a
efetivação do modelo de cooperação humanitária brasileira por meio da doação
de antirretrovirais, no início dos anos 2000.
No campo da cooperação humanitária em saúde, a doação de medicamentos
é uma das principais atividades desenvolvidas pelo país e, dentre essas, a doação
de antirretrovirais representa o maior percentual de medicamentos doados (IPEA/
ABC, 2016). No que se refere aos gastos com a doação de antirretrovirais, entre 2003
e 2015 o país gastou aproximadamente trinta e oito milhões de reais (MINISTÉRO
DA SAUDE, 2016a), destacando-se o governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (2003-2010), que alcançou cifras aproximadas de vinte e quatro milhões
de reais. Nesse período de governo (2003 e 2010), os gastos com a doação de
medicamentos foi ascendente, atingindo aproximadamente sete milhões de reais
em 2009.
No período do governo da presidente Dilma Rousseff, entre os anos 2011 e
2015, o gasto do período alcançou cifras de aproximadamente catorze milhões de
reais. Quando se compara o dispêndio em reais com a doação de antirretrovirais
ano a ano, observa-se que em 2010 (ainda no Governo do Presidente Luiz Inácio
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
119Fabiola Faro Eloy Dunda
Lula da Silva) o montante utilizado esteve em torno de cinco milhões, em
2011, já no Governo da Presidente Dilma Rousseff, a quantidade gasta em reais
diminuiu, atingindo cifras aproximadas de três milhões. No ano seguinte, 2012,
houve aumento do montante de reais empregado da doação de antirretrovirais,
alcançando valores de aproximadamente nove milhões. Entre os anos de 2013 a
2015, observou-se diminuição significativa dos gastos, não alcançando estes o
patamar de dois milhões (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016a).
O número de antirretrovirais doado ano a ano também pode ser analisado
no contexto da cooperação brasileira. No gráfico 1, observa-se o número de
comprimidos antirretrovirais doados para países do continente africano, da América
do Sul, Central, Ásia e para o Caricom
8
entre os anos de 2003 e 2016
9
.
Gráfico 1 – Quantidade de antirretrovirais (em número de comprimidos)
doados entre os anos de 2003-2016
0
1.000.000
2.000.000
3.000.000
4.000.000
5.000.000
6.000.000
7.000.000
8.000.000
9.000.000
10
.000.000
AR
V
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados obtidos do Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde;
Departamento DST, AIDS e Hepatites Virais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).
8 O CARICOM (Comunidade do Caribe) é um organismo internacional formado por vinte países, quinze membros
efetivos e cinco membros associados. O organismo foi criado em 1973, e está assentado em quatro pilares:
integração econômica; coordenação de política externa; desenvolvimento social e humano; e segurança.
9 Em relação às doações de antirretrovirais, as medicações foram doadas de forma pontual, contínua ou intermitente
ao longo dos anos para os países que participaram da cooperação. Todos os medicamentos doados fizeram parte
dos medicamentos preconizados pela Organização Mundial da Saúde nos protocolos de tratamento da doença
no mundo.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
120 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
Observa-se, a partir da análise descritiva do gráfico 1, que os anos de 2009 e
2012 obtiveram as maiores doações de medicamentos antirretrovirais, períodos em
que houve também maior gasto com a doação desses medicamentos pelo governo
brasileiro, como referido anteriormente. Uma das possíveis explicações para esse
fato seria o aumento da demanda por cooperação na área nesses anos, que poderia
ser traduzido pelo aumento do número de países que estabeleceram cooperação
nesses períodos. Comparando-se os anos de 2008, 2009, 2011 e 2012, destaca-se
que oito países receberam antirretrovirais em 2008, nove países em 2009, quatro
países em 2011 e nove países em 2012 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).
Outro fator a ser considerado também na análise do gráfico 1 é que, no
período estudado, houve mudança de presidentes no país, e que, embora os chefes
de governo pertencessem ao mesmo partido político, a ênfase dada à referida
cooperação comportou-se de forma distinta. Observa-se um padrão ascendente
de doação de antirretrovirais entre 2003 e 2009, com discreta diminuição em
2010, período concernente ao governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva,
e, a partir de 2011 até o final do governo da presidente Dilma Rousseff (2016), o
padrão de doação passou a ser heterogêneo, com períodos de baixíssima doação,
como nos anos de 2013 e 2014. A análise do governo Dilma Rousseff ainda permite
a referência a outro fator que pode ter influenciado a diminuição da cooperação
na área, que é a crise político-econômica brasileira agravada durante o período
do referido governo.
A doação de antirretrovirais brasileira também pode ser analisada quanto à
distribuição dos países que receberam a medicação (por área geográfica) durante
os governos brasileiros, entre os anos 2003 e 2016. No mandato do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Bolívia, Colômbia e Paraguai receberam na
América do Sul; Nicarágua, El Salvador e República Dominicana receberam na
América Central; e Cabo Verde, Burkina Faso, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe
e Moçambique receberam no Continente Africano. O Timor Leste foi o único país
da Ásia a receber os medicamentos, e o Caricom, como organismo internacional,
também recebeu doação expressiva de antirretrovirais nesse período (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2016b), como demonstrado no gráfico 2 a seguir.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
121Fabiola Faro Eloy Dunda
Gráfico 2 – Número de países, distribuídos por região geográfica, que receberam
doação de ARV no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010),
incluindo o organismo internacional Caricom
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados obtidos do Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde;
Departamento DST, AIDS e Hepatites Virais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).
Durante o mandato da presidente Dilma Rousseff (2011-2016) houve diminuição
de gastos e de quantidade de antirretrovirais doados, como referido anteriormente.
A doação desses medicamentos também pode ser analisada de acordo com a região
geográfica a que os países pertencem. Nesse sentido, Bolívia, Paraguai, Equador,
Peru e Chile receberam na América do Sul; República Dominicana e El Salvador
receberam na América Central; e Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Burkina Faso,
Cabo Verde, Líbia, Benin e Angola receberam no continente africano. O Caricom
recebeu como organismo internacional, e não houve doação para países da Ásia
nesse período (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
122 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
Gráfico 3 – Número de países, distribuídos por região geográfica, que receberam
doação de ARV no governo da presidente Dilma Rousseff (2011-2016),
incluindo o organismo internacional Caricom
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados obtidos do Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde;
Departamento DST, AIDS e Hepatites Virais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).
Embora visualmente o número de países que recebeu antirretrovirais pareça
menor no gráfico 3 quando comparado ao gráfico 2, países de todas as regiões,
com exceção da Ásia durante o governo da presidente Dilma Rousseff, receberam
medicamentos. A diferença na doação de antirretrovirais entre os dois governos
se configura a partir de dois dados: a quantidade de comprimidos doados e a
duração da doação. Durante o mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva,
houve expressiva doação em quantidade de comprimidos e em tempo (medido
em anos) para os países que participaram da cooperação, o que não se observou
durante o governo da presidente Dilma Rousseff. Outro fator também, é o tempo
de mandato da Presidente Dilma Rousseff, interrompido antes do seu término.
Outra fonte de informação importante sobre a cooperação brasileira na área de
saúde e que se refere ao final dos anos 2000 está presente no relatório da AISA
10
10 A Assessoria de assuntos internacionais, AISA, está vinculada ao Ministério da Saúde e responde pela elaboração
das diretrizes, coordenação e implementação da política internacional do ministério, assim como pela posição
brasileira sobre temas de saúde em âmbito internacional, de acordo com as diretrizes da política externa do
Brasil, e em permanente articulação com as áreas técnicas das secretarias e das unidades vinculadas do Ministério
da Saúde. Fonte: Ministério da Saúde, Relações Internacionais.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
123Fabiola Faro Eloy Dunda
publicado em 2010. O relatório descreve as atividades da cooperação brasileira
na área de saúde executadas pela Divisão de Projetos da Assessoria de Assuntos
Internacionais de Saúde no ano de 2009, que demonstrou que, nesse ano, havia
cento e trinta e oito projetos, sendo noventa e sete na América Latina e Caribe e
quarenta e um na África (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).
No que tange a países e regiões geográficas, merece destaque o projeto Laços
Sul-Sul, iniciativa lançada pelo Brasil em 2004 com o objetivo de contribuir
para o fortalecimento de políticas nacionais para melhorar/aumentar o acesso
universal ao tratamento com antirretrovirais. O programa ofereceu tratamento
com antirretrovirais de primeira linha para seis países lusófonos e dois países sul-
americanos, sendo eles Bolívia e Paraguai na América Latina, e Cabo Verde, Guiné
Bissau e São Tomé na África, e Timor Leste na Ásia (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2007/2008). No que se refere à relação com bloco ou organismo internacional, o
Paraguai é membro efetivo do Mercosul e a Bolívia membro associado, e todos
os países africanos que receberam doação mais o Timor Leste pertencem à CPLP.
O Chile, como membro associado do Mercosul, recebeu doação de antirretrovirais
em 2016, embora não tenha participado da iniciativa Laços Sul-Sul, e Angola,
membro da CPLP, embora também não tenha participado da iniciativa, também
recebeu doação desses medicamentos em 2016 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016b).
O UNICEF e a UNFPA passaram a fazer parte dessa iniciativa com a função
de fornecer apoio técnico e financeiro, dando enfoque maior à cooperação
especialmente para gestantes, adolescentes e crianças. O objetivo principal
da participação desses organismos foi o de informar esses grupos sobre seus
direitos à prevenção e ao tratamento para ampliar o uso dos serviços existentes.
A participação dos organismos pretendeu também intensificar a prevenção
ao HIV por meio de uma melhor integração entre saúde sexual e reprodutiva,
enfatizando as iniquidades de gênero, raça e etnia, disparidades geracionais e
pobreza (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007/2008).
Diante do exposto, as possíveis explicações para as diferenças encontradas
nos gráficos 2 e 3 seriam a maior demanda dos países por essa cooperação,
maior durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, principalmente
daqueles localizados na América do Sul, Caribe e continente africano. O programa
Laços Sul-Sul, que beneficiou países da América do Sul e África com a doação de
antirretrovirais, fortalece também o argumento de que as referidas regiões fazem
parte do espectro de interesses do governo brasileiro no sistema internacional.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
124 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
A observação de que os países participantes da iniciativa são membros do
Mercosul e da CPLP poderia ser considerada como fator que facilitou a doação de
medicação antirretroviral ao longo do período estudado, no entanto, países não
pertencentes à CPLP, como Burkina Faso, Benim e Líbia, ou ao Mercosul, como
Chile, membro associado (não efetivo), também receberam doações expressivas de
medicamentos no período, não se podendo, portanto, atribuir que essa condição é
ou seria determinante para a doação de antirretrovirais para países que participam
de blocos regionais ou organismos internacionais de que o Brasil participa.
O Soft power brasileiro no contexto da cooperação Sul-Sul de
combate ao HIV/AIDS
A cooperação em saúde pode ser considerada como soft power de um país
em busca da consecução de seus interesses no sistema internacional. No caso
específico em questão, a cooperação Sul-Sul brasileira de combate à epidemia de
HIV/AIDS, com a doação de medicamentos antirretrovirais, pode ser enquadrada
nesse espectro e, nesse contexto, ser avaliada.
A cooperação no campo da saúde não utiliza a força ou coerção para se
impor ou estabelecer relação entre países, como pode ocorrer no hard powe r
11
.
A cooperação na área atuaria, nesse sentido, por meio de atração, podendo afetar
as preferências de outros Estados, estimulando, assim, o compartilhamento de
ações na área.
O combate à epidemia brasileira de HIV/AIDS, desde o seu início nos anos
de 1980, instituiu políticas públicas que culminaram em um controle importante
da epidemia no país, o que reflete as taxas de prevalência da doença entre a
população de 15-49 anos em patamares baixos (BANCO MUNDIAL, 2018). Políticas
específicas para populações vulneráveis também foram instituídas, embora a taxa
de prevalência do HIV/AIDS nesses grupos específicos tenha valores mais elevados
que na população geral (UNAIDS, 2013).
No contexto inicial da epidemia no Brasil, o engajamento de pessoas de
vários setores da sociedade civil, pessoas doentes/contaminadas pelo vírus,
profissionais da saúde e ONGs começou a pressionar o governo para que fossem
instituídas ações, de modo a garantir condições de atendimento e tratamento aos
11 Hard Power é quando um agente alcança o resultado esperado por meio do uso da ameaça militar e/ou de
sanções econômicas ou recompensa (GRAY, 2011).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
125Fabiola Faro Eloy Dunda
indivíduos acometidos pela AIDS. Assentado sobre essa mobilização social foi
criada a Secretaria para Acompanhamento dos Casos de AIDS, em 1984, em São
Paulo, e, no ano seguinte, 1985, foi criado o Programa Nacional de Combate ao
HIV/AIDS, que passou a funcionar como um centro de controle da doença no
país junto com o programa de São Paulo. A partir do ano de 1986, a AIDS passou
a ser de notificação obrigatória (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016c).
No âmbito internacional, entre os anos de 1980 e 1990, o resultado positivo
em pesquisas clínicas sobre medicamentos para o tratamento da AIDS mudou o
encadeamento de ações instituídas para o combate à epidemia. O aumento da
sobrevida e diminuição do número de mortes, quando se instituía o tratamento
da AIDS, com a zidovudina, o AZT, permitiu que a droga fosse liberada para
tratamento em indivíduos contaminados/doentes de AIDS, em 1987 (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2016c).
No Brasil, o governo passou a fornecer medicamentos para tratamento de
infecções oportunistas
12
ainda em 1988, e o AZT, para o tratamento da AIDS,
passou a ser administrado a partir de 1989, por meio de compra internacional do
medicamento. A produção de AZT em laboratórios nacionais ocorreu a partir de
1993, passando a ser disponibilizado na rede pública de saúde a partir de 1996.
Nesse mesmo ano, foi promulgada no país a Lei 9.313, a qual garante o direito de
recebimento gratuito de medicamento antirretroviral a todo indivíduo portador do
vírus HIV no Sistema Único de Saúde brasileiro (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016c).
O impacto da política brasileira de acesso universal aos antirretrovirais
representou, entre os anos de 1996 a 2002, a diminuição de mortalidade em torno
de 50%, assim como a diminuição do percentual de internações hospitalares
em torno de 80%. Estima-se que houve uma economia do governo brasileiro,
nesse período, de US$ 2,2 bilhões de dólares, atribuída à menor necessidade de
internação hospitalar de pessoas portadoras do vírus ou doente de AIDS, como
também à diminuição do preço dos medicamentos antirretrovirais (CHEQUER,
2004). O início da produção nacional dessas medicações, bem como a capacidade
de barganha nos preços de medicamentos em compras internacionais, são fatores
que podem ser atribuídos à diminuição do preço dos antirretrovirais no Brasil
(SOUZA, 2011).
12 Infecções oportunistas são infecções que ocorrem em decorrência da deficiência do sistema imunológico em
combater o agente causador da infecção. No caso da AIDS, o vírus HIV compromete o sistema imunológico do
indivíduo, destruindo as células de defesa, permitindo que vírus, bactérias e outros microrganismos – que, em
condições normais, não causariam infecção – desenvolvam-se mais facilmente.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
126 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
O papel assertivo e ativista do Brasil no campo internacional também é um
fator importante na questão do combate ao HIV/AIDS. Destaca-se que o país teve
propostas aprovadas sobre o tema na Organização das Nações Unidas (ONU) e na
Organização Mundial da Saúde (OMS) (LIMA; CAMPOS, 2010), como demonstrado
no quadro 1 a seguir.
Quadro 1 – Propostas brasileiras aprovadas em instituições internacionais
sobre o tema do HIV/AIDS
ANO ORGANIZAÇÃO DECISÃO
2001
ONU – Comissão de
Direitos Humanos
Resolução 33/2001 – A Resolução aprovada determina que o
acesso a medicamentos antirretrovirais é um direito humano
básico.
2001 OMS
Aprovação da proposta brasileira sobre a importância da dispo-
nibilidade crescente de medicamentos acessíveis para as pessoas
afetadas pela doença.
2001
ONU – Assembleia Geral
das Nações Unidas sobre
HIV/AIDS
Aprovação da Declaração de compromisso sobre HIV/AIDS, que
reconhece a necessidade de adoção de uma abordagem integral
entre prevenção, tratamento e proteção dos direitos humanos
como o único caminho para conter efetivamente a disseminação
da epidemia.
2001 ONU
Participação ativa do Brasil no Fundo Global para o Combate
à AIDS, Tuberculose e Malária, lutando por uma participação
igualitária entre países ricos e em desenvolvimento em seu
principal órgão decisório, o Corpo Diretivo.
Fonte: elaborado pela autora a partir dos autores Lima e Campos (2010, p. 124)
Ressalta-se também que o país continuou participando ativamente em fóruns
internacionais onde a temática foi tratada de forma direta ou indireta, tais como
na aprovação do Acordo TRIPS e Saúde Pública na Organização do Comércio, em
2001, que permite que os países adotem medidas para proteger a saúde pública.
O Brasil participou também ativamente na Cúpula do Milênio, em 2001, que teve
como um de seus objetivos combater a AIDS, a Malária e outras doenças.
Na Organização Mundial da Saúde, o Brasil defendeu a ideia de que a
organização deveria dispor de um mandato que lhe permitisse avaliar as implicações
para a saúde pública e da proteção aos direitos de propriedade intelectual
durante a 56ª Assembleia, em 2003. No ano seguinte, o país participou da
aprovação da Resolução n.57.14 da OMS, a qual reafirma os direitos dos países
membros da organização em utilizar as flexibilidades do TRIPS e de acordos de
comércio regionais e bilaterais. No ano de 2007, o país participou da aprovação
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
127Fabiola Faro Eloy Dunda
da Resolução 60.30 sobre “Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual”,
onde a organização assume o compromisso de apoiar tecnicamente os países que
desejassem utilizar as flexibilidades do Acordo TRIPS (BARBOZA; PINHEIRO;
PIRES-ALVES, 2017).
A participação do país em grupos de pesquisa internacionais para o
desenvolvimento de uma vacina eficaz contra o vírus HIV também demonstra
o papel ativo, assertivo e ativista no campo de ações para o combate à epidemia
mundial. A pesquisa para a cura da AIDS teve início a partir da descoberta do
agente causador, o vírus HIV, e atualmente vários países têm pesquisas na área,
sendo o maior número delas atribuído aos Estados Unidos. Estima-se que, desde
1987, já tenham sido testadas mais de trinta vacinas contra o HIV. Na atualidade,
vários países colaboram/cooperam para a descoberta de uma ou várias vacinas
contra a AIDS, como Brasil, China, Cuba, Haiti, Quênia, Peru, Tailândia, Trinidad
e Uganda (OMS, 2014). Nesse mesmo campo de pesquisa, destaca-se também
outra iniciativa brasileira, que foi a criação da Rede Tecnológica Internacional
para Vacina da AIDS, em 2004, e da qual participam Brasil, China, Cuba, Nigéria,
Rússia, Tailândia e Ucrânia (FIOCRUZ, 2018).
Quando se considera a cooperação estabelecida pelo Brasil como instrumento
de soft power do país no sistema internacional, onde estariam as bases concretas
para tal afirmação? A análise das fontes de soft power, tais como a cultura, os
valores políticos, as instituições, a personalidade de um líder e a política externa
do país (NYE, 2004), orientam a resposta para essa pergunta.
A cultura de um país é considerada uma fonte de poder brando, significando,
nesse contexto, o conjunto de valores e práticas que dão sentido à sociedade que
se está analisando. Para o contexto do tema abordado, considerar-se-á o termo
cultura política, cujo significado, segundo Almond e Verba (1963, p. 12) refere-
se a “orientações e atitudes políticas em relação ao sistema político e suas várias
partes, e atitudes em relação ao papel do indivíduo nesse sistema”
13
.
O início da epidemia de HIV/AIDS no Brasil e no mundo ficou marcada
pelo grande número de mortes entre pessoas jovens naquele período, pelo não
conhecimento do agente causador e pela impossibilidade de tratamento adequado
das pessoas afetadas. O fornecimento da primeira medicação para o tratamento
da AIDS, o AZT, no Brasil, a partir de 1989, por meio de compra internacional da
13 No original: “[...] political orientations-attitudes toward the political system and its various parts and attitudes
toward the role of the self in the system”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
128 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
medicação, foi uma das respostas à mobilização de vários setores da sociedade
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016c).
A constituição brasileira, em seu artigo 196, determina que a saúde é um
direito de todos e dever do Estado e, nesse sentido, funciona como base normativa
que permite o acesso universal ao tratamento para a AIDS a todos os brasileiros
que dele necessitarem. A instituição dessa política social, desde o período inicial
da epidemia de HIV/AIDS no país, contribuiu sobremaneira para o maior controle
da doença, tendo como consequência positiva a diminuição do número de mortes
e pessoas doentes, além de contribuir a longo e médio prazo para a manutenção
da baixa taxa de prevalência da doença na população entre 15-49 anos (BANCO
MUNDIAL, 2018).
No Brasil, a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e outros seis laboratórios
públicos produzem parte dos medicamentos antirretrovirais que abastecem
a demanda doméstica para o tratamento de pessoas doentes/contaminadas
pelo vírus HIV no Sistema Único de Saúde, sendo a outra parte fornecida pelo
governo federal por meio de compra internacional de medicamentos (FIOCRUZ,
2018a). Além do fornecimento gratuito de antirretrovirais produzidos no Brasil e
daqueles importados para o tratamento do HIV/AIDS na rede pública de saúde,
políticas domésticas incluem também a inauguração da primeira fábrica estatal
de preservativos no Acre, em 2008, aproveitando o látex produzido a partir dos
seringais nativos da região; a mudança do protocolo de antirretrovirais em 2013,
sendo iniciada a medicação em qualquer paciente portador do vírus independente
do nível de CD4
14
; a implantação do projeto piloto profilaxia pré-exposição, em
2013, para pacientes considerados de grupos de risco, e com sorologia negativa para
o HIV (entre eles estão homossexuais masculinos, profissionais do sexo, travestis,
transexuais e usuários de drogas), e que farão uso diário de antirretrovirais a fim de
diminuir as chances da infecção pelo vírus; a sanção da Lei 12.984, em 2014, que
pune com reclusão de um a quatro anos, além de multa, o indivíduo que praticar
condutas discriminatórias contra o portador de HIV (CEZAR; DRAGANOV, 2018).
No campo internacional, pode-se destacar a participação do Brasil em
instâncias internacionais, como as organizações citadas anteriormente (LIMA;
CAMPOS, 2010), nas quais se consolidaram o papel assertivo desempenhado pelo
país no cenário internacional em questões relativas ao tema, como a defesa de
14 CD4 são células do sistema imunológico (linfócitos) e o principal alvo do vírus HIV. O número de CD4 diminui
com a evolução da patologia. Quanto menos linfócitos CD4, maior a vulnerabilidade do sistema imunológico
e maior o risco de complicações e infecções. Fonte: Portal Hospitais Brasil.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
129Fabiola Faro Eloy Dunda
que o acesso aos medicamentos contra a AIDS é um direito humano e de que o
tratamento deve estar acessível a todo cidadão. Nesse contexto, destaca-se também
a participação brasileira nas conferências internacionais de AIDS, em que, no
ano de 2018, o país participou mais uma vez como debatedor e apresentador de
trabalhos, tendo sido convidado pela Organização Mundial da Saúde para discutir
temas relacionados ao tratamento e inovação do tratamento da doença no Brasil
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).
Outra participação brasileira no contexto internacional foi a criação da
UNITAID, em 2006, junto com França, Noruega, Reino Unido e Chile, com o
objetivo de fornecer fontes alternativas de financiamento para ações contra a
epidemia de HIV/AIDS no mundo. Ao longo dos anos, outros países entraram
para a organização, que atualmente (2018) é composta por Brasil, Camarões,
Chile, Congo, Chipre, França, Guiné, Luxemburgo, Madagascar, Mali, Maurícius,
Níger, Noruega, República da Coréia, Espanha e Reino Unido. Participa ainda
como doador a Fundação Bill e Melinda Gates
(OMS, 2018).
As ações citadas anteriormente fortalecem a ideia do combate à AIDS no país
e fora dele, e estiveram e estão embasadas em valores sociais presentes desde o
início da epidemia no país, tais como: o direito à saúde e, por consequência, o
direito ao acesso a todo tipo de tratamento; o direito à saúde como direito humano;
e a ideia de não descriminação à pessoa portadora/doente com o vírus da AIDS.
O jornal inglês “The Lancet”, uma das mais importantes publicações científicas
da área médica, divulgou um estudo, em 2014, mostrando que o tratamento para
AIDS no Brasil é mais eficiente que a média global. Segundo o estudo, as mortes
em decorrência do vírus HIV no país caíram a uma taxa anual de 2,3% entre
2000 e 2013, enquanto a média global apresenta uma queda de 1,5% ao ano
(FIOCRUZ, 2018b).
A personalidade de um líder também é considerada como fonte de poder
brando. Durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010),
a temática do combate ao HIV/AIDS recebeu importância, fato comprovado pela
quantidade de ações na área (doação de antirretrovirais, os projetos técnicos,
ações na área de educação; projetos científico-tecnológicos na área e doação
para organismos internacionais). Destaca-se, aqui, a doação de medicamentos
antirretrovirais para vários países da América do Sul, Central, Ásia e África, e
para organismos internacionais, bem como a importância do tema, presente em
discursos do presidente em fóruns internacionais, como os proferidos na LIX
Assembleia Geral das Nações Unidas em 2004; na 5ª. Conferência de Chefes de
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
130 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
Estado e de Governo da CPLP, em julho de 2004; e na Cúpula África-América do
Sul que ocorreu na Nigéria em 2006 (PUENTE, 2010).
Comparando-se o número de atos internacionais na área de combate ao
HIV/AIDS, entre os anos de 1995 e 2016, observa-se também um aumento
considerável de atos durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
quando comparado aos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso e da
presidente Dilma Rousseff. O número de acordos e ajustes a acordos de cooperação
relacionados ao combate do HIV/AIDS foram cinco no governo do presidente
Fernando Henrique, vinte e dois durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, não havendo registro de atos internacionais na área durante o governo
da presidente Dilma Rousseff (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2016).
O último ponto a ser discutido sobre as fontes de soft power inclui a política
externa brasileira na área como ação que legitima e que tem autoridade moral
ao ser empreendida no campo internacional. As medidas implementadas para o
combate à epidemia de AIDS no país, desde o início dos casos, contruíram as bases
que permitiram instituir ações de cooperação internacional no início dos anos
2000. Nesse contexto, a cooperação Sul-Sul brasileria de combate ao HIV/AIDS
contitui-se como um campo específico de atuação da política externa brasileira
no sistema internacional.
A doação de medicamentos antirretrovirais foi e continua sendo uma das
ações implementadas pelo Brasil no combate à epidemia mundial de HIV/AIDS.
A política de acesso universal aos medicamentos contra AIDS do governo brasileiro,
responsável, em parte, pela baixa prevalência da doença no país, permite que
outros países em desenvolvimento demandem pela cooperação brasileira na área,
como tentativa de diminuir a prevalência da doença em seus países, bem como
aumentar o acesso ao tratamento do HIV/AIDS para os seus nacionais.
No contexto da doação de antirretrovirais, observa-se que, no governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as ações foram instituídas de forma mais
assertiva em comparação ao governo da presidente Dilma Rousseff. A quantidade
de medicamentos doados, a quantidade de países que receberam medicamentos,
a importância dada à temática em discursos oficiais em encontros internacionais,
bem como o tempo de doação das medicações para os países ao longo de seus
governos, balizam essa observação. Destaca-se também as propostas brasileiras
apresentadas e aprovadas na área de combate à epidemia mundial de AIDS,
apresentadas em instituições internacionais, já citadas anteriormente.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
131Fabiola Faro Eloy Dunda
No âmbito das instituições internacionais, ressalta-se também o combate à
epidemia mundial de AIDS no contexto dos BRICS (agrupamento formado por Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul). Na cooperação internacional para o combate
à epidemia, os Estados Unidos configuram-se como o maior doador internacional,
responsável por quase cinquenta por cento da assistência internacional para o
combate à doença no mundo, sendo seguido por países europeus pertencentes
à Organização Econômica para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), países
europeus não pertencentes à OCDE, o Fundo Global de Combate à Aids e Malária
e os BRICS (UNAIDS, 2013).
A assistência financeira dos BRICS, entre os anos de 2007-2008, contribuiu
com aproximadamente US$ 200 milhões de dólares para iniciativas no campo da
saúde global e, dentro delas, a doação para o Fundo Global de Combate à AIDS,
Malária e Tuberculose (CHATUVERDI; THORSTEINSDÓTTIR, 2012). Embora a
doação para ações de combate ao HIV/AIDS no mundo pelos BRICS, em torno
de 0,1% (UNAIDS, 2013), seja infinitamente menor do que a maior parte dos
países citados anteriormente, a importância da doação deve ser analisada sob o
ponto da política internacional. A saúde é uma das temáticas de interesse dos
países que formam os BRICS, sendo a mesma discutida nas reuniões dos ministros
da saúde tanto no contexto das cúpulas, quanto nas reuniões dos ministros da
Saúde dos BRICS às margens da Assembleia da Organização Mundial da Saúde,
que ocorreram nos anos de 2011 e 2012, respectivamente 64ª e 65ª Assembleias
Gerais da OMS (HERZ; FLORENTINO; MIRANDA, 2012).
A importância política da doação de antirretrovirais pelos países BRICS refere-
se à participação dos mesmos como países em desenvolvimento se portando
como doadores internacionais, além do posicionamento dos mesmos em fóruns
internacionais de discussão da temática, tais como a OMS e a ONU, demonstranto o
alinhamento de ideias e ações que tentam equilibrar a tomada de decisões na área
e, por conseguinte, melhor distribuição de benefícios entre países desenvolvidos
e em desenvolvimento.
Retomando a discussão da relação entre saúde e política externa, citada
anteriormente, pode-se inferir que a coopração Sul-Sul brasileira para o combate
ao HIV/AIDS é um instrumento da política externa do país quando se considera
que questões relacionadas à AIDS foram e continuam sendo discutidas em fóruns
internacionais como a ONU e a OMS, nas cúpulas dos BRICS, no Grupo de Trabalho
Saúde do IBAS, no Mercosul, na CPLP e em conferências internacionais, como a
Conferência Internacional de AIDS, tendo repercussão tanto nacionalmente como
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
132 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
internacionalmente. A cooperação na área, nesse sentido, serve aos interesses
nacionais, uma vez que aumenta a relação entre os países, podendo servir como
“via” facilitadora para novas interações entre os Estados.
Considera-se, portanto, que as fontes de soft power estão presentes na
cooperação Sul-Sul brasileira para o combate ao HIV/AIDS e, desse maneira, o
país, durante o período estudado, atuou internacionalmente por meio do mesmo,
na área em destaque.
Considerações finais
A cooperação Sul-Sul brasileira na área de combate ao HIV/AIDS constituiu-se
como um instrumento de soft power brasileiro no contexto internacional.
A cultura política brasileira, no que se refere às políticas sociais que deram suporte
ao combate à epidemia no país, contribuiu e contribui, sobremaneira, para os
baixos níveis de prevalência da doença na polupação entre 15 e 49 anos até os
dias atuais, tendo, como um dos principais pilares, a politica de acesso universal
ao tratamento, um dos fatores para a baixa prevalência da doença no país, dado
já referido anteriormente.
As participações brasileiras em fóruns como a ONU, OMC e OMS, em 2001,
destacadas anteriormente, defendendo o acesso universal aos medicamentos
antirretrovirais, bem como o acesso aos medicamentos como um direito humano,
permitiram a visão do Brasil por outros países, como um defensor de questões
relacionadas ao tema.
O combate à epidemia de HIV/AIDS, uma das temáticas prioritárias do governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, expresso em encontros internacionais, como
os citados anteriormente, e concretizado por meio da cooperação internacional
na área, ampliaram a participação brasileira no sistema internacional, chamando
atenção, por conseguinte, de outros países para a cooperação com países em
desenvolvimento.
Por fim, a cooperação brasileira Sul-Sul de combate ao HIV/AIDS compreendida
como instrumento da política externa brasileira, serve aos interesses nacionais
quando aumenta a relação entre os países, ao mesmo tampo em que projeta uma
imagem positiva e de um país que quer participar e participa de questões relativas
ao combate da epidemia em seu próprio território e no sistema internacional.
Considera-se, portanto, que as políticas doméstivas adotadas pelo Brasil ao
longo dos anos no contexto da epidemia de HIV/AIDS, culminando no início dos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
133Fabiola Faro Eloy Dunda
anos 2000 com as primeiras ações de cooperação internacional na área, funcionaram
como instrumento de soft power do país e fonte de atração de outros países para
estabelecer ações na área.
Referências
AGÊNCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO (ABC). Cooperação Sul-Sul. Disponível em:
<http://www.abc.gov.br/Projetos/CooperacaoSulSul. Acesso em: 10 jan 2018.
ASSESSORIA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS (AISA). O que fazemos.Disponível em:
http://portalms.saude.gov.br/assessoria-internacional>. Acesso em: 24 jan 2015.
ALMOND, Gabriel A.; VERBA, Sidney. The Civic Culture or The Civic Culture: Political
Attitudes and Democracy in Five Nations. California. Sage Publications. 1963.
BALDWIN, David A. Neorealism and Neoliberalism. The Contemporary Debat. New
York, Columbia University Press. 1993.
BANCO MUNDIAL. Prevalence of HIV, total (%population ages 15-49). Disponível em:
<https://data.worldbank.org/indicator/SH.DYN.AIDS.ZS>. Acesso em: 20 mar 2018.
BARBOZA, Tayná Marques T.; PINHEIRO, Leticia.; PIRES-ALVES, Fernando. O diálogo
entre saúde e política externa brasileira nos governos de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Rev. Carta Inter, Belo Horizonte,
v. 12, n. 3, 2017, p. 175-198. Acesso em: 12 fev 2018.
BATISTELLA, Carlos. Abordagens contemporâneas do conceito de Saúde in O território e o
processo saúde-doença. Organizado por Angélica Ferreira Fonseca e Ana Maria D’Andrea
Corbo. – Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz. 2007. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/3120150/mod_resource/content/2/O%20territ%C3%B3rio%20e%20
o%20processo%20sa%C3%BAde-doen%C3%A7a.pdf>. Acesso em: 10 mar 2018.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade. Fragmentos De Um Dicionário político.
20ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo. Paz e Terra. 2017.
CARICOM. Who we are. Disponível em:<http://www.caricom.org/>. Acesso em: 15 dez 2017.
CEZAR, Vagner Mendes; DRAGANOV, Patricia Bover. A História e as Políticas Públicas do
HIV no Brasil sob uma Visão Bioética. Ensaios Cienc., Cienc. Biol. Agrar. Saúde, v. 18,
n. 3, p. 151-156, 2014. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/260/26042165006/>.
Acesso em: 15 set 2018.
CHATUVERDI, Sachin; THORSTEINSDÓTTIR, Halla. BRICS and South-South Cooperation
in Medicine: Emerging Trends in Research and Entrepreneurial Collaborations.
Discussion paper #177. Research and Information System for Developing Countries.
2012. Disponível em: <http://www.ris.org.in/brics-and-south-south-cooperation-
medicine-emerging-trends-research-and-entrepreneurial>. Acesso em: 12 mar 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
134 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
CHEQUER, Pedro. A Resposta Nacional ao HIV/AIDS. 2004. Disponível em: <http://www.who.
int/intellectualproperty/events/HIVAIDSPedroChequer.pdf>. Acesso em: 15 dez 2017.
CORRÊA, Marcio Lopes. Prática Comentada de Cooperação Internacional. Entre a
Hegemonia e a busca de autonomia. Edição do autor, Brasília, 2010.
DUTTA, Abhinav. The Concept of Soft Power: A Critical Analysis in International Affairs
Forum. Disponível em: <http://www.ia-forum.org/Content/ViewInternalDocument.
cfm?ContentID=8393>. Acesso em: 15 set 2018.
FERGUSON, Niall. Think Again: power in Foreign Policy. 2009. Disponível em: <https://
foreignpolicy.com/2009/11/03/think-again-power/>. Acesso em: 16 set 2018.
FIOCRUZ. Rede de cooperação em HIV/AIDS. Disponível em: <http://www6.ensp.
fiocruz.br/radis/revista-radis/31/reportagens/rede-de-cooperacao-em-hivaids>.
Acesso em: 10 feb 2018.
____. Fiocruz produz mais de 150 milhões de antirretrovirais e desenvolve novas
formulações para atender público infantil. 2018a. Disponível em: <https://agencia.
fiocruz.br/fiocruz-produz-mais-de-150-milhoes-de-antirretrovirais-e-desenvolve-
novas-formulacoes-para-atender>. Acesso em: 20 set 2018.
____. Medicamento 3 em 1 para a AIDS começa a ser distribuído em todo o país. 2018b.
Dsiponível em: <https://www.bio.fiocruz.br/index.php/noticias/903-medicamento-
3-em-1-para-tratamento-da-aids-comeca-a-ser-distribuido-em-todo-o-pais>. Acesso
em: 20 set 2018.
GRAY, Colin S. Hard power and Soft Power: The utility of Military Force as an instrument
of police in the 21
st
Century. Strategic Studies Institute Publications. 2011. Disponível
em: <http://ssi.armywarcollege.edu/pdffiles/pub1059.pdf>. Acesso em: 15 set 2018.
HERZ, Monica; FLORENTINO, Lucas Perez; MIRANDA, Victor Costa Velho. A coordenação
dos BRICS nos fóruns multilaterais. BRICS Policy Center – Policy Brief. 2012.
Disponível em: <http://bricspolicycenter.org/homolog/uploads/trabalhos/5782/
doc/1368571065.pdf>. Acesso em: 10 jun 2016.
HOSPITAIS BRASIL. Aids: o que é CD4 e seu papel nos 30 anos de combate à doença no
Brasil. 2018. Disponível em: <http://portalhospitaisbrasil.com.br/aids-o-que-e-cd4-
e-seu-papel-nos-30-anos-de-combate-a-doenca-no-brasil>. Acesso em: 20 set 2018.
IDEC. Acordo Comercial entre Índia e UE pode Prejudicar acesso a medicamentos. 2018.
Disponível em: <https://idec.org.br/em-acao/em-foco/acordo-comercial-entre-india-
e-ue-pode-prejudicar-acesso-a-medicamentos>. Acesso em: 30 mar 2018.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; AGÊNCIA BRASILEIRA DE
COOPERAÇÃO (IPEA/ABC); MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (MRE)
Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional. 2011-2013. LIMA, B. J.
B (Editor). Brasília: Ipea: ABC, 2016. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso
em: 10 out 2016.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
135Fabiola Faro Eloy Dunda
KICKBUSCH, Ilona. 21st Century Health Diplomacy: A new Relationship Between Foreign
Policy and Health in 21
st
Century Global Health Diplomacy edited by Thomas E.
Novotony, Ilona Kickbusch and Michaela Todd. Singapore. Published by World
Scientific Publishing Co. Pte. Ltd. 2013.
LEITE, Iara Costa, SUYAMA, Bianca.; WAISBICH, Laura Trajber. Para além do tecnicismo.
A cooperação brasileira internacional para o desenvolvimento e os caminhos para
a sua efetivação e democratização. Articulação Sul. 2013. disponível em: <http://
articulacaosul.org/wp-content/uploads/2014/07/Policy_Briefing_Para_alem_do_
tecnicismo.pdf>. Acesso em: 10 jun 2016.
LIMA, Thaísa Gois Farias de Moura Santos; CAMPOS, Rodrigo Pires. O perfil dos projetos
de cooperação técnica brasileira em AIDS no mundo: explorando potenciais hipóteses
de estudo. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro. 4(1):119-133,
mar, 2010.
MATSUDA, Takeshi.Soft Power and its perils: US Cultural Policy in Early Postwar Japan
and Permanent Dependency.US, Stanford University Press, pp. 4-6. 2007
MCCLORY, Jonathan. The Soft Power 30. A Global Ranking of Soft Power. 2018. USC
Center on Public Diplomacy. Disponível em: <https://softpower30.com/>. Acesso
em: 10 sep 2018.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. BANCO DO BRASIL. Gasto do governo brasileiro em Reais entre
2002-2012, e de 2011 a 2015, com a cooperação brasileira de combate ao HIV/AIDS.
Informação fornecida pelo Ministério da Saúde por meio do eSic. (2016a)
MINISTÉRIO DA SAÚDE. DEPARTAMENTO DE DST, AIDS E HEPATITES VIRAIS.
SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Doações de antirretrovirais brasileiras
entre 2013-2016. (2016b).
MINISTÉRIO DA SAÚDE. DEPARTAMENTO DE DST, AIDS E HEPATITES VIRAIS. História
da AIDS. (2016c). Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pagina/historia-da-aids>.
Acesso em: 01 dez 2014.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Brasil participa da 22ª Conferência Internacional de AIDS.
(2018). Disponível em: <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/43874-
brasil-participa-da-22-conferencia-internacional-de-aids>. Acesso em: 25 set 2018.
____. Relatório de gestão 2009 da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (AISA)/
Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro, Assessoria de Assuntos Internacionais
de Saúde. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010.
____. UNAIDS;UNICEF;UNFPA.LAÇOS SUL SUL (2007/2008) Disponível em: <http://
www.unicef.org/brazil/pt/07_08_LSSBooklet.pdf>. Acesso em: 15 dez 2014.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (MRE). Sistema de Atos Internacionais. (2016).
Disponível em: <http://dai-mre.serpro.gov.br/>. Acesso em: 10 out 2016.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 109-136
136 A cooperação Sul-Sul brasileira em HIV/AIDS [...]
NYE JR, Joseph. S. Soft power. The means to success in world politics. New York, Public
Affairs. 2004. pp. 191.
OMS. HIV Vaccines. (2014). Disponivel em: <http://www.who.int/hiv/topics/vaccines/
Vaccines/en/>. Acesso em: 09 jan 2015.
____. UNITAID. Innovation for global health. (2018). Disponível em: <http://www.who.
int/global-coordination-mechanism/working-groups/unitaid.pdf>. Acesso em: 20
set 2018.
ONU. A/RES/46/182 (2016a). Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/res/
46/a46r182.htm>. Acesso em: 17 out 2016.
____. A/RES/58/114. (2016b)Disponível em: <http://www.preventionweb.net/files/
resolutions/N0350142.pdf>. Acesso em: 17 out 2016.
PUENTE, Carlos Alfonso Iglesias. A cooperação técnica horizontal brasileira como
instrumento da política externa: evolução da cooperação técnica com países em
desenvolvimento – CTPD – período 1995-2005. Brasília. FUNAG, 2010.
SOUZA, Andre de Mello e Acordo sobre os Aspectos dos Direitos De Propriedade
Intelectual relacionados ao Comércio (Trips): Implicações e Possibilidades para a
Saúde Pública no Brasil. IPEA. Texto para discussão 1615. 2011, p. 1-37. Disponível
em: <http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/TD_1615_WEB.pdf>.
Acesso em: 15 set 2012
UNAIDS. Global Report. UNAIDS report in the global AIDS epidemic (2013). Disponível
em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/en/media/unaids/contentassets/
documents/epidemiology/2013/gr2013/UNAIDS_Global_Report_2013_en.pdf>.
Acesso em: 07 out 2014.
UNAIDS DATA. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/media_
asset/20170720_Data_book_2017_en.pdf>. Acesso em: 01 mar 2018
UNITAID. About us. 2018. Disponível em: <https://unitaid.eu/about-us/#en>. Acesso
em: 15 mar 2018.
WALTZ, Kenneth N. Theory of International Politics. Reading, Mass:Addison-Wesley. 1979.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
137Débora Figueiredo Mendonça do Prado
A atuação internacional dos governos
subnacionais: construções conceituais, limites
e contribuições para o caso brasileiro
1
The international actions of the subnational
governments: conceptual constructions, limits
and contributions to the brazilian case
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.846
Débora Figueiredo Mendonça do Prado
2
Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar o debate conceitual sobre a atuação internacional
dos governos subnacionais, tendo em vista as dificuldades e limitações dos conceitos
de paradiplomacia e protodiplomacia. Parte-se da hipótese de que esses conceitos são
insuficientes para a compreensão de determinadas ações dos governos subnacionais que
geram tensões com governos centrais. Para isso, a pesquisa se apoia em bibliografia clássica
do tema, identificando o histórico desse campo de estudo na ciência política e nas relações
internacionais, com destaque para as tipologias propostas pela literatura nas últimas
décadas. A partir de tal base, conclui-se que a marginalização desses processos gera uma
compreensão limitada da atuação dos atores subnacionais, bem como de seus impactos na
política internacional. Tal revisão se faz necessária para auxiliar na identificação de lacunas
conceituais e na delimitação de uma agenda de pesquisa para esse campo de estudo no Brasil.
Palavras-chave: Governos subnacionais; Paradiplomacia; Protodiplomacia; Brasil; Estados
Unidos.
1 Agradeço aos revisores e pareceristas do artigo pelos comentários, sugestões e contribuições. Agradeço também
ao prof. Dr. Tullo Vigevani pelas sugestões e comentários essenciais para o avanço desta pesquisa. O apoio
institucional da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para
estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) foram essenciais. Qualquer erro ou inconsistência, no entanto,
são de minha inteira responsabilidade.
2 Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É professora no curso de
graduação e de pós-graduação em Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e
pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Artigo submetido em 05/09/2018 e aprovado em 14/12/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
138 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
Abstract
This article analyzes the conceptual debate about the international actions of subnational
governments pointing to the difficulties and limitations of the concepts of paradiplomacy
and protodiplomacy. The main hypothesis is that these concepts are insufficient for the
understanding of certain actions of the subnational governments that generate tensions with
the central government. To do so, the research is based on a classic bibliography, identifying
the history of this field of study in Political Science and in International Relations, highlighting
the typologies proposed by literature in the last decades. On this basis, it is concluded that the
marginalization of these processes generates a limited understanding of the performance of
subnational actors as well as their impact on international politics. This review is necessary
to help identify conceptual gaps and delimit a research agenda for this field of study in Brazil.
