ISSN 2526-9038 • V. 13, Nº 2, maio/agosto de 2018 • DOI: 10.12530/ci.v13n1.2018
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Expediente
Sumário
A Construção da Paz no Cenário Internacional: Do Peacekeeping Tradicional
às Críticas ao Peacebuilding Liberal | Building Peace in the International Scene:
From the Traditional Peacekeeping to the Critic of Liberal Peacebuilding | 5
Lucas Guerra e Ramon Blanco
O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados
Unidos no pós Guerra Fria | Geostrategic thinking and strategic documents
of the United States in the post-Cold War | 31
Raphael Padula
Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto
da Guerra Fria: o caso egípcio (1955-1967) | Non-alignment, foreign aid and
development in the Cold War context: the Egyptian case (1955-1967) | 56
Pedro Rocha Fleury Curado
Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral
nas relações Brasil–União Soviética (1964-1967) | Promising Expectations:
trade and perspectives of bilateral cooperation between Brazil and the Soviet
Union (1964-1967) | 76
Gianfranco Caterina
A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica
e da relativa estagnação após a crise global de 2008 | The economy of Russia
in the 21
st
century: the dynamics of economic rise and the relative stagnation
after the global crises of 2008 | 94
Rafael Henrique Dias Manzi
La cooperación de China en América Latina: ¿hacia una Nueva Economía
Estructural? | A Cooperação da China na América Latina: Rumo a uma Nova
Economia Estrutural? | Chinese cooperation in Latin America: ¿toward a New
Structural Economics? | 123
Eduardo Crivelli Minutti e Giuseppe Lo Brutto
A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no
Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio |
The participation of developing countries and least developed countries in the
Dispute Settlement Body of the World Trade Organization | 147
Andréa Freire de Lucena e Samuel Rufino de Carvalho
Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento
latino-americano | Clandestine infiltration: the question of difference
in latin american thought | 171
Lara Martim Rodrigues Selis
Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise
aplicado ao caso da cidade do Rio de Janeiro | Paradiplomacy as
Foreign
Policy and Public Policy: an analysis model applied to the case of the city of
Rio de Janeiro | 195
Leonardo Mercher e Alexsandro Eugenio Pereira
Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias
de política externa | Ideology explains everything? The clash in the brazilian
legislative branch on foreign policy matters | 223
Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
5Lucas Guerra, Ramon Blanco
A Construção da Paz no Cenário Internacional:
Do Peacekeeping Tradicional às Críticas ao
Peacebuilding Liberal
1
Building Peace in the International Scene:
From the Traditional Peacekeeping to the Critic
of Liberal Peacebuilding
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.775
Lucas Guerra
2
Ramon Blanco
3
Resumo
O presente artigo tem por objetivo fazer uma contextualização geral a respeito das
operações de paz das Nações Unidas. Primeiramente, enfatiza-se a possível relação entre o
desenvolvimento histórico dessas operações e os distintos contextos internacionais no qual
se inserem. Um maior destaque é dado às operações de paz contemporâneas, especialmente
as de peacebuilding. São investigados os pressupostos normativos subjacentes ao modelo
de atuação dessas, suas características centrais e as principais críticas que recebem em sua
configuração atual. Com base em uma metodologia essencialmente qualitativa, com ampla
revisão bibliográfica acerca do tema, foi possível constatar que o modo de atuação assumido
pelas operações de paz é responsivo às tendências e agendas assumidas em um contexto
internacional mais amplo. No caso das operações de peacebuilding, verifica-se que assimilam
em suas diretrizes os princípios da “paz liberal” dominantes no cenário internacional
1 Os autores agradecem aos revisores e pareceristas do artigo pelos comentários, sugestões e contribuições
realizadas. Qualquer erro ou inconsistência, no entanto, são de nossa inteira responsabilidade.
2 Lucas Guerra é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações
Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
E-mail: lucaspxguerra@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
3 Ramon Blanco é Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), onde coordena o
Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) e a Cátedra de Estudos para a Paz (CEPAZ), além de colaborar no Programa
de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (PPGCP–UFPR).
E-mail: ramon.blanco@unila.edu.br. O autoragradece o auxílio à pesquisa recebido no âmbito do Auxílio ao
Pesquisador (Edital PRPPG No 109) da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA.
Artigo submetido em 09/03/2018 e aprovado em 15/05/2018.
6
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
pós-Guerra Fria, buscando disseminar democracias liberais orientadas para o livre mercado
como estratégia ideal para a construção da paz em cenários pós-conflito. Há, porém, uma
série de críticas à forma de atuação das operações de paz nesses cenários, desde algumas
de caráter procedimental até aquelas estruturais que questionam os próprios pressupostos
normativos da paz liberal e sua incidência junto às populações locais.
Palavras-chave: Operações de Paz; Peacebuilding; Paz Liberal.
Abstract
This paper aims to weave a contextualization about the Unites Nations’ peace operations.