Keywords: Subnational governments; Paradiplomacy; Protodiplomacy, Brazil, United States.
Introdução
O envolvimento dos governos subnacionais no cenário internacional não é um
fenômeno recente, embora o estudo desse tipo de engajamento seja. A literatura
apresenta Duchacek (1984, 1986, 1990) e Soldatos (1990) como os formuladores
originais do conceito de paradiplomacia e, portanto, pioneiros na definição desse
fenômeno. Kuznetsov (2015), entretanto, questiona essa informação. Para esse
autor, a primeira tentativa de incorporação desse conceito foi feita por Rohan
Butler, em 1961, para se referir a atividades extraoficiais ou secretas. Na definição
de Butler, a paradiplomacia representa um desafio para o chefe do executivo,
independentemente do governo em questão, porque corresponde ao mais alto
nível de diplomacia pessoal e paralela, podendo complementar ou competir
com a política externa regular (BUTLER, 1961 apud KUZNETSOV 2015, p. 25)
3,
4
. Posteriormente, o conceito teria reemergido no campo da ciência política,
adquirindo um novo significado nos trabalhos de Duchacek e Soldatos para indicar
o envolvimento dos governos subnacionais no cenário internacional.
3 Para o autor, paradiplomacia seria “o mais alto nível de diplomacia pessoal e paralela, complementando ou
competindo com a política externa regular do ministro em questão, é, portanto, uma tentação recorrente para
o chefe do executivo, seja ele um primeiro-ministro, presidente, ditador ou monarca (BUTLER, 1961 apud
KUZNETSOV 2015, p. 25, tradução nossa).
4 Versão original do texto citado na nota anterior: “the highest level of personal and parallel diplomacy,
complementing or competing with the regular foreign policy of the minister concerned, is thus a recurrent
temptation to the chief of the executive, be he a premier or president, dictator or monarch” (BUTLER, 1961 apud
KUZNETSOV 2015, p. 25).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
139Débora Figueiredo Mendonça do Prado
Em 1984, Duchacek propõe o conceito de microdiplomacia para descrever
a prática internacional de territórios políticos autônomos. O conceito buscava
delinear as atividades realizadas pelos governos não centrais, fazendo, portanto,
um contraponto à ideia de “macrodiplomacia”, ou seja, as atividades internacionais
dos governos nacionais. A paradiplomacia seria o resultado desses dois tipos de
atuação: por um lado, o que o autor chama de “transborder regional regimes”
(predominantemente baseado em processos consociacionais informais) e “global
micro-diplomacy” (que levam os governos constituintes, incluindo os das grandes
cidades, ao contato direto com os governos nacionais e constituintes) (DUCHACEK,
1984, p. 5).
Em 1990, Soldatos definiu a paradiplomacia como atividade internacional
direta de atores subnacionais (unidades federadas, regiões, comunidades urbanas,
cidades) apoiando, complementando, corrigindo, duplicando ou desafiando a
diplomacia dos Estados nacionais (SOLDATOS, 1990, p. 17)
5
6
. A adoção desse
termo foi incorporada nos trabalhos subsequentes de Duchacek (1990), que
reconheceu a melhor adequação desse conceito às atividades desenvolvidas pelos
governos subnacionais de forma paralela à diplomacia tradicional. Já o conceito
de protodiplomacia seria utilizado como referência nos casos em que a atividade
de um governo subnacional é contrária à diplomacia nacional. Como observa
o autor, enquanto as atividades paradiplomáticas no exterior dizem respeito
majoritariamente às questões econômicas, sociais e culturais, as atividades
protodiplomáticas apontam para trabalhos preparatórios visando uma futura
secessão, bem como o seu devido reconhecimento internacional (DUCHACEK,
1988, p. 22 apud AGUIRRE, 1999, p. 190).
Em suma, enquanto a paradiplomacia é considerada como uma atividade
complementar ao Estado, a protodiplomacia é uma atividade desestabilizadora,
frequentemente vista como ilegítima e perigosa para a unidade do governo central
(KEATING, 1998). São exemplos tradicionais desse tipo de atividade o caso de
Québec, no Canadá, e da Catalunha, na Espanha. Nossal, Roussel e Paquin (2012),
ao analisarem o caso em Québec, destacam que esse tipo de atividade ocorreu
5 Nas palavras do próprio autor, a paradiplomacia pode ser definida como “atividade internacional direta de
atores subnacionais (unidades federadas, regiões, comunidades urbanas, cidades) apoiando, complementando,
corrigindo, duplicando ou desafiando a diplomacia dos Estados nacionais” (SOLDATOS, 1990, p. 17, tradução
nossa).
6 Versão original do texto citado na nota anterior: a paradiplomacia pode ser definida como “direct international
activity by sub-national actors (federated units, regions, urban communities, cities) supporting, complementing,
correcting, duplicating or challenging the nation-states’ diplomacy” (SOLDATOS, 1990, p. 17).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
140 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
nos anos de 1970 e 1990 e reforçam que a ideia de que a protodiplomacia é um
tipo primitivo de diplomacia. Segundo os autores:
[A protodiplomacia], como o prefixo sugere, é uma diplomacia primitiva ou
rudimentar, normalmente adotada por um governo no exílio ou um governo
não central que procura usar suas atividades internacionais para obter
reconhecimento por outros estados e, assim, transformar a protodiplomacia
em diplomacia pura e simples pela conquista da independência e soberania
(NOSSAL; ROUSSELL; PAQUIN, 2012, [s/n] tradução nossa).
7
Essa definição é importante para casos como o da Catalunha, que ganhou
contornos mais dramáticos com a aprovação, em outubro de 2017, do referendo
separatista da região. O imbróglio gerou forte reação por parte de Mariano Rajoy,
então presidente do governo da Espanha, que atuou para impedir o processo e
deter os políticos envolvidos na organização do referendo. Carles Puigdemont,
ex-líder da Generalitat que atuou ativamente para a separação da região, está
atualmente exilado na Bélgica.
Ao analisar o caso catalão até 2015, Vicuña (2015) destaca um redirecionamento
da atuação internacional da região em 2012 a partir do segundo mandato de Artur
Mas, economista e político catalão, nacionalista e independentista, e presidente
do governo da Catalunha entre 2010 e 2015. De acordo com o autor, o governo
de Artur Mas baseou-se no “direito de decidir” ao colocar a transição nacional
como prioridade de seu governo (VICUÑA, 2015, p. 43). Para Vicuña, a Catalunha
buscava alcançar um status de ator internacional e construir um sistema de
alianças que pudesse sustentar uma eventual secessão. Apesar disso, o autor
questiona a utilização do termo protodiplomacia naquele momento, por entender
que a narrativa de promoção internacional da região não estava concentrada na
independência, mas na legitimidade do processo interno de autodeterminação.
Segura (2017) tem uma posição semelhante quando afirma que a atividade
internacional da Catalunha estava relativamente normalizada junto ao governo
espanhol, sendo comparada com ações de outras regiões autônomas como o
País Basco. Contudo, a partir de 2012, a região passou a intensificar sua atuação
internacional, configurando assim uma atuação protodiplomática.
7 [Protodiplomacy,] as the prefix suggests, is a primitive or rudimentary diplomacy, usually pursued by a government-
in-exile or a non-central government that is seeking to use its international activities to gain recognition by other
states and thereby transform protodiplomacy into diplomacy pure and simple by the achievement of independence
and sovereign statehood”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
141Débora Figueiredo Mendonça do Prado
A literatura identifica, portanto, dois tipos ideais e antagônicos de atividades
internacionais de entes subnacionais: a paradiplomacia indicando as atividades
complementares aos Estados e que não geram qualquer tipo de tensionamento; e o
conceito de protodiplomacia para identificar as iniciativas destinadas à separação
do Estado. Contudo, a divisão dessas atividades nessas duas categorias conceituais
é insuficiente, sobretudo quando consideramos casos em que a atividade dos
entes não possui conteúdo separatista, mas geram conflitos importantes com o
governo central.
Diante disso, esta pesquisa parte da hipótese de que a caracterização do
debate sobre a atuação internacional de governos subnacionais nesses dois tipos
ideais e antagônicos (paradiplomacia/protodiplomacia) é limitador e deixa vazios
conceituais intransponíveis, pois um leque razoável de atividades não pode fazer
parte dessa tipificação clássica, gerando dificuldades, limitando a compreensão
dos processos e de seus impactos na condução da política internacional e
limitando o avanço desse campo de pesquisa. No Brasil, por exemplo, é possível
identificar casos em que as atividades dos governos subnacionais geraram atritos
importantes com o governo federal, mas que não podem ser classificadas como
ações protodiplomáticas. Esse tipo de tensionamento não é recorrente no país,
mas a identificação desses casos evidencia uma limitação teórica e metodológica
e abre espaço para uma discussão mais ampla sobre as ferramentas analíticas
mais adequadas para conceituar tal fenômeno.
Para enfrentar essa problemática, esta pesquisa se apoia em bibliografia
clássica do tema, identificando o histórico desse campo de estudo na ciência
política e nas relações internacionais, com destaque para as tipologias propostas
pela literatura nas últimas décadas. Essa revisão, juntamente com pesquisas
qualitativas, permite identificar lacunas conceituais na atuação internacional
de atores subnacionais no caso brasileiro. Diante disso, o artigo está subdivido
em dois principais tópicos: o primeiro procura analisar as principais limitações
conceituais da paradiplomacia no Brasil e no mundo, com foco na problematização
das atividades subnacionais que não se enquadram nas duas principais categorias
apresentadas pela literatura; o segundo considera o debate no Brasil, tendo em
vista os esforços conceituais apresentados até o momento.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
142 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
1 As limitações conceituais da paradiplomacia
1.1 As atividades internacionais dos governos subnacionais no Brasil
No Brasil, ações internacionais de governos estaduais são identificadas
desde a República Velha (1889-1930). Entretanto, os esforços para a construção
de um marco conceitual desse processo somente ganharam espaço a partir
década de 1980, estimulados pela intensificação destas atividades. As primeiras
atividades desse tipo no Brasil tinham por objetivo a concessão de empréstimos
internacionais para o desenvolvimento do agronegócio na região de São Paulo e
Minas Gerais (RODRIGUES, 2004). No final dos anos de 1980 e início da década
de 1990, há uma intensificação dessas atividades, com a participação de governos
subnacionais brasileiros em convênios, acordos bilaterais, acordos de cooperação
com agências internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID). O grau de envolvimento no Brasil é variável e cada
região acaba por considerar necessidades específicas para o estabelecimento de
suas prioridades. Na região Norte
8
, as atividades estão voltadas para a integração
entre a região amazônica e a subcaribenha, que se explica pela aproximação dos
estados com a Guiana, Suriname e Guiana Francesa. No Sul
9
do país, os governos
objetivam intensificar as relações com os demais países do Mercosul
10
, explorando
principalmente as possibilidades comerciais. Já nas regiões Nordeste
11
e Centro-
Oeste
12
, o objetivo tem sido a promoção do comércio exterior (BRIGAGÃO, 2005).
É na região Sudeste
13
do país, entretanto, que o envolvimento dos governos
subnacionais ocorre com maior diversificação e intensidade, por meio de
mecanismos de articulação tais como: a cooperação técnica, a promoção comercial,
8 Dentre as pesquisas realizadas sobre a atuação no Norte do país, podemos citar as análises de Abdala (2007),
Gomes Filho e Vaz (2008), Gomes Filho (2011) e de Santos (2017).
9 Sobre a atuação internacional na região Sul do país, podemos citar os trabalhos de Nunes (2005), Salomón e
Nunes (2007), Meirinho (2015), Ferreira (2015) e Martins (2017).
10 Dentre os trabalhos voltados para a análise do envolvimento dos governos subnacionais brasileiros no Mercosul e
na rede Mercocidades, podemos citar Meneghetti Neto (2005), Mariano e Mariano (2005), Vigevani e Wanderley
(2005), Silva (2006), Prado (2009), Medeiros e Saraiva (2009), Prado (2011), Almeida (2012), Melo (2013),
Junqueira (2014), Luzia (2016), Sadeck, Froio e Medeiros (2017).
11 Dentre os trabalhos que analisam a atuação internacional na região Nordeste, podemos citar: Saraiva (2004),
Ribeiro (2009), Morais (2011), Maia (2012), Siqueira (2012) e Almeida (2013).
12 Sobre a região Centro-Oeste, podemos citar os trabalhos de: Nascimento (2016) e Gatto (2012).
13 Levantamento realizado por Ribeiro (2009) destaca que 71% dos municípios brasileiros possuem atuação
internacional. De acordo com essa pesquisa, os dados sobre o envolvimento por região são: 51,7% para a região
Sudeste, 24,1% na região Sul, seguido de 13,8% para a o Nordeste e 10,3% para a região Norte do país.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
143Débora Figueiredo Mendonça do Prado
o investimento e o fortalecimento político das regiões por meio da participação
em redes internacionais de cidades
14
.
Discorrendo sobre as principais características da ação subnacional no
Brasil, Farias (2000) destaca o caráter pragmático das ações e o envolvimento em
atividades limitadas a questões de low politics (promoção comercial, intercâmbio
cultural, turismo, convênios tecnológicos, cooperação técnica, investimentos).
Em geral, essas ações se diluem nas atividades gerais dos governos, sendo que a
extensão e a direção do envolvimento internacional geralmente são determinadas
pela vontade política dos governantes, das possibilidades comerciais e dos
interesses individuais de cada estado ou município brasileiro (FARIAS, 2000;
VIGEVANI, 2007).
Dessa maneira, as ações dos governos subnacionais no Brasil tendem a ser
cooperativas e complementares ao governo federal. Contudo, Vigevani (2006)
argumenta que alguns governos, com objetivo de atrair investimentos estrangeiros,
geram crises com o governo federal ao proporem favorecimentos fiscais não
pactuados no âmbito federal. Ainda segundo o autor, “alguns estados como o
Rio Grande do Sul e Bahia, em certas ocasiões chegaram a causar problemas
para o pacto federativo em razão da ação assimétrica adotada para a atração de
investimentos” (VIGEVANI, 2006, p. 130).
Uma importante crise causada pelas ações internacionais realizadas por um
governo subnacional no Brasil ocorreu durante o governo de Leonel Brizola, no
Rio Grande do Sul. Em 1962, o então governador estatizou duas subsidiárias
das empresas multinacionais estadunidenses: a Companhia Energia Elétrica Rio
Grandense (CEERG), pertencente à Bond and Share, e a Companhia Telefônica
Nacional (CTN), subsidiária da International Telephone & Telegraph (ITT),
transformando a empresa na Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações
(CRT). A CEERG era a prestadora dos serviços de eletricidade para Porto Alegre
e região. De acordo com Silva (2015), tratava-se de uma poderosa corporação
internacional que operava no Brasil desde a década de 1920 e controlava 70%
da produção de energia no país. A desapropriação da concessionária pelo
14 Na região Sudeste, podemos citar os trabalhos de Perpétuo (2010), Pereira (2010, 2014), Salles e Vieira (2014) e
Oliveira (2017) sobre a atuação internacional no estado de Minas Gerais. No Espírito Santo, temos o trabalho
de Henriques Filho (2016). No estado e município de São Paulo, podemos citar o trabalho de Barreto (2001), a
pesquisa no âmbito do Cedec, PUC-SP e Unesp (2007), bem como os de Batista (2010), Yahn Filho (2011), Araújo
(2012), Alves (2013), Farias (2015), Andrade (2015), Vital (2016). Neves (2013), Besen (2016), Melo (2016),
Mendes (2017) e Mendes e Figueira (2017), por sua vez, apresentam trabalhos sobre a atuação do estado do
Rio de Janeiro. No estado do Espírito Santo, podemos citar o trabalho de Henriques Filho (2016)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
144 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
governo respondia a uma promessa de campanha e tinha por objetivo reverter
os problemas relacionados ao abastecimento e à interrupção do fornecimento
de energia elétrica na região. Em visita ao presidente Kennedy no mesmo ano, o
então presidente João Goulart teve de explicar o caso. Naquela oportunidade, o
presidente dos Estados Unidos exigiu uma “indenização rápida e justa” e exigiu
o comprometimento do presidente na solução pacífica e negociada da crise
(BEMFICA, 2007). Posteriormente, em 1962, ocorreu a expropriação pelo governo
da subsidiária local da ITT, vinculada ao grupo Morgan, após o impasse entre a
empresa e o governo sobre a avaliação do acervo da operadora.
As encampações geraram grande repercussão na imprensa e contou com forte
reação do governo estadunidense, que passou a considerar o então governador
do Rio Grande do Sul o responsável direto pelo agravamento nas relações entre
Estados Unidos e Brasil (BANDEIRA, 1979). Essa percepção ganhou força
com a sinalização de outros estados brasileiros, como Pernambuco, Bahia e
Minas Gerais, que passaram a flertar com a ideia de nacionalização de outras
concessionárias de serviços públicos, agravando a relação bilateral no governo
João Goulart (BANDEIRA, 1979). Com o golpe militar de 1964, estabeleceu-se
um alto nível de centralização no governo brasileiro, impossibilitando qualquer
tipo de engajamento internacional de governos subnacionais, centralização essa
que somente começou a se alterar durante a transição democrática, época em
que as autonomias subnacionais foram gradativamente sendo devolvidas. Para
Souza (2006), “a descentralização trouxe como uma de suas principais bandeiras
a ‘restauração’ do federalismo e a descentralização, mediante a elaboração de
uma nova Constituição” (SOUZA, 2005, p. 191).
A moratória do Eurobônus de Minas Gerais, decretada em 1999 por Itamar
Franco, então governador do estado, foi outro caso de tensão. A crise começou logo
após o informe do Ministério da Fazenda aos organismos financeiros internacionais
do risco de inadimplência do estado, gerando a suspensão de valores em fase de
desembolso. O caso acabou contribuindo para o agravamento da crise econômica
brasileira como um todo naquele período, como nos mostra Rodrigues (2004). Ao
analisar o federalismo brasileiro, Ames (2003) critica os excessos de independência
dos estados e faz referência a esse caso, afirmando que “as unidades subnacionais
ainda têm muito mais privilégios fiscais do que responsabilidades” (AMES, 2003,
p. 349). Para Rodrigues (2004), o caso de Minas Gerais “foi, possivelmente, o mais
revelador do nível de conflituosidade no âmbito civil a que podem chegar um
governo subnacional e a União, envolvendo as relações internacionais do Brasil
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
145Débora Figueiredo Mendonça do Prado
na segunda metade do século XX” (RODRIGUES, 2004, p. 215). Marcovitch (2014)
também reforça o argumento segundo o qual a competência para a formulação
e execução da política externa é do governo federal, através do Itamaraty, e
relembra que “algumas iniciativas de Estados que assinaram diretamente acordos
internacionais claramente se chocaram com a competência exclusiva do Ministério
das Relações Exteriores (MRE)” (MARCOVITCH, 2014, p. 10).
Diante disso, é possível identificar alguns tensionamentos entre o envolvimento
internacional dos governos subnacionais e a esfera federal, embora seja inegável
a constatação de que casos desse tipo são raros no país. Por isso, definir as
atividades no Brasil exclusivamente como ações paradiplomáticas é uma decisão
problemática. Apesar de isolados, esses casos expõem contradições importantes
que merecem uma reflexão sobre os limites dos termos propostos pela literatura
para a compreensão da atividade subnacional, inclusive para o caso brasileiro.
1.2 Atividades internacionais de governos subnacionais nos Estados Unidos
O caso brasileiro certamente não é o mais emblemático quando analisamos
as tensões entre atividades internacionais de governos e entes subnacionais.
Se excluirmos as iniciativas protodiplomáticas, é possível concluir que as
dificuldades mais evidentes entre as ações de estados e municípios e o governo
nacional ocorrem nos Estados Unidos. O caso estadunidense é emblemático, pois
leva os tensionamento às últimas consequências, gerando conflitos jurídicos e
institucionais entre estados e governo federal. Esses tensionamentos e conflitos são
identificados principalmente pelas ações desenvolvidas pelos legislativos estaduais.
Nesse sentido, destacam-se, como exemplos principais de atividades estaduais
com constrangimentos para Washington, as temáticas ambientais e migratórias.
O endurecimento das leis de imigração, com o aumento no número de
deportações de imigrantes, e a flexibilização dos compromissos assumidos na
temática ambiental estiveram na agenda de Trump durante sua campanha. Muito
embora o republicano tenha colocado em prática tais medidas, a Califórnia,
sexta maior economia do país, tem assumido a liderança de um movimento de
resistência a essa agenda. Na semana seguinte ao discurso de posse do presidente,
o governador democrata Jerry Brown deixou claro que a Califórnia não perseguiria
os imigrantes, não retiraria o direito ao atendimento à saúde conquistado com
o Obamacare e que manteria sua posição no respeito aos acordos multilaterais
voltados ao enfrentamento das mudanças climáticas (SANDOVAL, 2018; ZEZINA,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
146 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
2017). A implementação dessas medidas teve intensa repercussão na Califórnia,
estado com maior número de imigrantes na federação estadunidense (PUBLIC
POLICY INSTITUTE OF CALIFORNIA, 2018) e que votou em peso na chapa
opositora, encabeçada por Hillary Clinton, em 2016 (CNN, 2016). Em outubro
de 2017, contrapondo-se claramente à postura do governo Trump, o estado da
Califórnia se tornou o primeiro estado-santuário norte-americano com a assinatura
da lei SB54 proposta pelo presidente do Senado Kevin de León (CALIFORNIA,
2017). A nova lei beneficia imigrantes indocumentados de ações de deportação
conduzidas pelo governo federal.
Na temática ambiental, contrariando a promessa de campanha do governo
Trump de abandonar o Acordo de Paris
15
, o governo da Califórnia reforçou suas
ações com objetivos que incluem a redução das emissões de gases para 40% dos
níveis de 1990 até 2030 (REIS, 2017; MILMAN, 2017). O estado tem participado
de todas as conferências internacionais vinculadas ao Acordo de Paris e tem
impulsionado seu próprio acordo de redução de emissões com outros governos
subnacionais. É importante destacar também que essa não é a primeira vez que
governos subnacionais contrariam uma decisão do governo nessa temática. Em
2001, por exemplo, mesmo com a rejeição formal do protocolo de Kyoto pela
administração Bush, os estados norte-americanos do Arizona, Califórnia, Novo
México, Oregon, Washington, Utah e Montana se propuseram a adotar medidas
de redução de gases de efeito estufa pela adesão ao projeto Western Climate
Initiative (WCI) criado em 2007 (EATMON, 2009).
A instrumentalização da atuação internacional de governos subnacionais
para fins políticos nos Estados Unidos é tema de destaque na literatura. Hocking
(1993) e Keating (2004) já destacavam que a participação internacional de governos
subnacionais também pode ser explicada por motivações políticas. E, no caso
da Califórnia, as ações parecem caminhar nesse sentido. Ademais, a hipótese
partidária, desenvolvida por Schiavon (2010) sobre o caso mexicano, parece viável
também para o caso estadunidense: observa-se uma maior incidência desse tipo
de engajamento internacional quando o partido majoritário no estado federado
é diferente do partido do presidente e/ou do partido majoritário no Congresso.
Nesse caso, se considerarmos que a partir de 2017 os democratas não possuem
a maioria no Congresso, o impulso desse estado para ocupar maiores espaços de
15 O Acordo de Paris foi assinado em 2016 e estabelece metas para limitar o aumento da temperatura global e
reduzir a poluição emitida por fábricas e veículos, bem como frear o desmatamento, objetivando limitar o
aumento da temperatura do planeta (UNITED NATIONS, 2015).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
147Débora Figueiredo Mendonça do Prado
poder no plano internacional deve aumentar se tal situação se mantiver. Caso a
hipótese se confirme, poderemos afirmar que, nos Estados Unidos, esse tipo de
engajamento internacional tem relação direta com as correlações de força político-
partidárias presentes no cenário doméstico.
Outro instrumento utilizado pelos governos subnacionais norte-americanos
tem sido a implementação de sanções econômicas a terceiros países. São exemplos
de ações dessa natureza as sanções aplicadas nos anos de 1980 por 23 estados
e 80 cidades com o objetivo de proibir a realização de operações comerciais das
empresas dessa região com a África do Sul, muito antes do Congresso aprovar
uma série de restrições diretas ao governo pró-apartheid em Pretoria (GUAY, 2000;
MCMILLAN, 2008, FRY, 1998). Nesse caso, mesmo após pronunciamento do
presidente George Bush, em 1991, de que as sanções deveriam ser retiradas após
acordo em Pretória, mais de 100 governos estaduais e municipais continuaram, dois
anos depois, a manter leis e estatutos que impunham restrições ao investimento
e à atividade comercial relacionados com a África do Sul (FRY, 1998, p. 94).
A repercussão desse tipo de atividade vai além dos impactos no nível das
relações intergovernamentais. Um caso emblemático foi o boicote realizado pelo
estado de Massachusetts em 1996. Nesse período, o estado aprovou sanções
econômicas que proibiam empresas norte-americanas de comercializar com Burma/
Myanmar alegando questões humanitárias. O argumento utilizado foi o de que os
estados e governos locais deveriam tomar a liderança no combate às violações de
direitos humanos (DENNING; MCCALL, 2000). A lei teve repercussões no plano
doméstico e internacional. Um painel foi aberto na OMC pelo Japão e União
Europeia sob o argumento de que a legislação era contrária às normas de comércio
internacional acordadas pelo governo norte-americano. O caso foi levado à Suprema
Corte que decidiu pela inconstitucionalidade da lei e levantou discussões sobre
a autonomia estadual e as ameaças que tais atividades trazem para a unidade
da política externa. Na opinião de Fry (2007), esse tipo de posicionamento “sem
dúvida, complica os esforços de Washington de falar com uma só voz sobre
questões econômicas internacionais importantes” (FRY, 2007, p. 43)
16
.
Essas ações identificadas no caso norte-americano representam um
importante desafio conceitual e levantam dúvidas quanto à divisão utilizada pela
literatura quando trata do envolvimento internacional dos atores subnacionais.
Se considerarmos que a natureza e as motivações dessas ações nos estados
16 Versão original do texto: “undoubtedly complicates Washington’s efforts to speak with one voice on important
international economic issues” (FRY, 2007, p. 43).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
148 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
norte-americanos são distintas, concluímos que o conceito de “paradiplomacia” é
insuficiente para caracterizar e definir integralmente as atividades internacionais
desenvolvidas por tais atores. O mesmo ocorre com o termo “protodiplomacia”, que
se destina a classificar movimentos de secessão, bem como seu reconhecimento
diplomático internacional (DUCHACEK, 1988, p. 22).
1.3 As limitações conceituais da paradiplomacia
Embora se reconheça que tais atividades geram conflitos legais, no caso norte-
americano, e constrangimentos ao governo nacional, no caso brasileiro, é certo
que essas atividades não objetivam a separação dessas regiões de seus governos
centrais. Além das limitações pontuadas até aqui sobre a paradiplomacia para
analisar as ações que fogem de seu escopo, o conceito acaba sendo adotado pela
literatura de forma vaga e sem definições claras. Ao analisar o conceito, Ribeiro
(2009) destaca que a palavra acabou adquirindo outros significados inclusive
ampliando a sua definição ao incorporar as atividades de atores não estatais no
cenário exterior. Tal ampliação gera imprecisões conceituais importantes, fazendo,
por exemplo, com que o termo se refira tanto à definição de um processo quanto ao
próprio objeto de análise. Aguirre (1990), por exemplo, afirma que o uso livre do
conceito de paradiplomacia em casos de envolvimento internacional de governos
não centrais “pode gerar diferentes conotações e contradições” (AGUIRRE, 1990,
p. 206, tradução nossa)
17
.
Como alternativas à paradiplomacia, outros conceitos já foram apresentados
pela literatura. Kincaid (1984, 1990, 1999) propõe a utilização da “constituent
diplomacy”, argumentando que o termo traz neutralidade para o debate além
de evitar o entendimento corrente na literatura, sobretudo naquela que utiliza o
conceito de paradiplomacia, de que as atividades de governos constitucionais são
inferiores, auxiliares ou complementares à high politics da diplomacia do Estado
nacional. Como argumenta o autor,
O que é “alta” ou “baixa” política depende da perspectiva do observador. Uma
província que entra na arena global para garantir investimentos de capital e
instalações industriais que possam resgatá-la do esquecimento econômico é,
do ponto de vista da província, engajada na ‘alta política’. Termos como micro-
17 [Paradiplomacy] entitles the user to use it freely with all its diverse and contradictory connotations (for example
non-governmantal, corporate or private), and, in particular, to apply it to the case of international involvement
of Non-central governments
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
149Débora Figueiredo Mendonça do Prado
diplomacia e paradiplomacia que implicam que a diplomacia constituinte
é inferior à diplomacia do Estado-nação exibem um viés do Estado-nação
e necessariamente assumem que todo Estado-nação é um representante
legítimo e competente dos interesses do povo que habita seu território.
Muitos grupos de nacionalidade e governos dentro dos estados-nação se
oporiam a tal caracterização de seus esforços para obter reconhecimento
internacional de suas reivindicações de autonomia. (KINCAID, 1990, p. 54,
tradução nossa)
18
A percepção de que as ações implementadas pelos governos subnacionais
representam atividades consideradas de baixa política acaba por marginalizar esse
processo, limitando-se a reconhecer tais atividades como políticas públicas. Como
destaca o autor, a interpretação sobre o que é alta ou baixa política é variável e não
deveria, portanto, balizar as análises e o debate sobre a atividade internacional dos
governos constitucionais. Além de nebulosa, tal subdivisão tem limitações quando
analisamos os casos já citados em que o envolvimento de governos subnacionais
gera conflitos jurídicos e constrangimentos ao Estado nacional.
Hocking (1993) busca uma definição mais ampla da atuação internacional dos
governos subnacionais ao propor o conceito “multilayered diplomacy approach”,
ou diplomacia multicamadas. Para o autor, o termo paradiplomacia deve ser
substituído pela adoção de um enfoque analítico que considere a participação
de governos não centrais na política internacional de forma cooperativa e não
segmentada, rejeitando as categorias propostas por Soldatos (1990) e Duchacek
(1984, 1986, 1990). Segundo o autor, a definição clássica não reflete o cenário
internacional contemporâneo, onde as fronteiras entre o doméstico e o internacional
são flexibilizadas. Ao contrário, os termos acabam reforçando essa distinção, ao
enfatizar os elementos de conflito entre a ação subnacional e a nacional. Como
destaca o autor,
A diplomacia internacional é vista não como um processo segmentado
presidido por gatekeepers incontestáveis, mas como uma rede de interações,
com atores diversos e cambiantes, que irá interagir de diferentes maneiras
18 What is ‘high’ or ‘low’ politics depends on one’s perspective. A province that enters the global arena to secure
capital investments and industrial facilities that may rescue it from economic oblivion is, from the provincial
perspective, engaged in ‘high politics’. Such terms as micro-diplomacy and paradiplomacy that imply that
constituent diplomacy is inferior to nation-state diplomacy exhibit a nation-state bias and necessarily assume
that every nation-state is a legitimate and competent representative of the interests of the people who inhabit its
territory. Many nationality groups and governments within nation-states would object to such characterization
of their efforts to gain international recognition of their autonomy claims”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
150 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
dependendo do problema, seus interesses e capacidade de operar em um
ambiente político multinível (HOCKING, 1993, p. 36, tradução nossa)
19
Ainda segundo Hocking (1993, p. 36), a adoção dessas categorias reforça
uma imagem de conflito entre os governos centrais e as regiões no ambiente
internacional, contribuindo, com isso, para o estabelecimento de tensões entre
essas esferas do federalismo. Por considerar que tais ações oferecem um padrão de
cooperação entre as autoridades políticas, o termo “multilayered diplomacy” seria
o mais adequado, pois os GNCs [governos não centrais] na verdade são ‘atores’
totalmente internacionais, mesmo que sejam tão complexos e ‘plurais’ quanto
o ‘estado’ ao qual pertencem” (HOCKING, 1993, p. 201, tradução nossa)
20
. Na
mesma direção, Aguirre (1999), ao problematizar o conceito da paradiplomacia,
argumenta que a participação de governos não centrais (GNCs) na atividade
internacional não deve ser entendida como anormal, paralela ou como uma forma
de diplomacia. Por considerar que o envolvimento dos governos não centrais
deve ser analisado sob uma perspectiva mais ampla, para além da relação com
o Estado nacional, o autor propõe o conceito “postdiplomatic”: Para o autor, o
envolvimento internacional dos GNCs poderia muito mais apropriadamente ser
rotulado de ‘pós-diplomático’, porque é um processo que vai além do estado-
nação, isto é, ‘além da diplomacia’” (AGUIRRE, 1999, p. 205, tradução nossa)
21
.
Tanto Hocking (1993) quanto Aguirre (1999) partem de um pressuposto
comum: o de que o cenário internacional contemporâneo contribuiu para uma
maior flexibilização nas estruturas de governança internacional e permitiu um
maior engajamento de estruturas não centrais no plano exterior. Nesse sentido,
a discussão desses atores está vinculada aos esforços teóricos que buscam uma
aproximação dos conceitos de paradiplomacia ao de governança global. Uma das
referências nesse debate é Robert Kaiser (2005), que adota uma tipologia com
base nos conceitos de paradiplomacia e governança global em múltiplos níveis
para analisar, em perspectiva comparada, o crescimento da atuação e do papel dos
governos subnacionais nos Estados Unidos e Alemanha. Nessa perspectiva, o estudo
das formas de atuação da paradiplomacia deve levar em consideração o próprio
19 “International diplomacy is regarded not as a segmented process presided over by undisputed gatekeepers but
as a web of interactions with a changing cast of players which will interact in different ways depending on the
issue, their interests and capacity to operate in a multilevel political environment
20 the NCGs actually are fully international ‘actors’, even if as complex and ‘plural’ as the ‘state’ to which they belong”
21The international involvement of NCGs could much more properly be labeled ‘postdiplomatic’, because it is a
process that moves beyond the nation-state, that is, ‘beyond diplomacy”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
151Débora Figueiredo Mendonça do Prado
sistema de governança global, por entender que tais atividades são moldadas
pela natureza da governança multinível (MAGONE, 2006). Como destaca Kaiser,
A combinação de ambos os conceitos numa perspectiva comparativa permite
a análise de todo o espectro do envolvimento internacional dos governos
subnacionais em ambos os países. Além disso, a aplicação de ambos os
conceitos analíticos parece ser apropriada, especialmente devido ao fato de
que as atividades paradiplomáticas dos atores subnacionais estão intimamente
ligadas a tipos específicos de interação multinível. (KAISER, 2005, p. 90-91,
tradução nossa)
22
A semelhança do conceito proposto por Hocking (1993) com outros presentes
nos estudos de governança é enfatizada por Kaiser. Esse último reconhece que
o conceito de diplomacia multifacetada tem relação com outro debate teórico
que surge mais ou menos na mesma época, isto é, o debate sobre a integração
regional da Europa. Os dois esforços de pesquisa teriam, portanto, pressupostos
comuns, sendo o principal deles a rejeição da separação entre política doméstica
e internacional, mantida por modelos analíticos centrados no Estado (KAISER,
2005, p. 92). Também se observam importantes aproximações envolvendo o
estudo sobre a atuação internacional de governos subnacionais e o estudo da
governança multinível nos trabalhos de Holley (2013), especialmente quando
o autor analisa o envolvimento de governos subnacionais norte-americanos em
ações de sustentabilidade ambiental. Os trabalhos de Kölling, Stavridis e Sola
(2007), Magone (2006), Marks e Hooghe (2003) e Dickson (2014) também merecem
destaque por produzirem esforços teóricos de aproximação entre esses dois níveis
de governos, bem como de suas formas de governança.
Já Cornago (2010) sugere o conceito diplomacia subestatal. Para o autor,
o termo evitaria o que ele chama de disputas terminológicas intermináveis, e
conclui dizendo que a ‘diplomacia subestatal’ pode talvez ser uma denominação
mais apropriada para uma realidade que está se tornando comum nos processos
diários de formulação de políticas [...] e é cada vez mais aceita pelo próprio
sistema diplomático” (CORNAGO, 2010, p. 13, tradução nossa)
23
. A proposta se
22 the combination of both concepts in a comparative perspective, allows for the analysis of the whole spectrum
of international engagement of subnational governments in both countries. Furthermore, the application of
both analytical concepts seems to be appropriate especially because of the fact that paradiplomatic activities by
subnational actors are closely linked with specific kinds of multi-level interaction.”
23 ‘sub-state diplomacy’ can perhaps be a more appropriate denomination for a reality that is becoming commonplace
in the daily policy-making processes […] and is increasingly accepted by the diplomatic system itself”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
152 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
justifica porque, segundo o autor, essa falta de precisão conceitual complica de
forma significativa os esforços de sistematização das pesquisas sobre o tema.
Sobre isso, o autor afirma que essa ambiguidade conceitual representa um sério
desafio para esse campo de estudo, complicando inclusive o desenvolvimento de
pesquisas empíricas sobre o tema (CORNAGO, 2010, p. 13). Na opinião do autor,
o termo diplomacia subestatal poderia conciliar as várias denominações utilizadas
na literatura para designar a atividade internacional subnacional.
2 Os esforços conceituais no Brasil: novas formulações,
problemas antigos
A busca por novos conceitos para dar conta das atividades internacionais
dos governos subnacionais motivou algumas importantes iniciativas no Brasil.
O termo “política externa federativa” foi proposto por Rodrigues (2004) para
indicar “a estratégia própria de um estado ou município, desenvolvida no âmbito
de sua autonomia, visando a sua inserção internacional de forma individual ou
coletiva” (RODRIGUES, 2004, p. 40). Com isso, o autor procurou enfatizar uma
perspectiva autônoma dos governos subnacionais, diferenciando-se, portanto, do
termo diplomacia federativa (BOGÉA, 2001), oficialmente utilizada pelo Itamaraty
e que atribui exclusividade para o governo federal na condução dos assuntos
internacionais (RODRIGUES, 2004).
Não obstante, a dificuldade na utilização desse conceito está justamente na
vinculação ou não das atividades de governos subnacionais às ações de política
externa. Em outro trabalho, Rodrigues (2008, p. 1024) reconhece a polêmica:
“Os governos estaduais e municipais possuem além de relações externas uma
política externa subnacional/federativa, dissociada da política externa nacional ou
convergente a ela?”. Para o autor, apesar da recusa por parte do governo federal
em aceitar que os governos subnacionais façam política externa, considerada
de competência exclusiva do Estado nacional, “é lícito afirmar, da perspectiva
acadêmico-científica, que alguns governos subnacionais têm, ou tiveram, política
externa. As razões para esse fenômeno costumam ser muito díspares, dependendo
do referencial de análise” (RODRIGUES, 2008, p. 1024).
Constata-se, portanto, que a defesa de que os governos subnacionais
fazem política externa é motivo de intenso debate e críticas, sobretudo quando
consideramos a atuação de governos subnacionais brasileiros. Nos Estados
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
153Débora Figueiredo Mendonça do Prado
Unidos, como dissemos, é possível identificar atividades e posicionamentos por
parte de governos estaduais e municipais que podem ser caracterizados como
política externa subnacional. Alguns casos, citados anteriormente, foram objeto
de discussão tanto no plano doméstico (pelo Congresso e governo federal) quanto
internacional (como o embargo aplicado pelo estado de Massachusetts em 1996
à Burma e que motivou a criação de um painel na OMC pela União Europeia e
Japão).
Tal comportamento é reflexo do próprio federalismo nos Estados Unidos que,
desde sua fundação, é caracterizado por uma relação ora dual, ora cooperativa
entre as unidades federativas. Trata-se de tensões que refletem a natureza do
federalismo norte-americano marcado por iniciativas autonomistas dos estados
federados diante de um governo federal centralizado (PRADO, 2013). Esse tipo
de comportamento é específico do federalismo norte-americano. Segundo autores
como Fry (1998) e Denning e McCall (2000), essa característica institucional pode
gerar prejuízos para o governo federal. Como destaca Fry,
de tempos em tempos, as posições políticas ou ações adotadas pelos governos
estaduais e municipais claramente têm divergido das prioridades da política
externa de Washington, e essas discrepâncias têm o potencial de prejudicar
tanto a conduta da política externa quanto a reputação internacional dos
Estados Unidos. (FRY, 1998, p. 96, tradução nossa)
24
Entretanto, no Brasil, ainda que algumas ações realizadas pelos governos
estaduais e municipais tenham gerado algum atrito com o governo federal, elas não
podem ser definidas como atividades de política externa. Pelo contrário, a atuação
dos governos subnacionais brasileiros não seguem uma lógica estrategicamente
definida. Elas seguem a dinâmica descrita por Keating (1998) de stop and go, ou
seja, ações sem estratégias definidas e que não perduram no tempo, dependendo
muitas vezes da vontade política do governante para a sua manutenção.
A percepção do Estado brasileiro sobre as atividades internacionais dos entes
federados (estaduais e municipais) foi tema do trabalho de Miklos (2010), que
analisou as tentativas por parte do governo brasileiro de buscar acompanhar e
coordenar esse tipo de envolvimento, evitando possíveis conflitos com os interesses
do governo brasileiro no exterior. Em referência a esse processo, os termos
24 From time to time, policy positions or actions taken by state and local governments clearly have been at variance
with Washington’s foreign policy priorities, and these discrepancies have the potential to damage both the conduct
of foreign policy and international reputation of the United States”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
154 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
diplomacia federativa ou cooperação internacional descentralizada, utilizados
pelo Itamaraty (BOGÉA, 2001; RODRIGUES, 2008), procuram afastar a percepção
de que o envolvimento desses atores ocorre sem o acompanhamento do governo
federal ou que as ações concorrem com a política externa nacional.
Os esforços e estímulos da Subchefia de Assuntos Federativos (SAF) em
promover as ações de cooperação Sul-Sul descentralizada no país é uma resposta
a esses esforços para minimizar possíveis tensões com a atividade subnacional.
O documento com as diretrizes do programa esclarece que seu objetivo é
aproveitar o potencial estratégico da Federação Brasileira no fortalecimento dos
governos subnacionais, apoiando a articulação de suas ações internacionais
com a Política Externa do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, tornando-a
mais acessível ao conjunto da Federação. (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
SUBCHEFIA DE ASSUNTOS FEDERATIVOS, 2012, p. 2)
As ações são coordenadas pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), que
se responsabiliza pela avaliação dos projetos e liberação do valor do financiamento
(duzentos mil dólares americanos).
Mesmo a designação dessas atividades como cooperação descentralizada tem
recebido críticas dos próprios governos subnacionais envolvidos. Em princípio,
tais ações não poderiam ser definidas como paradiplomacia, uma vez que a
cooperação Sul-Sul descentralizada representa claramente uma política de governo.
Contudo, na I Reunião da Cooperação Descentralizada do Brasil, em julho de 2012,
a utilização do termo foi criticada “por este associar-se a uma visão/experiência
eurocêntrica que supostamente exclui – ao menos semanticamente – a participação
do nível nacional do processo”. Naquela oportunidade, foi proposta a utilização
do conceito cooperação multinível, entendendo que esse seria “mais inclusivo e
coerente com a experiência brasileira até então desenvolvida, apontando, inclusive
para a importância do alinhamento de interesses entre os diversos níveis de
governo nas relações com contrapartes na relação internacional” (PRESIDÊNCIA
DA REPÚBLICA, SUBCHEFIA DE ASSUNTOS FEDERATIVOS, 2012, p. 5 apud
APRIGIO, 2015, p. 110). Apesar do termo alternativo, as reuniões subsequentes
mantiveram o termo cooperação descentralizada para se referir às atividades de
cooperação pelos governos subnacionais.
Podemos identificar aproximações teóricas no Brasil com o conceito de
diplomacia multicamadas, proposto por Hocking (1993), no trabalho de Yahn
Filho (2011) quando esse incorpora o marco teórico da governança multinível
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
155Débora Figueiredo Mendonça do Prado
para compreender as ações internacionais realizadas pela Região Metropolitana
de Campinas (RMC). O autor analisa as várias formas de articulação entre os
municípios, estados e a União, incluindo atores não governamentais, nas ações
internacionais, buscando compreender a relação entre tais atividades e os interesses
da política externa nacional. O autor argumenta que a RMC, tanto a legislação
que a instituiu quanto seus órgãos, representam uma governança multinível
estabelecida por meio de uma gestão compartilhada, vertical e horizontal (YAHN
FILHO, 2011). Esse mecanismo seria responsável pela inclusão de outros atores no
cenário internacional, contribuindo para a construção de vantagens competitivas
regionais.
3. Uma nova agenda em um campo em formação
O objetivo deste artigo foi analisar os esforços conceituais para a definição
do envolvimento internacional de governos subnacionais no exterior e no Brasil.
O termo “paradiplomacia” tem sido o mais recorrente na literatura. Como
vimos, certas atividades não se encaixam no que se configuraria por ações
paradiplomáticas por gerarem constrangimentos – em alguns casos, tensões – junto
ao governo federal. Esse tipo de atividade não pode ser definida pelas categorias
estabelecidas até o momento, por não representarem ações complementares
ao Estado nacional ou corresponderem a iniciativas separatistas definidas pela
literatura como protodiplomáticas.
A identificação e problematização dessas limitações conceituais nos permite
compreender melhor determinadas ações dos governos subnacionais tanto no
Brasil quanto no exterior. Outros termos foram cunhados, no exterior e também
no Brasil, para definir a atividade internacional de governos federados. Entretanto,
as propostas apresentadas também não consideram as tensões que alguns
engajamentos internacionais de governos subnacionais podem gerar. Trata-se
de casos que se encontram numa zona “nebulosa”, pois não se encaixam nas
tipologias clássicas desse campo de estudo, marcadas por movimentos antagônicos
de cooperação ou separação junto aos Estados nacionais.
Mesmo com as limitações apresentadas, o termo da paradiplomacia permanece
como a principal referência. Apesar das alternativas propostas, o conceito é
amplamente utilizado pela literatura no Brasil (LESSA, 2002; NUNES, 2005;
VIGEVANI, 2007; SALOMÓN; NUNES, 2007; MIKLOS, 2010; FILHO; VAZ, 2008;
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
156 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
MILANI; RIBEIRO, 2011) e no exterior (ALDECOA; KEATING 1999; PAQUIN;
LACHAPELLE, 2005; LECOURS, 2002). A utilização mais “consensual” do termo
paradiplomacia para designar as ações no país parece se justificar porque, apesar de
casos específicos discutidos anteriormente, as ações ocorrem apenas parcialmente
desvinculadas das ações do governo central.
Ao problematizar a utilização desse conceito, Kuznetsov (2015) destaca que,
apesar das deficiências levantadas pelos autores e das propostas alternativas a
ele, o conceito permanece como referência:
O termo ‘paradiplomacia’ não é ideal e tem pontos vulneráveis que foram
mencionados repetidamente por diferentes pesquisadores. Há também o
problema da ambiguidade, mas a ‘paradiplomacia’ já se tornou a categoria
estável no discurso das ciências sociais contemporâneas e está associada à
maior parte dos pesquisadores que trabalham com a questão do envolvimento
internacional dos governos regionais. (KUZNETSOV, 2015, p. 30, tradução
nossa)
25
Parte da literatura identifica, também, dificuldades para a fundação de uma
perspectiva teórica mais abrangente para esses processos (CORNAGO, 2010;
LECOURS, 2002; BURSENS; DEFORCHE, 2008; BLATTER et al., 2008; KUZNETSOV,
2015). Uma das explicações para isso está na própria metodologia empregada
por boa parte dos trabalhos realizados nesse campo de estudo, majoritariamente
descritivos. Ao analisar o estudo das atividades na Europa, por exemplo, Blatter
et al. (2008) argumentam que a maior parte da literatura consiste na apresentação
de estudos de caso que “either have no theoretical framework or use quite different
ones, making it very difficult systematically to derive general conclusions” (BLATTER
et al., 2008, p. 496 apud BURSENS; DEFORCHE, 2008, p. 11).
Bursens e Deforche (2008) reforçam o entendimento dos autores e sugerem a
combinação de capacidades descritivas com a realização de estudos comparativos
como modo de avançar no debate teórico sobre tais processos:
Sugerimos que a paradiplomacia segue o mesmo caminho da Governança
Multinível: combinando as capacidades descritivas com uma estrutura
teórica sólida da Política Comparada que permite entender por que as
25 The term ‘paradiplomacy’ is not ideal and it has vulnerable points that were mentioned repeatedly by different
researchers. There is also the problem of ambiguity, but ‘paradiplomacy’ has already become the stable category
in contemporary social science discourse that is associated for the greater part of researchers with the issue of
international involvement of regional governments”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
157Débora Figueiredo Mendonça do Prado
regiões adquirem competências em política externa e por que determinadas
regiões desenvolvem atividades particulares de política externa. (BURSENS;
DEFORCHE, 2008, p. 15, tradução nossa)
26
As críticas envolvendo uma ausência de esforços para a construção de um
marco teórico mais amplo foram pontuadas também por Lecours (2002), quando
esse afirmou que o estudo sobre a atuação internacional de governos subnacionais
carecia de uma perspectiva teórica geral, além de possuir uma falta de foco na
construção de estruturas analíticas gerais para orientar o estudo da paradiplomacia.
Contudo, essa interpretação possui problemas, inclusive, metodológicos.
Primeiro porque o desenvolvimento de trabalhos descritivos e estudos de caso
contribuem para a construção de um arcabouço teórico bem estruturado. Ou seja,
o caminho inicial para o desenvolvimento de uma perspectiva teórica sobre a
atuação de governos subnacionais é a observação e análise de casos específicos
que evidenciam esse processo e possibilitam a generalização das motivações e
mecanismos utilizados por esses atores.
Wang e Buzan (2014) trazem uma contribuição importante para esse debate
em artigo sobre o desenvolvimento da escola inglesa e chinesa nas teorias de
relações internacionais. No texto, os autores reforçam o entendimento segundo
o qual a construção de conceitos de relações internacionais deriva da observação
concreta da prática histórica: “Conceitos de RI, como o equilíbrio de poder, o
gerenciamento de poder e, de fato, a própria sociedade internacional, derivam tanto,
ou mais, da observação empírica da prática histórica quanto da teoria política”
(WANG; BUZAN, 2014, p. 32, tradução nossa)
27
. Sendo assim, a dificuldade para
a construção de um arcabouço teórico mais amplo para o estudo da atuação
internacional dos governos subnacionais não seria decorrente da realização de
trabalhos mais descritivos que utilizam estudos de caso como escolha metodológica.
Os autores acertam ao apontar dificuldades para a construção de um marco
teórico mais amplo para esses estudos, mas erram na identificação das causas.
O problema enfrentando não deriva dessa questão.
A literatura busca adequar o estudo da atuação de governos subnacionais
a abordagens teóricas que muitas vezes marginalizam a temática ou o papel
26 We suggest that paradiplomacy takes the same route as Multilevel Governance: combining the descriptive capacities
with a sound theoretical framework from Comparative Politics that allows for understanding why regions acquire
foreign policy competencies and why particular regions develop particular foreign policy activities
27 IR concepts such as the balance of power, great power management and indeed international society itself,
derive as much, or more, from empirical observation of historical practice as they do from political theory”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
158 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
exercido pelos governos subnacionais no campo das relações internacionais.
A esse respeito, Cornago (2010) destaca que “a literatura sobre diplomacia
sub-estatal nunca atraiu a atenção dominante nos estudos diplomáticos, nem no
campo das relações internacionais, mas tornou-se assunto de debate acadêmico”
(CORNAGO, 2010, p. 12, tradução nossa)
28
.
Relegar esse tipo de atividade a um plano secundário, sem uma análise mais
cuidadosa dessas atividades que fogem ao padrão, é um equívoco, porque não
permite uma compreensão mais ampla dos impactos que tais ações podem gerar
no relacionamento com os Estados nacionais, ao colocar em xeque a percepção
de que as atividades subnacionais no país são instrumentos de fortalecimento da
diplomacia tradicional. É provel que a desconsideração desse tipo de atividade
esteja relacionada à rejeição das correntes teóricas mainstream no campo da ciência
política e das relações internacionais, ao reconhecer os governos subnacionais
como atores internacionais, argumentando que a prerrogativa e a exclusividade
para a atuação no exterior são dos governos nacionais.
Seria necessário dar um passo adiante ao colocar em evidência o papel
exercido pelos governos subnacionais na política internacional. O avanço na
construção de um arcabouço teórico mais amplo passa pela necessidade de
romper com a afirmação de que a atuação internacional é uma prerrogativa
exclusiva dos Estados nacionais, mostrando que as unidades subnacionais têm
atuado internacionalmente e que, em muitos casos, as consequências dessas
atividades e seus impactos colocam em xeque a interpretação de Estado unitário,
mostrando uma dinâmica bem mais fragmentada das relações internacionais. O
caso norte-americano evidencia essas contradições, mas não é o único, pois, como
se procurou demonstrar aqui, determinadas ações realizadas no Brasil também
fogem da definição corrente utilizada pela literatura especializada no tema.
Referências
ABDALA, Fábio de Andrade. Governança global sobre florestas: o caso do Programa Piloto
para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7) – 1992-2006. 2007. 250 f. Tese
(Doutorado em Relações Internacionais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
28 Literature on sub-state diplomacy has never attracted mainstream attention in diplomatic studies, nor in the
field of international relations, but it has become the subject of scholarly debate. Initially, the most influential
works were more descriptive than explanatory in content
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
159Débora Figueiredo Mendonça do Prado
AGUIRRE Iñaki. Making Sense of Paradiplomacy: An intertextual enquiry about a concept in
search of a definition. Regional and Federal Studies, v. 9, n. 1, 1999, p.185-209. Disponível
em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13597569908421078>. Acesso
em 03 de março de 2018.
ALDECOA, Francisco; KEATING, Michael (org). Paradiplomacy in action: the foreign
relations of subnational governments. Portland, Frank Cass Publications, 1999.
ALMEIDA, Felipe Cordeiro de. Os governos locais brasileiros e o Mercosul: a influência da
paradiplomacia na agenda de integração regional. 2012. 162 f. Dissertação (Mestrado
em Relações Internacionais) – Universidade de Brasília, Brasília.
ALMEIDA, Jordenia Adelaide de. Atores Subnacionais e suas agendas nas Relações
Internacionais: A captação de recurso externo através do Projeto Capibaribe Melhor
e a gestão internacional da cidade do Recife. 2013. 196 f. Dissertação (Mestrado em
Relações Internacionais) – Universidade Estadual da Paraíba, João Pessoa.
ALVES, Barbara Beatriz Maia Pinto. Avaliação comparativa da cooperação internacional
descentralizada e centralizada: o projeto de polícia comunitária – sistema KOBAN no
município de São Paulo. 2013. 93 f. Mestrado (Mestrado em Relações Internacionais)-
Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
AMES, Barry. Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
ANDRADE, Marina Morais de. Liberalização econômica e internacionalização de cidades:
O caso de São Paulo (1989-2009). 2015.158 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Humanas e Sociais) – Universidade Federal do ABC, Santo André.
APRIGIO, André Edson Ribeiro de Souza. A paradiplomacia e a atuação internacional de
governos sub nacionais. 2015. 150 f. Mestrado (Mestrado em Relações Internacionais)-
Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública, Universidade do
Minho, Braga, 2015.
ARAÚJO, Izabela Viana de. A Influência Partidária no nível municipal: paradiplomacia na
cidade de São Paulo. 2012. 100 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais)
– Universidade de São Paulo, São Paulo.
BANDEIRA, Luiz Alberto de V. Moniz. Brizola e o trabalhismo. Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1979.
BARRETO, Maria Inês. Gestão estratégica do poder executivo do estado de São Paulo
frente ao processo de integração regional do Mercosul. 2001. 161f. Tese (Doutorado
em Administração) – Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.
BATISTA, Sinoel. A paradiplomacia e seus atores nas políticas públicas locais na América
Latina. Experiências de São Paulo e Montevidéu. 2010. 161 f. Dissertação (Mestrado
em Integração da América Latina) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
BEMFICA, Flávia Cristina Maggi. Governo Leonel Brizola no Rio Grande do Sul:
desconstruindo mitos. Dissertação (Mestrado em História). 2007. 140f. Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
160 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
BESEN, Daphne Costa. A estratégia municipal de internacionalização da cidade do Rio de
Janeiro de 2009 a 2016: Rio, uma cidade global?. 2016. 106 f. Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
BLATTER, J., M. Kreutzer, M. Rentl, and J. Thiele. The Foreign Relations of the European
Regions: Competences and Strategies. West European Politics, v. 31, n. 3, 2008,
p. 464-490. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/
01402380801939743>. Acesso em 05 Mar.2018.
BOGÉA, Antenor. A diplomacia federativa: do papel internacional e das atividades externas
das unidades federativas nos Estados Nacionais. Tese (Trabalho final em Diplomacia,
XLII Curso de Altos Estudos) – Instituto Rio Branco, Brasília, 2001.
BRIGAO, Clóvis. Relações internacionais federativas no Brasil: estados e municípios.
Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2005.
BURSENS, P.; DEFORCHE, J. Europeanization of subnational polities: the impact of
domestic factors on regional adaptation to European integration. Regional & Federal
Studies, v.18, n.1, 2008, p.: 1–18. Disponível em <http://steunpuntbov.be/rapport/
s2A0906004_deforche_2008_paradiplomacy.pdf>. Acesso 1 set. 2018.
CALIFORNIA. Senate Bill n. 54, de 10 de maio de 2017. SB-54 Law enforcement: sharing
data.. An act to amend Sections 7282 and 7282.5 of, and to add Chapter 17.25
(commencing with Section 7284) to Division 7 of Title 1 of, the Government Code, and
to repeal Section 11369 of the Health and Safety Code, relating to law enforcement.
California Legislative, p. 1-11, maio. 2017.
CNN. California results. CNN Politics, California, 09 nov. 2016. Disponível em: <https://
edition.cnn.com/election/2016/results/states/california>. Acesso em: 20 dez. 2018.
CORNAGO, Noé. On the Normalization of Sub-State Diplomacy. The Hague Journal of
Diplomacy, v. 5, n.1-2, 2010, p.11-36. Disponível em <https://brill.com/abstract/
journals/hjd/5/1-2/hjd.5.issue-1-2.xml>. Acesso em: 11 set. 2017.
DENNING, Brannon; MCCALL, Jack H. States’ rights and foreign policy: some things
should be left to Washington. Foreign Affairs, v. 79, n.1, 2000, p. 9-14. Disponível
em: <https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2000-01-01/states-
rights-and-foreign-policy-some-things-should-be-left>. Acesso: 20 jul 2018.
DICKSON, Francesca. The internationalisation of regions: paradiplomacy or multi-level
governance? Geography Compass, v. 8, n. 10, 2014, p. 689-700.
DUCHACEK, Ivo. Perforated Sovereignties: Towards a typology of new actors in
international relations. In: MICHELMANN, Hans J.; SOLDATOS, Panayotis (org).
Federalism and International Relations: the role of subnation units. New York: Oxford
University Press, 1990, p.1-34.
____. The International Dimension of Subnational Self-Government. Publius, v. 14, n. 4,
1984, p. 5-31. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/3330188?seq=1#page_
scan_tab_contents>. Acesso: 03 Mar. 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
161Débora Figueiredo Mendonça do Prado
____. The Territorial Dimension of Politics Within, Among and Across Nations. Boulder:
Westview Press, 1986.
____. Multicommunal and Bicommunal Polities and Their International Relations. In:
DUCHACEK, Ivo; LATOUCHE, D.; STEVENSON, G. (eds) Perforated Sovereignties
and International Relations: Trans-Sovereign Contacts of Subnational Goverments.
Westport: Greenwood Press, 1988, Capítulo 1, p. 1-33.
EATMON Thomas D. Paradiplomacy and Climate Change: American States as Actors in
Global Climate Change. Journal of Natural Resources Policy Research, v. 1, n. 2,
2009, p.153-165. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080
/19390450902789275?journalCode=rjnr20>. Acesso: 11 nov. 2017.
FARIAS, Déborah Barros Leal. Federalismo e Relações Internacionais. 2000. 108f. Dissertação
(Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade de Brasília, Brasília.
FARIAS, Valeria Cristina. Regime Internacional de Mudanças Climáticas: ações climáticas
e paradiplomacia ambiental do Estado de São Paulo. 2015. 230 f. Tese (Doutorado
em Direito) – Universidade Católica de Santos, São Paulo.
FERREIRA, Bruno Guedes. Atores públicos subnacionais e política externa brasileira:
A paradiplomacia no Rio Grande do Sul (2007-2014). 2015. 164 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre.
FRY, Earl H. The expanding role of state and local government in US Foreign affairs. New
York: Council on Foreign Relation Press, 1998.
____. Federalism and US Foreign Relations: Understanding State Actions, In: BLINDENBACHER,
Raoul; PASMA, Chandra (Eds). A global dialogue on federalism. Dialogues on Foreign
Relations in Federal Countries. Forum of Federations, International Association of
centers for federal studies, 2007, pp. 42-45.
GATTO, Luis Henrique Soares. Mato Grosso e suas ações no cenário internacional
(1995-2010). 2012. 239f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo.
GOMES FILHO, Francisco. A paradiplomacia subnacional no Brasil: uma análise da
política de atuação internacional dos governos estaduais fronteiriços da Amazônia.
2011. 276f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais e Desenvolvimento Regional)
– Universidade de Brasília, Brasília.
GOMES FILHO, Francisco; VAZ, Alcides Costa. A paradiplomacia no contexto da Amazônia
brasileira: estratégias de desenvolvimento regional do estado de Roraima. Ciência &
Desenvolvimento, v. 4, n. 7, p. 155-165, jul./dez. 2008.
GUAY, Terrence. Local Government and Global Politics: the implications of Massachusetts’
Burma Law. Political Science Quarterly, v. 115, n. 3, 2000, p. 353-376. Disponível
em: <https://www.jstor.org/stable/2658123?seq=1#page_scan_tab_contents>.
Acesso: 14 jun. 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
162 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
HENRIQUES FILHO, Luiz Sérgio Moreira. A inserção internacional subnacional: perspectivas
e a necessidade de regulamentação do caso brasileiro. 2016. 143f. Dissertação (Mestrado
em Sociologia Política) – Universidade de Vila Velha, Vila Velha.
HOCKING, Brian. Localizing foreign policy: non central governments and multilayered
diplomacy. Londres: Macmillan/St. Martins Press, 1993.
HOLLEY, Andrea Ralston. Subnational partnerships for sustainable development:
transatlantic cooperation between the United States and Germany. Northampton:
Edward Elgar, Cheltenham, 2013.
JUNQUEIRA, Cairo Gabriel Borges. A inserção internacional dos atores subnacionais e
os processos de integração regional: uma análise da União Europeia e do Mercosul.
2014. 269 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade de
Brasília, BRASÍLIA.
KAISER, Robert. Sub-state governments in international arenas: paradiplomacy and
multi-level governance in Europe and North America. In: JAMES, Patrick; MICHAUD,
Nelson; O’REILLY, Marc J. (eds). Handbook of Canadian Foreign Policy. London:
Lexington Books, 2005.
KEATING, Michael. The new regionalism in western Europe: territorial restructuring and
political change. Aldershit: Edward Elgar Publishing, 1998.
____. Regiones y assuntos internacionales: motivos, oportunidades y estratégias. In:
VIGEVANI, Tullo; WANDERLEY, Luiz Eduardo; BARRETO, Maria Inês; MARIANO,
Marcelo Passini (orgs). A dimensão subnacional e as Relações internacionais. São
Paulo: Editora Unes, 2004, p. 49-78.
KINCAID, John. Constituent diplomacy in federal politics and the Nation-state: conflict
and cooperation. In: MICHELMANN, Hans J; SOLDATOS, Panayotis. Federalism and
international relations: the role of Subnational Units. Nova York, Oxford University
Press, 1990.
____. (1999). The international competence of U.S. states and their local governments.
In: ALDECOA, Francisco; KEATING, Michael (eds). Paradiplomacy in action: the
foreign relations of subnational governments. Frank Class: London, 1999, p.111-133.
____. The American Governors in international affairs. Publius, v. 14, n. 4 p. 95-114,
1984. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/3330192?seq=1#page_scan_
tab_contents>. Acesso: 03 fev. 2018.
KÖLLING, M.; STAVRIDIS, S.; SOLA, Fernandez N. (eds). Las relaciones internacionales
de las regiones: actores sub-nacionales, para-diplomacia y gobernanza multinivel.
Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2007.
KUZNETSOV, Alexander S. Theory and Practice of paradiplomacy: subnational government
in international affairs. New York: Routledge, 2015.
LACHAPELLE, Guy; PAQUIN, Stéphane. Mastering Globalization: New sub-state’s
governance and strategies. London: Routledge, 2005.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
163Débora Figueiredo Mendonça do Prado
LECOURS A. Paradiplomacy: Reflections on the Foreign Policy and International Relations
of Regions. International negotiations, v. 7, n. 1, p. 91-114, 2002. Disponível em:
<https://brill.com/abstract/journals/iner/7/1/article-p91_8.xml?crawler=true>.
Acesso: 15 fev. 2018.
LESSA, José Vicente da Silva. A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos
internacionais celebrados por governos não-centrais. 2002.Tese (Trabalho final em
Diplomacia, XLIV Curso de Altos Estudos) – Instituto Rio Branco, Brasília.
LUZIA, Vitor Rinaldi de. Os municípios brasileiros no processo de integração do Mercosul.
2016. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São Paulo, Ribeirão
Preto.
MAGONE, José M. Para-diplomacy revisited: the structure of opportunities of global
governance and regional actors. In: International Conference on the International
Relations of the Regions: Sub-National Actors, Para-Diplomacy and Multi-level
Governance, 2006, Zaragoza. Disponível em: <http://paradiplomacia.org/upload/
downloads/66fc7ecc666b857d415ee890307ab79cjosemagonefinal.pdf>. Acesso em:
03 mar. 2018.
MAIA, José Nelson Bessa. Paradiplomacia financeira dos estados brasileiros: evolução,
fatores determinantes, impactos e perspectivas. 2012. 599 f. Tese (Doutorado em
Relações Internacionais) – Universidade de Brasília, Brasília.
MARCOVITCH, Jacques; DALLARI, Pedro B.A. (orgs). Relações Internacionais de âmbito
subnacional: A experiência de estados e municípios no Brasil. São Paulo: Instituto
de Relações Internacionais-Universidade de São Paulo, 2014.128p.
MARIANO, Karina L. Pasquariello; MARIANO, Marcelo Passini. Governos subnacionais e
integração regional: considerações teóricas. In: VIGEVANI, Tullo; WANDERLEY, Luiz
Eduardo. Governos subnacionais e sociedade civil: integração regional e Mercosul.
São Paulo:Editora Unesp, 2005.
MARKS, Gary; HOOGHE, Liesbet. Unraveling the central state, but how? Types of multi-
level governance. The American Political Science Review, v. 97, n. 2, 2003, p. 233-
243. Disponível em: <http://garymarks.web.unc.edu/files/2016/09/hooghe.marks_.
unravelingcentralstate.apsr_.2003.pdf>. Acesso: 12 dez. 2018.
MARTINS, José Ricardo. Institucionalização da inserção paradiplomática de interesses
regionais e locais sob a perspectiva da sociologia das relações internacionais: caso
do Paraná e Santa Catarina e respectivas capitais. 2017. 267 f. Tese (Doutorado em
Sociologia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
MCMILLAN, Samuel Lucas. Subnational Foreign Policy Actors: how and why governors
participate in U.S. Foreign Policy. Foreign Policy Analysis, International Studies
Association, V. 4, n.3, 2008,p.227-253. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.
com/doi/abs/10.1111/j.1743-8594.2008.00068.x.> Último acesso: 11 dez. 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
164 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
MEDEIROS, Marcelo de Almeida; SARAIVA, Miriam Gomes. Os atores subnacionais
no Mercosul: o caso das Papeleras. Lua Nova. 2009, n. 78, pp. 77-108, 2009.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64452009000300007>. Acesso: 11 dez. 2018.
MEIRINHO, André Furlan. Santa Catarina e os Megaeventos Esportivos: Um Estudo a Partir
da Paradiplomacia. 2015. 174 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Planejamento
territorial e desenvolvimento socioambiental) – Universidade do Estado de Santa
Catarina, Florianópolis.
MELO, Leonardo Mercher Coutinho Olimpio de. Paradiplomacia cultural nas Organizações
Internacionais: Buenos Aires e Rio de Janeiro na CGLU e Mercocidades. 2013. 145 f.
Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
____. Paradiplomacia do Rio de Janeiro: variáveis explicativas à Política Externa de uma
cidade. 2016. 304 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal
do Paraná, Curitiba.
MENDES, Marcos Vinicius Isaias. A Competitividade internacional das cidades olímpicas:
O caso do Rio de Janeiro. 2017. 175 f. Dissertação (Mestrado em Administração)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
MENDES, Marcos Vinícius Isaias; FIGUEIRA, Ariane Roder. Paradiplomacy and the
International Competitiveness of Cities: the case of Rio de Janeiro. Revista Brasileira de
Política Internacional, v. 60, n. 1, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0034-73292017000100212&script=sci_arttext>. Acesso 15. Ago. 2018.
MENEGHETTI NETO, Alfredo. Rede de Cidades: o caso da Rede Mercocidades. 2005. 286f.
Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre.
MIKLOS, Manoela Salem. A inserção internacional de unidades subnacionais percebida
pelo Estado nacional: a experiência brasileira. 2010. 150f. Dissertação (Mestrado
em Relações Internacionais – UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Universidade Estadual
Paulista, São Paulo.
MILANI, Carlos R. S.; RIBEIRO, Maria Clotilde Meirelles. International Relations and
the Paradiplomacy of Brazilian Cities: crafting the concept of Local International
Management. Brazilian Administration Review, Curitiba, v. 8, n. 1, 2011.
MILMAN, Oliver. California lawmakers extend program to cut emissions in bipartisan vote.
The Guardian, 18 de julho de 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.com/
us-news/2017/jul/18/california-extend-carbon-emissions-climate-change-program>.
Acesso 20 Jan. 2018.
MORAIS, Maria Cezilene Araújo De. Paradiplomacia no Brasil: uma abordagem sobre a
inserção internacional de municípios paraibanos a partir do Programa Plano Diretor.
2011. 126 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade
Estadual da Paraíba, Campina Grande.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
165Débora Figueiredo Mendonça do Prado
NASCIMENTO, Rainne Feitoza do. O Projeto Mato Grosso do Sul sem Fronteiras e a
Paradiplomacia Transfronteiriça entre Brasil, Bolívia e Paraguai. 2016. 80f. Dissertação
(Mestrado Profissional em Estudos Fronteiriços) – Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, Corumbá.
NEVES, Leonardo Paz (org.). A inserção internacional do Rio de Janeiro. Centro Brasileiro
de Relações Internacionais (CEBRI), v. 3, ano 8, 2013. Disponível em: http://midias.
cebri.org/arquivo/InsercaoInternacionalRio.pdf. Acesso 03 maio 2018.
NOSSAL, Kim Richard, ROUSSEL, Stéphane; PAQUIN, Stéphane. The Politics of Canadian
Foreign Policy, 4ºed. McGill-Queen’s University Press, 2015.
NUNES, Carmem Juçara da Silva. A paradiplomacia no Brasil: o caso do Rio Grande do
Sul. 2005. 162f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) –Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
OLIVEIRA, Rodrigo Freitas de. Atores Subnacionais: a inserção internacional de
Uberlândia-Mg, o maior polo atacadista distribuidor aa América Latina. 2017. 122 f.
Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia.
PAQUIN, S., and G. LACHAPELLE. Why do substates and regions practice international
relations?. In: LACHAPELLE, Guy. PAQUIN, Stéphane. (eds). Mastering Globalization:
New sub states’ governance and strategies. London: Routledge, 2005, p. 77-89.
PEREIRA, Chyara Sales. A redefinição do papel do Estado e a emergência das unidades
subnacionais: a paradiplomacia de Minas Gerais. III Congresso Consad de Gestão
Pública, 2010. Disponível em: <http://banco.consad.org.br/bitstream/123456789/
103/1/C3_TP_A%20REDEFINI%C3%87%C3%83O%20DO%20PAPEL%20DO%20
ESTADO%20E%20A%20EMERG%C3%8ANCIA%20DAS%20UNIDADES.pdf>.
Acesso: 03 mai. 2018.
____. O processo de internacionalização de Minas Gerais: possibilidades e desafios. In:
MARCOVITCH, Jacques; DALLARI, Pedro B.A. (orgs). Relações Internacionais de
âmbito subnacional: A experiência de estados e municípios no Brasil. São Paulo:
Instituto de Relações Internacionais-Universidade de São Paulo, 2014, p. 40-48.
PERPETUO, Rodrigo de Oliveira. A cidade além da nação: a institucionalização do
processo de internacionalização de Belo Horizonte. 2010. 147f. Dissertação (Mestrado
em Relações Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte.
PRADO, Débora Figueiredo Barros do. A Atuação internacional dos governos locais via
Rede: o caso da Mercocidades e do Programa URB-AL Rede 10. 2009. 241f. Dissertação
(Mestrado em Relações Internacionais – UNESP, UNICAMP, PUC-SP) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
166 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
____. Federalismo e Política Internacional: os conflitos entre a União e os governos estaduais
nos Estados Unidos. 2013. 322f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas.
PRADO, Henrique Sartori de Almeida. A paradiplomacia no processo de integração
regional – o caso do Mercosul. In: 3º Encontro Nacional da ABRI, 2011, São Paulo.
Anais eletrônicos. Disponível em: <http://www.abri.org.br/anais/3_Encontro_
Nacional_ABRI/Integracao_Regional/IR%209_Henrique%20Sartori%20A%20
PARADIPLOMACIA%20NO%20PROCESSO%20DE%20INTEGRA+%E7+%E2O.
pdf>. Acesso: 12 dez. 2018.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, SUBCHEFIA DE ASSUNTOS FEDERATIVOS. Diretrizes
do Programa de Cooperação Técnica Descentralizada Sul-Sul. Brasília: Programa
de Cooperação Técnica Descentralizada Sul-Sul, 2012. 1-7 p. Disponível em:
<http://www4.planalto.gov.br/saf-projetos/programa-sul-sul-retificado.pdf>.
Acesso em: 20 dez. 2018.
PUBLIC POLICY INSTITUTE OF CALIFORNIA. Immigrants in California, 2018. Disponível
em: <https://www.ppic.org/publication/immigrants-in-california/>. Acesso: 25
Ago. 2018.
REIS, Solange. (2017). Saída do acordo de Paris reduz liderança dos Estados Unidos.
Observatório Político dos Estados Unidos. OPEU, 27 jun. 2017. Disponível em:
<http://www.opeu.org.br/2017/06/27/saida-acordo-de-paris-reduz-lideranca-
dos-eua/>. Acesso: 14 abr. 2018.
RIBEIRO, Maria Clotilde Meirelles. Globalização e novos atores: a paradiplomacia das
cidades brasileiras. EDUFBA: Salvador, 2009.
RODRIGUES, Gilberto Marcos. Antônio. Política externa federativa: análise de ações
internacionais de Estados e Municípios Brasileiros. 2004. 257f. Tese (Doutorado em
Ciências Políticas) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
____. Relações internacionais federativas no Brasil. Dados, v. 51, n. 4, 2008, p. 1015-1034.
SADECK, Bruno; FROIO, Liliana Ramalho; MEDEIROS, Marcelo de Almeida. Os governos
subnacionais e o Mercosul: um balanço dos 10 anos de funcionamento do FCCR.
Revista de Estudos Internacionais, v. 9, n. 2, 2017, p. 139-151.
SALLES, Fernanda Cimini; VIEIRA, Silvia Guiomar. La Capacidad de poder de los gobiernos
locales en el campo del desarrollo: un análisis de la posición de Minas a partir de
2003. Apuntes, v. 41, n. 74, p. 169-195, 2014.
SALOMÓN, Mónica; NUNES, Carmen. A ação externa dos governos subnacionais no
Brasil: os casos do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre. Um estudo comparativo de
dois tipos de atores mistos. Contexto Internacional, v. 29, n. 1, 2007, p. 99-147.
SANDOVAL, P.X. Califórnia, epicentro da resistência contra Trump. El País, Los Angeles,
16 jan. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/14/
internacional/1515956980_382543.html>. Acesso 20 jan. 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
167Débora Figueiredo Mendonça do Prado
SANTOS, Balbina Líbia de Souza. Desenvolvimento da Internacionalização da Universidade
Federal de Roraima (2009-2015). 2017. 147f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento
Regional da Amazônia) – Universidade Federal de Roraima, Boa Vista.
SARAIVA, José Flavio Sombra. A busca de um novo paradigma: política exterior, comércio
externo e federalismo no Brasil. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 47,
vol 2, p. 131-162, 2004.
SCHIAVON, Jorge. La diplomacia local de los gobiernos estatales en Mexico (2000-2010).
Centro de Investigación y Docencia Económicas – CIDE. México, n. 201, 2010, p. 1-37.
Disponível em: <http://www.libreriacide.com/librospdf/DTEI-201.pdf>. Acesso:
10 set. 2018.
SEGURA, Caterina García. Sub-State Diplomacy: Catalonia’s External Action the Quest
for State Sovereignty. International Negotiation, v. 22, n. 22, 2017, p. 344-373.
SILVA, Marco Antônio Medeiros. A última revolução: o governo Leonel Brizola no Rio
Grande do Sul, 1959-1963. 2015. 209f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
SILVA, Mariana Melo de Barros e. O processo de integração do Mercosul – A Federalização
da Política Externa através da atribuição de competência Internacional dos governos
subnacionais municipais: Os casos das prefeituras de Santo André (SP) e Ipojuca
(PE). 2006. 111 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade Federal
de Pernambuco, Recife.
SIQUEIRA, João Ricardo Pessoa Xavier. A paradiplomacia como instrumento viabilizador
do desenvolvimento local: estudo de caso a partir da atuação internacional do estado
de Pernambuco e da cidade do Recife. 2012. 127f. Dissertação (Mestrado em Relações
Internacionais) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande.
SOLDATOS, Panayotis. An Explanatory Framework for the Study of Federated States
as Foreign-policy Actors. In: MICHELMANN, Hans J.; SOLDATOS, Panayotis (org).
Federalism and International Relations: the role of subnation units. New York: Oxford
University Press, 1990, p. 34-53.
SOUZA, Celina. Federalismo, desenho constitucional e instituições federativas no Brasil
pós-1988. Revista de Sociologia e Política, n. 24, 2005, p. 105-121. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-44782005000100008&script=sci_
abstract&tlng=pt>. Acesso 17 ago 2018.
UNITED NATIONS. Paris Agreement. Paris: United Nations, 2015. 1-27 p. Disponível em:
<https://unfccc.int/sites/default/files/english_paris_agreement.pdf>. Acesso em:
20 dez. 2018.
VICUÑA, Ramón Lohmar Sainz. Catalan Paradiplomacy, Secessionism and State
Sovereignty: The Effects of the 2006 Statute of Autonomy and the Artur Mas Government
on Catalan Paradiplomacy. Tese (Mestrado) – Leiden University, 2015.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 137-168
168 A atuação internacional dos governos subnacionais [...]
VIGEVANI, Tullo. Problemas para a atividade internacional das unidades subnacionais:
estados e municípios brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 62,
p. 127-139, 2006.
____; WANDERLEY, Luiz Eduardo. Governos subnacionais e sociedade civil: integração
regional e Mercosul. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
____; Gestão pública e inserção internacional das cidades [Relatório Científico de Pesquisa,
Vol. 2], São Paulo: CEDEC, PUC-SP, FGV-SP, UNESP, 2007.
VITAL, Graziela Cristina. A Institucionalização das relações externas subnacionais: um
estudo comparado das cidades de São Paulo e Toronto. 2016. 231 f. Tese (Doutorado
em Relações Internacionais) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
WANG, Jiangli; BUZAN, Barry. The English and Chinese Schools of International Relations:
Comparisons and Lessons. The Chinese Journal of International Politics, v. 7, n. 1,
2014, p. 1–46.
YAHN Filho, Armando Gallo. Relações Internacionais e Atores Subnacionais: um estudo
da inserção internacional da região metropolitana de Campinas. 2011. 258f. Tese
(Doutorado em Ciência Política) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
ZEZINA, Katie. California is a nation not a state: a fringe movement wants a break from
the US. Washington Post. São Francisco, 18 fev. 2017. Disponível em: <https://www.
washingtonpost.com/politics/california-is-a-nation-not-a-state-a-fringe-movement-
wants-a-break-from-the-us/2017/02/18/ed85671c-f567-11e6-8d72-263470bf0401_story.
html?utm_term=.5c37ccf5283e>. Acessoem: 12 abr. 2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
169Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento:
uma releitura da Teoria da Modernização
Jeffrey Sachs and the Official Development Assistance:
a rereading of the Modernization Theory
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.824
Henrique Zeferino Menezes
1
Larissa Fernandes Catão
2
Resumo
Desde o pós Segunda Guerra Mundial, a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD)
tornou-se uma constante nos projetos de desenvolvimento do mundo capitalista para a
periferia. Esse instrumento se manteve presente na agenda de desenvolvimento a despeito das
mudanças na economia mundial e das críticas sofridas. Nos anos 2000, a AOD se reafirmou
política e teoricamente, como meio de implementação dos objetivos de desenvolvimento das
Nações Unidas e pela produção acadêmica do economista Jeffrey D. Sachs. Considerando
a importância de Sachs na engrenagem da estrutura internacional da AOD, é fundamental
um olhar mais atento sobre sua produção intelectual. O objetivo desse artigo é uma análise
da perspectiva de Sachs acerca do papel da AOD, apontando para as interseções do seu
argumento com a teoria da modernização e a influência dessa linhagem teórica na concepção
do autor sobre o papel da ajuda externa no desenvolvimento das sociedades presas na
armadilha da pobreza.
Palavras-chave: Jeffrey Sachs; Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; Ajuda Oficial
para o Desenvolvimento; Teoria da Modernização.
Abstract
Since the post World War II, Official Development Assistance (ODA) has become a constant
in the development strategies of developed countries to the periphery. This instrument has
remained on the development agenda despite changes in world economy and the criticisms
1 Doutor em Ciência Política pela Unicamp; Mestre em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (UNESP,
Unicamp, PUC-SP); Bacharel em História pela UFMG e em Relações Internacionais pela PUC-MG. Professor
do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações
Internacionais da UFPB.
2 Mestranda em Ciência Política pela Unicamp; Bacharel em Relações Internacionais pela UFPB.
Artigo submetido em 04/07/2018 e aprovado em 02/10/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
170 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
it has suffered. In the 2000s, ODA was reaffirmed politically and theoretically, as the mean of
implementation of the UN development goals agendas and through Jeffrey D. Sachs’ work.
Considering the importance of Sachs in the workings of the international structure of ODA, a
closer look at its intellectual production is essential. The objective of this article is to analyze
Sachs’ perspective on the role of ODA, pointing to the intersections of his argument with
the Modernization Theory and the influence of this theoretical perspective in the author’s
conception on the role of foreign aid in the development of societies trapped in poverty.
Keywords: Jeffrey Sachs; Sustainable Development Goals; Official Development Assistance;
Modernization Theory
Introdução
Desde o pós Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento, tratado como
objeto de análise particular ou como problema real a ser enfrentando pelos
países, vem adquirindo centralidade nas relações internacionais. O aumento da
desigualdade internacional e os efeitos econômicos e sociais das repetidas crises
financeiras, além das tragédias humanas produzidas pelos conflitos militares, têm
aumentado a preocupação com aspectos sociais e de desenvolvimento na política
internacional. Ao longo de mais de sete décadas, o desenvolvimento internacional
esteve no centro da agenda das principais organizações internacionais, absorvendo
concepções variadas sobre o seu significado e dando sentido concreto a diversas
agendas e práticas internacionais voltadas à superação do subdesenvolvimento
na periferia (HARMAN; WILLIAMS, 2014; KOEHLER, 2015). Durante esse mesmo
período, ajuda internacional, ou Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD)
3
,
se consolidou como o principal instrumento político e econômico utilizado
pelos países desenvolvidos para impulsionar trajetórias de desenvolvimento ou
modernização na periferia. A sua prática tem sido amparada por uma percepção,
ou pelo menos por uma retórica, de que esse instrumento seria efetivo no auxílio
à construção de trajetórias e ciclos autossustentados de desenvolvimento por
parte dos países receptores.
3 De acordo com o Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD) é definida como “a ajuda
de governos com a finalidade de promover o desenvolvimento econômico e o bem-estar dos países receptores.
Ela pode ser bilateral ou fornecida através de agências multilaterais. Essa ajuda pode ser assistência técnica,
doação ou empréstimos em condições mais favoráveis”. Ver essa definição e outras informações relevantes sobre
a temática no site da CAD/OCDE.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
171Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Ao longo da segunda metade do século XX, a AOD foi objeto de importantes
debates, passando por mudanças semânticas e de conteúdo na definição de seu
significado, além de revisões sobre seu efetivo papel, adequando-se às alterações
nas formulações teóricas predominantes sobre desenvolvimento econômico. Da
mesma forma que alterações nos objetivos e estratégias dos países doadores
impactaram os rumos da evolução e da prática da AOD. Contudo, o que se
manteve inalterado, a despeito de um conjunto de leituras e análises críticas à
funcionalidade da AOD, foi a sua centralidade como instrumento político dos
países desenvolvidos (THORBECKE, 2002).
Após uma drástica redução no volume da AOD no imediato pós Guerra Fria,
ela voltou a se reafirmar politicamente no início do século XXI. Uma das principais
razões para a refundação do compromisso político com a ajuda, por parte dos países
membros da OCDE, foi a aprovação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM), no ano de 2000, e do chamado “Consenso de Monterrey”
4
dois anos depois.
Esse processo deve ser lido como a concretização de uma reorganização teórica e
política, iniciada nos anos de 1990, sobre o recorrente problema de como “levar o
desenvolvimento aos países atrasados” e como “auxiliá-los nesse processo”. Uma
das conclusões foi justamente a recolocação da AOD como instrumento central
da agenda de desenvolvimento internacional.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados em 2015
para substituir os ODM como agenda global de desenvolvimento, definem, em
seu objetivo de número 17, o papel dos países e governos, e especificamente dos
países desenvolvidos, na conformação dos meios de implementação dos objetivos
e metas acordadas. As primeiras duas metas desse objetivo específico reafirmam
a ajuda direcionada às economias periféricas como o instrumento fundamental
do processo de desenvolvimento internacional
5
.
4 O Consenso de Monterrey é resultado da conclusão da I Conferência Mundial sobre Financiamento para o
Desenvolvimento, realizada no ano de 2002. Dentre os principais resultados está o reconhecimento da necessidade
de volumes expressivos de recursos externos para o alcance dos ODM nos países periféricos. Em 2015, foi
realizada a III Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento, que formou a base da Agenda de
Ação de Adis Abeba.
5 Objetivo 17 se apresenta como “Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o
desenvolvimento sustentável”. As metas mencionadas estão definidas da seguinte maneira: Meta 17.1 “Fortalecer a
mobilização de recursos internos, inclusive por meio do apoio internacional aos países em desenvolvimento, para
melhorar a capacidade nacional para arrecadação de impostos e outras receitas”; e Meta 17.2“Países desenvolvidos
implementarem plenamente os seus compromissos em matéria de assistência oficial ao desenvolvimento, inclusive
fornecer 0,7% da renda nacional bruta em AOD aos países em desenvolvimento, dos quais 0,15% a 0,20%
para os países menos desenvolvidos; provedores de AOD são encorajados a considerar a definir uma meta para
fornecer pelo menos 0,20% da renda nacional bruta em AOD para os países menos desenvolvidos”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
172 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
Apenas para ilustrar a magnitude desse processo, no ano de 1965, de acordo
com dados obtidos no site da OECD, o fluxo bilateral total de AOD, considerando
os países do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD), foi de aproximadamente
US$ 6,5 bilhões, passando para aproximadamente US$ 28,8 bilhões em 1985
e atingindo US$ 146,6 bilhões no ano de 2017. Apesar de toda a importância
atribuída à ajuda, desde as primeiras políticas e ações mais sistemáticas para o
desenvolvimento no pós-guerra, até a agenda contemporânea dos grandes planos
de desenvolvimento das Nações Unidas, as visões e interpretações acerca da
efetividade desse mecanismo estão longe de serem consensuais. Vários estudos
foram realizados para averiguar e tentar medir os efeitos da ajuda sobre os países
receptores; assim como distintas abordagens teóricas têm sido utilizadas para
sustentar ou analisar esse objeto.
Diferentemente do discurso predominante, especialmente aquele dos próprios
doadores, muitos desses estudos e análises apontam para a ineficácia, ou mesmo
para eventuais malefícios, da ajuda como instrumento para o desenvolvimento
6
.
O que se pode dizer de antemão é que a permanência desse instrumento como
elemento central da agenda internacional para o desenvolvimento, e mesmo o
aumento dos volumes de recursos ofertados, não implica automaticamente a
construção ou definição de trajetórias de desenvolvimento nos países receptores
ou mesmo a melhoria dos indicadores socioeconômicos dos países.
Entretanto, a permanência da AOD na agenda internacional se dá pela
reafirmação teórica que a sustenta como forma de conduzir transformações
concretas e adequadas nas trajetórias de desenvolvimento dos países ou, ao
menos, reduzir as iniquidades mais latentes. Um dos mais influentes nomes que
afirmam essa leitura positiva da ajuda internacional é o economista estadunidense
6 Moyo (2009) e Easterly (2006) baseiam suas críticas em premissas liberais e afirmam que ajuda representaria uma
excessiva interferência nos mecanismos de livre-mercado – fatores que de fato promoveriam o desenvolvimento.
Em seus trabalhos, os autores trazem argumentos de autores importantes da área, como Michael A. Clemens, que
mostra não haver impacto de longo prazo da ajuda no crescimento; Michael Hadjimichaele Richard Reichel que
identificaram uma relação negativa entre poupança e ajuda; Peter Boone, que por sua vez concluiu que ajuda tem
financiado consumo e não investimento; e Peter Bauer, que identifica as falhas ao planejar o desenvolvimento
baseado em ajuda externa. Por outro lado, Erick Reinert (2007) apresenta uma crítica fundamentada na perspectiva
estruturalista, em que a ajuda estaria servindo apenas para uma economia paliativa, aliviando sintomas do
subdesenvolvimento ao passo que permanece como instrumento de controle por parte dos doadores. Amin (1976)
apresenta uma crítica marxista, em que a ajuda seria uma forma de manter o status quo de desigualdade entre
países, ao mesmo tempo em que atuaria para a expansão imperialista dos países doadores. E Riddel (2007),
que realiza um balanço geral do instrumento da ajuda e apresenta também estudos críticos como o do David
Sogge e Stephen Browne , que indicam que interesses geopolíticos e comerciais dos doadores são os principais
determinantes da alocação de ajuda.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
173Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Jeffrey D. Sachs. Sachs é influente não apenas no mundo acadêmico, mas ator
fundamental no processo de organização dos parâmetros políticos para lidar
com o problema do desenvolvimento no seio das Nações Unidas. Assim, sua
obra e as iniciativas políticas das quais participa são essenciais para entender as
fundamentações que baseiam as concepções correntes sobre o papel da AOD nas
agendas de desenvolvimento contemporâneas.