Firstly, we emphasize the possible relations between the historical development and the
distinct international contexts in which they take place. We highlight the contemporary peace
operations, specially the peacebuilding ones. We investigate the normative assumptions
underlying their actuation, as well as their main characteristics ant the major critics they
receive in their current configuration. With an essentially qualitative methodology, based
in an extensive bibliographic review on the theme, we verified that the modus operandi
assumed by the peace operations is responsive to the tendencies and agendas adopted in
a wider international context. In the peacebuilding operations’ case, we found that they
assimilate the “liberal peace” principles, dominants in the international scenario post-Cold
War. Therefore, they tend to disseminate liberal democracies oriented to free market as
the ideal strategy to build peace in post-conflict scenarios. However, there are a number
of criticisms on the actuation of the peace operations under these assumptions, from the
procedural ones to those structural, which question the liberal peace’s normative assumptions
and their incidence on local populations.
Keywords: Peace Operations; Peacebuilding; Liberal Peace.
Introdução
As operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) são, como
afirmam Mônica Herz, Andrea Hoffmann e Jana Tabak (2015, p. 84), a principal
ferramenta da organização para a gestão dos conflitos e promoção da segurança e
da paz internacionais. De acordo com o Departamento das Nações Unidas para as
Operações de Paz (DPKO), tais operações são frequentemente conduzidas com o
apoio de múltiplos atores internacionais — tanto estatais quanto não estatais —,
podendo ainda envolver um amplo gama de atividades: da diplomacia preventiva
à construção de mecanismos institucionais de governança (peacebuilding) e
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
7Lucas Guerra, Ramon Blanco
mesmo o uso da força para impor o início de processos de pacificação (DPKO,
2008, p. 17-19).
Tendo em vista a importância fundamental das operações de paz da ONU
enquanto ferramentas de política internacional para a segurança e a paz, o presente
artigo tem por objetivo fazer uma exposição de algumas das características
centrais das mesmas, de como essas características se modificam de acordo com
contextos internacionais diversos. Nesse sentido, o objetivo do artigo é delinear
um panorama de distintas abordagens teóricas feitas em relação às operações de
paz, bem como de algumas das principais críticas direcionadas a tais operações.
Assim, pretende-se contribuir com um marco de referência para possíveis estudos
e investigações mais profundas sobre o tema. Para tanto, optou-se por uma
metodologia essencialmente qualitativa, baseada na sistematização e análise tanto
de fontes primárias — com ênfase para documentos publicados por agências do
Sistema ONU abordando temas correlatos às operações de paz — quanto de fontes
secundárias, com ampla revisão bibliográfica da produção acadêmica sobre o tema.
Nesse sentido, a primeira seção do artigo apresenta a distinção entre as
operações de paz ditas “tradicionais” e as “multidimensionais”, buscando relacionar
cada um desses modelos com o contexto histórico no qual se desenvolveu. A seção
traz ainda uma análise de alguns aspectos da “paz liberal” enquanto princípio
normativo que orienta as operações de paz multidimensionais contemporâneas.
A segunda seção, por sua vez, contém em suas respectivas subseções um panorama
das principais críticas direcionadas às operações de paz contemporâneas, desde
as que aqui chamamos “procedimentais” até as distintas vertentes de críticas
estruturais”, com especial atenção àquelas orientadas pela Teoria Crítica das
Relações Internacionais
4
e por perspectivas pós-estruturalistas e pós-coloniais.
As operações de paz da ONU:
do modelo tradicional ao multidimensional
Enquanto ferramentas centrais para a gestão de conflitos e crises internacionais,
as operações de paz da Organização das Nações Unidas invariavelmente passaram
4 Seguindo o exemplo de Baete Jahn (1998, p. 614-615), por “Teoria Crítica das Relações Internacionais” — com
as letras em maiúsculo — nos referimos às abordagens teóricas à disciplina de Relações Internacionais que
partem de pressupostos normativos originalmente inspirados pela Escola de Frankfurt, buscando questionar a
pretensão de neutralidade das abordagens positivistas e orientar teoricamente caminhos para a emancipação
humana e superação de estruturas de dominação. Especificamente nesse trabalho, enfatizamos a vertente
neogramsciana desse tipo de abordagem, inaugurada nos escritos de Robert Cox (1981).
8
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
por uma série de transformações em suas configurações e modos de atuação ao
longo da história da organização (PARIS, 2004, p. 13-17). Tais transformações
ocorrem sobretudo em função dos elementos apontados como “ameaças” à paz
e à segurança internacionais em determinados contextos históricos, bem como
dos dispositivos então considerados adequados para a resolução das “ameaças”
nesses mesmos contextos (BUZAN; HANSEN 2012, p. 37-38). Assim, para uma
compreensão mais aprofundada acerca das operações de paz e do papel que
desempenham na política internacional contemporânea, se faz necessária uma
apresentação da relação indissociável dessas com movimentos mais amplos em
evidência nas relações internacionais em momentos históricos específicos.