O objetivo desse artigo é apresentar uma análise mais detida sobre a perspectiva
de Sachs acerca das possibilidades de desenvolvimento dos países periféricos e
sobre o papel da ajuda internacional, tendo como referência as interseções do
seu argumento com elementos fundamentais da teoria da modernização e a
influência dessa linhagem teórica na concepção do autor
7
. Partimos da hipótese,
e buscamos confirmar, que a construção argumentativa de Jeffrey Sachs sobre as
possibilidades de trajetória de desenvolvimento da periferia (e sobre a importância
da ajuda) está fundamentada, em grande medida, em elementos centrais da teoria
da modernização. Em especial, nota-se o paralelo com as contribuições de Walt
Whitman Rostow e Paul Rosenstein-Rodan, ambos importantes autores vinculados
originalmente ao Center for International Studies (CIS) do Massachusetts Institute
of Technology (MIT), onde a teoria esteve bastante vinculada à formulação
de uma doutrina de política externa (GILMAN, 2003). Para tanto, optou-se
metodologicamente pela análise detida dos textos centrais de Jeffrey Sachs que
apresentam essa problemática – The End of Poverty: economic possibilities of our
time (2005) e The Age of Sustainable Development (2015) – e sua comparação com
os elementos centrais dos trabalhos seminais de Walt Rostow e Rosenstein-Rodan
sobre o desenvolvimento e o papel da ajuda externa. Ainda, a análise se ampara
no trabalho de importantes comentadores, especialmente os que analisaram a
trajetória da teoria da modernização.
Cremos tratar de uma questão relevante, na medida em que o cerne argumentativo
da teoria da modernização e os projetos e políticas de desenvolvimento nela
amparados não produziram os resultados anunciados, inclusive, criando outras
vulnerabilidades e problemas estruturais nos países periféricos. Assim, ao assumir
aspectos centrais dessa perspectiva, o argumento de Sachs sobre o papel da AOD
e sobre como trafegar do subdesenvolvimento e da pobreza para condições de
maior bem-estar merecem também uma atenção mais detida. Faz-se necessário
questionarmos se os propósitos de desenvolvimento da comunidade internacional,
7 Interessante notar que nas duas principais obras do autor não há referência direta à teoria da modernização
ou seus principais autores.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
174 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
recentemente reforçados com a aprovação dos ODS, não carregariam parte dos
problemas passados.
O trabalho está estruturado da seguinte forma: na pxima seção, será exposta
a perspectiva de desenvolvimento da teoria da modernização, destacando alguns
elementos chave dos autores mencionados que dialogam com os propósitos do
texto; na seguida, apresentaremos o argumento de Jeffrey Sachs, já estabelecendo
seus paralelos e divergências com o paradigma da teoria da modernização.
Nas considerações finais, são apresentadas algumas análises e uma tentativa
de conciliação entre a abordagem de Sachs e a teoria da modernização e seus
desdobramentos.
A teoria da modernização e o desenvolvimento da periferia
A teoria da modernização ganhou robustez e grande destaque acadêmico e
intelectual no pós Segunda Guerra Mundial ao ser adotada pelas ciências sociais
estadunidenses como mote argumentativo para importantes áreas e departamentos
acadêmicos no país. Os estudos sobre a periferia do sistema internacional, em
especial os dilemas da possibilidade democrática e as razões, limites e contradições
do seu desenvolvimento passaram a ter a teoria da modernização como um
importante ponto de partida analítico (GILMAN, 2003; MORAES, 2006). Uma
questão de ordem política também permitiu o fortalecimento dessa abordagem
como um importante parâmetro de análise da política internacional e dos dilemas
do subdesenvolvimento. Como explica Gilman (2003), a ordem mundial bipolar
gerou estímulos para uma política externa norte-americana mais incisiva, voltada
à garantia de acesso a mercados e recursos, com a ampliação de sua área de
influência. Ao mesmo tempo, esse “imperativo político” norte-americano, uma
espécie de intervencionismo de mercado, exigia “uma justificativa cientifica”
(GILMAN, 2003)
8
. A teoria da modernização continha os elementos de justificativa
científica e moral para consubstanciar uma agenda de política externa que apontasse
o caminho da ação norte-americana sobre a periferia, com a justificativa de se
estar contribuindo para reorganizar bases sociais e econômicas que impedem o
progresso dessas áreas e povos.
8 Expressões extraídas e traduzidas de trecho no idioma original “For geopolitical reasons to be explored in chapter
2, the need to “do something” for postcolonial regions was a political imperative that demanded a scientific
justification” (GILMAN, 2003, p.5-6)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
175Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Concretamente, a teoria da modernização estruturou uma forma específica de
compreensão dos processos de desenvolvimento. A dicotomia entre o moderno e o
atrasado fundou-se na observação concreta do modelo de sociedade dos EUA e de
alguns países europeus como a forma mais avançada e adequada, ou seja, como
a própria manifestação da modernidade. Enquanto o resto do mundo, afastado
por completo desse modelo ou longe de conseguir atingir seus padrões materiais,
representaria o atraso. Desenvolvimento, portanto, significaria perseguir e buscar o
modelo de organização social, política, econômica e cultural do mundo ocidental,
tendo-o como espelho e padrão.
O programa da teoria da modernização tinha, nesse sentido, uma concepção
clara: seria “imprescindível mudar inteiramente o modo de ser ‘deles’, não
modernos, fazendo-os mais próximos do ‘nós’, modernos e norte-americanos”
(MORAES, 2006, p. 97). Assim, trabalhava-se com o que Moraes denominou
de “imagem destino”, em que o fim a ser alcançado, ao ser predeterminado,
determinava também o caminho a ser percorrido pelos países em desenvolvimento,
por um tipo de mimetismo, a partir do reflexo dos first comers (MORAES, 2006,
p. 40). De toda sorte, para os teóricos da modernização, as mudanças demandadas
para a tal modernização não se restringiam ao âmbito econômico, mas envolveriam
todo um processo de mudanças nas estruturas sociais que caracterizariam,
efetivamente, a modernização (GILMAN, 2003).
A existência dessa imagem destino possibilitaria a repetição da trajetória de
desenvolvimento dos modernos, dos avançados. Ainda, assumia-se a argumentação
de que seguir um modelo histórico existente daria aos países atrasados a condição
de aprender com os erros e contradições da trajetória dos modernos e dar saltos
e avançar mais rápido para a superação do atraso. Assim, por conseqüência
direta da posição de hegemon do pós Segunda Guerra Mundial, mas também por
interesse político, os EUA carregariam o fardo e teriam a missão de “modernizar”
o mundo subdesenvolvido e pós-colonial – ou seja, levar esses países para o
“paraíso a que os EUA chegaram primeiro”, mostrar as “virtudes do american
way of life”, ou simplesmente “aplicar o New Deal em uma escala internacional”
(GILMAN, 2003, p. 69 e p. 20)
9
9 Expressões extraídas e traduzidas de trechos no idioma original: “The mission instead was to “modernize” the
postcolonial world, to deliver its members to the secular heaven that the United States had pioneered. The aim
was to spread the virtues of “the American way of life,” an expansive phrase that included culture, technology,
sociability, and piety” (GILMAN, 2003, p.69); “They hoped to realize a New Deal on an international scale[...]”
(GILMAN, 2003, p.20).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
176 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
As duas décadas após a Segunda Guerra Mundial foram marcadas por uma
efervescência intelectual para a teoria da modernização. Em 1959, Edward Shils,
em um discurso proferido na Conferência de Modernização Política, iniciou a
construção de marcos sólidos para uma definição terminológica de modernização.
O autor estabeleceu certos parâmetros para distinguir tradicional de moderno,
mesmo reconhecendo não ser tão simples observá-los empiricamente.
Nos novos estados, “moderno” significa democrático e igualitário, científico,
economicamente avançado e soberano. Estados “modernos” são “welfare
states”, proclamando o bem-estar de todas as pessoas e especialmente das
classes mais baixas como sua principal preocupação. Estados “modernos”
são necessariamente estados democráticos, nos quais não apenas as
pessoas são o foco e são cuidadas por seus governantes, mas são, também,
a fonte de inspiração e orientação desses governantes. Modernidade
implica democracia, e democracia nos novos Estados é, acima de tudo,
igualitária. A modernidade, portanto, implica o destronamento dos ricos e
tradicionalmente privilegiados de suas posições prementes de influência.
Envolve a reforma agrária. Envolve uma forma progressiva de tributação
da renda. Envolve o sufrágio universal. A modernidade envolve educação
pública universal. A modernidade é científica. Acredita-se que o progresso
do país depende de uma “tecnologia racional” e, em última instância, do
conhecimento científico. País algum poderia ser moderno sem ser avançado
economicamente ou progressivo. Ser avançado economicamente significa
ter uma economia baseada na tecnologia moderna, ser industrializado e ter
um alto padrão de vida. Tudo isso requer (...) investimentos, construção
de novas fábricas, construção de estradas e portos, desenvolvimento
de ferrovias, esquemas de irrigação, produção de fertilizantes, pesquisa
agrícola (...) e pesquisa sobre utilização de combustíveis. “Moderno”
significa ser Ocidental sem o ônus de ter que seguir o Ocidente. É o modelo
do Ocidente desassociado, de alguma forma, de suas origens geográficas e
lócus (SHILS, 1958, apud GILMAN, 2003, p. 1-2)
10
.
10 Tradução de trechos no idioma original: In the new states “modern” means democratic and equalitarian, scientific,
economically advanced and sovereign. “Modern” states are “welfare states,” proclaiming the welfare of all the
people and especially the lower classes as their primary concern. “Modern” states are meant necessarily to be
democratic states in which not merely are the people cared for and looked after by their rulers, but they are,
as well, the source of inspiration and guidance of those rulers. Modernity entails democracy, and democracy
in the new states is, above all, equalitarian. Modernity therefore entails the dethronement of the rich and the
traditionally privileged from their positions of pre-eminent influence. It involves land reform. It involves steeply
progressive income taxation. It involves universal suffrage. Modernity involves universal public education.
Modernity is scientific It believes the progress of the country rests on rational technology, and ultimately on
scientific knowledge. No country could be modern without being economically advanced or progressive. To be
advanced economically means to have an economy based on modern technology, to be industrialized and to
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
177Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Já em 1960, W. Arthur Lewis, outro expoente do pensamento em análise,
perseguindo também as causas do desenvolvimento, identificou a imprescindibilidade
de alguns fatores: “a) esforço para economizar; b) capacidade de aplicação do
conhecimento científico e tecnológico; e c) capital” (LEWIS, 1960 apud MORAES,
2006, p.80). Corroborando a perspectiva de Shils sobre a centralidade de tecnologia
na trajetória de modernização, Lewis estabeleceu uma causalidade importante
para a teoria da modernização – a necessidade de poupança e de renda para se
atingir níveis suficientes de capacidade técnica para o trânsito entre o mundo
atrasado e o moderno. Assim, a existência de poupança seria fundamental para
ampliar a capacidade de investimento e criar condições para o acúmulo de capitais
e aplicação de conhecimento técnico para estimular a inovação e a utilização de
recursos naturais em favor do progresso.
Ao longo do desenvolvimento dessa perspectiva, dois autores produziram
contribuições fundamentais: W. W. Rostow e Paul Rosenstein-Rodan. Ambos,
ex-pesquisadores do Center for International Studies (CIS), serão a base e o eixo
utilizado neste artigo. As pesquisas dos dois economistas foram fundamentais
para a conformação da teoria da modernização, assim como para a formulação
de uma doutrina de política externa para os Estados Unidos, incidindo sobre a
estratégia dos programas de ajuda do país. Inclusive, em virtude do momento
histórico e do contexto específico da Guerra Fria, o CIS adquiriu um caráter
fortemente anticomunista.
Rostow desenvolveu um modelo de análise do processo de desenvolvimento
econômico inserido em um quadro de evolução social que ganhou repercussão
mundial (GILMAN, 2003). Para Rostow, as sociedades se dividiam em cinco
categorias, que corresponderiam a etapas evolutivas do processo de desenvol-
vimento: (1) a sociedade tradicional; (2) o momento das pré-condições para o
arranco; (3) o momento do “arranco”; (4) a marcha para maturidade; (5) e a era
do consumo em massa (ROSTOW, 1978). Sua idéia era a formulação de uma teoria
geral do processo de desenvolvimento, que, portanto, também deveria ser utilizada
“para ajudar a resolver os problemas da pobreza endêmica nos chamados países
have a high standard of living. All this requires planning and the employment of economists and statisticians,
conducting surveys to control the rates of savings and investments, the construction of new factories, the
building of roads and harbors, the development of railways, irrigation schemes, fertilizer production, agricultural
research, forestry research, ceramics research, and research of fuel utilization. “Modern” means being western
without the onus of following the West. It is the model of the West detached in some way from its geographical
origins and locus” (SHILS, 1958, apud GILMAN, 2003, p.1-2).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
178 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
subdesenvolvidos” (GILMAN, 2003, p. 161)
11
. Para isso, identificou fatores que
definiriam a “modernização”, comparando-os, tal qual um tipo-ideal, às sociedades
subdesenvolvidas. Assim, seria possível identificar a ausência desses fatores
nessas sociedades, e demonstraria quais seriam os obstáculos ao desenvolvimento
(MORAES, 2006).
Por sua vez, Rosenstein-Rodan se dedicou mais detidamente à análise do
papel da ajuda externa fornecida pelos países modernos para o desenvolvimento
dos países atrasados ou subdesenvolvidos. Seu texto clássico, International Aid
for Undeveloped Countries (1961), sintetiza parte dos argumentos desenvolvidos
no CIS em defesa do aumento dos fluxos de ajuda dos Estados Unidos para
promover o desenvolvimento de países do Terceiro Mundo (GILMAN, 2003).
O ponto central da argumentação estaria numa espécie de ciclo produtivo positivo
que se iniciaria com uma ampla injeção de recursos – condição necessária para
aumentar o nível de capital per capita – que levaria ao aumento dos investimentos
produtivos, permitindo o chamado “grande empurrão” (big push) e o alcance do
arranco (take-off). A partir desse momento, os países poderiam seguir trajetórias
autossustentadas de desenvolvimento.
Por aproximadamente três décadas, a teoria da modernização se estabeleceu
não apenas como marco analítico, mas também como fundamentação para vários
planos norte-americanos para o desenvolvimento da periferia. O Programa do
Ponto IV, parte da Doutrina Truman, e a Aliança para o Progresso para a América
Latina, estabeleceram-se sobre marcos muito próximos à teoria da modernização.
O famoso discurso de Truman, de 1949, salienta aspectos fundamentais da teoria
da modernização.
devemos embarcar em um novo programa ousado para disponibilizar
os benefícios de nossos avanços científicos e progresso industrial para
a melhoria e o crescimento de áreas subdesenvolvidas […] Os Estados
Unidos são proeminentes entre as nações no desenvolvimento de
técnicas industriais e científicas. Os recursos materiais que podemos usar
para a assistência de outras pessoas são limitados. Mas nossos recursos
imponderáveis em conhecimento técnico estão em constante crescimento
e são inesgotáveis. Acredito que devemos disponibilizar aos povos que
amam a paz os benefícios de nossa reserva de conhecimento técnico,
11 Tradução de trecho no idioma original “It sought to understand the factors that had spurred growth in the
industrial countries in order to use this knowledge to help solve the problems of endemic poverty in the so-
called underdeveloped countries” (GILMAN, 2003, p.161).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
179Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
a fim de ajudá-los a realizar suas aspirações por uma vida melhor
12
.
(TRUMAN, 1949)
Assim, por aproximadamente quatro décadas, a teoria da modernização
marcou o campo dos estudos sobre desenvolvimento, assim como fundamentou
a política de ajuda dos EUA. Entretanto, no final dos anos de 1970, a teoria da
modernização entrou em crise. Nils Gilman aponta que isso foi resultado da
própria crise do modelo de nação dos Estados Unidos. Com a crise do New Deal,
a Guerra do Vietnã e o aumento da pobreza interna, os EUA colocavam em xeque
o projeto que eles preconizavam como um tipo de ideal global (GILMAN, 2003,
p. 205). Entretanto, como veremos adiante, o fim da Guerra Fria reavivou parte
dos preceitos fundamentais da teoria da modernização, trazendo novos estímulos
para uma possível renovação da teoria e para as práticas e sugestões políticas
associadas ao planejamento e ajuda internacional (GILMAN, 2003, p. 267).
Algumas questões referentes à crise da teoria da modernização e sua transição
para uma versão mais próxima da agenda neoliberal no início do século XXI
merecem reflexões mais aprofundadas, entretanto, para os objetivos deste
artigo, traremos alguns comentários mais gerais sobre tal processo. A teoria da
modernização enfrentou dois “adversários” muito fortes nas décadas de 1970 e
que contribuíram com sua crise. Uma dimensão crítica fundamental se refere à
emergência de perspectivas teóricas que negaram a caracterização do processo
de desenvolvimento como uma escada, um processo linear, em que os países
atrasados poderiam seguir e alcançar, ou pelo menos se aproximar, dos níveis
de produção e do padrão de vida do mundo desenvolvido. A caracterização do
“subdesenvolvimento” como um produto histórico e específico pelos estruturalistas
cepalinos questionava o entendimento de que haveria uma linearidade e um trajeto
possível de desenvolvimento, amparado pelas experiências dos países modernos,
em que a periferia (o mundo subdesenvolvido, nos termos cepalinos) poderia se
basear e acessar (FURTADO, 1975; BIELSCHOWSKY, 2000). A teoria da dependência
aprofundou essa crítica, apontando os elementos estruturais de perpetuação da
desigualdade entre os mundos desenvolvimento e subdesenvolvido.
12 Tradução de trecho no idioma original: “we must embark on a bold new program for making the benefits of
our scientific advances and industrial progress available for the improvement and growth of underdeveloped
areas (…) The United States is pre-eminent among nations in the development of industrial and scientific
techniques. The material resources which we can afford to use for assistance of other peoples are limited. But
our imponderable resources in technical knowledge are constantly growing and are inexhaustible. I believe that
we should make available to peace-loving peoples the benefits of our store of technical knowledge in order to
help them realize their aspirations for a better life. And, in cooperation with other nations, we should foster
capital investment in areas needing development” (Truman, 1949).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
180 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
Atrelado ao fortalecimento de uma leitura crítica sobre a ordem econômica
internacional, países em desenvolvimento e menos desenvolvidos passaram a
apresentar demandas por reformas estruturais na economia política internacional
que não necessariamente eram tratadas como problemas de desenvolvimento.
A chamada Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) trouxe, por exemplo,
um conjunto de proposições e demandas por reformas de importantes regras
e instituições internacionais que refreavam a capacidade de desenvolvimento
autônomo dos países periféricos. Questões referentes a acesso e transferência
de tecnologia e reconstrução do regime internacional de propriedade intelectual
foram apresentadas e colocadas em discussão (SELL, 1998; ALESSANDRINI, 2010).
Em um sentido teórico contrário, mas com a força necessária para deslocar
a teoria da modernização do centro da agenda política global, a emergência do
neoliberalismo responsabilizou o Estado pelo problema do subdesenvolvimento
– concretamente, um suposto papel alargado do Estado no planejamento e
execução das políticas de investimento e na condução da economia. Com isso,
o neoliberalismo emergente entrava em colisão direta com parte fundamental
dos pressupostos teóricos da Teoria da Modernização, ainda fortemente influen-
ciados pelo sucesso das políticas de planejamento estatal de corte keynesiano.
A aceitação do neoliberalismo, por parte das principais agências internacionais de
desenvolvimento e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), como plataforma
teórica e política para a solução dos problemas da periferia – ainda fortemente
abalada pelas crises de finais dos anos de 1970 e pela renegociação das dívidas nos
anos de 1980 e 1990 – desestabilizou o protagonismo da teoria da modernização
na conformação da agenda de desenvolvimento internacional (BIERSTEKER, 1990).
Outro eixo da crise da teoria da modernização estava estritamente ligado
às estatísticas econômicas e sociais globais, que corroboraram parte das críticas
sobre os efeitos da AOD. Por mais de três décadas antes da virada do século,
presenciou-se um aumento muito rápido do distanciamento entre os países mais
ricos e mais pobres, assim como a piora dos dados relacionados à pobreza e
vulnerabilidade social nos países da periferia (CHANCEL; HOUGH; VOITURIEZ,
2017). O otimismo atrelado às teses da convergência internacional, especialmente
com a Curva de Knutz, foi sendo substituído por uma leitura mais dura da
realidade internacional sobre as desigualdades internacionais. Piketty (2013),
ao analisar o argumento de Knutz, entende que muito das explicações trazidas
– especialmente a crença na diminuição da desigualdade internacional derivada
do processo de industrialização – seriam muito mais uma derivação de uma
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
181Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
posição política diretamente influenciada pela Guerra Fria. Ou seja, buscava-
se dar algum alento aos países subdesenvolvidos para mantê-los na “órbita do
mundo livre”.
Assim, o fraco desempenho das experiências de desenvolvimento das
periferias, baseadas no planejamento externo e na ajuda financeira dos países
desenvolvidos, colocou as bases fundamentais da teoria da modernização, e seu
receituário de desenvolvimento consubstanciado no papel da AOD, sob forte
pressão. A combinação entre a emergência do neoliberalismo como novo padrão
cognitivo e novo modelo de desenvolvimento de organizações internacionais,
como o Banco Mundial e o FMI, e a crise econômica fortemente sentida nos países
periféricos, criaram as condições para uma necessária reformulação de agendas
de desenvolvimento econômico e social.
A década de 1990 e os primeiros anos do século XXI marcaram uma
reorganização da agenda de desenvolvimento das Nações Unidas. Ao mesmo
tempo em que o neoliberalismo se fortalecia, abordagens focadas na concepção
de desenvolvimento humano emergiam e ganhavam espaço na agenda de
desenvolvimento internacional. O Relatório de Desenvolvimento Humano do
PNUD, publicado originalmente no ano de 1990, apresentou, pela primeira vez, o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como parâmetro para mensuração do
desenvolvimento dos países. Trata-se de uma importante novidade, uma vez que
estabelecia uma perspectiva diferente para pensar o desenvolvimento. Perspectiva
que negava o padrão desenvolvimentista das décadas posteriores à Segunda Guerra
Mundial e enquadrava a necessidade de integrar o humano à agenda neoliberal
(FUKUDA-PARR, 2016).
A aprovação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) repre-
sentou a consolidação dessa simbiose entre neoliberalismo e a concepção de
desenvolvimento humano fundamentada na capabilities approach de Amartya
Sen. Esse compromisso multilateral de desenvolvimento devolveu à AOD o papel
de desenvolvimento global. Para alguns, um desenvolvimento paliativo, como
escreve Erik Reinert (2007), justamente por não buscar respostas mais profundas
para os problemas do desenvolvimento e usar de meios apenas para minimizar
o sofrimento daqueles em situações de maior vulnerabilidade
13
. Independente
13 Para Reinert (2007), apenas o investimento produtivo em setores com competição imperfeita e retornos crescentes
permitiria a estruturação de uma política de desenvolvimento real. Nesse sentido, o sistema econômico, comercial
e financeiro internacional seria obstáculo para alguns países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. A reforma
dos mecanismos de alocação de recursos internacionalmente seria mais importante do que o auxílio financeiro
para políticas sociais esparsas por meio da AOD.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
182 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
das interpretações sobre o conteúdo e a capacidade transformativa dos ODM,
o importante para o argumento aqui trazido é que a AOD voltou a ter um papel
fundamental, levando a um aumento expressivo dos volumes destinados aos
países da periferia a partir de 2001. Da mesma forma, a AOD foi tratada como
o principal meio de implementação dos ODM e, quinze anos mais tarde, como
principal instrumento político para o alcance dos ODS
14
.
Dentro desse novo contexto, se apresentaram as novas abordagens de
desenvolvimento mais próximas da clássica teoria da modernização. De acordo
com Nils Gilman (2003), essa nova versão da teoria da modernização manteve
o desprezo pelo conhecimento proveniente dos nativos dos países periféricos
e pela participação popular. Além disso, permaneceu a preferência por regras
universais de desenvolvimento econômico e a exaltação de valores ocidentais,
elevando-os a uma posição normativa. Por outro lado, difere da versão tradicional
por preterir o papel do Estado como fomentador da modernidade, em prol das
ideias neoliberais de penetração das forças de mercado e do livre mercado como
agente da modernidade (GILMAN, 2003, p. 271-272). Ou seja, exatamente aquela
simbiose mencionada entre neoliberalismo e ações paliativas de desenvolvimento
humano, com o apoio da AOD.
Essa nova teoria da modernização carrega nos discursos sobre a AOD as bases
mais fundamentais de sua versão original. A perspectiva de desenvolvimento
adotada pelos programas de ajuda, que são dominados pelos doadores, baseia-se
no seu modelo de sociedade ocidental, democrática e liberal como padrão para
todos os países (HJERTHOLM; WHITE, 2000, p. 63).
Na seção seguinte, analisaremos mais detalhadamente a aproximação teórica
da formulação teórica e prática de desenvolvimento proposta por Sachs, junto de
sua leitura sobre o papel da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento, como forma
de traçar os elementos marcantes da teoria da modernização enraizados em sua
perspectiva.
14 Existem diferenças marcantes entre as duas agendas de desenvolvimento da ONU, assim como grandes diferenças
no conteúdo específico voltado à implementação dos objetivos e metas. Entretanto, a AOD permanece como
um instrumento central no conjunto de recomendações.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
183Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Etapas do desenvolvimento, armadilha da pobreza e o grande
empurrão: qual papel da ajuda?
Em sua trajetória acadêmica e política, Jeffrey D. Sachs definiu como conceito
chave de suas análises e atuação política o problema da extrema pobreza. Sua
militância política tem como elemento discursivo central a obrigação ou missão
dos países hoje desenvolvidos de acabar com a extrema pobreza e permitir que
os países periféricos possam seguir de forma mais fácil o caminho virtuoso do
desenvolvimento
15
(MUNK, 2013). Essa concepção de missão ou destino seria o
equivalente a levar a modernidade para todos os países do chamado Terceiro Mundo.
Sachs utiliza uma representação metafórica do progresso e do desenvolvi-
mento econômico como uma escada, em que cada degrau representa a melhoria
no bem-estar econômico. O grande desafio contemporâneo residiria no fato de
que uma imensa parcela da população mundial, ainda vivendo em situação de
extrema pobreza, permanece fora dessa escada (SACHS, 2005, p. 18). Em termos
gerais, essa representação proposta por Sachs se assemelha com o modelo
etapista” de desenvolvimento apresentado por Rostow.
A Figura 1 pretende retratar essa aproximação entre os modelos de Sachs
e Rostow. Como é possível perceber, a população que está “fora” da escada de
Sachs pode ser comparada àquela das chamadas “sociedades tradicionais” de
Rostow. De acordo com Rostow, a sociedade tradicional é caracterizada por uma
estrutura que se expande dentro de funções de produção limitadas. Por não ter à
disposição os avanços da ciência moderna ou níveis elevados de produtividade,
estaria limitada a um “teto no nível alcançável do volume de produção per capita
(ROSTOW, 1978, p. 16). Com isso, não haveria condições para o aumento do nível
de capital e de investimentos, forçando-os a viverem em condições propícias para
a manutenção de um estado de extrema pobreza.
15 É interessante destacar como o autor alterou significativamente sua agenda de trabalho, deixando de lado o
papel de economista em planos de estabilização para se dedicar ao que ele autointitulou “missão de acabar com
a extrema pobreza”. Sachs fora responsável por planos de estabilização que realizaram terapias de choque em
diversos países, como na Bolívia em 1985 e na Polônia em 1989, o que lhe deu a alcunha de “Doutor Choque”. Já
no início dos anos de 1990, foi convidado para atuar na crise econômica da Rússia, contudo, o plano resultou em
efeitos catastróficos para o país. Apesar de reconhecer esse fato, Sachs acredita que não pode ser responsabilizado
por esse fracasso, pois não tinha poder de decisão e muitas de suas ideias não foram aplicadas (MUNK, 2013).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
184 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
Figura 1 – A Escada do Desenvolvimento e as Etapas de Desenvolvimento
Fonte: elaboração própria a partir de informações obtidas em Sachs (2005) e Rostow (1978).
Sachs considera que a etapa mais difícil do desenvolvimento econômico é a de
efetivamente acessar a escada, ou seja, sair da estagnação absoluta caracterizada
pela armadilha da pobreza. Quando isso acontece, criam-se as condições básicas
necessárias para que o país siga o dinamismo da subida autossustentada. Assim,
a proposta de Sachs, de um comprometimento dos países para acabar com a
extrema pobreza, tem como objetivo, de um lado, a garantia de condições de
vida digna para essas populações e, de outro, dar impulso para o processo de
subida, possibilitando o alcance de requisitos mínimos que permitam aos países
prosseguirem sozinhos para os próximos degraus (SACHS, 2005).
De acordo com Sachs, para que a subida se inicie e prossiga – ou seja, para que
haja desenvolvimento econômico –, é preciso um nível considerável de poupança
e investimento. O nível de poupança seria uma condição básica elementar, junto
com o aumento das relações comerciais, dos avanços tecnológicos e da utilização
de novos recursos na produção. Todos esses fatores impulsionariam a produção
e elevariam a renda, o que, por sua vez, estimularia uma constante expansão da
poupança e do investimento (SACHS, 2005). Essa perspectiva já havia sido apontada
por W. Arthur Lewis e outros autores da teoria da modernização, conforme
mencionado na seção anterior. (LEWIS, 1960 apud MORAES, 2006, p. 80).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
185Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Contudo, o mais importante no argumento de Sachs é a afirmação de que
as regiões extremamente pobres não conseguem se utilizar desses mecanismos
e, portanto, acabam sofrendo com a permanente queda do investimento e do
crescimento (em geral, causada pelo atraso tecnológico, declínio no uso de recursos
naturais, choques de produtividade e redução da produção, renda e poupança).
A explicação para a permanência dessa situação se encontra em problemas mais
complexos, divididos em oito categorias, sendo que o primeiro deles é exatamente
a armadilha da pobreza
16
(SACHS, 2005).
Assim, de uma forma circular, a pobreza seria a própria causa da pobreza,
ou da estagnação econômica. As populações extremamente pobres carecem de
capital e não há margem na renda que exceda os valores para atendimento de suas
necessidades básicas, o que os impede de poupar para investir em mais capital
(SACHS, 2005, p. 56). Portanto, a essência da armadilha da pobreza é que “os
extremamente pobres são demasiado pobres para poupar para o futuro e assim
acumular o capital por pessoa que poderia retirá-los na atual situação de miséria”
(SACHS, 2005, p. 56-57)
17
.
Sachs, como os teóricos da modernização, também considera que outros
aspectos, além dos fatores estritamente econômicos, são fundamentais para o
desenvolvimento. Ou seja, há uma série de elementos que podem inicialmente
obstar a caminhada para a modernidade, caso não observados. Para propriamente
analisar todos esses fatores e traçar um plano de desenvolvimento que seja
responsivo às necessidades locais, Sachs propõe um método denominado de
economia clínica”, em que uma espécie de checklist com oito categorias deve ser
observada de modo a realizar o que ele denomina de “diagnóstico diferenciado”
(SACHS, 2005, p. 75). A proposta de Sachs é de que as agências que estão
atuando para promover o desenvolvimento econômico em outros países realizem
inicialmente esse checklist, para identificar quais os fatores que, naquela localidade,
estariam provocando a estagnação econômica. Tal método se assemelha ao estudo
realizado por Rostow para caracterizar cada etapa de desenvolvimento. Rostow,
após identificar os fatores que explicariam a modernização, comparou-os com a
realidade das sociedades tradicionais, identificando quais fatores estariam ausentes
e quais seriam obstáculos, conforme supramencionado (MORAES, 2006, p. 88).
16 Os demais seriam: geografia física; armadilha fiscal; falhas na governança; barreiras culturais; geopolítica;
falta de inovação; armadilha demográfica. A armadilha da pobreza é o ponto central do argumento e as demais
categorias atuam para aprofundar a situação.
17 Tradução de trecho no idioma original “They are too poor to save for the future and thereby accumulate the
capital per person that could pull them out of their current misery” (SACHS, 2005, p.56-57)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
186 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
Dessa forma, é possível identificar, nos argumentos de Sachs, a pretensão
dos teóricos modernos de querer ditar um caminho considerado ideal, que deva
ser percorrido pelos países periféricos. Isto é, a ideia de que é possível pensar o
destino das nações mais pobres como um reflexo dos países ocidentais. Ademais,
observam-se tentativas universalistas em ambos: Sachs não só afirma deter o
conhecimento e o modelo a ser seguido, como também acredita que esse modelo
deve ser aplicado em todos os países que ainda convivem com a extrema pobreza.
É verdade que, em seu método da economia clínica e diagnóstico diferencial,
Sachs abre uma margem para que a realidade local seja analisada. Contudo, isso
não altera o fato de que há apenas um modelo de sociedade que é visto como o
melhor e mais adequado. A análise do contexto local não abre espaço para novos
modelos de desenvolvimento, mas sim para compreender quais especificidades
locais devem ser dissolvidas para viabilizar o processo de transformação da
sociedade para o modelo definido.
Ainda analisando o modelo proposto por Jeffrey Sachs, é importante ressaltar
que, mesmo que as comunidades conseguissem identificar todas essas questões
que as estariam impedindo de avançar, não conseguiriam sair da extrema pobreza
porque “são muito pobres para resolver os seus problemas sozinhos. E os seus
governos também são” (SACHS, 2005, p. 242)
18
. Isto é, eles não possuem a
quantidade de capital para realizar as intervenções identificadas. Sachs refere-se a
seis tipos de capital: 1) capital humano; 2) capital de negócios; 3) infraestrutura;
4) capital natural; 5) capital público institucional; 6) capital de conhecimento.
O problema é que a população mais pobre já inicia sua vida com um baixíssimo
nível de capital per capita, e geração após geração essa taxa tende a cair, dado o
fato de estarem presos na armadilha da pobreza. Uma família já empobrecida possui
uma renda que mal atende às suas necessidades básicas, conseqüentemente, não
sobram recursos para poupar e investir, bem como para pagar impostos. Dessa
forma, sem poupança privada e com o enfraquecimento do orçamento público,
nem os indivíduos nem o governo conseguem alcançar capacidade de investimento
significativo. Há um declínio no nível de capital per capita, que é ainda agravado
pela depreciação do capital e pelo crescimento populacional. O resultado disso
é um crescimento econômico negativo, mantendo as rendas das famílias em um
nível mínimo, impedindo o mecanismo de acumulação e perpetuando a pobreza
(SACHS, 2005, p. 248).
18 Tradução nossa do trecho no idioma original “But they are too poor to solve their problems on their own. So,
too, are their own governments” (SACHS, 2005, p.242)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
187Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
A quebra desse ciclo, ou seja, a quebra da armadilha da pobreza, se daria
com a provisão de recursos provenientes da AOD. A ajuda externa atuaria para
suprir a lacuna financeira identificada por meio de três canais: a) uma parte
deveria ser direcionada para as famílias empobrecidas, de modo a atender às suas
necessidades básicas; b) a maior parcela da ajuda seria destinada para o orçamento
do governo, para financiar os investimentos públicos e; c) a ajuda seria enviada
para auxiliar os negócios privados, através de microfinanças ou outros programas
semelhantes (SACHS, 2005, p. 246).
Assim, para Rostow, Rosenstein-Rodan e Sachs, a ajuda advinda de fontes
externas teria o papel de dar um grande empurrão (big push), nos termos de
Rosenstein-Rodan, por meio da injeção de capital que iria romper a armadilha
da pobreza, permitir acumulação, investimentos e possibilitar a saída da forma
tradicional de organização societal e econômica. Tais investimentos representariam a
subida para o primeiro degrau da escada, ou, em outras palavras, a criação das pré-
condições para o arranco, conforme a Figura 1. De acordo com Sachs, “investimentos
em educação básica, saúde, infraestrutura e agricultura, podem possibilitar que uma
família, ou uma região mais pobre, ganhe renda adicional e riqueza suficiente para
financiar o próximo estágio de desenvolvimento” (SACHS, 2015, p. 171)
19
.
Interessante como Rostow conceituou de forma muito clara essa relação
complexa que deve se estabelecer entre sociedades modernas e atrasadas para
a superação das dificuldades inerentes à subida na escada. Para o autor, esse
processo seria uma “era de transição em que uma sociedade se prepara – ou é
preparada por forças externas – para o desenvolvimento sistemático” (ROSTOW,
1978, p. 31). Continuando, Rostow considerava que a ajuda externa proveria
uma grande vantagem para os países da periferia, que poderiam contar com
esse instrumento para facilitar o processo de desenvolvimento. Ele afirma que
“o auxílio internacional sob a forma de assistência técnica, empréstimos suaves
ou subsídios [...] são um aspecto singular do panorama moderno” com que os
países que se desenvolveram décadas antes não contavam (ROSTOW, 1978, p.
169- 170). Da mesma forma como tratado por Sachs para o cenário atual, Rostow
entendia que, apesar de ter esse grande potencial, os níveis de ajuda externa da
sua época eram extremamente inadequados e não atenderiam às necessidades de
ultrapassar o crescimento demográfico (ROSTOW, 1978, p. 171).
19 Tradução de trecho no idioma original “By that I mean that key investments in basic education, health,
infrastructure, and farming can enable a poor household, or indeed a poor region, to earn enough added income
and garner enough wealth to be able to finance the next stage of development” (SACHS, 2015, p.171).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
188 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
Assim, para Jeffrey Sachs, mas também para Rostow, se a ajuda for direcionada
em quantidade suficiente e de forma sustentada, com previsibilidade por certo
período de tempo, o estoque de capital aumentaria a ponto de permitir que as
famílias tenham uma renda que exceda o seu consumo, levando à poupança e
a maiores investimentos. Além disso, o pagamento de impostos fortaleceria o
orçamento público (SACHS, 2005, p. 246). Em conformidade com Sachs, Rostow
afirmava que tão relevante quanto a quantidade de ajuda era a sua continuidade
e previsibilidade (ROSTOW, 1978, p. 171).
Durante a fase das pré-condições, a sociedade passa por diversas mudanças,
mas uma questão central para Rostow era a passagem de uma sociedade
predominantemente agrícola para uma industrial e comercial. A razão fundamental
dessa ênfase está no fato de que esses são setores passíveis de maior aplicação de
tecnologias modernas que permitam rápido crescimento, alta taxa de reinvestimento
e lucros (ROSTOW, 1978, p. 166). Após todas as pré-condições estabelecidas, a
sociedade seria impulsionada para o degrau do “arranco”. Como definido por
Rostow, essa fase é o momento em que “o desenvolvimento passa a ser a condição
normal” e “ganha regularidade e capacidade de fortalecer a si mesmo” (ROSTOW,
1978, p. 52-53). Essa fase produz mudanças nos mais diversos setores da sociedade,
desde a organização da produção até os valores sociais em geral (ROSTOW, 1978,
p. 78). Vale salientar, contudo, que para que o padrão de crescimento autossustentado
seja iniciado, o arranco tem que ser bem-sucedido e, para isso, deve-se contar
com amplo fluxo de capital (GILMAN, 2003, p. 196-197). Portanto, a ajuda deve
permanecer até que esse processo seja exitoso, isto é, quando as engrenagens
para a sua continuidade autossustentada estejam estabelecidas.
De acordo com Sachs, o país deverá contar com a ajuda durante a sua subida
até que chegue a condição de Estado de renda média (SACHS, 2015, p. 171). Isso
porque, para ele, países de renda média não precisam mais dos programas de
ajuda para acabar com a extrema pobreza, pois já se beneficiam do dinamismo
do crescimento, isto é, passaram do arranco. A partir da fase do arranco, o país
continuará sua subida para alcançar níveis cada vez maiores de desenvolvimento.
Sachs afirma que, ao longo desse caminho, a sociedade “desfrutará do crescimento
autossustentado que eventualmente levará ao fim da extrema pobreza”
(SACHS, 2015, p. 171)
20
.
20 Tradução de trecho original “enjoying self-sustaining growth that eventually will lead to the end of extreme
poverty” (SACHS, 2015, p.171).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
189Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
Jeffrey Sachs, que iniciou sua carreira como economista no final da década de
1970, já em um momento de crise do modelo da teoria da modernização, tornou-
se adepto da economia neoliberal, que viria a dominar os anos subsequentes.
Assim, o argumento de Sachs deve ser compreendido dentro do campo mais
contemporâneo das teorias econômicas que ganharam força no pós Guerra fria.
Isso é relevante para compreendermos partes das divergências com o modelo de
Rostow. Uma delas é que, apesar de reconhecer a importância da industrialização,
ela não aparece como solução para acabar com a extrema pobreza. Além disso,
o foco nas mudanças estruturais é substituído pela acumulação de capital e
pelos mecanismos de mercado. De acordo com Sachs, “quando as pré-condições
de infraestrutura básica […] e capital humano […] estão postas, mercados são
mecanismos poderosos o suficiente para o desenvolvimento” (SACHS, 2005, p. 3)
21
.
Assim, há diferenças sutis, mas importantes, entre o argumento contemporâneo
de Sachs e os teóricos tradicionais da modernização. Rostow e outros teóricos
da modernização escreveram em um contexto de auge do Estado de bem-estar
social, onde o Estado forte é que atuava como fomentador da modernização e
havia um grande foco na estrutura produtiva. Nesse caso, a industrialização
era promovida como uma das principais estratégias para atingir os objetivos de
desenvolvimento.
A análise dos elementos centrais do argumento de Sachs e, especialmente,
da forma como entende o papel da AOD, é determinante para compreendermos
um capítulo fundamental da agenda contemporânea de desenvolvimento.
Como afirmado na introdução deste texto, Jeffrey D. Sachs é um ator político
importante na definição da agenda de desenvolvimento do sistema das Nações
Unidas. Nos anos 2000, Sachs assumiu papel de assessor especial para os
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e tornou-se diretor do Columbia´s Earth
Institute, da Universidade de Columbia; mesmo período em que publicou seu
livro The End of Poverty: the economic possibilities of our time (2005), no qual
sistematizou os argumentos analisados acerca da factibilidade e dos caminhos
para a erradicação da extrema pobreza. Posteriormente, participou da criação do
Sustainable Development Solutions Network (SDSN), a rede global que pensou
a formulação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nesse novo
contexto, Sachs publicou sua outra obra também fundamental para a compreensão
21 Tradução de trecho no idioma original “When the preconditions of basic infrastructure (roads, power, and
ports) and human capital (health and education) are in place, markets are powerful engines of development.”
(SACHS, 2005, p.3).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
190 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
da sua interpretação sobre desenvolvimento e o papel da AOD: The Age of
Sustainable Development (2015). Através de todos esses canais, o economista
atuou politicamente na estruturação de importantes iniciativas voltadas a dar
centralidade à ajuda, assim como seus trabalhos acadêmicos buscam sustentar
analiticamente a prática da AOD como instrumento para o desenvolvimento
e como meio de implementação dos grandes planos de desenvolvimento
da ONU.
Considerações finais
A Ajuda Oficial para o Desenvolvimento mantém-se como um dos principais
instrumentos utilizados pelos países desenvolvidos para impulsionar trajetórias de
desenvolvimento nos países periféricos. Esse é um fato que permanece, a despeito
de diversas análises teóricas e pesquisas empíricas que demonstrariam a ineficácia
da ajuda ou mesmo seus efeitos maléficos para o desenvolvimento. A prática da
AOD se sustenta na contemporaneidade, por meio da reafirmação política de seu
uso, como meio de implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS), e pela sua reafirmação teórica, presente principalmente nos trabalhos do
economista Jeffrey D. Sachs.
De acordo com Sachs, o grande problema do desenvolvimento global é
que uma imensa parcela da população mundial se encontra fora da “escada de
desenvolvimento”, presa na chamada “armadilha da pobreza” – esses seriam
os extremamente pobres que não conseguem acumular capital acima do nível
necessário para a sua sobrevivência. Nesse contexto, a AOD seria imprescindível
para dar uma injeção de capital que elevaria os níveis de capital da sociedade
de modo a permitir a acumulação e os investimentos básicos, que quebrariam
a armadilha da pobreza. Dessa forma, poderiam alcançar o primeiro degrau da
escada de desenvolvimento, e seguir sua subida sustentada até os patamares das
sociedades hoje desenvolvidas.
Nesse trabalho, buscamos apresentar o argumento do economista Jeffrey Sachs
e demonstrar que sua perspectiva se encontra, em grande medida, fundamentada
nas premissas básicas da teoria da modernização. Jeffrey Sachs reafirma a proposta
de pensar o desenvolvimento como uma trajetória em que se estabelece uma
imagem-destino a ser perseguida pelos atrasados, mantendo a presunção básica dos
teóricos da modernização de existência de um modelo de sociedade almejado. Em
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
191Henrique Zeferino Menezes; Larissa Fernandes Catão
ambos os modelos, o subdesenvolvimento e as condições da sociedade tradicional
são compreendidas como etapas anteriores que precisam ser superadas para se
seguir em direção ao desenvolvimento.
A alegoria da escada marca uma clara convergência com as etapas de
desenvolvimento de Rostow. Sachs, bem como os teóricos da modernização,
preconiza que no caminho a ser percorrido, os países periféricos – ou as sociedades
tradicionais – devem contar com o auxílio dos países desenvolvidos, que já
chegaram aos mais altos degraus. Esses pioneiros indicariam as políticas e ações
que deveriam ser aplicadas e enviariam a ajuda externa necessária para permitir
o grande empurrão.
Assim, é notável que a AOD se encontra fundamentada em uma perspectiva
teórica que possui elementos da teoria da modernização. Contudo, a abordagem
de Sachs e dos programas de ajuda da atualidade devem ser compreendidos dentro
de uma perspectiva que dialoga com o cenário político, econômico e intelectual do
pós Guerra fria. Mesmo reformulada, a teoria da modernização mantém as bases
de sua versão original, mas substitui o Estado forte e industrializante pelas forças
de mercado. Nesse sentido, sob a roupagem da luta contra a extrema pobreza, a
teoria da modernização retorna ao debate sobre desenvolvimento e sobre a prática
da ajuda e tem ocupado espaços cada vez mais relevantes.
Referências
ALESSANDRINI, Donatela. Developing Countries and the Multilateral Trade Regime.
The failure and Promisse of the WOT’s Development Mission. Oxford and Portland,
Oregon, 2010.
AMIN, Samir Unequal Development: an Essay on the Social Formations of Peripheral
Capitalism. The Harvester Press Limited/Monthly Review Press, 1976.
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Cinqüenta Anos de Pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
BIERSTEKER, Thomas. “Reducing the Role of the State in the Economy: a conceptual
exploration of the IMF and World Bank Prescriptions”. International Studies Quarterly.
Vol.43, n.04, 1990.
CHANCEL, Lucas; HOUGH, Alex; VOITURIEZ, Tancrede. Reducing Inequalities within
Countries: Assessing the Potential of the Sustainable Development Goals. Global
Policy, vol. 9, n. 01, 2017.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 169-192
192 Jeffrey Sachs e a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento: uma releitura da Teoria da Modernização
EASTERLY, William. The White Man´s Burden. Penguin Group, 2006.
FUKUDA-PARR, Sakiko. “From the Millennium Development Goals to the Sustainable
Development Goals: shifts in purpose, concept, and politics of global goal setting
for development”. Gender and Development, vol. 24: 01, p. 43-52, 2016
FURTADO, Celso. O Mito do Desenvolvimento Econômico. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1975.
GILMAN, Nils. Mandarins of the Future. Modernization Theory in Cold War America.
The Johns Hopkins University Press, 2003.
HARMAN, Sophie; WILLIAMS, David. International Development in Transition. International
Affairs, vol. 90, n. 04, 2014.
HJERTHOLM, Peter; WHITE, Howard. Foreign aid in historical perspective: background
and trends In. TARTP, Finn (ed) Foreign Aid And Development- Lessons learnt and
directions for the future. Routledge: New York, 2002.
KOEHLER, Gabriele. Seven Decades of Development, and now what. Journal of
International Development, vol. 27, n. 06, 2015.
MAYMÍ-SUGRAÑES, Héctor. Cold Warriors: Advancing the Library Modernizing Model
in Latin America. Investigación Bibliotecológica, Vol. 31, N. 72, 2017.
MORAES, Reginaldo C. C. Estado, Desenvolvimento e Globalização. Editora Unesp. São
Paulo, 2006.
MOYO, Dambisa. Why aid is not working and how there is a better war for africa. Fsg, 2009.
MUNK, Nina. The Idealist: Jeffrey Sachs and the Quest to End Poverty. Anchor. Setembro, 2013.
PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI: Intrínseca, 2014.
REINERT, Erik S. How Rich Countries Got Rich... and Why Poor Countries Stay Poor.
Constable 2007.
RIDDELL, Roger C. Does Foreign Aid Really Work? Oxford University Press, 2007.
ROSENSTEIN-RODAN, Paul N. Natura non Facit Saltum: Analysis of Disequilibrium
Growth Process. In. MEIER, G. M. SEERS, D (ed.). Pioneers in Development. Oxford
University Press, 1984.
ROSTOW, W.W. Etapas do desenvolvimento econômico- A non-communist manifesto.
Cambridge University Press, 6ed, 1978.
SACHS, Jeffrey D. The Age of Sustainable Development. Columbia University Press, 2015.
SACHS, Jeffrey D. The End of Poverty: Economic Possibilities for our Time. Penguin Press, 2005.
SELL, Susan. Power and Ideas: North-south politics of Intellectual Property Rights and
Antitrust. State University of New York Press, 1998.
THORBECKE, Erick. The Evolution of the Development Doctrine and the role of foreign
aid, 1950-2000. In. TARTP, Finn (ed) Foreign Aid And Development— Lessons learnt
and directions for the future. Routledge: New York, 2002.
TRUMAN, Harry. Truman’s Inaugural Address. January 20, 1949. Disponível em: <https://
www.trumanlibrary.org/whistlestop/50yr_archive/inagural20jan1949.htm>.
193Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Marx and Engels: international politics and class struggle
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.802
Caio Bugiato
1
Resumo
Esse texto é uma abordagem das ideias de Marx e Engels sobre política internacional e
nacional. Os fundadores do socialismo moderno tendem a tratar essas duas dimensões de
modo articulado, mas tal articulação se mostra insuficiente em suas reflexões. Sendo assim,
nossa proposição teórica consiste em sofisticar tal articulação, de modo a amparar análises
contemporâneas sobre as relações internacionais inspiradas no marxismo. Para tal, incorremos
em uma pesquisa teórica sobre a visão de Marx e Engels acerca da política internacional em
geral, oriunda da dinâmica do sistema de Estados europeu na década de 1850, publicada
em uma série de artigos em jornais da época. Esta visão, à luz das ideias do Manifesto do
partido comunista, forma um arcabouço teórico para analisar política internacional.
Palavras-chave: Marx e Engels; Política internacional; Luta de classes; Teoria de Relações
Internacionais.
Abstract
This text is an approach to Marx and Engels’ ideas on international and national politics. The
founders of modern socialism tend to understand these two dimensions in an articulated way,
but such articulation is insufficient in their reflections. Thus, our theoretical proposition is to
refine such articulation in order to support contemporary analyzes of international relations
inspired by Marxism. Hence we proceeded a theoretical research on Marx and Engels’ view of
international politics in general, stemming from the dynamics of the European state system
in the 1850s, and published a series of articles in newspapers at that time. This vision in
the light of the ideas of the Manifesto of the Communist Party forms a theoretical framework
for analyzing international politics.
Keywords: Marx and Engels; International politics. Class struggle; Theory of International
Relations.
1 Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Artigo submetido em 15/05/2018 e aprovado em 25/10/2018.
194 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
Introdução
Este artigo consiste numa pesquisa bibliográfica sobre a obra de Marx e
Engels, direcionada a suas ideias sobre a política, nas dimensões internacional
e nacional e a possível vinculação entre ambas. As linhas que seguem contêm
uma proposição teórica que vincula duas noções que aparecem nos textos dos
fundadores do socialismo moderno, que julgamos ser compatíveis: as projeções
de poder dos Estados, na dimensão internacional, e a luta de classes, na dimensão
nacional. Ressaltamos que este texto trata do pensamento marxiano e engelsiano
e não se propõe a abordar ou sistematizar a literatura marxista pertinente às
RI, como as teorias clássicas e contemporâneas do imperialismo, as teorias de
dependência e os teóricos neogramscianos, entre outros.
A seguir apresentamos a visão de Marx e Engels sobre a política internacional,
oriunda da dinâmica do sistema de Estados europeu na década de 1850. Marx e
Engels publicaram uma série de artigos em jornais da época
2
, sobretudo no New
York Daily Tribune (para o qual Marx foi correspondente internacional entre
1851 e 1862), em que apresentam reflexões acerca da política internacional à luz
do binômio guerra-revolução (pensamos que aqui reside o caráter inédito para
as RI no Brasil: trazer à tona os artigos sobre política internacional). Os textos
utilizados nessa segunda parte foram tais artigos publicados em uma coletânea de
textos de Marx e Engels em 1975, intitulada Collected Works. Dessa publicação,
utilizamo-nos majoritariamente dos artigos escritos poucos anos antes da e
durante a Guerra da Crimeia (1853-1856), contenda em torno da qual os Estados
europeus se mobilizaram. Assim, elencamos, de acordo com a visão dos autores,
as atividades de política externa dos Estados europeus – respectivamente Rússia,
Inglaterra, França, Prússia, Áustria e Turquia –, antecedida pela apresentação
da ideia geral dos autores, segundo a qual as grandes potências do Concerto
Europeu mobilizavam-se para conter revoluções e conquistar a supremacia na
ordem internacional, e sucedida pela exposição do caráter da Guerra da Crimeia.
Contudo, os artigos sobre política internacional carecem de um encontro com o
materialismo histórico, demonstrando uma análise fundada na raison d’État e
suas consequências para o equilíbrio de poder. Com o intuito de promover tal
2 Há uma diversidade temática nos artigos de Marx e Engels publicados em jornais da época – comércio,
diplomacia, colonialismo –, mas optamos por discorrer sobre a política das grandes potências na Europa do
Concerto Europeu, pois, dessa forma, abrimos um diálogo com uma das teorias mais influentes do campo das
RI, o Realismo.
195Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
encontro, utilizamo-nos das ideias do Manifesto do partido comunista sobre classes
e frações de classes sociais, luta de classes, Estado e revolução, que nos permitiram
elaborar uma proposição teórica que articula as dimensões nacional e internacional,
a partir da obra de Marx e Engels, para analisar a política internacional.
* * *
As revoluções de 1848 na Europa impactaram o pensamento de Marx e
Engels, de modo que assuntos da política internacional receberam mais atenção
dos fundadores do socialismo moderno. Pelo menos dois motivos despertaram
mais interesse: a) os movimentos revolucionários que chacoalharam o velho
continente e que puseram em xeque o status quo construído no Congresso de
Viena
3
(1815) tiveram uma dimensão internacional e b) a unificação alemã se
tornou uma questão que envolvia diversos pequenos Estados no centro da Europa
e, principalmente, as grandes potências e o equilíbrio de poder entre elas. Nesse
contexto, na ativa produção jornalística que ambos exerciam, desenvolveram uma
visão de mundo sobre a política internacional, que tende a vincular as dimensões
nacional e internacional, além da fazer parte de sua formação teórica e política
(FERREIRA, 1999).
Segundo Marx e Engels (MARX, 1975a, 1975b, 1975c), o papel do Concerto
Europeu é a ordem do sistema de Estados, com propósitos conservadores e
restauracionistas oriundos da Convenção de Viena. As cinco potências, os
Estados da Inglaterra, França, Prússia, Áustria e Rússia, mobilizavam-se para dois
grandes objetivos: conter a revolução (burguesa e/ou socialista
4
) e conquistar a
supremacia na ordem internacional. O pilar de sustentação do sistema de Viena era
a autocracia russa (por meio de sua diplomacia e de seu exército) e, o czarismo,
o inimigo fulcral da revolução na Europa e o bastião do status quo monárquico
3 O congresso de Viena foi realizado entre 1814 e 1815 pelos Estados vitoriosos nas guerras napoleônicas com a
finalidade de restaurar o ancien régime na Europa continental, redesenhar o mapa europeu, manter a estabilidade
política e conter movimentos revolucionários. As monarquias da Rússia, da Áustria e da Prússia formaram
a Santa Aliança, com base nas doutrinas do cristianismo, interessada em colocar as relações internacionais
sob a égide do cristianismo. Logo o Estado inglês aderiu estrategicamente ao pacto, formando a Quádrupla
Aliança, que admitiu a presença do Estado francês em reuniões futuras. Essa Quíntupla Aliança, ou Concerto
Europeu, se outorgou o direito de administrar e intervir coletivamente no sistema de Estados, implantando
uma diplomacia de conferências sobre questões da política internacional, intercedendo nos casos de quebra
das condutas acordadas na convenção.
4 Para Inglaterra e França, Marx e Engels presumiram revoluções proletárias direcionadas ao socialismo e ao
comunismo; para outros, como Rússia, Áustria, Estados alemães e italianos e povos na Europa centro-oriental
governados por reis e imperadores, apostavam em revoluções burguesas, que derrubassem as monarquias.
196 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
e aristocrático no continente (ENGELS, 1975a), ainda em vigor na maioria dos
países. Dessa forma, o expansionismo russo – que entrava diretamente em atrito
com o Império Otomano (Turquia), manipulando lutas de populações oprimidas
em proveito de objetivos reacionários e expansionistas –, levado a cabo pela
autocracia czarista, não podia ser contido pelas potências ocidentais mediante
confronto bélico, cuja instabilidade política poderia estalar insurreições como
um rastro de pólvora. Sobre o Concerto Europeu e o bastião russo, Marx escreve:
A guerra contra a França, que foi ao mesmo tempo uma guerra contra
a revolução, uma guerra antijacobina, conduziu naturalmente a uma
transferência de influência do Ocidente para o Oriente, da França para a
Rússia. O Congresso de Viena foi fruto natural da guerra antijacobina, o
Tratado de Viena o produto legítimo do Congresso de Viena e a supremacia
russa a filha natural do Tratado de Viena [...] Sendo a preponderância da
Rússia na Europa inseparável do Tratado de Viena, qualquer guerra contra
esse poder que não proclame de saída a abolição do Tratado, não pode deixar
de ser uma mera teia de vergonhas, desilusões e conluios (MARX, 1975c, p.
283-284, tradução nossa)
5
.
Segundo Marx e Engels (MARX, 1975d, 1975e, 1975f, 1975g; ENGELS, 1975b;
MARX; ENGELS 1975a), os governos ocidentais, cientes das possibilidades de que
os desequilíbrios gerados pela guerra fossem catalisados por forças revolucionárias
para estalar revoluções, mobilizavam-se para ampliar influência nas regiões dos
Bálcãs, Mar Negro e Sudoeste Asiático, de modo a conter os anseios expansionistas
e de supremacia do Império Russo, inclusive debilitando-o militarmente. Contudo,
tinham a cautela de não neutralizar a autocracia czarista, pois, fiéis aos propósitos
contrarrevolucionários do Tratado de Viena, reservavam à Rússia uma função de
mantenedora da ordem. O Estado russo se encarregava de manter a estabilidade
internacional contra revoluções, sobretudo, na Europa Centro-Oriental, assim como
exercia pressão constante sobre o Império Otomano, restringindo qualquer anseio
de expansão territorial sobre a Europa e submetendo o sultão de Constantinopla
aos ditames do Concerto. Ademais, os ocidentais se preocupavam em preservar
5 “The war against France being at the same time a war against the Revolution, an Anti-Jacobin war, naturally
led to a transfer of influence from the West to the East, from France to Russia. The Vienna Congress was the
natural offspring of the Anti-Jacobin War, the Treaty of Vienna the legitimate product of the Vienna Congress,
and Russian supremacy the natural child of the Treaty of Vienna. […] Russia's preponderance in Europe being
inseparable from the Treaty of Vienna, any war against that power not proclaiming at the outset the abolition
of the Treaty, cannot but prove a mere tissue of shams, delusions and collusions”.
197Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
a soberania e a integridade turca diante das investidas expansionistas do czar.
Marx resume a conjuntura:
O Czar, envergonhado e insatisfeito ao ver seu imenso império confinado a
um único porto de exportação, situado num mar inavegável durante metade
do ano e assediado por ingleses na outra metade, está evocando os anseios
de seus antepassados para ter acesso ao Mediterrâneo; ele está separando,
um após o outro, os membros mais remotos do Império Otomano do seu
corpo principal, até que finalmente Constantinopla, o coração, deve deixar
de bater. Ele repete suas invasões periódicas tão frequentemente quanto ele
pensa que seus projetos são ameaçados pela suposta consolidação do governo
turco, ou pelos sintomas mais perigosos da manifesta autoemancipação dos
eslavos. Contando com a covardia e as apreensões dos Poderes Ocidentais,
ele intimida a Europa e projeta suas demandas o mais longe possível, para
depois aparecer magnânimo, contentando-se com o que ele imediatamente
queria.
Os Poderes Ocidentais, por outro lado, inconsistentes, pusilânimes, suspei-
tando uns dos outros, começam por encorajar o Sultão a resistir ao Czar – por
medo que as invasões da Rússia obriguem aquele a ceder – pelo medo de que
uma guerra geral dê origem a uma revolução geral. Muito impotentes e tímidos
para empreender a reconstrução do Império Otomano pelo estabelecimento
de um Império grego, ou de uma República Federal dos Estados Eslavos, tudo
o que eles almejam é manter o status quo, ou seja, o estado de putrefação
que proíbe o Sultão de se emancipar do Czar e os eslavos de se emancipar do
Sultão. (MARX, 1975b, p. 212, tradução nossa.)
6,
7
6 “The Tsar, vexed and dissatisfied at seeing his immense empire confined to one sole port of export, and that
even situated in a sea unnavigable through one half of the year, and assailable by Englishmen through the
other half, is pushing the design of his ancestors, to get access to the Mediterranean; he is separating, one
after the other, the remotest members of the Ottoman Empire from its main body, till at last Constantinople,
the heart, must cease to beat. He repeats his periodical invasions as often as he thinks his designs on Turkey
endangered by the apparent consolidation of the Turkish government, or by the more dangerous symptoms
of self-emancipation manifest amongst the Slavonians. Counting on the cowardice and apprehensions of the
Western powers, he bullies Europe, and pushes his demands as far as possible, in order to appear magnanimous
afterwards, by contenting himself with what he immediately wanted.
The Western powers, on the other hand, inconsistent, pusillanimous, suspecting each other, commence by
encouraging the Sultan to resist the Tsar, from fear of the encroachments of Russia, and terminate by compelling
the former to yield, from fear of a general war giving rise to a general revolution. Too impotent and too timid
to undertake the reconstruction of the Ottoman Empire by the establishment of a Greek Empire, or of a Federal
Republic of Slavonic States, all they aim at is to maintain the status quo, that is, the state of putrefaction which
forbids the Sultan to emancipate himself from the Tsar, and the Slavonians to emancipate themselves from
the Sultan”.
7 O temor da revolução nas classes dominantes dos Estados europeus é o temor fundamental do Concerto Europeu
durante toda sua existência. Em 1848, em artigo na Nova Gazeta Renana, escreve Engels que “A Prússia,
a Inglaterra e a Rússia são os três poderes que mais temem a revolução alemã e seu resultado primordial – a
unificação alemã: a Prússia porque ela deixaria de existir, a Inglaterra porque seria privada da possibilidade de
198 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
Nessa perspectiva, Marx e Engels analisam a política externa (diplomacia
e forças armadas) das cinco grandes potências do Concerto Europeu na década
de 1850
8
, dedicando atenção particular às ações dos Estados para a Guerra da
Crimeia (1853-1856).
Marx e Engels relataram os objetivos e as ações da política externa do Estado
russo em diversos artigos (ENGELS, 1975a, 1975c; MARX, 1975a, 1975h, 1975i,
1975j). Engels (1890), especialmente, dedicou-se a analisar a (história da) política
externa da Rússia czarista na perspectiva de bastião reacionário, sufocador das
forças revolucionárias. Essas estavam então interessadas na vitória da revolução
na Rússia,
Primeiro, porque o Império do Czar é o pilar da reação europeia, sua última
posição fortificada e ao mesmo seu grande exército de reserva; porque sua
mera existência passiva é uma ameaça permanente e um perigo para nós.
Em segundo lugar – e esse ponto não está sendo suficientemente insistido
– porque sua intromissão incessante nos assuntos do Ocidente paralisa e
perturba nosso desenvolvimento normal, e isso é feito com o objetivo de
conquistar posições geográficas, o que assegurará à Rússia o domínio sobre a
Europa, esmagando todas as possibilidades de progresso sob a sola de ferro
do Czar [...] A diplomacia russa forma, até certo ponto, uma Ordem moderna
de jesuítas, poderosa o suficiente, se necessário, para vencer até os caprichos
de um Czar e para esmagar a corrupção dentro de seu próprio corpo, apenas
para espalhá-la mais abundantemente no exterior [...] para tornar a Rússia
uma potência, poderosa e temida e abrir a ela o caminho para a soberania do
mundo (ENGELS, 1890, [s/p], tradução nossa)
9
.
explorar o mercado alemão, e a Rússia porque a democracia avançaria não só até o Vístula [rio na Polônia], mas
até mesmo para o Dvina e o Dnieper [rios na Rússia]” (ENGELS, 1848, [s/p], tradução nossa). Versão original
do texto: “Prussia, England and Russia are the three powers which have greater reason than anyone else to fear
the German revolution and its first result -- German unity: Prussia because she would thereby cease to exist,
England because it would deprive her of the possibility of exploiting the German market, and Russia because,
it would spell the advance of democracy not only to the Vistula but even as far as the Dvina and the Dnieper”.
8 São em sua maioria análises difusas e concisas. Apresentadas em meio a outros assuntos, não dedicam suas
linhas de forma igualitária às cinco potências. Reunimos aqui as ideias de Marx e Engels que estão em seus
diversos artigos de jornal que tratam das relações internacionais, a partir do trabalho de Ferreira (1999).
9 “First, because the Empire of the Tsar is the mainstay of European reaction, its last fortified position and its great
reserve army at once; because its mere passive existence is a standing threat and danger to us. Secondly — and
this point is not now being sufficiently insisted upon — because by its ceaseless meddling in the affairs of the
West, it cripples and disturbs our normal development, and this with the object of conquering geographical
positions, which will assure to Russia the mastery over Europe, and thus crush every chance of progress under
the iron heel of the Tsar. […] Russian diplomacy forms, to a certain extent, a modern Order of Jesuits, powerful
enough, if need be, to overcome even the whims of a Tsar, and to crush corruption within its own body, only
to spread it the more plenteously abroad […] to make Russia great, powerful, and dreaded, and to open for her
the road to the sovereignty of the world.
199Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
A diplomacia russa influenciava e intervinha nos Estados europeus com a
finalidade de, além da manutenção do status quo de Viena, atingir a supremacia
mundial. Esse objetivo estava fundado nas condições materiais do território
colossal, da população em rápido crescimento (que supria o exército) e nas suas
condições de defesa, uma vez que a ausência de estradas, a imensidão da superfície
territorial e a pobreza de recursos a tornavam inexpugnável. Se as condições
defensivas eram favoráveis, as ofensivas sofriam com desorganização estratégica
e debilidade de equipamentos, além da corrupção em meio aos oficiais. Essa
fraqueza nunca foi segredo para a diplomacia russa, que, portanto, sempre que
possível evitou a guerra e só a aceitou como um último recurso e em situações
em que o adversário era claramente mais fraco (como nos atritos com a Turquia).
Assim, a diplomacia russa preferia usar os interesses e os objetivos antagônicos
das potências ocidentais para explorar suas inimizades em benefício da sua política
de conquista. Nas investidas contra Constantinopla, a política externa russa
interveio em diversas rebeliões e conspirações que levaram ao enfraquecimento da
autoridade do sultão, sobretudo fomentando e apoiando gregos, sérvios, búlgaros
e romenos sob a soberania do Império Otomano, alegando motivos religiosos e/ou
étnicos. Do outro lado, na Europa, suas intervenções tinham o outro propósito de
esmagar insurreições: era o czar o responsável por controlar a Polônia, derrotar
a Hungria e sufocar a unificação da Alemanha.
A política externa do Estado inglês, o “mais capitalista” das potências
do Concerto, perfilava ao lado dos demais Estados europeus autocráticos e
contrarrevolucionários, mobilizada pelos grandes objetivos da ordem de Viena:
conter a revolução e conquistar a supremacia internacional. Qualquer triunfo
revolucionário na Europa continental fortaleceria o movimento cartista no interior
da Inglaterra, então, derrotas das revoluções na França e na Alemanha, por
exemplo, eram derrotas do próprio cartismo, na percepção das classes dominantes
inglesas (burguesia e aristocracia feudal). Esse era um ponto de concordância entre
classes dominantes no Estado inglês, que já em matéria de projeção internacional
de interesses de classe não entravam em acordo. A política externa inglesa era
formulada e executada mediante interesses aristocráticos (em relação ao continente
europeu), uma vez que, embora a predominância do caráter capitalista da economia
e da sociedade, o Estado era governado por uma coalizão aristocrático-burguesa.
Contudo, a política externa para a Europa era dirigida (tradicionalmente) pela
aristocracia feudal, imbuída de históricas rivalidades geopolíticas com as dinastias
do velho continente. As propostas partidárias Tory e Whig em assuntos de
200 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
política externa no parlamento inglês representavam respectivamente a tendência
aristocrática, conservadora e protecionista e a burguesa, liberal e livre-cambista.
Nessa luta entre as classes dominantes, prevalecia a primeira, identificada na
figura de Lord Palmerson
10
, levando à caracterização da política externa inglesa
como pró-aristocrática, contrarrevolucionária e até nociva aos interesses da
burguesia. As propostas liberais, que ascendiam no Estado e na sociedade durante
a Guerra da Crimeia, consistiam na substituição das políticas de intervenção
diplomática e militar pelo estímulo ao desenvolvimento do livre-comércio
(MARX, 1975i, 1975j, 1975k, 1975l, 1975m, 1975n, 1975o, 1975p, 1975q, 1975r,
1975s, 1975t).
Sobre a política externa do Estado francês, sob o governo de Napoleão
Bonaparte III (o mesmo do golpe de Estado n`O 18 de Brumário), Marx e Engels
(ENGELS, 1975c, 1975d; MARX, 1975u, 1975v) a descreviam como aventureira e
expansionista, oriunda da necessidade de fortalecimento do regime bonapartista,
que sofria com instabilidade política e ilegitimidade internas. A política externa
francesa tendia à guerra, com a finalidade de desviar atenção de e abafar problemas
internos, justificar o estado de excepcionalidade política em vigor na França e
projetar as intenções de Bonaparte no exterior. Além de servir de justificativa para
eliminar impedimentos legais e pilhar os fundos do Estado. Contudo, os limites da
guerra eram a revolução e Bonaparte então se imiscuía em bravatas e simulações
em matéria de política externa. Tal dilema é relatado por Marx:
Bonaparte está embarcando na guerra de bom grado. Ele não tem alternativa,
a não ser a revolução em casa ou a guerra no exterior. Ele não pode
continuar mais, como ele faz, combinando o cruel despotismo de Napoleão
I com a política de paz corrupta de Luís Philippe. Ele deve deixar de enviar
novos lotes de prisioneiros para Caiena se não se atreve a enviar exércitos
franceses além das fronteiras. Mas o conflito entre as intenções declaradas
de Bonaparte e os planos secretos da coalizão só podem contribuir para
um novo emaranhado de problemas. O que eu concluo de tudo isso é que
não haverá guerra, mas, pelo contrário, que o problema assumirá dimensões
terríveis e revolucionárias, que nem sequer são suspeitas pelos pequenos
homens da coalizão. A sua própria perfídia é o meio de transformar um
10 Personalidade que ocupou altos postos do Estado inglês, como Secretário da Guerra, Secretário das Relações
Exteriores e Primeiro-Ministro, e foi alvo de duras críticas de Marx, que, além de denunciar sua compactuação
com a ordem de Viena, considerava-o um reacionário oportunista e russófilo. Marx dedicou uma série de
artigos a esse homem de Estado e sua política, que podem ser encontrados em Marx e Engels, Collected Works,
vol. 12. New York: International Publishers, 1979, p. 341-406.
201Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
conflito local [Guerra da Crimeia] em uma conflagração europeia. (MARX,
1975u, p. 33, tradução nossa)
11
.
As intenções de Bonaparte eram conquistar reconhecimento de seu regime,
considerado usurpador pelar monarquias europeias, conquistar prestígio junto
a povos oprimidos por seu papel de libertador – que um dia foi de seu tio – e
conquistar influência e territórios em regiões politicamente fracas, como a península
italiana, ainda que dentro dos marcos das negociações do Concerto Europeu.
Em suma, antes da supremacia na Europa, Bonaparte buscava uma posição de
protagonista no Concerto, revertendo sua marginalização no sistema, imputado à
França pelos Estados vencedores das guerras napoleônicas. Já os planos secretos
da coalizão (Estados de Inglaterra e França) eram justamente as negociações
diplomáticas acerca do expansionismo do Czar sobre a Turquia sem abalar o
status quo europeu, relatado por Marx ao discorrer sobre as correspondências
diplomáticas entre ingleses e russos (MARX, 1975x, 1975w).
Em relação aos Estados da Prússia e da Áustria, suas políticas externas estavam
intimamente ligadas ao temor da revolução. A aristocracia prussiana dos junkers,
por mais que almejasse enfraquecer a influência russa na Europa centro-oriental
e controlar todo o território polonês, não se mobilizou contra o bastião das
monarquias europeias, temendo o despertar revolucionário nas suas próprias terras.
O Estado austríaco, endividado e acometido por insurreições internas, restringia
suas incursões no exterior e sua política externa se voltava para a conservação do
seu império. Por mais que se incomodasse com a ingerência russa na península
balcânica, a autocracia austríaca não buscou enfraquecer a política externa russa,
pois a ela não poderia recorrer no caso de estalos revolucionários. Além disso, a
debilidade econômica do Estado austríaco o constrangia a manter boas relações
com as grandes potências, tendo em vista auxílios financeiros vindouros. Por
tais motivos, Áustria e Prússia mantiveram neutralidade na Guerra da Crimeia
(MARX, 1975p, 1975y).
11 “Bonaparte is of course in good earnest in embarking in the war. He has no alternative left but revolution at
home or war abroad. He cannot any longer continue, as he does, to couple the cruel despotism of Napoleon
I with the corrupt peace policy of Louis Philippe. He must stop sending new batches of prisoners to Cayenne,
if he dare not simultaneously send French armies beyond the frontiers. But the conflict between the avowed
intentions of Bonaparte and the secret plans of the coalition can only contribute to further embroil matters.
What I conclude from all this is, not that there will be no war, but, on the contrary, that it will assume such
terrible and revolutionary dimensions as are not even suspected by the little men of the coalition. Their very
perfidy is the means of transforming a local conflict into a European conflagration”.
202 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
É digna de nota, ainda, a percepção de Marx e Engels sobre a condição
da Turquia. Esse Estado muçulmano, que outrora ameaçara a Europa com sua
política anexionista, é descrito como uma potência decadente, alijada das decisões
políticas internacionais, consumido por conflitos internos e objeto das potências
do Concerto: alvo do expansionismo czarista e da cobiça (inclusive comercial)
dos ocidentais, principalmente Inglaterra e França. As cinco potências buscavam
tanto se aproveitar da ruína do Império Otomano para controlar territórios e
populações quanto evitar que o colapso do poder do sultão gerasse instabilidade
política decorrente da disputa pela absorção e pelo acúmulo de recursos de poder
por parte de uma delas. A condição da Turquia no sistema de Viena é o que Marx
e Engels chamam de Questão Oriental (ENGELS, 1975a, 1975c, 1975d; MARX;
ENGELS, 1975b; MARX, 1975a, 1975b, 1975h, 1975i, 1975j, 1975k, 1975m, 1975z,
1975aa, 1975ab, 1975ac, 1975ad, 1975ae).
A própria Guerra da Crimeia, o primeiro confronto armado a opor as potências
do Concerto – Inglaterra, França e Turquia de um lado, Rússia do outro –, longe
de ser uma disputa por lugares sagrados no Oriente Médio entre França, Rússia e
Turquia, consistia no choque entre o expansionismo czarista e o receio ocidental
sobre o agigantamento do poder russo. Enquanto a política externa inglesa
procurava mediar diplomaticamente os atritos entre russos e turcos, a política
externa francesa se engajava em instigar a guerra, seguindo as intenções de
Bonaparte. E ambas buscavam influenciar e controlar regiões do decadente império.
Marx e Engels (MARX; ENGELS, 1975a, 1975b; ENGELS, 1975c; MARX, 1975v,
1975af) entendiam a política internacional da Europa e a Guerra da Crimeia como
uma balança de poder (condicionada pelas perspectivas contrarrevolucionárias
das classes dominantes europeias): “Foi igualmente um erro descrever o guerra
contra a Rússia como uma guerra entre liberdade e despotismo [...] a guerra é a
manutenção da balança de poder e dos tratados de Viena – os mesmos tratados
que anulam a liberdade e a independência de nações” (MARX, 1975v, p. 228,
tradução nossa).
Assim, a guerra não foi um confronto bélico generalizado, muito menos a
superação do Congresso de Viena, mas sim um ajuste no status quo, de modo a
introduzir a Turquia de maneira subordinada no esquema das potências gestoras
do sistema internacional. Como escrevem ambos:
A guerra anglo-francesa contra a Rússia figurará, sem dúvida, na história
militar como “a guerra incompreensível”. Muita conversa combinada com
pouca ação, vastas preparações e resultados insignificantes, precaução que
203Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
beira a timidez, seguida de temeridade nascida da ignorância, generais
mais do que medíocres à frente de tropas mais do que corajosas, revezes
na sequência de vitórias conquistadas por erros, exércitos arruinados pela
negligência e então salvos pelo mais estranho dos acidentes – um grande
conjunto de contradições e inconsequências (MARX; ENGELS, 1975c, p. 484,
tradução nossa)
12
.
Tal passagem indica, novamente, que as potências ocidentais não estavam
interessadas na derrocada do Estado russo. Marx e Engels mostram que as
operações militares anglo-francesas ocorriam em áreas periféricas, distante dos
centros da vida política russa
13
, o que anulava qualquer possibilidade de estalos
de insurreição popular. As bravatas e simulações que os governantes ocidentais
transformavam em estratégia e tática, em seus discursos sobre a guerra para
seus países, são trazidas à tona pelos amigos como o temor da revolução, pois
a contenção do expansionismo russo não podia ir longe demais, ao ponto de
demolir o baluarte da ordem de Viena (MARX, 1975af; ENGELS 1975d, MARX;
ENGELS, 1975d, 1975e)
14
. Nessas análises da política internacional, portanto, guerra
(internacional) e revolução (nacional, num primeiro momento) são apresentadas
com elementos indissociáveis.
Do exposto, identificamos, portanto, em tais análises, tendências e ausências.
Marx e Engels tendem a articular as relações exteriores dos Estados ao processo
político nacional
15
, no interior de suas fronteiras (e vice-versa). Essa tendência é
12 “The Anglo-French war against Russia will undoubtedly always figure in military history as "the incomprehensible
war". Big talk combined with' minimal action, vast preparations and insignificant results, caution bordering on
timidity, followed by the foolhardiness that is born of ignorance, generals who are more than mediocre coupled
with troops who are more than brave, almost deliberate reverses on the heels of victories won through mistakes,
armies ruined by negligence, then saved by the strangest of accidents—a grand ensemble of contradictions and
inconsistencies”.
13 As principais batalhas ocorreram em Sebastopol, cidade na península da Crimeia no Mar Negro. A península
foi ocupada pelos russos, mas reconquistada por seus inimigos.
14 A Guerra da Crimeia se encerrou com o Tratado de Paris de 30 de março de 1856, assinado por Inglaterra, França,
Turquia, Sardenha – que entrou posteriormente na guerra ao lado desses – e Rússia. O Tratado assegurou a
integridade do Império Otomano e obrigou a Rússia a devolver regiões aos turcos. Mas o bastião russo obteve a
condição de protetor dos principados às margens do Danúbio e dos cristãos em território otomano. O Tratado,
além de retificar a derrota russa, é um ponto de inflexão no Concerto, pois figuras como Otto Von Bismark, da
Prússia, desacreditam do mecanismo coletivo de soluções de conflitos entre as potências que possa contemplar
os interesses dos cinco grandes. Registra-se após o Tratado uma queda no número de artigos de Marx e Engels
dedicados à política internacional (FERREIRA, 1999).
15 Processo político nacional é a dinâmica das relações políticas entre grupos, classes sociais e frações de classes
sociais no interior de um Estado-nacional, onde tais agentes entram em cooperação, conflito ou confronto e o
Estado é o alvo principal de suas demandas. O termo nacional pode ser colocado entre aspas, dado que a agência
de classes, frações e grupo tende a transpassar o espaço nacional, como no Manifesto do partido comunista.
204 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
mais clara quando Marx (1975i, 1975j, 1975k, 1975l, 1975m, 1975n, 1975o, 1975p,
1975q, 1975r, 1975s, 1975t) escreve sobre as disputas políticas entre as classes
dominantes na Inglaterra, com o intuito de tomar as rédeas da política externa,
e quando Engels (1980) escreve sobre o caráter de classe da autocracia czarista.
Entretanto, devido às limitações de textos jornalísticos, está ausente a dinâmica
da luta de classes, tal qual ela é apresentada no Manifesto do partido comunista.
Ou seja, a articulação entre o internacional e o nacional nos textos publicados
em jornais está em estágio embrionário.
Desses dois pontos, tendência e ausência, propomo-nos a fazer apontamentos
para uma análise da (economia) política internacional, inspirada nas ideias de
Marx e Engels contidas principalmente no Manifesto do partido comunista,
articulando-as com seus textos sobre a política internacional. Vejamos.
No Manifesto, as unidades políticas do sistema internacional são os Estados
modernos (alguns revolucionados pela burguesia). Unidades estas em que
a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado
mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado
representativo moderno. O executivo no Estado moderno não é senão um
comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa [...] Impelida
pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo globo
terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte,
criar vínculo em toda parte. (MARX; ENGELS, 2010, p. 42-43).
Dessa forma, apontam que o Estado moderno atende prioritariamente as
demandas da burguesia como um todo (manutenção da propriedade privada dos
meios de produção e da força de trabalho como mercadoria a ser comprada no
mercado, isto é, as condições de dominação e exploração por parte da burguesia),
que, por sua vez, “vive em luta permanente; primeiro contra a aristocracia; depois,
contra as frações da própria burguesia [...] e sempre contra as burguesias de países
estrangeiros” (MARX; ENGELS, 2010, p. 48). Ou seja, escrevendo numa época em
que nem todos os Estados europeus tinham passado por revoluções burguesas
16
,
Marx e Engels se referem primeiramente à luta da burguesia contra a aristocracia
feudal, que, mesmo em Estados revolucionados pela burguesia, essa ainda lutava
16 Que é o caso da maioria dos Estados europeus, sobre os quais Marx e Engels escrevem ao analisar as forças
do Concerto Europeu. Notemos então que nos textos dos autores é possível identificar classes dominantes (no
plural) numa mesma conjuntura: a burguesia disputando com a aristocracia feudal os rumos da política do
Estado, como aparece nos artigos sobre a política externa da Inglaterra.
205Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
contra resquícios da ordem feudal e da aristocracia decadente. Segundo, referem-se
à luta da burguesia industrial contra frações
17
não industriais que se mobilizam
contra o desenvolvimento da indústria. Terceiro, impelida pela necessidade de
mercado, cada burguesia nacional luta contra concorrentes de outros Estados, no
exterior. Nesse caso, cabe ressaltar que os objetivos da burguesia, além de por
meio do Estado nacional, são viabilizados mediante política externa, assim como
sofrem com os efeitos do sistema interestatal.
As lutas permanentes da burguesia a formam enquanto classe, processo esse
que se concretiza com sua inserção no, e transformação do, Estado, perpetuando-
se como classe dominante
18
. Assim, ela consegue subordinar a política estatal aos
seus interesses. O Estado estabelece e legitima a propriedade privada dos meios de
produção, a exploração do trabalho assalariado e as demais condições necessárias
para que o modo de produção capitalista possa se sustentar. No pensamento
de Marx e Engels, a formação da classe burguesa já aparece dada (enquanto a
classe proletária é uma possibilidade real). No modo de produção capitalista, a
burguesia já está formada enquanto classe social, uma vez que seu processo de
formação de classe se confunde com o próprio nascimento, o desenvolvimento e
a sustentação do capitalismo
19
.
A luta permanente da burguesia encontra então um quarto oponente: o
proletariado. Sua formação não decorre diretamente das relações de produção
e das forças produtivas capitalistas (estrutura econômica) e, diferentemente da
formação da classe burguesa, não é inevitável. A estrutura econômica contém
potencialmente a classe trabalhadora, que pode ou não se formar (se se considera
apenas o nível econômico, objetivo, a classe social só existe enquanto virtualidade).
As circunstâncias históricas concretas e a ação política de agentes, como partidos,
sindicatos e movimentos sociais, possibilitarão ou não a conversão dessa classe,
17 Frações de classe significam que a classe social, seja ela a burguesia, a aristocracia feudal ou o proletariado,
não é homogênea. A formação da classe é condicionada pelo lugar que ocupa no processo de produção, mas em
circunstâncias históricas concretas no interior da classe surgem divergências que opõe seus programas políticos
e até as conduz ao confronto armado. Foi Boito Jr. (2007) que nos chamou atenção para as diferentes lutas da
burguesia, a distinção entre formação da burguesia e do proletariado, assim como sobre a cena política, a qual
abordaremos adiante.
18 Não há um conceito de classe dominante em Marx e Engels, mas se faz necessário nesse texto expor o que
entendemos por classe dominante nas obras em questão. Exercer preponderância econômica (controle do
processo de produção), intensa influência no Estado (centro legal e legítimo do processo decisório na sociedade
capitalista) e supremacia de ideias e valores na sociedade tornam uma classe dominante.
19 Marx esclarece esse processo ao tratar da assim chamada acumulação primitiva n’ O Capital (MARX, 2013).
Ver as passagens em p. 786-787 e p. 795-796, cap. XXIV.
206 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
potencialmente dada na estrutura econômica, em uma classe ativa, cuja formação,
interesses e objetivos serão definidos em processos de lutas. “O proletariado passa
por diferentes fases de desenvolvimento. Sua luta contra a burguesia começa
com a sua existência” (MARX; ENGELS, 2010, p. 47). É um processo irregular,
marcado por avanços e retrocessos. As lutas podem fazer crescer a unidade e a
organização do proletariado. Ademais, a própria burguesia compele o proletariado
para a luta política, dadas suas permanentes lutas inscritas no desenvolvimento
e na sustentação do capitalismo, inclusive, obviamente, a luta pela exploração
e dominação dos trabalhadores. Assim, o processo de formação do proletariado
enquanto classe é um caminho mais árduo do que a formação da classe burguesa,
mas é o caminho que conduz a processos revolucionários (BOITO JR., 2007).
Dessa forma, Marx e Engels usam a noção de classe social para indicar a ação
e a luta dos agentes sociais, definidos em função de sua inserção no processo
produtivo, pela apropriação da riqueza produzida na ordem econômica vigente
e pela influência no Estado existente (e, em menor medida na obra de Marx e
Engels, pela supremacia no terreno das ideias e dos valores sociais). Essa luta de
classes tende a ultrapassar as fronteiras nacionais, como afirmamos anteriormente:
a burguesia possui uma tendência à internacionalização e luta contra as burguesias
de países estrangeiros, cujos objetivos são viabilizados mediante política externa
do Estado, o qual, em determinadas circunstâncias, recorre à guerra.
A agência do proletariado igualmente não se limita às fronteiras nacionais.
Em primeiro lugar, no Manifesto, Marx e Engels apresentam a instauração da
contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de
produção vigentes como o elemento gerador de um desequilíbrio sistêmico que
caberia à luta de classes resolver. A era de revolução social é aquela em que o
desenvolvimento das forças produtivas é truncado, e não mais estimulado, pelas
relações de produção existentes e as classes sociais, como coletivos organizados
e em luta, representam, de um lado, as relações de produção “caducas”, lutando
pela preservação da estrutura social vigente, e, de outro, a outra classe representa
as forças produtivas em ascensão, lutando pela mudança histórica. Não se trata,
portanto, de um conflito econômico ou político qualquer, mas de um confronto
particular numa fase bem delimitada do processo histórico, um período de
revolução
20
. Em segundo lugar, no capitalismo, o proletariado enquanto classe
20 Consideramos que não há uma teoria (corpo teórico articulado e acabado) da revolução em Marx, mas sim
reflexões em direção a uma construção teórica – dinâmica e inacabada – para pensar o real e elaborar novas
ideias a partir do próprio real. O que destacamos é que a revolução (transformação estrutural de um modo de
207Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
é o agente da revolução, que não se limita ao espaço nacional, posto que é
internacional: “Que as classes dominantes tremam à ideia de uma revolução
comunista! Nela os proletários nada têm a perder, a não ser seus grilhões. Têm
um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”.
Apontamentos teóricos para analisar política internacional.
Como vimos ao longo das páginas anteriores, nas reflexões de Marx e Engels
acerca da política internacional, está ausente a análise da luta de classes no
processo político nacional. Embora, nos artigos que tratam da política externa
inglesa, exista uma incipiente conexão das relações exteriores do Estado com a
luta entre a aristocracia feudal e a burguesia na formulação de política externa,
e o papel do movimento dos trabalhadores (cartismo) que preocupa as classes
dominantes, ao tratar da política externa dos outros Estados europeus e da política
internacional em geral, os autores o fazem de modo superficial, como se o Estado
tivesse vontade própria (raison d’État) e/ou expressasse diretamente os interesses
do soberano (o czar, o rei, o imperador), sem conexão com a luta de classes
21
.
Por mais que a reunião das dimensões nacional e internacional no pensamento
de Marx e Engels seja perceptível e apropriada, é embrionária.
Com a finalidade de desenvolver uma proposição, nossos apontamentos
consistem em articular as dimensões internacional e nacional, que formam um
arcabouço teórico, o qual pode ser aplicado em análises empíricas. Isto é, em
análises sobre as relações entre as unidades políticas do sistema interestatal (tal
como fazem nos textos do New York Daily Tribune), deve estar contida a dinâmica da
luta de classes (tal qual no Manifesto do partido comunista), formando assim uma
produção) é agencia de um coletivo político que passa imprimir mudanças prévias no Estado (fator de coesão da
sociedade dividida em classes), isto é, uma revolução política que põe em marcha a formação de um novo tipo
de Estado, antes mesmo da revolução na economia, do choque entre forças produtivas e relações de produção.
Sobre o processo de transição ao socialismo e ao comunismo, Marx e Engels se abstiveram que qualquer descrição
detalhada, uma vez que suas características estariam no processo histórico ainda por vir. Mas tinham clareza
da luta política a ser travada pelo proletariado organizado em classe, como relata Marx sobre a Comuna de
Paris: “Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da
luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política [novo tipo de Estado] enfim descoberta
para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho” (MARX, 2011a, p. 59). Sobre tal processo, ver as
inconclusivas e incompletas passagens de Marx e Engels indicadas no capítulo 4 de Cohan (1981).
21 Marx, que escreveu a maioria dos artigos utilizados como referência neste texto, morava em Londres e costumava
frequentar as sessões do parlamento britânico. As informações sobre outros Estados, ele recebia por jornais ou
correspondência.
208 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
totalidade. Isso significa que analistas das relações internacionais orientados/as por
essa concepção devem levar em consideração, de modo articulado e simultâneo,
o estudo de: classes sociais e frações de classes sociais e seus programas (as forças
subjacentes); o Estado (lócus do poder), objeto da análise e intermediação do
nacional/internacional; e as forças externas do sistema interestatal. Portanto, as
pesquisas nesse sentido abarcam certas (árduas) tarefas.
A primeira delas é distinguir a chamada cena política da luta de classes.
Marx (2011b) distingue uma realidade aparente e superficial de uma realidade
essencial e profunda, cuja relação é ocultação e dissimulação da primeira pela
segunda. Desse modo, enquanto a realidade profunda se refere ao campo da luta
de classes, da prática política das classes e frações, isto é, da ação concreta das
forças sociais (realidade essencial), a realidade superficial ou a cena política é o
lugar da representação de tais forças (realidade aparente). A cena política é então
uma realidade superficial, enganosa, que deve ser desmistificada, despida de seus
próprios termos, para que se tenha acesso à realidade profunda dos interesses
e das ações de classe. Os agentes da cena política não declaram os interesses
que representam. A sociedade burguesa é uma sociedade anônima e os agentes
da burguesia mantêm o anonimato de classe (BOITO JR., 2007). Tampouco
tais agentes correspondem diretamente a interesses que por ventura venham a
declarar, dado que a representação de classe na cena política não é, na maioria
das vezes, unilinear, mas, sim, ocorrem dissimulações e defasagens. Assim, não
podemos incorrer no erro de investigar os agentes da cena política por narrativas,
nomenclaturas e bandeiras que eles mesmos se atribuem, correndo o risco de
permanecer na superfície enganosa do fenômeno. Esse procedimento serve tanto
para a dimensão internacional (Estado, diplomacia, forças armadas, organizações
internacionais) quanto para a dimensão nacional (governos, partidos, empresas,
associações de classe, organizações da sociedade civil).
Em segundo lugar, o quadro abaixo sistematiza nossa proposição teórica, com
espectro de totalidade (articulação internacional/nacional), que metodologicamente
é segmentada em: forças subjacentes, Estado e forças externas do sistema
interestatal:
209Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
Quadro 1 – Síntese da proposição teórica
Objeto de análise O que pesquisar
Forças subjacentes
Burguesia: frações, programas, organizações representativas, conflitos e
alianças, relações com o Estado, relações exteriores.
Proletariado: frações, programas, organizações representativas, conflitos e
alianças, relações com o Estado, relações exteriores.
Estado
Forma de Estado, governo, burocracia estatal (diplomacia e forças armadas)
e política pública (política externa).
Forças externas
Projeção dos interesses de Estados, classes e frações de classes sociais no
sistema internacional e a ingerências destes nas unidades políticas do sistema.
Fonte: elaboração própria.
Na análise dos fenômenos da política internacional, devemos levar em conta
os elementos do quadro. 1) Identificar na formação social nacional (Estado/
país): as frações da burguesia, sua organização e mobilização enquanto força
social, seus programas econômicos, políticos e ideológicos, seus conflitos e
alianças, suas relações com o exterior, suas organizações representativas e qual
ou quais delas têm primazia na influência sobre o Estado e lideram a condução
do desenvolvimento do capitalismo; a formação do proletariado enquanto classe,
as frações da classe trabalhadora como força social, seus programas (reformistas
ou revolucionários), seus conflitos e alianças, suas organizações representativas,
suas relações com o exterior (quando houver) e suas influências no Estado. Força
social são agentes sociais que, a partir do processo de produção, organizam-se,
mobilizam-se e militam coletiva e notavelmente em prol de interesses comuns e
para a consecução de determinados objetivos, procurando executar um programa
político. 2) Compreender a incidência das lutas entre classes e frações de classes
sociais no Estado: na constituição de sua forma (sistema e regime políticos) e
de seu governo/oposição (executivo, legislativo, judiciário), na burocracia civil
e militar do Estado e nos grupos que as compõem, e nas suas políticas estatais,
entre elas política externa/relações exteriores. 3) Tratar das pertinentes relações
entre Estados, classes sociais e frações de classes sociais no sistema interestatal
capitalista, das ingerências recíprocas entre as unidades políticas do sistema e seus
agentes sociais e seus conflitos e alianças (guerra e paz). Pois, a luta de classes não
ocorre apenas no interior, mas também entre os Estados nacionais. Assim sendo,
com esses procedimentos evitamos a reificação do Estado e podemos apreender,
a partir da articulação internacional/nacional indicada na obra de Marx e Engels,
a complexidade dos fenômenos internacionais.
210 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
Referências
BOITO JR. Armando. Estado, política e classes sociais. São Paulo: Unesp, 2007.
COHAN. A. S. Teorias da revolução. Brasília: Ed. UNB, 1981.
ENGELS, Friedrich. Foreign policy of Russian Tsardom. In: Time, 1890. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/marx/works/1890/russian-tsardom/index.htm.
Último acesso: fevereiro de 2018.
ENGELS, Friedrich. Napoleon`s war plans. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 14. New York: International Publishers, 1975d, p. 266-272.
ENGELS, Friedrich. The danish-prussian armistice. In: Nova Gazeta Renana, 1848.
Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/09/10a.htm.
Último acesso: fevereiro de 2018.
ENGELS, Friedrich. The French army. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 16. New York: International Publishers, 1975b, p. 171-176.
ENGELS, Friedrich. The real issue in Turkey. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975d, p. 13-17.
ENGELS, Friedrich. The Turkish question. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975c, p. 22-27.
ENGELS, Friedrich. What is to become Turkey in Europe. In: MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975a, p. 32-36.
FERREIRA, Muniz G. Mercados, diplomacia e conflitos: uma abordagem histórica das
relações internacionais, a partir dos artigos de Karl Marx e Friedrich Engels no New
York Daily Tribune no período 1851/1862. Tese (Doutorado em História Econômica)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
São Paulo, 347p. 1999.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. British politics – Disraeli – The refugees – Mazzini
in London – Turkey. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12.
New York: International Publishers, 1975b, p. 3-12.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. The anglo-french war against Russia. In: MARX. Karl
e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 14. New York: International Publishers,
1975c, p. 484-489.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. The debate on Layard`s motion – The war in the
Crimea. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 14. New York:
International Publishers, 1975d, p. 277-279.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. The local war – Debate on the administrative reform –
Report of the Roebuck Committee, etc. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 14. New York: International Publishers, 1975e.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. The money panic in Europe. In: MARX. Karl e ENGELS,
Friedrich. Collected Works, vol. 16. New York: International Publishers, 1975a, p. 162-166.
211Caio Bugiato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011a.
MARX, Karl. Austrian Bankrupcy. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works,
vol. 13. New York: International Publishers, 1975y, p. 43-49.
MARX, Karl. Debates in Parliament. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975n, p. 11-25.
MARX, Karl. Eccentricities of politics. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 14. New York: International Publishers, 1975c, p. 283-286.
MARX, Karl. English prosperity – Strikes – The Turkish question – India. In: MARX. Karl
e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers,
1975ab, p. 134-141.
MARX, Karl. Fall of the Aberdeen Ministry. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975s, p. 631-637.
MARX, Karl. From Parliament. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works,
vol. 14. New York: International Publishers, 1975af, p. 234-236.
MARX, Karl. Louis Napoleon´s position. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 16. New York: International Publishers, 1975e. p. 167-170.
MARX, Karl. Mazzini – Switzerland and Austria – The Turkish question. In: MARX. Karl
e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers,
1975aa, p. 107-111.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011b.
MARX, Karl. O Capital, Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl. On the ministerial crisis. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975r, p. 627-630.
MARX, Karl. Parliamentary debates of February 22 – Pozzo di Borgo`s Dispatch – The
policy of western powers. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works,
vol. 13. New York: International Publishers, 1975u. p. 26-34, p. 267-272.
MARX, Karl. Peace or war. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works,
vol. 16. New York: International Publishers, 1975f, p. 266-267.
MARX, Karl. Reorganization of the British war administration – The Austrian summons
– Britain`s Economic Situation – St. Arnaud. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975v, p. 227-233.
MARX, Karl. Russian diplomacy – The blue book on the Eastern Question – Montenegro.
In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International
Publishers, 1975m, p. 613-622.
MARX, Karl. Russian policy against Turkey – Chartism. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975a, p. 163-173.
MARX, Karl. The Czar´s view – Prince Albert. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975j. p. 289-293.
MARX, Karl. The defeated government. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975t, p. 638-641.
212 Marx e Engels: política internacional e luta de classes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 193-212
MARX, Karl. The documents of the partition of Turkey. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975x, p. 73-83.
MARX, Karl. The London press – Policy of Napoleon on the Turkish question. In:
MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International
Publishers, 1975z, p. 18-21.
MARX, Karl. The quadruple convention – England and the war. In: MARX. Karl e ENGELS,
Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975l. p. 527-535.
MARX, Karl. The russo-turkish difficulty – Ducking and dodging of the British cabinet –
Nesselrode`s last note – The east India question. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975ac, p. 192-200.
MARX, Karl. The secret diplomatic correspondence. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975w, p. 84-99.
MARX, Karl. The treaty between Austria and Prussia – Parliamentary debates of May 29.
In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 13. New York: International
Publishers, 1975p, p. 214-219.
MARX, Karl. The Turkish question – The Times – Russian Aggrandizement. In: MARX. Karl
e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers,
1975h. p. 112-114.
MARX, Karl. The Turkish question in the Commons. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975i. p. 265-276.
MARX, Karl. The war – Debate in Parliament. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich.
Collected Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975q, p. 258-266.
MARX, Karl. The war debate in Parliament. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 13. New York: International Publishers, 1975o, p. 132-142.
MARX, Karl. The war prospect in Europe. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 16. New York: International Publishers, 1975d, p. 158-157.
MARX, Karl. The war prospect in France. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected
Works, vol. 16. New York: International Publishers, 1975g, p. 261-266.
MARX, Karl. The war question – Doings of parliament – India. In: MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers, 1975b,
p. 209-216.
MARX, Karl. The western powers and the Turkey – Imminent economic crisis – Railway
construction in India. In: MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works,
vol. 12. New York: International Publishers, 1975ad, p. 309-317.
MARX, Karl. The western powers and Turkey – Symptoms of economic crisis. In: MARX.
Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers,
1975ae, p. 318-328.
MARX, Karl. Urquhart – Bem – The Turkish question in the House of Lords. In: MARX.
Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works, vol. 12. New York: International Publishers,
1975k. p. 267-274.
213Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Os interesses e as regras:
a Convenção de Minamata nas perspectivas
do Realismo Neoclássico e Construtivismo
1
The interests and rules:
the Minamata Convention in the perspectives
of Neoclassical Realism and Constructivism
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.780
Bruno Mendelski
2
Guilherme Frizzera
3
Resumo
A Convenção de Minamata regula a questão dos efeitos do mercúrio no meio ambiente. Essa
inciativa global inclui a participação de grandes potências como os EUA e a China, além de
outros países em desenvolvimento e que possuem parte de sua produção voltada à mineração.
A partir das perspectivas teóricas do realismo neoclássico e do construtivismo, o artigo cria
um diálogo entre as duas correntes, apontando a importância tanto da questão do poder
quanto da participação de importantes atores globais, quanto no papel das ideias, crenças
e das normas na construção de um regime de regulação do uso e dos efeitos do mercúrio.
A conclusão aponta que, além do alto custo do constrangimento pela não participação de
um regime normativo do meio ambiente, o sucesso da Convenção de Minamata está na
participação de Pequim e Washington. Esses países levam à participação de outros atores.
Por fim, estimula-se a aproximação dos estudos de meio ambiente com os das teorias de
relações internacionais.
Palavras-Chaves: Convenção de Minamata; Teoria das Relações Internacionais; Realismo
Neoclássico; Construtivismo.
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
2 Graduado (UNILASALLE-RS), mestre (UFRGS), doutorando em Relações Internacionais (IREL/UnB) e bolsista
CAPES. Professor Assistente desde 2012 do Curso de Relações Internacionais da UNISC. Atualmente é Katip
Fellow (Turkish Communication Program for Public Officials and Academic Staff) e Visiting Doctoral Student
at the Department of Political Science and International Relations at University of Istanbul.
3 Graduado em Relações Internacionais pelas Faculdades Integradas Rio Branco. Mestre em Integração da América
Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade
de Brasília (IREL/UnB) e bolsista CAPES.
Artigo submetido em 27/03/2018 e aprovado em 01/11/2018.
214 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Abstract
The Minamata Convention regulates the effects of mercury on the environment. This global
initiative includes the participation of major powers such as the United States and China, as
well as other developing countries, which take part in consideration of their mining-related
output. From the theoretical perspectives of Neoclassical Realism and Constructivism,
the article creates a dialogue between the two theoretical frameworks. Pointing out the
importance of both questions of power and participation of important global actors, and
the role of ideas, beliefs and norms in the construction of a regime governing the use and
effects of mercury. The conclusion is, as well as the high cost of embarrassment due to the
non-participation of a normative regime of the environment, the success of the Minamata
Convention is in the participation of Beijing and Washington. Those countries lead other
actors to participate of a regime. Finally, it stimulated the approximation of environmental
studies with those of International Relations Theories.
Keywords: Minamata Convention; International Relations Theory; Neoclassical Realism;
Constructivism.
Introdução
Os tratados, regimes e a governança internacionais são importantes fontes
de análise nas relações internacionais e uma das discussões mais ricas no
aspecto teórico. Diversos ângulos analíticos utilizam questões globais para que
possam basear e sustentar seus avanços intelectuais na academia. Esses esforços
se traduzem em correntes que, a princípio, são antagônicas, mas que, quando
utilizadas para criar um debate de via média, contribuem para o enriquecimento
do campo de estudo. No caso, o realismo e o construtivismo.
Jogos de poder, status quo, prestígio, poder, hard power, ganhos relativos e
maximização do poder são conceitos próprios da corrente do realismo, os quais
também se fazem presentes em sua abordagem neoclássica. A cooperação se
sustenta a partir de uma análise racional de quem ganhará mais ao estabelecer um
acordo com outro Estado. Em uma abordagem cooperativa mais abrangente, isto
é, quando os acordos possuem características multilaterais ou até mesmo globais,
esses assumem um outro aspecto caro para os realistas: quem criará as regras?
O estabelecimento dessas regras e os efeitos coercitivos são importantes fatores
para os interesses dos Estados. Outrossim, essa é uma discussão fundamental
para o construtivismo nas relações internacionais.
215Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Focando no papel das normas e regras, o construtivismo introduz a importância
da normatização no ambiente internacional. A questão de como as regras
são socializadas, internalizadas ou refutadas pelos agentes, o socializador e a
governança internacional em forma de instituições e organizações – ou, até mesmo,
uma governança sem governo –, são as principais perguntas do construtivismo
para uma discussão que envolva tratados, cooperação ou regimes internacionais.
Dando uma menor importância a questão de quem irá lucrar mais em um
ambiente cooperativo, o construtivismo tende a ver o benefício gerado por essas
institucionalizações de uma forma geral e não específica.
A pergunta que se faz é: ao juntar as duas formas de análise, pode-se ter
um panorama mais completo do que levam os agentes a cooperar e buscar a
institucionalização de temas no ambiente internacional?
Para responder tal pergunta, será analisada a Convenção de Minamata sobre
o uso do mercúrio pelos países. Esse importante acordo internacional possui a
participação de importantes players, como os Estados Unidos e a China, assim
como demais países cuja literatura poderia classificar como subdesenvolvidos ou
em desenvolvimento. A discussão proposta visa integrar duas visões analíticas
teóricas distintas e busca encontrar uma via média específica para a questão de
Minamata. Com isso, apresentar-se um quadro de menor fragmentação no campo
das teorias de relações internacionais, utilizando-se uma abordagem mais plural
e contribuindo para o debate teórico da disciplina.
A Convenção de Minamata
A Convenção de Minamata é um tratado global destinado a proteger a
saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do mercúrio (MINAMATA
CONVENTION ON MERCURY, 2017). Para Eriksen e Perrez (2014) a apresentação,
em 2001, de um estudo sobre o mercúrio pelos EUA durante a 21ª sessão do
Governing Council of the United Nations Environment Programme (GC-UNEP)
marca o início das articulações globais a respeito da limitação do uso do mercúrio.
A reunião seguinte do GC-UNEP, em 2003, apresenta dois avanços em relação à
necessidade de restrição do uso do mercúrio. O primeiro remete à constatação
de que “existe suficiente evidência dos significativos impactos globais adversos
do mercúrio e seus componentes para justificar novas ações internacionais para
reduzir os riscos para a saúde humana e para o meio ambiente” (UNEP/GC.22/11,
216 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
2003, p. 52, tradução livre
4
). Segundo: também sinaliza, pela primeira vez, a
concordância dos Estados em adotar ações imediatas para mitigar o problema do
mercúrio (UNEP, 2003).
Entretanto, a discussão de uma abordagem vinculante sobre o mercúrio não
prosperou em razão da oposição de importantes países ricos e em desenvolvimento.
EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia argumentaram que um instrumento
vinculante seria muito custoso e de difícil implementação, sendo mais eficiente
uma abordagem voluntária (UNEP/GC.23/11, 2005). Já China e Índia sustentavam
que
os países em desenvolvimento apoiavam fortemente a gestão internacional
de produtos químicos [mercúrio], mas enfatizam que todas as decisões
propostas sobre o assunto deveriam incluir disposições sobre transferência
de tecnologia, capacitação e financiamento sustentável (UNEP, 2005, p. 63,
tradução livre
5
).
Durante a 24ª sessão da UNEP-GC, o apoio a uma abordagem vinculante
aumentou, contando com a adesão de países africanos, da União Europeia,
Brasil, Japão, Rússia e Uruguai (UNEP, 2007). Em 2009, a mudança de postura
dos EUA influenciou grandes players como Canadá, Austrália, China e Índia a
serem mais receptivos à adoção de medidas vinculantes para a restrição do uso do
mercúrio (SELIN, 2014). Como resultado, houve a decisão 25/5 do UNEP-GC de
2009, a qual demandava que os Estados iniciassem negociações para assinar um
tratado sobre a contenção do uso do mercúrio (UNEP, 2009). Os encontros foram
chamados de Intergovernmental Negotiating Committee e, no decorrer da quinta
reunião (janeiro de 2013 em Genebra), a Convenção de Minamata foi assinada
por delegados de 140 países (MINAMATA CONVENTION, 2017). Posteriormente,
depois da ratificação do 51º membro, o tratado entrou em vigor em outubro do
mesmo ano (MINAMATA CONVENTION, 2017).
O compromisso recebeu o nome da cidade japonesa de Minamata, a qual
sofreu, na década de 1950, um grande derramamento de mercúrio em sua baía,
resultando na morte de 900 pessoas. No evento, 2.265 pessoas foram diagnosticadas
4 No original em inglês: “that there is sufficient evidence of significant global adverse impacts from mercury and
its compounds to warrant further international action to reduce the risks to human health and the environment”.
5 No original em inglês: “that developing countries strongly supported international chemicals management but
stressed that all proposed decisions on the subject should include provisions on technology transfer, capacity-
building and sustainable funding”.
217Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
com intoxicação por mercúrio – agora conhecida como doença de Minamata
(UNIDO, 2014). Até a presente data, 128 Estados assinaram a Convenção de
Minamata e 98 desses a ratificaram
6
.
A concretização desse tratado se reveste de importância, na medida em
que o mercúrio e a maioria dos seus compostos são altamente tóxicos para os
seres humanos e para o meio ambiente. Sua periculosidade pode ser observada
na constatação de que a ingestão de grandes quantidades do mercúrio pode ser
fatal, e mesmo doses baixas podem ter graves efeitos para a saúde (EUROPEAN
COMMISSION, 2017).
De acordo com o site oficial do acordo, a Convenção de Minamata procurará:
a proibição de novas minas de mercúrio, a eliminação das já existentes, a
eliminação e a redução do uso de mercúrio em vários produtos e processos,
medidas de controle sobre emissões para o ar e em libertações para a terra e
água, e a regulamentação do setor informal de mineração de ouro artesanal
e em pequena escala. A Convenção também aborda o armazenamento
provisório de mercúrio e sua disposição, uma vez que se torne desperdício,
locais contaminados pelo mercúrio e problemas de saúde. (MINAMATA
CONVENTION, 2017)
Destarte, conforme preconiza o 1º artigo do tratado, o principal objetivo
da Convenção é “proteger a saúde humana e o meio ambiente das emissões
antropogênicas e libertações de mercúrio e compostos de mercúrio” (MINAMATA
CONVENTION, 2017). A convenção versa sobre todo o ciclo de vida do mercúrio,
desde a sua extração mineral até a eliminação de seus resíduos. Para tanto,
o acordo determina medidas de controle obrigatórias para todos os Estados
membros. Assim, o objetivo central da Convenção de Minamata reside em eliminar,
progressivamente, a adição de mercúrio aos níveis já existentes no meio ambiente
e na cadeia alimentar (MINAMATA CONVENTION, 2017).
6 São eles: Afeganistão, Alemanha, Antígua e Barbuda, Argentina, Armênia, Áustria, Bélgica Benin, Bolívia,
Botswana, Brasil, Bulgária, Burkina Faso, Canadá, Chade, Chile, China, Costa Rica, Croácia, Cuba, Dinamarca,
Djibouti, Equador, El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Eslováquia, Eslovênia, Estados Unidos da América,
Estônia, eSwatini, Finlândia, França, Gabão, Gâmbia, Geórgia, Gana, Guiné, Guiana, Honduras, Hungria, Irã,
Islândia, Índia, Indonésia, Jamaica, Japão, Jordânia, Kiribati, Kuwait, Laos, Letônia, Líbano, Lesoto, Liechtenstein,
Lituânia, Luxemburgo, Madagascar, Mali, Malta, Mauritânia, Maurício, México, Moldávia, Mônaco, Mongólia,
Namíbia, Nicarágua, Níger, Nigéria, Noruega, Países Baixos, Palau, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, Reino
Unido, República Dominicana, República Checa, Romênia, Ruanda, Saint Kitts e Nevis, Samoa, Senegal, São
Tomé e Príncipe, Seychelles, Serra Leoa, Singapura, Sri Lanka, Suriname, Suécia, Suíça, Síria, Tailândia, Togo,
União Europeia, Uruguai, Vietnã, Zâmbia (MINAMATA CONVENTION, 2017).
218 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
O sucesso, envolvendo uma negociação tão complexa, demanda um profundo
estudo dos fatores que possibilitaram a sua efetivação. Os insights da abordagem
teórica do realismo nas relações internacionais, em sua corrente neoclássica,
fornecem um valioso aporte para tal análise.
Interesses e constrangimentos internos e externos: contribuições
do Realismo Neoclássico
O realismo neoclássico surge no final dos anos de 1980 e se consolida como
abordagem teórica relevante das relações internacionais durante os anos de 1990.
Essa corrente se intitula “neo” clássica pois visa retomar dois aspectos analíticos
do realismo clássico que foram negligenciados pelo realismo estrutural: o papel
dos líderes políticos como variável analítica e a política externa como variável
dependente (ROSE, 1998).
O exame do comportamento dos líderes políticos se enquadra naquela que
é considerada a grande inovação teórica apresentada pelo realismo neoclássico:
a incorporação das variáveis domésticas (intervenientes) para o estudo das políticas
externas estatais (TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN, 2009). Dessa forma, “no mundo
do Realismo Neoclássico, os líderes podem ser constrangidos tanto por políticas
internacionais quanto domésticas” (ROSE, 1998, p. 152, tradução livre
7
). Logo, a
política externa dos Estados (variável dependente) constitui-se como o resultado
da interação entre as pressões do sistema internacional (variável independente) e
os condicionantes domésticos (variável interveniente) (KITCHEN, 2010).
As pressões internacionais devem ser compreendidas como o resultado das
interações entre os Estados, tendo como balizador o poder relativo de cada um
deles (SCHWELLER; PRIESS, 1997). Então, o poder relativo dos Estados se constitui
como a principal variável independente (ROSE, 1998).
A respeito das variáveis intervenientes, não há um consenso entre os
realistas neoclássicos a respeito de quais sejam as variáveis domésticas a serem
investigadas. Todavia Taliaferro, Lobell e Ripsman (2009) apontam quatro
fatores que, frequentemente, atuam como variáveis intervenientes: 1) capacidade
governamental de mobilizar recursos; 2) influência de grupos de interesse; 3)
7 No original em inglês: “In the neoclassical realist world leaders can be constrained by both international and
domestic politics”.
219Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
grau de autonomia do Estado perante a sociedade; 4) nível de coesão da elite
ou societal. Esses condicionantes domésticos e internacionais serão levados em
conta pelos líderes políticos para implementar a sua agenda externa. Assim,
as percepções dos líderes sobre o poder relativo de seus Estados e dos demais
representam outra importante variável (ROSE, 1998). Portanto, são os líderes que
definem os “interesses nacionais” e conduzem a política externa, baseados na
sua leitura sobre o mundo (TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN, 2009).
Esses entendimentos teóricos fornecem preciosos aportes para uma análise
acerca dos constrangimentos que motivaram EUA e China a aderirem à Convenção
de Minamata. O sucesso desse acordo multilateral global igualmente permite trazer
ao debate acadêmico premissas tradicionais do realismo, como o pressuposto de
que os Estados são os atores mais importantes do sistema internacional e a questão
do papel central que as grandes potências exercem na política internacional.
Começando por esses dois pontos, importantes autores ressaltam que o
êxito da Convenção de Minamata se relaciona, diretamente, com a postura de
liderança nesse processo executada pela principal potência mundial, os EUA, e
pela concordância da China, maior produtora do produto em escrutínio e também
outra grande potência (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH, 2012; STOKES;
GIANG; SELIN, 2016; SELIN, 2014; YANG, 2014).
Para Yang (2014), a rápida adesão de Washington ao acordo foi um passo
crucial para garantir que a convenção tivesse um alcance efetivo com a participação
de países chave. Mesmo antes da ratificação do tratado, durante o processo de
negociação, quando os EUA anunciaram que estariam dispostos a aceitar uma
abordagem juridicamente vinculativa em 2009, imediatamente vários países
passaram a defender a mesma posição, incluindo Estados chave, como a China
e a Índia (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH, 2012). Outrossim, conforme
preconizava Yang (2004), o mais abrangente acordo ambiental global só seria
eficiente se os principais Estados responsáveis pela poluição do mercúrio aderissem
ao acordo, situação que realmente se materializou, com a adesão de Pequim e
Nova Déli. Percebe-se assim que o pressuposto tradicional do realismo (também
defendido pelos neoclássicos), de que os Estados são os atores mais importantes do
sistema internacional, ainda encontra respaldo na realidade empírica (TALIAFERRO;
LOBELL; RIPSMAN, 2009).
Além disso, o preceito do realismo neoclássico de que as decisões de política
externa são tomadas pelos líderes, levando em conta os constrangimentos externos e
internos aos quais são submetidos, parece ser um ótimo guia para a compreensão da
220 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
adesão de Washington e Pequim à Convenção de Minamata (SCHWELLER; PRIESS;
1997). Iniciando pelo caso dos EUA, observa-se a existência de duas variáveis
independentes: uma considerável perda de soft power na comunidade internacional,
em razão de políticas unilaterais do governo W. Bush, e a possibilidade de existir
uma maior regulação internacional sobre as emissões atmosféricas de mercúrio.
Segundo o postulado do realismo neoclássico, para compreender como os Estados
interpretam e respondem às pressões sistêmicas, é necessário analisar como as
mesmas se traduzem em variáveis intervenientes domésticas (ROSE, 1998).
A primeira variável independente irá se relacionar com a mudança de
orientação político-ideológica da presidência dos EUA (W. Bush – Obama).
Durante o governo do primeiro, Washington defendia um entendimento voluntário
para tratar do problema do mercúrio. Com a chegada de Obama ao poder, essa
abordagem alterou-se profundamente (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH,
2012). Também pode-se agregar à análise outro elemento relevante para o realismo
neoclássico: a personalidade e a percepção dos líderes sobre a realidade material
(TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN, 2009). Nessa linha, destaca-se que Obama
possuía um interesse pessoal sobre o assunto, visto que, quando ele ainda era
senador em 2007, introduziu uma lei que proíbe a venda, distribuição, transferência
e exportação de mercúrio (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH, 2012). Na
ocasião da promulgação da lei, Obama comentou:
A aprovação pelo presidente desse projeto de lei bipartidário é uma importante
vitória para milhões de cidadãos vulneráveis do mundo que estão expostos
aos efeitos nocivos do mercúrio todos os dias. A exposição ao mercúrio
leva a sérios problemas de desenvolvimento em crianças, bem como
a problemas que afetam a visão, habilidades motoras, pressão arterial
e fertilidade em adultos. Apesar dos esforços do nosso país para conter
e coletar mercúrio ao longo dos anos, continuamos sendo um dos líderes
mundiais na exportação desse perigoso produto, por isso estou orgulhoso
que esse projeto de lei irá finalmente proibir as exportações de mercúrio.
(UNITED STATES, 2008, p. 1, grifos nossos, tradução livre
8
)
8 No original em inglês: "The President's approval of this bipartisan bill is an important victory for millions of
the world's most vulnerable citizens who are exposed to the harmful effects of mercury every day," Senator
Obama. "Exposure to mercury leads to serious developmental problems in children as well as problems affecting
vision, motor skills, blood pressure, and fertility in adults. Despite our country's improved efforts to contain
and collect mercury over the years, we remain one of the world's leading exporters of this dangerous product,
so I am proud this bill will finally ban mercury exports”.
221Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Ao interesse pessoal do líder, conjuga-se a necessidade de melhora do soft
power americano (variável independente). Essa mudança de comportamento
também pode ser vista no esforço de Obama em fortalecer o multilateralismo dos
EUA, visando recuperar o prestígio do país. O discurso de estreia de Obama nos
encontros anuais da Assembleia Geral das Nações Unidas em 2009 exemplifica
essa postura:
Eu assumi o cargo em uma época em que muitos ao redor do mundo viam
a América com ceticismo e desconfiança. Parte disso foi devido a percepções
errôneas e desinformação sobre o meu país. Parte disso se deve à oposição
a políticas específicas e à crença de que, em certas questões críticas, os
Estados Unidos agiram unilateralmente, sem considerar os interesses de
outros. Isso alimentou um antiamericanismo quase que automático, que
muitas vezes serviu como uma desculpa para nossa inação coletiva (...) Mas
acredito firmemente que no ano de 2009 – mais do que em qualquer outro
momento da história da humanidade – os interesses das nações e dos povos
são compartilhados (...) Devemos abraçar uma nova era de engajamento
baseada em interesses mútuos e respeito mútuo, e nosso trabalho deve
começar agora (...) Em uma era em que nosso destino é compartilhado, o
poder não é mais um jogo de soma zero. Nenhuma nação pode ou deve
tentar dominar outra nação. Nenhuma ordem mundial que eleva uma nação
ou grupo de pessoas sobre outra terá sucesso. (OBAMA, 2009, p. 1-3, grifos
nossos, tradução livre
9
).
Essa declaração denota uma articulação entre a variável interveniente
(percepção do líder) com a variável independente (antiamericanismo). Dessa
forma, houve um cenário propício ao retorno de Washington ao multilateralismo.
Nesse contexto, cabe registrar que o último grande tratado multilateral, no âmbito
do meio ambiente, assinado pelos EUA, foi a Convenção das Nações Unidas para
o Combate da Desertificação, no distante ano de 1994 (YANG, 2014).
9 No original em inglês: “I took office at a time when many around the world had come to view America with
skepticism and distrust. Part of this was due to misperceptions and misinformation about my country. Part of
this was due to opposition to specific policies, and a belief that on certain critical issues, America has acted
unilaterally, without regard for the interests of others. This has fed an almost reflexive anti-Americanism,
which too often has served as an excuse for our collective inaction (...) But it is my deeply held belief that in
the year 2009 – more than at any point in human history – the interests of nations and peoples are shared (...)
We must embrace a new era of engagement based on mutual interests and mutual respect, and our work must
begin now (...) In an era when our destiny is shared, power is no longer a zero sum game. No one nation can or
should try to dominate another nation. No world order that elevates one nation or group of people over another
will succeed”.
222 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Já a outra variável independente conecta-se com a conveniência de dispor
de maior ingerência sobre as emissões de mercúrio na atmosfera, as quais têm
um impacto direto nos EUA. Segundo Andresen, Rosendal e Sjkjoerseth (2012),
somente 17% do mercúrio depositado em solo americano advém do país ou do
Canadá. Visto que a China é o principal exportador de emissões de mercúrio
para os EUA, Washington tem um grande interesse em uma efetiva regulação
internacional das emissões de mercúrio (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH,
2012). Essa aspiração externa conjuga-se com as pressões domésticas sob o uso do
mercúrio. Selin (2014) aponta que, em 2011, os EUA passaram a estipular padrões
mais rigorosos para emissões de mercúrio em usinas de energia. Portanto, a visão
realista neoclássica, de que os líderes enfrentam um jogo de dois níveis (interno
e externo) para implementar a sua agenda externa, parece se aplicar bem no caso
em questão (TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN, 2009).
Analisando a ratificação chinesa à Convenção de Minamata por tal perspectiva
teórica, pondera-se que, como variável independente, está a pressão em participar
desse regime internacional, em razão de Pequim ser o maior produtor de mercúrio.
Conjunturalmente, o fato de os EUA terem, a partir de 2009, concordado com
uma abordagem, juridicamente, vinculativa sobre a temática do mercúrio,
possivelmente constrangeu a China a aderir a essa posição, em razão do custo
político (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH, 2012). Isso posto, convém
trazer a visão realista neoclássica, a qual reconhece a importância de pressões
externas competitivas e os efeitos socializantes que moldam o comportamento
dos Estados. Porém, postula-se que a motivação dos Estados advém não do apelo
normativos dos outros Estados, mas sim do desejo de aumentar a sua vantagem
competitiva e sua chance de sobrevivência (TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN,
2009). Também se destaca que a estratégia de consentir com regimes internacionais
compulsórios oferece às potências emergentes um “assento à mesa” para informar
as suas demandas, dando-lhes oportunidade para que tenham uma voz efetiva
(SCHWELLER; PRIESS, 1997).
O constrangimento gerado pela variável independente, descrita acima, irá se
conectar com um ambiente doméstico político-econômico extremamente favorável
à limitação do uso do mercúrio. O realismo neoclássico identifica a capacidade
estatal em extrair recursos e mobilizar sua sociedade como uma crucial variável
interveniente entre imperativos sistêmicos e a formulação e execução da política
externa (TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN, 2009). Dessa forma, destaca-se que,
nos últimos anos, o uso limitado do mercúrio resultou no avanço na utilização de
223Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
outros materiais como fonte de energia (ANDRESEN; ROSENDAL; SKJAERSETH,
2012). Na China, em 2013, o uso de fontes não carvoeiras superou as de carvão,
sinalizando uma mudança do uso da eletricidade baseada em carvão (CEC, 2013).
A limitação e o uso mais eficiente e sustentável do mercúrio pela China têm sido
possível na medida em que Pequim dispõe da tecnologia necessária para tanto.
Ademais, o país possui importantes recursos potenciais de xisto (STOKES; GIANG;
SELIN, 2016).
Afora esses condicionantes econômicos, outro fator tem exercido pressão sob
o setor de mercúrio e o governo chinês: a poluição do ar tornou-se uma importante
questão política na China, com as emissões de carvão ocupando um relevante
papel nesse sentido (STOKES; GIANG; SELIN, 2016). A população chinesa tem
estado cada vez mais insatisfeita com a regulamentação do governo a respeito
das usinas de energia (ZHENG; KAHN, 2013). Dessa forma, Pequim começou a
tomar medidas mais rigorosas a respeito da qualidade do ar (STOKES; GIANG;
SELIN, 2016).
Tal associação entre variáveis independentes e intervenientes é fundamental
para entender a decisão de Pequim de aderir à Convenção de Minamata. Também
é útil o entendimento realista neoclássico de que são os líderes políticos que
definem o “interesse nacional”; no caso chinês, fica claro que esse também se
confunde com o interesse de manutenção do status quo político da elite. Assim, ao
participar do regime em questão, a elite política chinesa não apenas visa elevar a
sua legitimidade doméstica (variável interveniente), como também aumentar sua
capacidade de impor sua agenda e influenciar em decisões internacionais acerca
de um tema tão caro a si (variável independente).
Exposto esses condicionantes internos e externos ao processo de adesão de EUA
e China à Convenção de Minamata, e partindo para uma análise mais extensiva
desse regime, acredita-se que o realismo neoclássico possa lançar luz em alguns
pontos relevantes. Não parece exagerado dizer que parte importante do sucesso
da entrada em vigor da Convenção de Minamata se deve à não oposição daqueles
que são, atualmente, os dois mais poderosos Estados do sistema internacional:
EUA e China. É muito representativo o fato de Washington ter sido o primeiro
Estado a assinar e ratificar a convenção, e a China, maior produtora mundial de
mercúrio, também ter demonstrado a sua concordância com o acordo.
Retomando a visão clássica de Morgenthau (2003), há a compreensão de que
as normas do direito internacional ocorrem em razão de dois fatores: os interesses
comuns ou complementares dos Estados e a distribuição entre eles. Schweller e
224 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Priess (1997) vão ainda mais longe ao pontuar que os regimes internacionais têm
como origem um conluio entre os Estados mais poderosos a fim de atender aos seus
interesses e à custa dos demais Estados (SCHWELLER; PRIESS, 1997). Talvez em
nosso objeto não tenha havido um conluio, mas sim, conforme expôs Morgenthau
(2003), uma complementaridade de interesses de duas grandes potências.
Uma vez dentro desses arranjos internacionais, as grandes potências possuem
a legitimidade do direito para justificarem a imposição dos seus interesses. Para
Mansfield (1995), os Estados possuem incentivos para utilizar as instituições
internacionais porque elas podem representar uma fonte de poder para quem
as controla. O autor continua afirmando que “os atores que ganham poder por
meio de uma instituição têm a habilidade de impor a sua agenda e influenciar a
distribuição dos benefícios e custos entre os membros” (MASFIELD, 1995, p. 600,
tradução livre
10
).
De modo complementar, para Carr (2001), as instituições e o direito internacional
são associados com a política do status quo, o legítimo direito das potências
dominantes de imporem as “regras do jogo”, procurando manter o seu poder
relativo e seus interesses. Na mesma linha, Gilpin (1981) coloca que, embora
as regras que governem o comportamento estatal variem, a principal fonte de
criação dessas regras são a conjunção entre o poder e os interesses das grandes
potências. No caso da Convenção de Minamata, os interesses convergentes de
grandes potências como EUA e China parecem ter sido a razão principal para a
efetivação desse regime internacional.
Construtivismo
Há três caminhos, apontados por Goldstein e Keohane (1993), pelos quais
as ideias têm o potencial de influenciar os resultados das políticas. A primeira
via deriva da necessidade dos indivíduos de determinar suas próprias metas e
estratégias alternativas de política para atingir objetivos. As ideias se tornam
importantes quando os atores acreditam nas ligações causais que eles, quando
atores reconhecem ou nos princípios normativos que eles representam. Desse modo,
ideias são como road maps. Esse caminho não considera que as ideias são válidas
10 No original em inglês: “Actors that gain power within an institution have the ability to set its agenda and
influence the distribution of benefits and costs among members".
225Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
e persuasivas, mas, uma vez que uma ideia é selecionada, esse caminho limita a
escolha porque, logicamente, exclui outras interpretações da realidade ou, pelo
menos, sugere que tais interpretações não são dignas de exploração sustentada.
O segundo caminho – focal points – afirma que as ideias afetam as interações
estratégicas, ajudando ou dificultando esforços conjuntos para atingir o resultado
mais eficiente (os resultados que são, pelo menos, tão bons quanto o status quo
para todos os participantes).Nesse ponto, as ideias contribuem para resultados
na ausência de um único equilíbrio.Podem servir como focal points que definem
soluções cooperativas ou agir como “cola” de coalizão a fim de facilitar a coesão
de grupos específicos – que podem até mesmo impedir um acordo sobre uma
base mais ampla.
No terceiro caminho – a institucionalização – as ideias se tornam incorporadas
nas regras e normas – isto é, uma vez que elas se tornem institucionalizadas
– restringindo as políticas públicas. Goldstein e Keohane (1993) afirmam que
as políticas são influenciadas, primeiramente, pelas road maps, ou por algum
acordo passado (focal points), ou pela existência de algum padrão de coalizão em
detrimento de outro. Em suma, as ideias incorporadas nas instituições especificam
as políticas na ausência de uma inovação. Os autores afirmam que uma análise
pelo caminho institucional não diz nada a respeito sobre o porquê de as ideias
terem sido inicialmente estabelecidas.
Judith Goldstein e Robert Keohane (1993) fazem uma observação e uma
crítica sobre a categorização das ideias e o modo como se deve analisar o papel
das ideias nas ações políticas. Segundo os autores, a categorização das ideias é
clara no plano abstrato. Na vida social, os três caminhos das ideias devem ser
analisados juntos. O erro mais comum que os defensores do papel das ideias têm
feito é assumir uma relação causal entre as ideias dos formuladores de políticas e
as opções políticas.As ideias estão sempre presentes nos debates sobre políticas,
uma vez que são uma condição para o discurso fundamentado.Mas, se muitas
ideias estão disponíveis para uso, os analistas não devem assumir que a propriedade
intrínseca de uma ideia explique sua escolha por parte dos decisores políticos.As
escolhas de ideias específicas podem, simplesmente, refletir os interesses dos
atores.É fundamental, para quem trabalha com ideias e política, reconhecer que
a definição da existência de determinadas crenças não é nenhum substituto para
o estabelecimento de seus efeitos sobre a política (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993).
Um modelo de análise de política externa que contempla um aspecto amplo,
incorporando fatores domésticos, internacionais e organizacionais da sociedade,
226 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
contemplando aspectos racionalistas e reflexivistas, encontra eco no trabalho
do ex-ministro das Relações Exteriores da Argentina Héctor Eduardo Gosende
(2007). Ele classifica a política externa em três categorias: interesses, objetivos e
instrumentos. Segundo o autor, através da política externa se promovem valores,
tanto materiais como não materiais. Ao se supor que os atores são movidos em
função de seus interesses, a explicação de que tipo de valores interfere na decisão
aumenta a capacidade de predição do analista e a coerência do próprio decisor.
O conceito de objetivo se sujeita ao interesse. O objetivo se refere a um fim imediato,
enquanto o interesse é um fim mediado que guia a escolha do tomador de decisão.
Concretamente, o objetivo da política externa se refere ao resultado buscado ou
a que se pretende chegar em relação a outro Estado ou a grupos pertencentes a
esse outro Estado. Por sua vez, o instrumento está a serviço do objetivo e consiste
em uma série de medidas ou utilizações de práticas internacionais por atores, que
serve para implementar as políticas exteriores.
Gosende (2007) também afirma a existência de variáveis que influenciam
as tomadas de decisões. Podem-se classificar as influências em três categorias:
a) aquelas que emanam da sociedade; b) aquelas que surgem dos eventos
internacionais (meio externo); c) aquelas que são produtos das organizações
governamentais e que são parte do processo de decisão.
Os esquemas teóricos sobre o estudo de política externa, utilizando-se de
variáveis internas e externas, levam à conclusão de que existe uma interação
entre o impacto das políticas internacionais e as estruturas domésticas. Ambas
se afetam mutuamente. Para tanto, ao se considerar os fatores internacionais que
influenciam a política externa de um país, Gosende (2007) classifica-as em três
tipos: a) as referidas ao poder entre os Estados; b) as que se referem à economia;
c) as ideias ou ideologias que penetram no Estado.
Em relação aos fatores internos, Gosende (2007) apresenta as seguintes
observações: a) deve-se analisar o tipo de regime em que o Estado está inserido;
b) o padrão de coalizões – tipo e composição das elites governantes e o modo
como negociam entre si e com o estrangeiro e; c) as ideias, crenças e ideologias
dos distintos grupos que disputam o poder e a decisão em matéria de política
externa.
Portanto, o modelo de análise de política externa pode ser ilustrado no quadro
abaixo (Quadro 1):
227Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Quadro 1 – Modelo Teórico
Modelo Teórico
Fatores Externos Organização da Sociedade Fatores Internos
Referidos ao poder entre os Estados Organização do Estado Tipo de regime
Referidos à Economia Organização da Sociedade Padrão de coalizões
Referidos a ideias e ideologias Características básicas do
processo de desenvolvimento
Cultura política e ideológica
Fonte: elaborado pelos autores a partir de Gosende, 2007.
Esse modelo tenta descrever o conjunto de ideias consistentes e relacionadas
entre si que se convertem no mapa cognitivo de um decisor político. O modelo
tenta refletir de forma simplificada o “modelo da situação” que os tomadores de
decisão têm em mente quando tomam alguma decisão. O esquema desenvolvido
representa a inter-relação de variáveis internas e externas do sistema político e
os tipos de prioridades, interesses, objetivos e ferramentas usadas para produzir
as decisões buscadas.
Dessa forma, algumas variáveis importantes são caras para o modelo analítico
proposto acima. Em primeiro lugar, os fatores subjetivos – ideias, crenças e valores
– importam e precisam ser levados em consideração. No que tange à Convenção
de Minamata, a figura do presidente, centralizador do processo decisório tanto nos
Estados Unidos quanto na China, foi fundamental. Como exposto previamente, a
questão do mercúrio era cara ao presidente Barack Obama, o que tornou não só a
adesão, mas o incentivo a outros países a participarem da convenção, como algo
importante em sua visão de mundo. Da mesma forma, a China vem agregando a
agenda do meio ambiente em seus valores políticos, o que se reflete nos discursos
de seus principais líderes
11
, e adotando uma maior participação nos regimes
internacionais que tratam desse assunto. O discurso do então chanceler chinês
Yang Jiechi na 66º Sessão da Assembleia Geral da ONU em 2011 ilustra o ponto:
Houve progresso na reforma da estrutura de governança econômica global
e vários mecanismos de cooperação regional estão se expandindo. Esforços
para acelerar o desenvolvimento de uma economia verde e explorar novos
modos de crescimento sustentável criaram um novo impulso e espaço
para o desenvolvimento comum. Diante de novas oportunidades e desafios,
11 De acordo com a Bloomberg (2017), a menção à proteção do meio ambiente nos discursos dos presidentes
chineses durante os encontros quinquenais do partido comunista chinês vem crescendo progressivamente.
No último congresso (2017), pela primeira vez o termo “meio ambiente” foi mais citado que “economia”.
228 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
devemos trabalhar em equipe para superar nossas dificuldades e buscar
benefícios mútuos e desenvolvimento comum (...) O mundo irá ver uma
China mais aberta, com desenvolvimento mais sustentável e com maior
harmonia social. (JIECHI, 2014, pp. 41-44, grifos nossos, tradução livre
12
)
Por último, os fatores externos determinam o comportamento dos agentes.
Não se discutem os malefícios causados pelo mercúrio. No entanto, ele é um
efeito colateral de alguns processos comerciais, como, por exemplo, da mineração.
A criação de uma agenda política internacional para discutir como lidar e impor
regras sobre a utilização ou destinação do mercúrio é o que moveu os agentes a
criar um regime internacional sobre tal tema.
A institucionalização ocorre motivada por um fator interno e doméstico
ocorrido no Japão, um dos países mais desenvolvidos do mundo. A comoção
causada pelos efeitos do mercúrio na sociedade japonesa influenciou na decisão
de se criar um regramento sobre o tema. Logo, dado o sucesso na criação e na
participação de importantes players globais, as regras e o regime criados a partir
da convenção foram, amplamente, aceitas pelos países. A normatização do sistema
internacional produz a socialização a partir do relacionamento entre os agentes.
A socialização pode ser definida como um processo de indução de atores
para as normas e regras de uma determinada comunidade. Seu resultado é
sustentado em conformidade na internalização de novas normas. Na adoção de
regras comunitárias, a socialização implica mudança comportamental do agente:
de uma lógica de consequências para uma lógica de adequação
13
. Essa adoção
é sustentada ao longo do tempo e é bastante independente de uma estrutura
específica de incentivos materiais ou sanções (CHECKEL, 2005).
Se o objetivo é teorizar os processos de socialização, no entanto, também
precisamos questionar quando e como ocorre uma mudança para a internalização.
O “quando” exige que se distinga entre situações em que a mudança resulta de
uma socialização e de situações induzidas somente por um cálculo de custos e
benefícios – quando os atores mudam de uma lógica de consequências para uma
12 No original em inglês: “Progress has been made in the reform of the global economic governance structure,
and various regional cooperation mechanisms are expanding. Efforts to accelerate the development of a green
economy and explore new modes of sustainable growth have created new momentum and space for common
development. Faced with new opportunities and challenges, we should work as a team to overcome our difficulties
and pursue mutual benefit and common development (…) The world will see a more open China, with more
sustainable development and greater social harmony”.
13 Os custos da lógica de adequação, isto é, incorporar as normas e se inserir no regime internacional, são menores
do que os custos de não participar, evitando constrangimentos e punições.
229Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
lógica de adequação. Sobre o “como”, é preciso pensar em mecanismos, como
estes três destacados: cálculo estratégico, role playing e persuasão normativa. Por
sua vez, esses sugerem três modelos de racionalidade que podem contribuir para
a socialização: instrumental, limitado e comunicativo (CHECKEL, 2005).
Existem dois tipos diferentes de socialização: No primeiro, os agentes podem se
comportar de forma adequada, aprendendo um papel – aquisição de conhecimento
que lhes permite agir de acordo com as expectativas – independentemente de
aceitar o papel ou concordar com ele. A chave são os atores saberem o que é
socialmente aceito em um determinado ambiente ou comunidade. Já o segundo
tipo de socialização segue uma lógica de adequação. Isto significa que o cálculo
instrumental consciente foi substituído por role playing consciente. Esta lógica
de adequação pode ir além de role playing e implica que os agentes aceitem as
normas da comunidade ou de uma organização como “a coisa certa a fazer”.
Um dos resultados desse Tipo II de socialização são os agentes adotarem os
interesses – até mesmo a identidade – da comunidade de que eles estão separados.
(CHECKEL, 2005).
Em suma, se verificado o cálculo estratégico operado sozinho, é possível
que não haja socialização e internalização. Não há uma mudança de uma
lógica de consequências para uma lógica de adequação, sendo os atores vistos
como instrumentalmente racionais. Nesse caso, a ênfase está na importância da
condicionalidade política no processo de socialização. Definida como o uso de
incentivos materiais para provocar uma mudança desejada no comportamento
de um Estado alvo, a condicionalidade é a política baseada em incentivos por
excelência (CHECKEL, 2005).
Já o role playing é um mecanismo de socialização que tem raízes nas teorias
de organizações e na psicologia cognitiva. Agentes são vistos como, limitadamente,
racionais. Não é possível para eles assistirem a tudo ao mesmo tempo ou
calcular cuidadosamente os custos e benefícios de cursos alternativos de ação;
atenção é um recurso escasso. Ambientes organizacionais ou de grupo fornecem
atalhos simplificadores, sugestões e buffers que podem levar à promulgação
ou a particulares concepções do papel – role playing – entre os indivíduos
(CHECKEL, 2005). Quando o role playing ocorre, a alteração de uma lógica de
consequências para uma lógica de adequação começa e envolve uma adaptação
não calculável de comportamento.
Por fim, e lembrando que role playing pressupõe um agente passivo à aceitação
de novos papéis, evocados por certos gatilhos ambientais, quando a persuasão
230 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
normativa ocorre, os agentes de forma ativa e reflexiva internalizam novos
entendimentos de adequação. Se perguntado sobre a origem da conformidade,
os agentes podem responder: “Bem, esta é a coisa certa a fazer, mesmo que eu
não costumasse pensar assim” A mudança de uma lógica de consequências para
uma lógica de adequação está completa, e o resultado é o tipo II de internalização
(CHECKEL, 2005, p. 812). Essa é, portanto, a persuasão normativa. Ela ocorre
quando o conjunto de regras é internalizada e aceita pelos agentes. Não obstante,
como afirmado por Onuf (1998), as regras são um dos componentes mais
importantes das relações sociais, uma vez que elas servem tanto para dizer como
um agente deve se comportar, quanto para dizer como ele deve atuar.
Nesse contexto, é muito importante o papel do “socializador”. Esse agente
é o principal fator de indução para que outros Estados ingressem no mecanismo
de socialização. Em outras palavras, o socializador serve como um norte para
os demais envolvidos, isto é, se ele faz parte desse mecanismo, logo esse deve
ser uma boa coisa para todos. A Convenção de Minamata, portanto, ao contar
com a participação dos Estados Unidos e da China, faz com que as chances de
institucionalização do caso do mercúrio e do processo de socialização sejam altas.
Primeiramente, pelo fato de os dois países compartilharem um conjunto de valores
e de visão de mundo que são compartilhados pelos outros Estados. Dessa forma,
haveria uma certa tendência a segui-los. Segundo, o sentimento de que “essa é
a coisa certa a fazer” – a lógica de adequação – se tornaria mais acessível pelo
fato das maiores potências se comprometerem a seguir tais regras.
Por fim, ao se ratificar internamente a Convenção de Minamata, os socializadores
não apenas servem como exemplo, mas passam também – se essa for uma questão
cara para eles – a exercer a coerção normativa. A partir do momento em que o
regime e a institucionalização saem do campo ideal e rumam para a prática, o
comportamento dos Estados passa a ser determinado pela adoção coletiva desse
regramento. Haverá a distinção entre os que estão na regra do jogo e os que
estão fora. Esse primeiro grupo de países tende a ser recompensado – mesmo que
apenas como benquistos pela opinião pública internacional – enquanto o segundo
tende a ser marginalizado pelo comportamento de não aderir a uma convenção
amplamente aceita e que é vista com bons olhos.
Dificilmente haveria uma única forma analítica de responder às questões do
que causou o aparente sucesso da Convenção de Minamata ou o porquê da adesão
de grandes potências globais. Por um lado, poderia ser um jogo de interesses
políticos e comerciais, imposição de uma agenda ou uma forma de exercer poder
231Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
através da criação e adesão de regimes. Por outro lado, os interesses em criar
e participar de uma institucionalização também podem ser gerados a partir de
ideias, valores e crenças sobre o que seria o certo a fazer. Além disso, o caminho
não seria o uso da força, mas a via negociada multilateralmente. Sem descartar
o papel dos interesses e da persuasão, o construtivismo contribui para a análise
a partir da percepção de que vários outros fatores influenciam a decisão de um
Estado ou de um líder. Assim, as normas, regras e regimes adotados e aceitos
amplamente possuem tanto o papel de coerção como também desempenham a
função de criar ou aprofundar as interações entre os agentes internacionais. Por
fim, uma perspectiva de interlocução teórica favorece a constatação de que o
debate sobre a socialização contempla pressupostos que poderiam ser classificados
como associados ao realismo. Contribuindo para que o campo das relações
internacionais desempenhe cada vez mais um debate interparadigmático entre
as diversas correntes teóricas.
Conclusão: um diálogo entre Realismo Neoclássico e
Construtivismo em Global Environmental Politics
O esforço em estabelecer pontes entre o realismo neoclássico e o construtivismo
vem ocorrendo no debate teórico das relações internacionais, ainda que timidamente
(ROSE, 1998; STERLING-FOLKER, 2002; JACKSON; NEXON, 2002; KITCHEN, 2010).
Segundo Sterling-Folker (2002), o realismo neoclássico é capaz de incorporar
premissas do realismo estrutural, como a influência de atores externos, com insights
construtivistas, como as dinâmicas e pressões da identidade coletiva nacional.
Similarmente, para Rose (1998), os realistas neoclássicos ocupam uma via média
entre as teorias estruturais e os construtivistas. Eles assumem que existe, sim,
uma realidade material, porém essa não é clara e objetiva, estando dependente da
leitura feita pelos líderes. Porém, a tentativa de relacionar tal aproximação com
a agenda de Global Environmental Politics ainda é muito incipiente na academia.
Nesse sentido, esta subseção final visa tentar preencher essa lacuna.
Partindo do pressuposto de que o sucesso da Convenção de Minamata é
fruto da adesão de China e EUA, é necessário empreender uma investigação
dos fatores que levaram a essa situação. Todavia uma investigação mais sólida
a respeito desses condicionantes demanda levar em conta os constrangimentos
internos e externos à Pequim e Washington. Igualmente, tal análise não pode
232 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
deixar de evidenciar as variáveis materiais e não materiais do processo. Tendo
esse quadro, é possível delinear alguns apontamentos iniciais sobre um diálogo
entre as abordagens realista neoclássica e construtivista.
Uma das grandes contribuições de ambas teorias e um importante ponto
de aproximação entre elas consiste na consideração das variáveis internas e
externas para a análise de política externa. Esse entendimento representa um
avanço diante da visão estrutural do realismo, que ignora esses condicionantes
domésticos. Contudo, a ênfase e a seleção dessas variáveis internas revela matrizes
epistemológicas distintas (ainda que não conflitantes): os primeiros focam nos
aspectos materiais e os segundos nos ideacionais. Cabe destacar que essa ênfase
não significa exclusão: para o realismo neoclássico, a realidade material se traduz
através da percepção dos líderes políticos, esses influenciados por crenças e ideias
(TALIAFERRO; LOBELL; RIPSMAN, 2009); para os construtivistas, as políticas são
influenciadas por interesses e ideias (KEOHANE; GOLDSTEIN, 1993).
Assim, retornando ao caso da Convenção de Minamata, nota-se que os insights
realistas neoclássicos podem ser combinados com um olhar construtivista. Os
primeiros concebem que a política internacional e o multilateralismo são dominados
pelas grandes potências (EUA e China, por exemplo), que empregam as normas
internacionais para legitimar os seus interesses. Agregando a visão construtivista,
a análise pode ser complementada com o conceito de socialização das normas, no
qual os atores buscam aderir a determinados ordenamentos jurídicos de modo a
não serem excluídos. Esse também parece ser o caso dos EUA e China em relação à
Convenção de Minamata, na medida em que a agenda de meio ambiente desperta
cada vez mais a atenção e gera contínuos constrangimentos aos Estados que não
a adotam.
Por fim, a participação na Convenção de Minamata pode ser o reflexo dos
interesses dos Estados em aderir a um regime internacional de aparente sucesso
e com aceitação da opinião pública. Com isso, diminuiriam seus custos por não
participarem e se manterem marginais a um regime internacional. Por outro lado,
não se pode excluir a possibilidade de tal participação como um processo de
socialização que existiria a partir da institucionalização da convenção. Em um
primeiro momento, a negociação da adesão pode ser um reflexo de cálculo de
custos e benefícios. Porém, a partir do momento em que se atinge a compreensão
de que regrar a utilização do mercúrio é “o certo a se fazer”, a lógica deixa de
ser de custos e benefícios e passa a ter que ver com o compartilhamento desse
espírito de “coisa certa a se fazer” – ou seja, estamos no campo da socialização.
233Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Assim, os pressupostos do realismo neoclássico e do construtivismo podem ser
amplamente utilizados para explicar o sucesso de Minamata, mostrando que é
possível a criação de um diálogo entre as duas teorias de relações internacionais.
Referências
ANDRESEN, Steinar; ROSENDAL, Kristin; SKJAERSETH, Birger. Why Negotiate a Legally
Binding Mercury Convention? International Environmental Agreements: Politics, Law
and Economics, v. 13, n. 4, 2012, p. 425-440.
BLOOMBERG. Xi’s Speech Had 89 Mentions of the ‘Environment,’ Just 70 of the ‘Economy’.
Bloomberg.com. 18 Out. 2017. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/
articles/2017-10-18/in-xi-s-vision-for-china-environment-edges-out-economy>.
Acesso: 16/10/2018.
CARR, Edward. Vinte Anos de Crise: 1919-1939. São Paulo: Editora Universidade de
Brasília, 2001.
CHECKEL, Jeffrey. International Institutions and Socialization in Europe: Introduction
and Framework. International Organization, Cambridge, v. 50, n. 4, 2005, p. 801-826.
COMISSÃO EUROPEIA. Press Realease Database. Apresenta informações sobre a política
da União Europeia para a Convenção de Minamata. Disponível em: <http://europa.
eu/rapid/press-release_MEMO-17-1344_en.htm>. Acesso em: 24/07/2017.
CHINA. Conselho de Eletricidade da China (CEC). CEC Publishes the Demand/Supply
Analysis and Forecast of China Power Industry. Beijing: China Electricity Council, 2013.
ERIKSEN, Henrik; PERREZ, Franz. The Minamata Convention: A Comprehensive
Response to a Global Problem. RECIELReview of European Community & International
Environmental Law, v. 23, n. 2, 2014, p. 195-210.
GILPIN, Robert. War and Change in World Politics. New York: Cambridge University
Press, 1981.
GOLDSTEIN, Judith; KEOHANE, Robert. Ideas and Foreign Policy. Ithaca: Cornell
University Press, 1993.
GOSENDE, Héctor. Modelos de política exterior argentina: alternativas para salir del
modelo conservador-menemista. Buenos Aires: Libros de Tierra Firme, 2007.
JACKSON, Patrick; NEXON, Daniel. Globalization, the Comparative Method, and
Comparing Constructions. In. GREEN, Daniel. Constructivism and Comparative
Politics. Armonk, NY: M.E. Sharpe, 2002, p. 88-120.
KITCHEN, Nicholas. Systemic pressures and domestic ideas a neoclassical realist model of
grand strategy formation. Review of international studies, v. 36, n. 1, 2010, p. 117-143.
234 Os interesses e as regras: a Convenção de Minamata nas perspectivas do Realismo Neoclássico [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
MANSFIELD, Edward. International Institutions and Economic Sanctions. World Politics,
v. 4, n. 7, 1995, p. 575-605.
MINAMATA CONVENTION on Mercury. Apresenta informações sobre a Convenção de
Minamata. 24-29 Setembro de 2017. Disponível em: < http://cop1.mercuryconvention.
org/events-on-the-side/mia-clinics/>. Acesso em 22/09/2017.
JIECHI, Yang. Minister Yang Adress To The 66th Session Of The Un General Assembly. 26
de Setembro de 2011. Disponível em: < http://www.un.org/ga/search/view_doc.
asp?symbol=A/66/PV.25>. Acesso em 20/09/2018.
MORGENTHAU, Hans. A Política entre as Nações: a Luta pelo Poder e pela Paz. São Paulo:
Editora Universidade de Brasília, 2003.
OBAMA, Barack. Remarks of President Barack Obama – As Prepared for Delivery
“Responsibility for our Common Future” Address to the United Nations General
Assembly. 23 de Set. 2009. Disponível em: <https://gadebate.un.org/sites/default/
files/gastatements/64/64_US_en.pdf>. Acesso: 16/10/2018.
ONUF, Nicholas. “Constructivism: a User’s Manual”. In: International Relations in a
Constructed World, editado por KUBÁLKOVÁ; ONUF; KOWERT, London /Armonk,
NY, Me Shape, p. 58-78, 1998.
ROSE, Gideon. Neoclassical Realism and Theories of Foreign Policy. World Politics, v.
51, n. 1, 1998, p. 144–72.
SCHWELLER, Randall; PRIESS, David. A Tale of Two Realisms: Expanding the Institutions
Debate. Mershon International Studies Review, v. 41, n. 1, 1997, p. 1-32.
SELIN, Henrik. Global Environmental Law and Treaty-Making on Hazardous Substances:
The Minamata Convention and Mercury Abatement. Global Environmental Politics,
v. 14, n. 1, 2014, p. 1–19.
STERLING-FOLKER, Jennifer. Realism and the Constructivist Challenge: Rejecting,
Reconstructing or Rereading. International Studies Review, 4, 2002, p. 73–97.
STOKES, Leah; GIANG, Amanda; SELIN, Noelle. Splitting the South: China and India’s
Divergence in International Environmental Negotiations. Global Environmental
Politics, v. 16, n. 4, 2016, p. 12-31.
TALIAFERRO, Jeffrey; LOBELL, Steven; RIPSMAN, Norrin. Introduction. In: TALIAFERRO,
Jeffrey; LOBELL, Steven; RIPSMAN, Norrin (Eds). Neoclassical Realism, the State,
and Foreign Policy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 1–41.
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (UNEP). Proceedings of the Governing
Council/Global Environment Ministerial Forum at its Twenty-Second Session. 3 – 7 Fev.
2003. Disponível em: <http://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/10645/
K0360655-E-GC22_Proceeding.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso: 16/10/2018
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (UNEP). Proceedings of the Governing
Council/Global Environment Ministerial Forum at its Twenty-Third Session. 21 – 25
235Bruno Mendelski; Guilherme Frizzera
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 213-235
Fev. 2005. Disponível em: <http://www.cep.unep.org/pubs/meetingreports/LBS%20
ISTAC%20III/english/UNEP%20GC23%20Proceedings.doc>. Acesso: 16/10/2018
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (UNEP). Proceedings of the Governing
Council/Global Environment Ministerial Forum at its Twenty-Fourth Session.
5–9 Fev. 2007. Disponível em: <https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.
500.11822/10624/K0760630_GC24-proceedings.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.
Acesso: 16/10/2018
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (UNEP). Proceedings of the
Governing Council/Global Environment Ministerial Forum at its Twenty-Fifth
Session. 16 – 20 Fev. 2009. Disponível em: <https://wedocs.unep.org/bitstream/
handle/20.500.11822/10623/K0950890%20GC-25-17-Proceedings-FINAL.
pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso: 16/10/2018
UNITED NATIONS INDUSTRIAL DEVELOPMENT ORGANIZATION (UNIDO). Apresenta
informações sobre a relação entre a UNIDO e a Convenção de Minamata. Disponível
em: <https://www.unido.org/sites/default/files/2014-02/201312_mercury_final_
web_0.pdf>. Acesso: 16/10/2018
UNITED STATES Senate. Bush signs into law Obama-Murkowski-Allen bill to ban
dangerous mercury exports. 15 Out. 2008. Disponível em: <https://www.epw.senate.
gov/public/index.cfm/press-releases-democratic?ID=87C5F3E6-802A-23AD-4135-
DADC42382459>. Acesso: 16/10/2018
YANG, Tseming. The Minamata Convention on Mercury and the Future of Multilateral
Environmental Agreement. Environmental Law Reporter. Santa Clara Univ. Legal
Studies Research Paper, 2014 p. 1-15.
ZHENG, Siq; KAHN, Matthew. Understanding China’s Urban Pollution Dynamics. Journal
of Economic Literature, v. 51, n. 3, 2013, p. 731–772.
236 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
Suma Qamaña as a strategy of power:
politicizing the Pluriverse
1
Suma Qamaña como estratégia de poder:
politizando o Pluriverso
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.818
Ana Carolina Teixeira Delgado
2
Abstract
The “pluriverse” has recently gained momentum in International Relations among scholars
focused on ontological pluralism. Nevertheless, theoretical debates may obscure several
political tensions observed in local experience. In this paper, I analyze narratives on Suma
Qamaña, which synthesizes Aymara cosmology and is both reproduced and criticized by
political actors in Bolivia. I argue that the discourse on Suma Qamaña entails a strategy of
power by both Aymara people and the government. The paper is developed in three parts:
first, I examine the term`s framing in literature, Suma Qamaña`s risen in Bolivian society
and its connection to the reconstruction of Aymara identity. Then, I analyze Suma Qamaña`s
insertion into governmental discourse. Finally, I stress power disputes over Suma Qamaña.
I suggest that the emphasis attributed by IR academics to its ontological potential without
considering this strategic facet might lead them to depoliticize the term, reproducing a similar
pattern advanced by other theorists and the government.
Keywords: Suma Qamaña; pluriverse; Bolivia.
Resumo
O “pluriverso” adquiriu recentemente impulso na disciplina de Relações Internacionais entre
os acadêmicos preocupados com o pluralismo ontológico. Entretanto, os debates teóricos
podem obscurecer diversas tensões políticas observadas no local. Neste artigo, analiso
1 Article based on PhD research sponsored by CNPq.
2 Ana Carolina Teixeira Delgado is an Assistant Professor and Researcher at the Federal University of Latin
America Integration (Unila). She holds a PhD from IRI/PUC-Rio and has been investigating social movements
for over 10 years. Currently, she vice-coordinates the Theoretical Thematic Area of the Brazilian Association of
International Relations (ABRI).
Artigo submetido em 22/06/2018 e aprovado em 11/09/2018.
237Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
as narrativas sobre o Suma Qamaña, expressão que sintetiza a cosmologia Aymara e é
reproduzida e criticada pelos atores políticos na Bolívia. Argumento que o discurso sobre
o Suma Qamaña encerra uma estratégia de poder exercida tanto pelos aymara quanto pelo
governo. Este artigo é desenvolvido em três partes: primeiro, examino o enquadramento do
termo na literatura, sua ascensão na sociedade boliviana e conexão com a reconstrução da
identidade Aymara. Depois, analiso a inserção do Suma Qamaña no discurso governamental.
Finalmente, enfatizo as disputas de poder em torno do Suma Qamaña. Sugiro que a ênfase
atribuída pelos acadêmicos ao seu potencial ontológico sem considerer sua face estratégica
poderá levá-los a despolitizar o termo, reproduzindo um padrão desenvolvido por outros
teóricos e mesmo pelo governo.
Palavras-chave: Suma Qamaña; pluriverso; Bolivia.
The discipline of International Relations (IR) has been increasingly criticized
for its exclusionary feature by academics who, although representatives of distinct
theoretical perspectives, belong to the same tradition of thought produced mainly
in the Anglo-Saxon world (Ashley 1988; Cox 1987; Onuf 1989; Smith, Booth
and Zalewski 1996; Tickner 1992; Walker 1993; Wendt 1999). In that sense, its
internal diversification would reflect not necessarily an ontological pluralism but
the reification of a pretentious universality and, consequently, the marginalization
of other knowledge and the modes of life reflected by them. For that reason,
many academics either have pointed IR as an American discipline or highlighted
its Western, Eurocentric feature (Hoffmann 1977; Biersterker 2009; Ikeda 2010;
Jones 2006; Tickner and Blaney 2012; Hobson 2012; Acharya and Buzan 2010;
Weaver 1998). Such a move puts into question IR’s international or even global
vocation once we realize that much published work tends to reproduce concepts
and models geopolitically situated. More, such works are based on epistemological
and methodological fundaments present among mainstream scholars, and even on
modern ontological assets, including much of the criticism directed to the latter.
The advent of postcolonial and indigenous studies has been crucial in
denouncing the silencing of difference by the academy, recovering alterity as
an important analytical category for the discipline (Beier 2009; Chakrabarty
2000; Grovogui 2006; Inayatullah and Blaney 2004; Lightfoot 2016; Muppiddi
2012; Shaw 2008; Shilliam 2011; Smith 2012). Following this wave of criticism
and influenced by social scientists` research on Latin America (Blaser 2010; De
la Cadena 2010, 2015; Dussel 2013; Escobar, 2010, 2011, 2012; Latour 2010), the
notion of “pluriverse” has recently gained the attention of IR scholars (Conway
238 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
and Singh 2011; Querejazu 2016; Rojas 2015, 2016; Tickner and Blaney 2013,
2017; Youatt 2017; see also International Studies Association 2016 Program).
Related to the modes of life of “Non-Western” peoples, the term addresses the
complexity of social relations as it advocates the emergence of diverse knowledge
and cosmologies which, distinguished from the Modern one, do not place human
beings in the center of existence. On the contrary, this “other” perception of
“reality” as one composed of “many worlds” itself holds a subversive potential
to read critically IR. Nevertheless, the incorporation of this “other” expression
by scholars and the sense of novelty attributed to the “pluriverse” might obscure
a series of power disputes already present in the local sphere, and considered by
Blaser as his concept of “political ontology” refers not only to “a field of study
that focuses on the conflicts that ensue as different worlds or ontologies strive to
sustain their own existence as they interact and mingle with each other” but also
to “the politics involved in the practices that shape a particular world or ontology”
(BLASER, 2009, p. 877).
In fact, the relevance of stressing the “political” was pointed by Siba Grovogui
in the 56
th
International Studies Association Meeting as he questioned the “political
implications” regarding the emergence of other knowledge and its coexistence
with modern institutions already installed in the national and international
fields. Inspired by Grovogui`s interpellation, I analyze in this paper narratives
on Suma Qamaña, which synthesizes Aymara cosmology and is both reproduced
and criticized by political actors in Bolivia. I use the Bolivian case to illustrate:
the difficult relationship between the government and indigenous peoples, and
among the latter as well; and the consequences that surface once Suma Qamaña
is captured by Morales’ administration. I argue that discourse on Suma Qamaña
entails a strategy of power by both the Aymara people and the government. In
this article, I examine the term`s framing in literature, to which follows a brief
history of Suma Qamaña`s risen in Bolivian society and its connection to the
reconstruction of Aymara identity. Then, I analyze Suma Qamaña`s insertion
into governmental discourse. I conclude stressing the power disputes over Suma
Qamaña in the Andean country. I suggest that the emphasis attributed by IR
academics to its ontological potential without considering this strategic facet might
lead them to depoliticize the term and reproduce a similar pattern advanced by
other theorists and Morales` administration.
239Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
Suma Qamaña and the reconstruction of Aymara identity
Translated simply as Living Well (Vivir Bien, in Spanish), Suma Qamaña
consists in one of the expressions found in the international academic literature
devoted to the emergence of an other logic, proper of the Andean indigenous
peoples and opposed to modern rationality. Current work in Social Science points
Suma Qamaña as the aymara counterpart of the quechua Sumak Kawsay/Good
Living (Buen Vivir). Both are interpreted either as an alternative to development,
to capitalism, to coloniality, an example of solidarity economy or even as a
solution to the crises of human civilization (Acosta 2009; Dussel 2012; Escobar
2012a; Gudynas 2011; Lander 2010; Quijano 2012 Santos 2010; Walsh 2010). In
IR, references are still scarce and sometimes made in relation to the notion of
pluriverse, which translates theorists` effort to establish an ontological criticism
of the discipline, stressing its Western colonial feature and the need to incorporate
contributions from colonized peoples. That is the case of Querejazu (2016), who
advocates that Andean cosmovisions and their conceptual tools, such as the ayllu,
could foment IR discussion on multiple issues and bring a more inclusive facet
to the discipline.
A similar trend is found in Rojas`s publication on the pluriverse. Here, Suma
Qamaña is mentioned along with Sumak Kawsay only to express the difficulty
concerning translations among different “worlds”, following what Viveiros de
Castro (1996) pointed as the irreducible quality of the indigenous cosmology to
the notions of a rational-modern debate. Thus, the difficulty framing them in terms
of single units. Nevertheless, because these other subjectivities, to which Suma
Qamaña forms part, are presented as “oriented toward alternatives to colonial
logics” (ROJAS, 2016, p. 380), Rojas advocates their potential to decolonize
international politics. Earlier, the author had identified Suma Qamaña to practices
of decolonization, critical to the modern project of citizenship and its supposed
universality. Although the expression is related to the Aymara people, Rojas
(2015) also presented it as an equivalent of “Buen Vivir”, extensively pointed by
the literature as a translation of quechua Sumak Kawsay. Elsewhere, she framed
indigenous knowledge in Bolivia as an example of a “noncapitalist alternative”
which, together with its counterparts produced by diverse marginalized cultures in
Latin America and abroad, could encourage dialogue between different economic
practices. In that sense, indigenous knowledge in the Andean country would
present a possibility to decolonize International Political Economy fundaments and,
240 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
as such, to promote “development otherwise”, that is, a new form of economic
organization sustained in the co-existence of different “rationalities” (ROJAS,
2007, p. 585).
Although Rojas didn`t specifically mention Suma Qamaña nor Living Well,
she highlights Aymara descent of president Morales and his role, along with
indigenous intellectuals, including “other” proposition in norms and public
policies. Querejazu, in turn, grounds her analysis basically on propositions made
by several Bolivian indigenous and non-indigenous authors, including some
considered the founders of Suma Qamaña. The emphasis put by these IR authors
on Andean indigenous knowledge or simply indigenous knowledge in Bolivia, and
even Rojas` “noncapitalist alternative”/ “alternative to colonial logics” is quite
revealing. Their concern is first and foremost a theoretical one, which privileges
ontological difference presented by non-Western colonial worldviews and their
prospects for the discipline, leaving aside political disputes between the Bolivian
government and indigenous peoples, divergence among indigenous groups over
Suma Qamaña/Living Well. Thus, they put in second place strategies employed
by those actors. In doing so, they emulate somehow the work of social scientists
who focus on Andean indigenous knowledge and its otherness in relation to
Modernity, and stress only partially political implications regarding the emergence
of this “other” ontology in Bolivian society. More, they miss Suma Qamaña as a
strategy of power by both Aymara people and Morales` government.
Apart from the Spanish or English translation, Suma Qamaña and Sumak
Kawsay mean “life in plenitude”, referring to a dynamic process since “qamaña” and
“kawsay” indicate the relevance of “being” as condition of existence instead of “to
be”.
3
In the great tissue that represents life (Pacha), formed by the complementarity
of opposed forces (cosmic and telluric), everything is interconnected.
4
According
to this logic, human beings are just an integrative part of a whole, which embodies
the material plan, manifested in mineral, vegetable and animal forms, and the
supernatural one. Such an understanding relates to the Aymara principle Take
kunas jakaskkiwa (“Everything lives”): humans and non-humans (despite of their
material composition) emanate energy and comprise the cosmos which, at the
3 Qamaña is translated as “estar siendo” and Kawsay as “ser estando”. See Huanacuni (2010) “Vivir Bien/Buen
Vivir. Filosofía, políticas, estrategias y experiencias regionales” and Oviedo (2012) “Qué es el SUMAKAWSAY.
Tercera Via: Vitalismo, alternativa al capitalismo y el socialismo”.
4 Pacha, in aymara and quéchua, means life. “Pa” indicates number two, “paya”, and “cha” comes from the word
chama”, which denotes force/energy. Author`s personal notes.
241Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
microlevel, is reflected in the ayllu.
5
For that reason, existence implies a constant
search for balancing, for harmony between the visible and nonvisible worlds,
which is expressed in the modes of life of the so-called “ancestral” peoples, such
as indigenous ones.
Central to those modes of life is the practice of ceremonies since they establish
a connection between the worlds and guide social relations in community as well.
In Aymara communities, ceremonies are usually related to the Andean-Amazon
calendar, marked by agricultural cycles, and consist in acts of celebration of
life, during which rituals, music and dancing are performed. As a fundamental
expression of this symbiotic relation between what would otherwise be named as
man and nature, ceremonies are not separated, thus, from other activities, such
as economic production. This still holds despite the gradual marginalization of
rituals in everyday life of those groups, mainly in those whose majority of members
migrate to the cities.
Whereas Sumak Kawsay/Good Living is connected by academics to Ecuador,
Suma Qamaña/Living Well is related to indigenous experience in Bolivia. In both
cases, international literature puts special emphasis on the similarity between
those concepts and their understanding of the world, stressing Sumak Kawsay/
Good Living. As a result, academics neglect Bolivian experience, the disputes
occurred in the country and related to its colonial past/present, subsuming the
Aymara expression to the Quechua one. For IR, in particular, the consequences
presented by this move are multiple: as mentioned before, current analysis tend
to homogenize knowledge and modes of life enacted in distinct local/national
political conditions for the sake of theoretical robustness of their arguments
against the discipline’s Modern colonial logics and lack of pluralism. In that
way, they silence conflicts that surface on a daily basis, which puts their work in
sharp contrast with the literature on the pluriverse and political ontology, one of
their major references. Although IR scholars stress Modernity’s concealment of
knowledge and practices of other peoples, often colonized ones, through a series
of dichotomous pairs (nature versus culture, civilized versus non-civilized etc.),
they miss another important qualitative proposition presented in the literature
on the pluriverse.
As Blaser (2010) attentively put, the pluriverse is about different worlds, that
is, ontologies that interact and clash with each other, pervaded by power disputes,
5 Personal notes.
242 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
asymmetry and negotiations. If we understand that those disputes occur not only
between collective actors that reproduce different knowledge, modes of life, but
also among those actors themselves, we have a much more complex picture than
the one offered by IR authors, mostly focused on the dichotomy Modern/colonial
versus Non-Modern/decolonial/homogenized other. Alternatively, we would have
a non-romanticized analysis that contemplates the other in its otherness without
obliterating political dimension, an issue also discussed by De la Cadena (2015)
as well as postcolonial authors such as Memmi, and Fanon. That point is made
clear once we concentrate on the dynamics around Suma Qamaña. In what
follows, I stress the role of identity and the strategic incorporation of otherness
by indigenous peoples in Bolivian Highland.
Suma Qamaña/Living Well’s construction emerges in a context of indigenous
and peasantry resistance to neoliberal policies, that lead to the impoverishment
of society and affected severely those collective actors. Also, the risen of Suma
Qamaña should not be isolated from the formation of an Aymara intelligentsia
from the 1970`s on who, after their relative`s migration to the city of La Paz,
especially, tried to break the inferior status attributed to the indigenous and get
jobs other than housekeeper, artisan. The first quotes regarding Suma Qamaña date
back to the beginning of the 2000`s, a period of intense mobilization in Bolivia.
In the department of La Paz, the protesters were led by Aymara and Executive
Secretary of the Peasant Workers` Union Confederation of Bolivia (Confederación
Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia, CSUTCB) Felipe Quispe,
who succeeded in isolating the country`s administrative capital for months by
blocking the roads. Initially, their demands related to the concentration of land,
denouncing the misery experienced by small farmers and indigenous communities
besides the strong discrimination towards them. As conflict escalated, their
discourse included a critique to corruption, traditional political parties and, in
particular, to the racist colonial structure, crystallized in the difference between
indigenous groups and White-mestizo elite.
During the road-blocking, indigenous groups constructed a grammar of
empowerment, stressing the separation between “self” and “other”. As Mamani
(2012) states, those were exceptional moments that contributed to the development
of a common identification among the protesters, strengthening Aymara identity
by using of traditional clothing, whiphala (checked colorful flag that reflects
indigenous struggles in Spanish America) and pututu (brass instrument). The
243Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
exercise of ayni, expressed in the mutual help among community members and
the idea of reciprocity, and the achievement of consensus among participants
represented as well, according to the author, social codes embodied in the ayllu
(Andean indigenous community). As mobilization and identity reinvention
developed, insurgents began to reproduce a historical demand for territory and
autonomy, enacted by aymara people during colonial and republican Bolivia, as
shown by Choque (2012) and Thompson (2010) in their analysis on indigenous
struggles in the 19th and 18th centuries, respectively.
In that way, La Paz insurgency seemed to mark not just the search for liberation,
but also the return of an actor in his otherness, whose discourse reproduced some
of Fausto Reinaga`s appointments. First academic aymara whose work focused
on the relevance of indigenous empowerment for the reconstitution of Kollasuyu
and Tawantinsuyu
6
, Reinaga influenced following generations and had some of
his propositions incorporated by Quispe as a strategy to incite resistance:
“Since 1563 […] we`ve lost the State, and then political power, and then
the right to have our own president. […] What do we want? We want to
restore Tawantinsuyu […] Since Spaniards came […], we`ve been nothing
but cannonball. The truth is that this land (patria) is ours, they are stateless,
they have no State.
[…] Let`s see: who sweeps the street? We, the Indians. […] White people
are there as architects, engineers, staring down Indians that are working.
[…] I`ve mobilized people with this discourse. I formed myself intellectually
in Cuba. When I got here, I wanted to apply the same experienced I had
there. People didn`t understand me… Then, I thought: “How can I raise these
people? Oh, we should talk about the Incas, Katari, about the Aymara, our
life, the ayllu, the community, ayni”. They, then, lifted their neck like a llama.
That was the secret…” (DELGADO, 2014. Interview with Felipe Quispe,
La Paz, April 2013.
7
6 The Inca Empire, or Tawantinsuyu, was subdivided in many administrative regions (suyus). One of those was
Kollasuyu, which comprehended the highlands of Peru, Bolivia, as well as Northen Chile and Argentina. Kolla
is the one who is original from Kollasuyu.
7 “Desde 1563 [...] habemos perdido el Estado, luego el poder político, y luego tener nuestro próprio presidente.
[...] Qué pretendemos hacer nosostros? Nosotros queremos restaurar el Tawantinsuyu [...] Desde que han
llegado los españoles [...] hemos sido carne de cañon y nada más. Es verdade que esta pátria es nuestra, ellos
son apátridas, no tienen pátria.
[...] A ver: quien varre las calles? Nosotros, los índios. [...] Ser blanco ahí está como arquitecto, enginiero,
mirando los índios que están trabajando [...] Yo he levantado la gente con este discurso. Yo me he formado
en Cuba. Cuando he llegado acá, queria aplicar lo mismo. La gente no entendia... Entonces, yo de pronto he
pensado: “Cómo puedo levantar la gente? Hablaremos de los incas, de Katari, de aymara, nuestra vida, del ayllu,
de la comunidad, del ayni” La gente llevanta el cuello como uma llama. Entonces, ahí há estado el secreto...”
244 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
The passage above reflects a dynamic of identitarian redefinition and self-
affirmation, pointed by Mamani as one of the specificities of the indigenous uprising
in La Paz, as collective actions enabled and were pervaded by a discourse that
separated “them” (White/mestizo) from “us” (indigenous/peasantry). Quispe`s
idea was to “indianize” indigenous peoples, recovering their identity and self-
esteem and, as a result, preparing them for the “Indian Revolution” defended
by Reinaga (2011). Such a revolution would consist not just in the State reform,
but in restoring political power using a military and rhetorical strategy, stressing
difference. Liberation, thus, would entail a violent and radical process, reflecting
Fanon`s concept of decolonization and the author`s perception that the goal of
the colonized is to occupy the place of the colonizer, that is, to occupy political
institutions, to rule the State (FANON, 2004). Moreover, Quispe`s el ayllu, la
comudad, el ayniwords reveal the enduring feature of colonial difference, the
connection of the ethno-racial and class problematic, described by Bhabha as the
“racialization of inequality” (BHABHA, 2004, xiii), and which is not overcome
after formal Independence.
Another point highlighted in the interview, which relates to Fanon`s propositions,
is the Manichean vision of the colonial world, the sense for the colonized that
the colonizer represents the foreigner that took over indigenous land, updating
the category of colonizer, now represented by the White-mestizo elite. Quispe,
then, tries to subvert colonial difference, pointing White-mestizo as the “other”
and presenting indigenous world as “fundamentally different” (FANON, 2004,
p. 6). In that way, essence will be mobilized as a discursive principle capable
to foment indigenous empowerment, in what Memmi called the “return of the
pendulum”: “What remained for the colonized (and in general, for all oppressed
people, I would later argue) was simply to accept themselves, since no one else
would accept them. […] There was no other way out” (MEMMI, 2000, p.48).
Thus, Memmi, argues
“to affirm one`s difference becomes the condition of self-affirmation, the
banner for the individual or collective reappropriation of one`s self. Where,
in the first instance, the dominant affirmed their difference over and against
those they oppressed, in the last, the oppressed reclaim their differences
against the dominant” (MEMMI, 2000, p. 48-49).
Although diverse from Quispe`s approach, self-affirmation is also displayed
in narratives on Suma Qamaña/Living Well. In this case, the emphasis put on
245Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
the existence of essentially different worlds (the indigenous` world and White-
mestizo Western one) reflects aymara academics effort to demonstrate Suma
Qamaña as a new paradigm for humanity (Huanacuni 2010; Yampara 2001, 2005).
Here, colonial difference is framed explicitly in cosmological terms and denotes
an abyss between distinct modes of life – Western-modern vs. indigenous one:
One is the Western cosmovision, where not only theological theory is
privileged but, in it, the protagonist and privileged role of Man over other
members of the biotic community as if the world was in his hands and had
natural tributes to domesticate, take and pillage territories, resources and
peoples – Uraqit yanaka yaqha markanakampi apsuyasa jakaña – that`s the
logic of capital`s worlding and the role of transnational companies. In this
cosmovision, material and spiritual expressions are divorced […].
Other very distinct is Qamañ-Pacha Andean cosmovision of harmonic
coexistence, integral welfare of all members of the biotic community and,
as such, a respect for integral life not just human`s […]. Here the problem
of spiritual treatment is part of life. It requires interaction among forces and
energies using deities to reach harmony and welfare, even though that`s
understood as paganism and superstition in the Western space. In the Andean
cosmovision, that`s a vital part of life [...]. (YAMPARA, 2005, p. 57, translated
by us/our translation)
8
Interestingly, the discursive devices for self-affirmation mentioned above
also seems to reflect what De la Cadena (2015) observes as “cosmopolitics”. By
denouncing “Western cosmovision” (to use Yampara’s words) and its contradictions,
indigenous academics find a way to act in Western-Modern world. This is possible
because, while stressing colonial difference in cosmological terms, those academics
were able to establish a dialogue, a connection to this non-indigenous world so
that Suma Qamaña is presented as a “new paradigm for humanity”. Thus, while
rejecting the nature-humanity divide, as De la Cadena states, this does not prevent
8 Una es la cosmovisón occidental donde no solo se privilegia la teoria teológica, sino en ella, el rol protagónico
y privilegiado del hombre sobre los otros seres membros de la comunidad biótica, cuál si el mundo estuviera
en sus manos y tenga los atributos naturales de domesticar, coger y saquear territórios, recursos y pueblos –
Uraqit yanaka yaqha markanakampi apsuyasa jakaña – eso es la lógica de la mundialización del capital y el rol
de las transnacionales. En esta cosmovision, están separadas, divorciadas la expression material de las cosas
de las expresiones espirituales […]
Outra muy distinta es la cosmovisión andina Qamañ-Pacha de la convivencialidad armónica de bienestar integral
de los seres membros de la comunidade biótica, por tanto respeto a la vida integral y no solo humano [...] Aqui,
el problema del tratamento espiritual es parte de la vida. Es más bien, interacionar por médio de las deidades
essas fuerzas y energias hacia la armonía y bienestar, si bien eso se entende como paganismo o superchería
desde el espacio occidental. En la cosmovisión andina eso es parte vital de la vida [...].
246 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
indigenous from getting closer and, sometimes, capitalize on it. So, consonant with
Fanon’s and Memmi’s discussion, De la Cadena’s argument ratifies the political
dimension of indigenous empowerment, to which narratives on Suma Qamaña
forms part. Yet, it should be mentioned that aymara intelligentsias conceptions
are not homogeneous, comprising much disagreement over the years.
Yampara`s propositions consisted in a watershed: not only have they influenced
the work of other authors, such as Javier Medina (2006) and Josef Estermann
(2012), but also fomented academic debate. Such a debate is marked either by a
critique toward essentialism, what would be a mythification of indigenous peoples,
either by a conceptual problem regarding Suma Qamaña (Choque 2013; Kallisapa
2013; Macusaya Cruz 2013; Portugal Mollinedo 2013; Spedding 2010; Stefanoni
2012; Untoja 2012). In any case, those critique reflect the echo encountered by
the expression among Bolivian intellectuals (indigenous and non-indigenous) and
prompted them in developing studies on the issue to improve definition or even just
to mark ideological positions and stress the political facet of indigenous struggles.
So, at first, Suma Qamaña discourse was marked by the Highland insurgency
against Bolivian State. Passed a decade from those events, such a discourse still
resonates in a society characterized in these late years by the “whitening” of many
indigenous that migrated to the cities and their descendants.
9
Certainly, a closer view of Bolivian society reveals a demystification of the
indigenous as merely a community member or a minor worker: indigenous groups
are much more heterogeneous as collective actors and englobe an emerging class
of Aymara and Quechua business men, also defined by Untoja (2012a) as “Kolla
hegemony”, small farmers and great landowners. The positions assumed by these
actors reflect and reproduce power disputes in the national scene, which the
government`s manipulation of Suma Qamaña takes part of. In the next section,
I analyze Morales`s administration discourse on this Other knowledge and its
projection in the international community.
9 This is suggested by Benjo Alconz, member of the National Council of Ayllus and Markas of Qullasuyu
(Conamaq), in his intervention during the Foro Estado Plurinacional VS. Estado Republicano (Plurinational
State VS Republican State Foro), occurred on October 2
nd
, 2012. La Paz, Bolivia. Author`s notes.
247Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
Para Vivir Bien: the governmental discourse and its insertion
in the international sphere
Para Vivir Bien (In order to Live Well) consists in the main slogan adopted by
Morales’ administration and reproduced constantly by diverse State institutions
in order to legitimize public policies.
10
The overwhelming reproduction of Suma
Qamañas Spanish translation by the government made some critics point to a
process of political emptiness of the term that would serve to sustain domination
through the praise and visibility of the indigenous subject in the official discourse
(Mamani 2007). In fact, as an expression capable of being applied to distinct issues,
Vivir Bien (Living Well) removes the political content of indigenous resistance
as well as the cosmological facet regarding Suma Qamaña, despite the former`s
identification as an “indigenous proposition”. In that way, the appropriation of
otherness in governmental discourse through the incorporation of indigenous
ceremonies in the State protocol, the creation of norms, or even the organization
of annual meetings with indigenous and peasant leaders would function first and
foremost as a device to get their support and keep political alliance.
As those meetings lost gradually their co-ruling feature and assumed a
consultative status, and as the Executive started to criminalize indigenous leaders
who considered extractivist policies contrary to their self-determination and modes
of life, the government’s modus operandi became manifest as one of including
otherness narrowly. The goal was to create a favorable scenario to governand
guarantee the new political elite`s permanence in State institutions (DELGADO,
2014). The absorption of Suma Qamaña as a rhetorical device, which excludes
the incorporation and implementation of the logic underlying the expression, is
observed in Bolivian Constitution as well as in the National Development Plan
Bolivia Digna, Soberana, Productiva y Democrática Para Vivir Bien: Lineamientos
Estratégicos 2006-2011 (Dignified, Sovereign, Productive and Democratic Bolivia
In Order to Live Well: Strategic Lineament 2006-2011) (BOLIVIA, 2007). In the
first instance, Living Well and some of the characteristic attributed to the term –
complementarity, harmony, balancing – are linked either to moral values, either
to economic and political matters that should be assured by the State. Except
for article 8, Suma Qamaña is replaced in the document by “Living Well” or “in
order to Live Well”, the latter indicating not just a sense of purpose but also a
10 Some of those policies are found in Viceministerio de Tierras: Memoria 2012, Agenda Presidencial 2012, and
the National Tax Service`s website.
248 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
self-explanatory tone: its use as the ethos of Plurinational Bolivia would justify
in and of itself the duties and role of the State as regulator of activities in general
and promoter of development despite the normative advocates mechanisms of
participatory democracy (see, for example, articles 241, 241 and 316).
“Otherness” is, then, stressed as a subterfuge to promote political centralization
in the hands of Morales` government as representative of the State. This governmental
tactic and the issues highlighted above appear more clearly concerning the National
Development Plan (NDP). The normative, which evokes Living Well along with
development, economic productivity and Bolivian sovereignty, reflects what would
seem at first a misconception regarding Suma Qamaña, as affirmed by one of the
main proponents of the term, foreign minister Choquehuanca: “Maybe we are
still using Western concepts. Instead of speaking of a National Development Plan,
we should speak of a National Plan about Returning to Balancing, or a National
Plan of Life, because development is related to living better, not to Living Well”
(CHOQUEHUANCA, 2010, p. 33). But a closer look uncovers the discursive strategy
employed by the government in which Living Well stands as an extension of
development. The plan`s importance concerns not just its content but the display
of an academic grammar, involving a debate on Living Well and its crucial feature
to the refunding of Bolivian State.
In that sense, Living Well is classified as the knowledge “characteristic
of original and indigenous culture of Bolivia”, a “cosmocentric vision that
overcomes traditional ethnocentric concepts on development” that reflects “the
community`s intercultural coexistence with the other without power asymmetry”,
“different from Western “living better”” (BOLIVIA, 2007, p. 8). The expression
is, thus, understood as the inverse of development whose absorption in State
Project would reflect indigenous demand of decolonization. Nevertheless, Suma
Qamaña`s incorporation corresponds to the exaltation of difference and political
emptiness pattern observed before: once transformed into Living Well, the term
is adjusted to State parameters. Its resignification endows official discourse with
a new face although, in its structure, the content remains unaltered as suggested
by the employment of terms such as “new proposal of development”, “new
pattern of development”, “alternative paradigm to development”. Interestingly, the
latter reveals the capture of the world “paradigm”, pointed by some indigenous
academics, along with “alternative to development”, a notion widely rejected
by Aymara proponents. This suggests a strategic inclusion of Suma Qamaña`s
grammar into State`s Living Well discourse:
249Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
Living Well is the demand for development`s humanization […] Living
Well is the access to the enjoyment of material resources and of effective,
subjective, intellectual and spiritual fulfillment, in balancing with nature and
in community with human beings. […] The linear and sequential concept of
progress is insufficient to comprise the new proposal of development because
it requires an integral, holistic, radical and accumulative understanding
capable of including non-homogenous situations […]. It unites practices and
knowledge from different social actors […] (BOLIVIA, 2007, p. 9)
11
The new policy proposes the concept of “development pattern” in opposition
to “development model” because it does not search nor utilizes a proved
and validated prototype as it seeks to build a new development pattern as a
replacement for primary-export model (BOLIVIA, 2007, p. 12)
12
Through the manipulation of those terms, State`s discourse provides a
critique towards development as an ethnocentric understanding of the world,
that reproduces power asymmetry and silences other forms of knowledge. In that
sense, it seeks to transpose to the NDP the tension expressed in Suma Qamaña
literature between two opposite worlds: indigenous and Western ones. Moreover,
its sophisticated grammar establishes a nexus with the propositions of some
decolonial authors, as observed in the use of “intercultural coexistence” or the
idea that “interculturality is the driving force” of the new development`s pattern
(BOLIVIA, 2007, p. 13). Besides “interculturality”, other expressions are widely
found along the Plan and in decolonial literature as well as “decolonization”,
coloniality”, “colonialism” (Quijano 2005; Walsh, García Linera and Mignolo
2006). Nevertheless, as one proceeds with the document`s reading, the emphasis
on the empowerment of historically marginalized actors gives way gradually to the
prominence of the State as a “transforming force of change” (NDP, 2007, p. 15),
whose capacity of guaranteeing the necessary shifts in Bolivian society is linked
to the State`s return as the promoter of development.
The centralization of power by the State is justified as a condition for recovering
Bolivian natural resources, which plays a crucial role in the redistribution of
11 “El Vivir Bien es la demanda de humanización del desarrollo [...] el Vivir Bien es el acceso y disfrute de los
bienes materiales y de la realización efectiva, subjetiva, intelectual y espiritual, en armonía con la naturaleza
y en comunidad con los seres humanos. [...] La concepción lineal y secuencial de progreso es insuficiente para
comprender la nueva propuesta de desarrollo porque requiere de una comprensión integral, holística, radial y
acumulativa, capaz de abarcar situaciones no homogéneas [...]. Asimismo une diversas prácticas y conocimientos
provenientes de actores sociales diferentes [...]”
12 “La nueva política propone el concepto de “patrón de desarrollo” en oposición al “modelo de desarrollo” porque
no sigue ni utiliza un prototipo probado y validado, sino que plantea construir un nuevo patrón de desarrollo
en sustitución del primario exportador”
250 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
wealth, and the exercise of sovereignty in midst Morales`s government decision
to nationalize hydrocarbons and transnational companies: “Strategic sectors are
composed of hydrocarbons, mining, electricity and environmental resources,
that protect nationality because they comprise natural resources, regained
and recognized as State property” (BOLIVIA, 2007, p. 98). Such sectors would
demand a high investment which “explains the necessity of having the State as
the protagonist of development by creating or refounding State companies that
promote development of these sectors, maximize surplus[…] in a context of
balancing with environment” (BOLIVIA, 2007, p. 133-134). Part of this scenario is
the industrialization of natural resources, which has received the administration`s
attention, as suggested by the advance of gas` processing, the settlement of an
industry of urea in partnership with Samsung etc.
Those examples have no connection with Suma Qamaña propositions; on
the contrary, they relate to a development Project sustained in the following
pillars: State interventionism, reduction of poverty through wealth redistribution,
industrialization and economic growth.
13
Those pillars are pointed by several
authors as the characteristics of developmentalist governments in 21st century
Latin America and their focus on the extraction and export of natural resources
(see Boschi and Gaitán 2009; Gudynas 2009; Svampa 2013; Vidal 2008). In that
sense, the NDP would fit the extractivist regional agenda, which completely
shocks with indigenous rights, as showed in Isiboro Sécure National Park and
Indigenous Territory`s case and the criminalization of indigenous leaders who
opposed governmental policies (DELGADO, 2017).
Regarding national sovereignty, the issue figures as a principle to be achieved
through State`s empowerment to guarantee development, national unity and a new
political pact, despite other types of sovereignty are mentioned (food sovereignty,
sanitary sovereignty, indigenous land`s sovereignty). So, on the one hand, the
document attests popular participation based on State decentralization and Living
Well. On the other, the Plan promotes power recentralization via policies of
nationalization, industrialization and the provision of public goods, making the
State the promoter par excellence of change in Bolivian society. In this process,
the focus on natural resources control and the incorporation of Suma Qamaña/
13 Those pillars are observed not just in official documents but also in diverse news. See Agenda Patriótica 2025,
Vásquez (2013) and Agencia Boliviana de Información (2013, 2013a).
251Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
Living Well as the pillar for a “new type of development” function as a device to
accomplish a national Project and, simultaneously, to express Bolivian State self-
image, its uniqueness in the international sphere. This confirms Inayatullah and
Blaney`s (1995) observation on State sovereignty realization and its connection to
wealth access, which puts difficulty for Third World States due to inequality that
marks global division of labor. Because states need economic means to exercise
their sovereignty, understood by the authors not just as independence but also as
the expression of a state`s exceptionality in international community, the property
of natural resources for Bolivia would consist in a condition for the government
to accomplish its unique national Project and, consequently, to realize its self-
image abroad, as discussed below.
Suma Qamaña`s discursive instrumentalization as a source of legitimacy and
exceptionality in international society found in foreign minister Choquehuanca a
relevant broker, who mediated the contact between the former and the national
sphere.
14
Once absorbed in presidential discourse through the articulation
with Bolivian Foreign Ministry, Living Well is catapulted to international fora,
projecting simultaneously the country, Morales` administration as an “indigenous
government” and the President himself. Besides the minister`s speeches and texts
prepared for courses abroad, statements such as “[…] Bolivia begins a strategy
that aims to achieve the reconstruction of Living Well and save Mother Earth”
(CHOQUEHUANCA, 2010, p.) ratify the points highlighted before:
[...] Bolivia consists in a Messenger for Peace and a Guardian of Life for the
entire planet. […]
The profound change and transformation we are achieving are not just for us,
they are proposals and alternative for the world, humanity and the planet.
They are light to other peoples that struggle to change their history since there
is no other Project in this planet that represents other choice and considers
the global level.
If the challenge was big, now the responsibility and challenge are much
bigger, now hope is shared by the whole humanity from each corn of the
planet, because environmental, financial, political and social crisis we`ve
been facing in our territory affect global level and comprise the planet [..]
14 According to the literature on social movements, a broker stands as an actor (a person or even an organization)
that connects social spaces previously isolated or, in this case, we might think of two different worlds. See
Tarrow and McAdam (2005).
252 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
In this context, facing the threat of global crisis, our brother president releases
to the world Ten Mandaments in order to save the planet, humanity and life
(CHOQUEHUANCA 2010a, 72)
15
The quotations demonstrate the government`s initiative to project Bolivia,
crediting the country`s relevance for the planet to its process of decolonization
which, in turn, is linked to Living Well as the bedrock of an exceptional national
Project expressed in the Constitution, economic policies and reforms in general.
Suma Qamaña`s definition as an alternative for humanity is, thus, absorbed and
transposed to the Nation-State as the official representative of such proposal in
the international arena. Those observations are also illustrated by the President,
during his speech in the Climate Change Meeting, held in Copenhagen. For him, the
event presented for Bolivia the chance to “keep our strategy towards Living Well`s
reconstruction and the defense of Mother Earth, to advance Ten Mandaments`
propositions for saving the planet […], to take our responsibility in maintaining
Balancing with Nature” (MORALES, 2010, p. 27).
Suma Qamaña`s transformation into Living Well involves also an academic
framing which, reproducing the strategy adopted in the NDP, reflects the
administration`s effort to sustain legitimacy among its intellectual allies from abroad
by applying their conceptual tools and, in parallel, advance the construction of an
exceptionalism. Thus, the idea of creating a “new socialism” or a “communitarian
socialism” to improve “21st century Socialism”, stated in official documents, relates
not just to the Bolivarian model employed by Chaves` government. Indeed, the
expressions unveil a closer connection with Santos`s “Good Living Socialism”,
understood as a “mix of knowledge, ancestral knowledge with modern, Eurocentric,
progressist one” (SANTOS, 2010, p. 7). The words of president Evo Morales and
vice president Álvaro García, pronounced during VIII Congress of Movimiento al
Socialismo (governmental political party), made clear this approach. While the
15 [...] Bolivia se constituye em um Mensajero de la Paz y Guardián de la Vida para todo el planeta. [...]
Los câmbios y transformaciones profundas que estamos realizando no son solo para nosotros, son propuestas
y alternativas para el mundo, para la humanidade y el planeta. Son luces para los otros pueblos que luchan
para cambiar sus historias, ya que no existe en este momento, en el planeta, outro proyecto que represente
alternativas que toman em cuenta el nivel global.
Sí antes el desafio era grande, ahora la responsabilidade y los desafios son mucho mayores, ahora la esperanza
es compartida por la humanidade entera y de todo el planeta, porque las crisis ambientales, financeiras,
política y social, que estamos enfrentando em nuestro território, afecya a nível global y abarca el conjunto del
planeta [...]
Em esse contexto, ante la amenaza de las crisis globales, nuestro Hermano Presidente lanza al mundo los Diez
Mnadamentos para salvar al planeta, a la humanidad y la vida.
253Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
former claimed that this new socialism was grounded on Living Well, going beyond
class conflict, García explained: “these are the sources of our socialism: on the
one hand, the working class, contemporary science and technology and, on the
other, communitarism […]; the sum of worker`s world and communitarian world
[…] are the sources of Communitarian Socialism” (quoted in Villanueva 2012).
16
Hence, the quotations above disclose Suma Qamaña/Living Well`s framing so
it could provide academic support and, at the same time, fit the cosmology into
slogans and governmental policies. Here, what is at stake is not the implementation
of Living Well in accordance with indigenous intellectuals` proposals, which
are presented as radically distinct from the Western world and its capitalist and
socialist models. On the contrary, what is at stake is the instrumentalization of
Suma Qamaña, transforming the expression into an authentic proposal of socialism
under Morales` administration, different from other socialist experiences developed
around the globe. Because of its supposed uniqueness, Communitarian Socialism
would function not just as an appealing construct to the academic field but also
as a source of power to its advocates, that is, governmental authorities that
would detain what Inayatullah (200 8) names as “exclusive knowledge”. Related
to civilizatory and evangelist policies of colonization, as well as to international
donation to Third World countries, this expression indicates the superiority of one
group based on their singular knowledge about the world, which would endow
them with legitimacy and authority over the “other”.
In the Bolivian case, Communitarian Socialism works to project the State
and the government abroad by capturing the reclaim of exceptionality made by
former proponents of Suma Qamaña and transforming it into something else. In
parallel, the absorption of its conceptual tools also functions as a strategy that
seeks to gain recognition from indigenous and peasants` organizations, which
form the major support base of Morales’ administration, despite the opposition
of many indigenous and non-indigenous intellectuals. Thus, while Suma Qamaña
instrumentalization might look at first as an opportunity for indigenous movements
to transpose it internationally, giving resonance to their mobilization, this projection
seems delusional once one realizes that such a process entails the concept`s
inclusion in policies that put the sovereign State as the protagonist of political
game. Through such an inclusion, Suma Qamaña`s proposals are adjusted by the
official discourse, which reproduces the maintenance of exclusionary structures
under a supposedly indigenous government.
16 For a previous version regarding “communitarian socialism”, see Morales (2010a).
254 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
Conclusion
In this article, I`ve argued that Suma Qamaña/Living Well entails a strategy
of power by both Aymara people and the government. Initially attributed to an
Aymara intelligentsia, such a discourse worked to reinforce difference, giving it a
positive facet, and promote indigenous self-affirmation. Considering the context
in which it emerged, Suma Qamaña cannot be detached from the mobilizations
developed in the Bolivian Highland nor from the restructure of the ayllu. In that
sense, it played a crucial role in the recovery of identity and the promotion of
awareness among indigenous peoples, especially Aymara, an issue pointed by
Cesaire (2000) as relevant for the liberation of the colonized. Nevertheless, Suma
Qamaña/Living Well`s construction is also linked to conflicts of power in the
discursive field. On the one hand, it evokes criticism by many Bolivian intellectuals,
some of them Aymara. On the other, its incorporation by international academics
works in diverse ways: be it through the preponderance of Sumak Kawsay/Good
Living, the emphasis attributed to it as synonym of “Andean indigenous thought”
or even as an alternative to development, to capitalism and to colonial logic. In
any case, Suma Qamaña is transformed by theorists into expressions that tend
to confirm their theoretical hypothesis, leaving aside political disputes that take
place in the local dimension.
Considering IR scholars, they not just reproduce previous Social Science
literature on the issue but also reinforce the tendency mentioned above as their
focus is first and foremost a theoretical one. The concern with the ontological
difference presented by non-Western colonial worldviews and their prospects for
the discipline has as a result the depolitization of Suma Qamaña. In this case,
they put in second place divergence over the Aymara cosmology, which involve
indigenous and non-indigenous intellectuals. Because such divergence reflects
not just an effort to provide conceptual accuracy, but also the growing tension
between the government and indigenous movements that lead to the fragmentation
of the latter, IR theorists miss the strategies employed by those actors in the
Bolivian political game as well. In doing so, they mention only partially political
implications regarding the emergence of this “other” ontology in Bolivian society,
stressing the friction between Suma Qamaña and Modern logics but not necessarily
the continues process of domination and resistance that crosses those disputes,
nourishes them, and puts into check the progressive, essentialist and delusional
255Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
character regarding decolonization and indigenous movements in Bolivia.
As a result, IR authors tend to promote a romanticized critique vision of
Modern/rational versus Non-Modern logics, the latter represented by a homogenized
knowledge/mode of life. And because homogenization and essentialization remove
memories pervaded by struggles and stories of the other, as pointed out by
Barthes (2002), they depoliticize the colonized. Thus, in the discipline’s literature
theoretical issues take precedence over empirical research, and the political
component of Suma Qamaña, as developed in the local dimension and projected
to the international, is underestimated. In doing so, IR authors reproduce and
reinforce a similar pattern of depolitization advanced by Social Scientists.
Suma Qamaña`s depolitization is prompted by Morales government, although
in a distinct manner when compared to academic literature. In that case, the Aymara
concept is incorporated by the ruling elite through the exaltation of otherness
whilst its cosmological content is not followed by political leaders in public
policies. Converted into Living Well, Suma Qamaña is then applied as a useful
slogan in official propaganda: as an expression of what is essentially different
in Bolivia, Living Well serves to legitimize the administration and, in parallel,
project Bolivia and its government, as well as its indigenous president. Thus, as an
organizing principle of discourse, Suma Qamaña is immersed in political disputes
that develop in the local sphere and inform the international, which in turn also
impact the local, creating a dynamic process. Because conflicts of power and the
strategies employed by the actors involved are not considered by international
literature, because there is gap between theoretical and empirical research, political
implications are only partially considered and Suma Qamaña becomes politically
empty in its content. Finally, it should be highlighted that, once Suma Qamaña
is transformed into expressions that fulfill theorists’ hypothesis and their anxiety
for change, IR scholars also contribute to the creation of slogans, which puts into
jeopardy their own goal for decolonization.
Referencies
Agencia Boliviana de Información. “Ministro Arce asegura que Bolivia redujo en 60 veces
la brecha entre ricos y pobres.” La Razón, 14 enero 2013. Disponível em: <http://
www.la-razon.com/index.php?_url=/economia/Ministro-Arce-asegura-Bolivia-
pobres_0_1779422094.html>.
256 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
a. “Ban Ki-moon destaca crecimiento económico de Bolivia y liderazgo mundial de
Morales.” La Razón, 25 Septiembre 2013. Disponível em: <http://www.la-razon.
com/economia/Ban-crecimiento-Bolivia-liderazgo-Morales_0_1913208712.html>.
ACHARYA, Amitav; BARRY Buzan (Eds.). Non-Western International Relations Theory.
Perspectives on and beyond Asia. London: Routledge, 2010.
ACOSTA, Alberto. La maldición de la abundancia. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2009.
ALCONZ, Benjo. Intervention during “Foro Estado Plurinacional VS. Estado Republicano”.
La Paz, October 2, 2012. Personal Notes.
ASHLEY, Richard. “Untying the Sovereign State: a Double Reading of the Anarchy
Problematique.” Millennium: Journal of International Studies, 17 (2) 1998: 227-262.
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Editora Difel, 2002.
BEIER, J. Marshall. International Relations in Uncommon Places: Indigeneity,Cosmology,
and the Limits of International Theory. New York: Palgrave MacMillan, 2009
BHABHA, Hommi. “Framing Fanon”. In: FANON, Franz. The Wretched of the Earth. New
York: Grove Press, 2004.
BIERSTEKER, Thomas J. “The Parochialism of Hegemony: Challenges forAmerican’ Inter-
national Relations.” In TICKNER, Arlene B. Tickner; WEAVER, Ole (Eds.). International
Relations Scholarship Around the World. London: Routledge, 2009: 308-327.
BLASER, Mario. “Political Ontology: Cultural Studies without ‘cultures’?” Cultural
Studies, 23 (5) 2009, p.873-896.
____. Storytelling Globalization from the Chaco and Beyond. Durham: Duke University
Press, 2010.
BOLIVIA. Plan Nacional de Desarrollo. Bolivia Digna, Soberana, Productiva y Democrática
para Vivir Bien – Lineamientos Estratégicos 2006-2011. La Paz: Ministerio de Planificación
del Desarrollo – Gaceta Oficial de Bolivia, 2007.
____. “El Presidente en Acción...”, in: Agenda Presidencial, Año 1, No. 1. La Paz: Ministerio
de Comunicación – Gaceta Oficial de Bolivia, 2012.
____. Memória. Sembrando esfuerzos para vivir bien. La Paz: Viceministerio de Tierras
– Gaceta Oficial de Bolivia, 2012a.
____. Agenda Patriótica 2025. 13 Pilares de la Bolivia Digna y Soberana. La Paz: Gaceta
Oficial de Bolivia, 2013.
BOSCHI, Renato; GAITÁN, Flavio. “Politics and Development: Lessons from Latin
America.” Brazilian Political Science Review 3 (2) 2009, p. 11-29.
CÉSAIRE, Aime. Discourse on Colonialism. New York: Monthly Review Press, 2000.
CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe. Princeton: Princeton University Press, 2000.
CHOQUE, Roberto. Historia de una lucha desigual. Los contenidos ideológicos y políticos
de las rebeliones indígenas de la Pre y la Post Revolución Nacional. La Paz: Andrés
Bello, 2012.
257Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
____. Interview [March, 2013]. Interviewer: Ana Carolina Teixeira Delgado. La Paz.
2 archives (120 min).
CHOQUEHUANCA, David. “Es fundamental da construcción entre todos del Plan Nacional
de la Vida.” In: BOLIVIA. Vivir Bien: Mensajes y documentos sobre el Vivir Bien 1995-
2010. Serie Diplomacia por la Vida, Vol. 3, p.30-42. La Paz, Ministerio De Relaciones
Exteriores: Gaceta Oficial de Bolivia, 2010.
____. “Los Guerreros del Arco Iris.” In: BOLIVIA. Vivir Bien: Mensajes y documentos
sobre el Vivir Bien 1995-2010. Serie Diplomacia por la Vida, Vol. 3, p. 68-74. La Paz,
Ministerio De Relaciones Exteriores: Gaceta Oficial de Bolivia, 2010a.
CONWAY, Janet; SING,Jakeet. “Radical Democracy in Global Perspective: notes from the
pluriverse.” Third World Quarterly 32 (4) 2011, p.689–706.
COX, Robert. Production, Power and World Order: Social Forces in the Making of History.
New York: Columbia University Press, 1987.
DE LA CADENA, Marisol. “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections
beyond “Politics.” Cultural Anthropology 25(2), 2010, p.334–370.
____. Earth Beings: Ecologies of Practice across Andean Worlds. Durham: Duke University
Press, 2015.
DELGADO, Ana Carolina Teixeira. Guerreiros do Arco-Íris: os caminhos e descaminhos
da descolonização na Bolívia no início do século XXI. Tese (Doutorado em Relações
Internacionais). Instituto de Relações Internacionais – Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014.
____. “The TIPNIS Conflict in Bolivia”. Contexto Internacional, vol. 39(2) May/Aug 2017,
p. 373-391.
DUSSEL, Enrique. Lecture during Primer Encuentro del Buen Vivir, March 2012.
http://memorias-encuentrodelbuenvivir.blogspot.mx/2013/10/blog-post_3642.html
____. Agenda for a South-South Philosophical Dialogue.” Human Architecture: Journal
of the Sociology of Self-Knowledge 11(1) 2013, p.3-18.
ESCOBAR, Arturo. “Latin America at a Crossroads.” Cultural Studies 24 (1) 2010, p.1–65.
____. “Sustainability: Design for the pluriverse.” Development 54(2) 2011, p.137– 140.
____. “Más allá del desarrollo : postdesarrollo y transiciones hacia el pluriverso.” Revista
de Antropologia Social 21, 2012, p.23–62.
____. Una minga para el postdesarrollo: lugar, medio ambiente y movimientos sociales
en las transformaciones globales. Bogotá D.C.: Ediciones desde abajo, 2012a.
ESTERMANN, J. “Cris civilizatoria y Vivir Bien. Una crítica fílosófica del modelo capitalista
desde el allin kawsay/suma qamaña andino.” Polis, Revista de la Universidad
Bolivariana 11 (33) 2012, p.149-174.
FANON, Franz. The Wretched of the Earth. New York: Grove Press, 2004.
258 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
GROVOGUI, Siba. Beyond Eurocentrism and Anarchy. Memories of International order
and Institutions. New York: Palgrave MacMillan, 2006.
GUDYNAS, Eduardo. “Diez tesis urgentes sobre el nuevo extractivismo. Contextos y
demandas bajo el progresismo sudamericano actual.” In GUDYNAS, Eduardo et al
(Eds.). Extractivismo, política y sociedad Quito: CAAP (Centro Andino de Acción
Popular) y CLAES (Centro Latino Americano de Ecología Social), 2009, p. 187-225.
____. “Buen vivir: Germinando alternativas al desarrollo.” América Latina en movimiento,
año XXXV, segunda época, 2011.
HOBSON, John M. The Eurocentric Conception of World Politics: Western International
Theory, 1760-2010. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
HOFFMANN, Stanley. “An American Social Science: International Relations.” Daedalus,
Vol. 106, No. 3, Discoveries and Interpretations: Studies in Contemporary
Scholarship, Volume I (Summer, 1977), p.41-60
HUANACUNI, Fernando. Buen Vivir/Vivir Bien Filosofía, Políticas, Estrategias Y
Experiencias Regionales Andinas. Lima: Coordinadora Andina de Organizaciones
Indígenas (CAOI), 2010.
IKEDA, Josuke. “The Post-Western Turn in International Thoery and the English School.”
Ritsumeikan Annual Review of International Studies 9, 2010, p.29-44.
INAYATULLAH, Naeem. “Why do some people think they know what is good for others?”
In: EDKIN, Jenny; ZEHFUSS, Maja (Eds). Global Politics: A New Introduction. New
York: Routledge, 2008, p.344-69.
INAYATULLAH, Naeem; BLANEY, David. “Realizing Sovereignty.” Review of International
Studies 21 (1), 1995, p. 3-20.
____. International Relations and the Problem of Difference. New York: Routledge, 2004.
International Studies Association. 2016. “ISA 2016 Program”. <http://www.isanet.org/
Conferences/Atlanta-2016/Program>.
JONES, Branwen Gruffydd (Ed). Decolonizing International Relations. Lanham, MD:
Rowman and Littlefield, 2006.
KALLISAPA, Illapa. La Paz, Musef, 08/05/2013. 1 arquivo mp3 (130 min).
LANDER, Edgardo. “Estamos viviendo una profunda crisis civilizatoria.” In: América
Latina en Movimiento 452, 2010, p. 1-3.
LATOUR, Bruno. “An Attempt at a “Compositionist Manifesto”” New Literary History 41,
2010, p. 471–490
LIGHTFOOT, Sheryl. Global Indigenous Politics: a Subtle Revolution. New York: Routledge,
2016.
MACUSAYA, Carlos. “La Idea de los abuelos.” Soundcloud, December 28th, 2013.
<https://soundcloud.com/alberto-del-monte-03/la-idea-de-los-abuelos-carlos-
macusaya-cruz-minka-28>.
259Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
MAMANI RAMÍREZ, Pablo. “Evo Morales entre revolución india o contra revolución
india.” Willka 1 (1), 2007, p. 9-49.
____. Wiphalas y Fusiles. Poder comunal y el levantamiento aymara de Achakachi-
Omasuyus (2000-2001). La Paz: Flacso, 2012.
MEDINA, Javier. Suma Qamaña. Por una convivialidad postindustrial. La Paz: Garza
Azul Editores, 2006.
MEMMI, Albert. Racism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000.
MORALES AYMA, Evo. “Referéndum Mundial y Conferencia Mundial de los Pueblos
sobre el cambio climatic para elegir la Cultura de la Vida o la Cultura de la Muerte”.
In: BOLIVIA.. Vivir Bien: Mensajes y documentos sobre el Vivir Bien 1995-2010.
Serie Diplomacia por la Vida, Vol. 3, 2010, p.27-29. La Paz: Ministerio de Relaciones
Exteriores – Gaceta Oficial de Bolivia, 2010.
____. “Los Diez Mandamientos para salvar al planeta, a la humanidad y a la vida.” In:
BOLIVIA. Vivir Bien: Mensajes y documentos sobre el Vivir Bien 1995-2010. Serie
Diplomacia por la Vida, Vol. 3, 2010, p.18-24. La Paz: Ministerio de Relaciones
Exteriores – Gaceta Oficial de Bolivia, 2010a.
MUPPIDI, Himadeep. The Colonial Signs of International Relations. United Kingdom:
C Hurst & Co Publishers Ltd, 2012.
ONUF, Nicholas G. World of Our Making: Rules and Rule in Social Theory and International
Relations. Columbia, SC: University of South Carolina Press, 1989.
OVIEDO FREIRE, Attawalpa. M. Qué es el SUMAKAWSAY. Tercera Via: Vitalismo,
alternativa al capitalismo y el socialismo. La Paz: Garza Azul Editores, 2012.
PORTUGAL MOLLINEDO, Pedro. “Desarrollo, progreso y cosmovisión: mitos y verdades.”
Markapacha: Red Intercultural de Todos los Pueblos. Junio, 2013. Disponível em:
<http://www.markapacha.com/blog/?p=814>.
QUEREJAZU, Amaya. “Encountering the Pluriverse: Looking for Alternatives in Other
Worlds.” Rev. Bras. Polít. Int., 59(2), 2016, p. 1-16.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Edgardo
Lander (org) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Prespectivas
latino-americanas. Argentina: CLASCO, 2005.
____. ““Bien vivir”: entre el “desarrollo” y la des/colonialidad del poder.” Viento Sur 122
(March 2012), p. 46-56.
QUISPE, Felipe. Interview [April, 2013]. Interviewer: Ana Carolina Teixeira Delgado.
La Paz. 1 archive (60min).
REINAGA, Fausto. La Revolución India. El Alto: Imp. “Movil Graf”, 2011.
ROJAS, Cristina. “International Political Economy/Development Otherwise.” Globalizations,
December, Vol. 4 (4), 2007, p.573–587.
260 Suma Qamaña as a strategy of power: politicizing the Pluriverse
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
____. “The place of the social at the World Bank (1949–1981): Mingling race, nation,
and knowledge.” Global Social Policy, Vol. 15(1) 2015, p. 23-39.
____. “Contesting the Colonial Logics of the International: Toward a Relational Politics
for the Pluriverse.” International Political Sociology 10, 2016, p. 369–382.
SANTOS, Boaventura S. “Hablamos del Socialismo del Buen Vivir.” América Latina en
Movimiento 452, 2010, p. 4-7.
Servicio de Impuestos Nacionales. <http://www.impuestos.gob.bo/index.php?option=
com_content&view=featured&Itemid=435>.
SHAW, Karena. Indigeneity and Political Theory: Sovereignty and the Limits of the Political.
London: Routledge, 2008.
SHILLIAM, Robbie. International Relations and Non Western Thought: imperialism,
colonialism, and investigations of global modernity. London: Routledge, 2011.
SMITH, Karen. “Contrived boundaries, kinship and ubuntu: a (South) African view of the
‘international.” In Arlene Tickner and David Blaney (eds). Thinking the International
Differently. London: Routledge, 2012, p. 301-321.
SPEDDING, Alison. “‘Suma qamaña’ ¿kamsañ muni? (¿Qué quiere decir ‘vivir bien’?).”
Fé y Pueblo 17, 2010, p. 4-39.
SVAMPA, Maristela. ‘“Consenso de los Commodities” y lenguajes de valoración en
América Latin.” Nueva Sociedad 244, 2013, p.30-46.
STEFANONI, Pablo. “¿Y quién no querría vivir bien? Encrucijadas del proceso de cambio.”
Le Monde Diplomatique 200, 2012, p. 23-24.
SMITH, Steve; BOOTH, Ken; ZALEWISKI, Marysia (Eds). International Theory: positivism
and beyond. Cambridge: CUP, 1996.
TARROW, Sidney; MCADAM, Doug. “Scale Shift in Transnational Contention.” In: DELLA
PORTA, Donatella;TARROW, Sidney (Eds). Transnational Protest and Global Activism.
Oxford, UK: Rownan & Littlefield publishers, 2005, p. 121-147.
THOMPSON, Sinclair. Cuando sólo reinasen los indios. La Paz: La Mirada Salvaje, 2010.
TICKNER, Arlene B.; BLANEY, David. “Introduction: thinking difference.” In TICKNER,
Arlene B.; BLANEY, David (Eds). Thinking the International Differently. London:
Routledge, 2012, p. 1-21.
____. Claiming the International. New York: Routledge, 2013.
____. “Worlding, Ontological Politics and the Possibility of a Decolonial IR.” Millennium,
Journal of International Studies 00(0), 2017, p. 1-19.
TICKNER, J. A. Gendering World Politcs. New York: Columbia University Press, 1992.
UNTOJA, Fernando. Retorno al Ayllu. Una Mirada Aymara a la Globalización. La Paz:
Ediciones Ayra, 2012.
____. Katarismo. Crítica al indianismo e indigenismo. La Paz: Impresión Creativa, 2012a
VÁSQUEZ, Walter. “Redistribución de La riqueza impulsa La economía.” La Razón,
261Ana Carolina Teixeira Delgado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 236-261
January 1, 2013. Disponível em: <http://www.la-razon.com/nacional/Redistribucion-
riqueza-impulsa-economia_0_1766223382.html>.
VIDAL, Hernán. “Retornando a cuestiones indispensables: neoestructuralismo, Estado,
cultura nacional.” In: MORAÑA, Mabel (Ed). Cultura y cambio social en América
Latina. Madrid: Iberoamericana, 2008, p. 269-280..
VILLANUEVA IMAÑA, Arturo. D. “¿Quo vadis socialismo comunitario para Vivir Bien?”
Nueva Crónica y Buen Gobierno 115, 2012, p. 10-11.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo
Ameríndio.” Mana 2(2), 1996, p. 115-144.
WALSH, Catherine. “Development as Buen Vivir: Institutional arrangements and (de)
colonial entanglements”. Development, 53 (1), 2010, p. 15-21.
WALSH, Catherine; GARCÍA LINERA, Álvaro; MIGNOLO, Walter. Interculturalidad,
descolonización del estado y del conocimiento. Argentina: Ediciones del Signo, 2006.
WALKER,, Rob. Inside/Outside: International Relations as Political Theory. Cambridge:
Cambridge University Press, 1993.
WEAVER, Ole. “The Sociology of a Not so International Discipline: American and
European-Developments in International Relations.” International Organization
52(4), 1998, p. 687-727.
WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge, Cambridge
University Press, 1999.
YAMPARA, Simón. El Ayllu y La Territorialidad en Los Andes. Una aproximación a
Chambi Grande. El Alto: Ediciones Qamán Pacha CADA, 2001.
____. “Comprensión aymara de la tierra-territorio en la cosmovisón andina y su
ordenamiento para la/el qamaña.” Revista Inti-Pacha 1-7, 2005, p. 13-44.
YOUATT, Rafi. “Personhood and the Rights of Nature: The New Subjects of Contemporary
Earth Politics.” International Political Sociology 11, 2017, p. 39–54.
Instruções editoriais para os autores262
Instruções editoriais para os autores
Os autores devem seguir estritamente as diretrizes abaixo; sua não observância poderá
implicar em não aceitação do artigo submetido, sendo os autores orientados a adequar o
arquivo submetido aos padrões requeridos.
1. O artigo deve ser inédito e redigido em português, inglês ou espanhol. Além de
inédito, o artigo não deve estar em apreciação concomitante em nenhum outro
periódico ou veículo de publicação, no todo ou em parte, no idioma original ou
traduzido.
2. O arquivo a ser enviado deve estar em formato .doc ou .docx; use somente
a formatação padrão do texto. Os autores devem retirar sua identificação das
propriedades do arquivo.
3. Não serão aceitos artigos com mais de 4 (quatro) autores/co-autores. No caso de
mais de dois autores, a equipe editorial se reserva o direito de solicitar informações
sobre o papel de cada um dos autores no processo de desenvolvimento do artigo.
4. O autor deve submeter três arquivos:
4.1 Um arquivo contendo título, resumos, palavras chave, corpo do texto e refe-
rências. No texto do artigo, o responsável pela submissão deve eliminar
qualquer referência que possa permitir sua identificação
4.1.1 No caso de um trabalho fruto de pesquisa financiada, o autor deve
abrir uma nota de rodapé na primeira página do artigo para se referir
ao financiamento e às agências de fomento que o possibilitaram.
4.2 Um arquivo, a ser submetido como suplementar, contendo a identificação dos
autores, sua titulação máxima e a instituição a qual se encontra atualmente
filiado, um resumo do Curriculum vitae de, no máximo, 5 linhas, contendo
titulação, função que desempenha na instituição à qual é filiado e a URL do
Currículo Lattes. Em casos de artigos com múltiplos autores, a informação de
todos os autores deve ser apresentada. Neste mesmo arquivo, o autor poderá
incluir agradecimentos, se desejar.
4.3 Uma Carta ao Editor, que deve ser enviada também como arquivo suplementar,
na qual assume que o conteúdo do trabalho apresentado é inédito, não contém
nada que possa ser considerado ilegal, difamatório, que cause conflito de
interesses ou que possa interferir na imparcialidade do trabalho apresentado.
5. O arquivo com o corpo do texto não deve conter nenhuma forma de identificação
dos autores; a formatação do texto deve estar em espaço simples; fonte de
12-pontos; uso do itálico em vez de sublinhado (exceto em endereços URL);
Instruções editoriais para os autores 263
as figuras e tabelas devem ser inseridas no texto, e não no final do documento na
forma de anexos.
6. O artigo deve conter o mínimo de 7.000 e o máximo de 8.000 palavras, incluídos
título, resumo e palavras chave (em português e em inglês), corpo do texto e notas
de rodapé; excluídas as referências.
6.1 Serão adotadas no máximo cinco palavras-chave em cada idioma. Elas devem
se referir ao objeto de estudo do artigo e ao referencial teórico e/ou temática
utilizada para análise.
7. O artigo deve incluir um resumo em português e em inglês, entre 150 a 200 palavras
para cada uma das versões. Lembramos que o resumo em ambos os idiomas integra
o número mínimo e o máximo de palavras, conforme indicado no item 6.
8. As notas de rodapé devem se restringir a esclarecimentos adicionais ao texto. Todas
as referências de fonte bibliográfica ou outras deverão ser feitas no corpo do texto,
conforme o sistema de citação Chicago (AUTOR, data).
8.1 As citações devem estar no mesmo idioma que o artigo. Assim, será
acrescentada no corpo do texto a versão traduzida, e em nota de rodapé,
a versão original da citação.
9. A formatação de tabelas, quadros e figuras deverá seguir o formato ABNT.
10. As referências devem ser listadas ao final do texto e devem se restringir àquelas
efetivamente citadas no artigo. Deve ser observado estritamente osistema Chicago
(AUTOR, data). Não serão aceitas referências bibliográficas em notas de rodapé.
As mesmas deverão seguir os modelos abaixo, de acordo com o formato estabelecido
pela NBR 6023 (2002) da ABNT.
10.1 Para artigos ou documentos eletrônicos:
Elementos: AUTOR(es). Título. Título da publicação. Local de publicação,
numeração correspondente ao volume, número, mês e ano de publicação,
paginação inicial e final. Indicar o endereço (link) onde o documento está
disponível e a data de acesso ao artigo.
MIY AMOTO, Shiguenoli. Política Externa Brasileira: 1964-1985. Carta
Internacional, v. 8, n. 2, 2013, p. 3-19. Disponível em: <http://www.
cartainternacional.abri.org.br/index.php/Carta/article/view/120/64.
Acesso em: 14 jul. 2016.
10.2 Para Livros
Elementos: AUTORES(es). Título. Edição (a partir da 2ª edição). Cidade:
Editora, ano de publicação.
SAR AIVA, José Flávio S.Foreign Policy and Political Regime. Brasília, DF:
IBRI, 2003.
Instruções editoriais para os autores264
10.3 Para capítulos de livros:
Elementos: AUTOR(es) do capítulo. Título do capítulo. In: AUTOR(es) da obra
(Org., Ed., Coord.)Título da obra. Edição (a partir da 2ª edição). Cidade:
Editora, ano de publicação. Capítulo consultado e paginação da parte.
SNI DAL, Duncan. The politics scope: endogenous actors, heterogeneity and
institutions. In KEOHANE, Robert O; OSTROM, Elinor. Local commons
and global interdependence: heterogeneity and cooperation in two
domains. London: Sage Publication, 1995. Cap. 2, p. 47-70.
10.4 Trabalhos apresentados em Eventos
Elementos: AUTOR(es). Título do trabalho apresentado. In: nome do evento,
numeração do evento (se houver), ano e local (cidade) de realização, título
do documento (anais, atas, tópico temático), local, editora, data de publicação
e página inicial e final da parte referenciada.
VEN TURA, Deisy de Freitas Lima; PEREZ, Fernanda Aguilar. A política externa
de saúde de Dilma Rousseff (2011-2014): elementos preliminares para
um balanço. In: 5º Encontro Nacional da ABRI, 2015, Belo Horizonte.
Anais Eletrônicos. Disponível em: <http://www.encontronacional2015.
abri.org.br/site/anaiscomplementares?AREA=14%2017. Acesso em:
14 jul. 2016.
11. No ato da submissão, todas as informações requeridas no sistema deverão ser
devidamente preenchidas.
Condições para submissão
Como parte do processo de submissão, os autores são obrigados a verificar a confor-
midade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As submissões que não
estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores.
1. A contribuição é original, inédita e não está sendo avaliada para publicação por
outra revista. Caso contrário, deve-se justificar em “Comentários ao editor”.
2. O arquivo da submissão está em formato Microsoft Word, OpenOffice ou RTF.
3. URLs para as referências foram informadas quando possível.
4. O texto está em espaço simples; usa uma fonte de 12-pontos; emprega itálico em
vez de sublinhado (exceto em endereços URL); as figuras e tabelas estão inseridas
no texto, não no final do documento na forma de anexos.
O texto segue os padrões de estilo e requisitos bibliográficos descritos em Diretrizes
para Autores, na página Sobre a Revista.
Em caso de submissão a uma seção com avaliação pelos pares (ex.: artigos), as
instruções disponíveis em Assegurando a avaliação pelos pares cega foram seguidas.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 5-26
ISSN 1413-0904
9 7 7 1 4 1 3 0 9 0 0 0 4