Nesse sentido, são paradigmáticas as transformações em curso na configuração
das operações de paz no período de transição da bipolaridade sistêmica vigente
durante a Guerra Fria para a ordem internacional pós-Guerra Fria (PARIS, 2004,
p. 13). Seguindo os apontamentos de Barry Buzan e Lene Hansen (2012, p. 118-121)
e de Paul Williams (2008, p. 3), destaca-se que, durante a Guerra Fria, prevaleceu
na narrativa ortodoxa acerca da paz e da segurança internacionais um caráter
estritamente militarista e estatocêntrico. Assim, de acordo com os autores, o
paradigma de tensão bipolar vigente naquele período levou à priorização de temas
relacionados à eclosão de conflitos interestatais e à corrida armamentista, com
ênfase para os temas de dissuasão nuclear. No que diz respeito à paz, prevalecia
uma noção baseada na manutenção do equilíbrio na balança de poder entre os
Estados e no respeito à soberania de cada ator estatal (BELLAMY; WILLIAMS;
GRIFFIN, 2010, p. 29). Resulta daí aquilo que Oliver Richmond (2010, p. 16-17)
chama de “primeira geração” das abordagens à paz internacional, caracterizada
pela gestão de conflitos entre Estados a partir da mediação promovida por uma
terceira parte enviada para promover a paz.
Frequentemente, essa “terceira parte” consistia naquilo que Alex Bellamy, Paul
Williams e Stuart Griffin (2010, p. 29) chamam de operações de “peacekeeping
(manutenção da paz) tradicional” das Nações Unidas. Tratam-se, de acordo
com Roland Paris (2004, p. 13), de operações caracterizadas por forças militares
multinacionais compostas por uma quantidade restrita de soldados levemente
armados, enviados para monitorar processos de cessar-fogo e patrulhar zonas
neutras entre ex-combatentes. Em sua atuação, essas operações seguem o que
Bellamy Williams e Griffin (2010, p. 173) denominam de “santíssima trindade”
das operações de paz tradicionais: (1) o consentimento entre todas as partes
beligerantes como condição sine qua non para o envio das forças de paz;
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
9Lucas Guerra, Ramon Blanco
(2) a não ingerência em assuntos domésticos, em respeito à soberania estatal, e
(3) a proibição do uso da força exceto para fins de legítima defesa
5
.
Há ainda outros elementos que contribuem para o entendimento do porquê
da prevalência do modelo “tradicional” de operações de paz durante a vigência da
Guerra Fria. Roland Paris (2004, p. 15), por exemplo, destaca que naquele contexto
de bipolaridade tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética buscavam exercer
controle direto sobre suas respectivas zonas de influência, evitando ao máximo
a mediação de atores externos nessas regiões. Tal perspectiva de política externa
presente em ambas as superpotências levou ao que Herz, Hoffmann e Tabak
(2015, p. 88) identificam como uma “guerra de vetos” no Conselho de Segurança
das Nações Unidas (CSNU) — forma de travar o processo decisório do organismo
para medidas de caráter mais interventor. Além disso, a disputa ideológica entre
os EUA e a URSS resultava na ausência de um modelo de governança política e
econômica consensualmente aceito pela comunidade internacional como padrão
a ser implementado nas sociedades pós-conflito (PARIS, 2004. p. 15). Soma-se a
isso a ausência na própria Carta da ONU de prerrogativas específicas acerca das
operações de paz, além da proibição explícita nessa a intervenções externas em
assuntos domésticos
6
(BLANCO, 2014, p. 269).
As transformações globais deflagradas pelo término da Guerra Fria tiveram
um forte impacto sobre os paradigmas de paz e segurança internacionais e,
consequentemente, sobre a configuração das operações de paz “tradicionais”
vigentes até então. Nesse sentido, um dos desdobramentos centrais da dissolução
da URSS e “vitória” dos Estados Unidos foi o encerramento dos massivos auxílios
econômicos e militares ofertados pelas superpotências a suas respectivas zonas
de influência durante a vigência do conflito bipolar (PARIS, 2004). O resultado da
interrupção de tais fluxos de ajuda internacional foi a eclosão de intensas crises
sociais, políticas e econômicas em diversos países da periferia global (PARIS, 2004,
p. 16). Dessas crises emergiram uma série de grupos rebeldes de atuação violenta,
geralmente tendo como objetivo central a tomada de controle sobre os escassos
5 As duas primeiras operações de paz enviadas pela ONU são exemplos paradigmáticos desse tipo de operação.
Foram elas a Organização das Nações Unidas para a Supervisão de Trégua (UNTSO/1948) — criada para
monitorar as primeiras tentativas de negociação de acordos de paz na Primeira Guerra Árabe-Israelense — e
a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF I/1956), enviada para amenizar a Crise de Suez (BELLAMY;
WILLIAMS, 2010, p. 176-177; THEOBALD, 2009, p. 1-4).
6 Por esse motivo, as primeiras operações de paz da ONU — de tipo “tradicional” — foram juridicamente baseadas
no Capítulo VI da Carta das Nações Unidas, que versa sobre a resolução pacífica de disputas interestatais (HERZ;
HOFFMANN; TABAK, 2015, p. 92).
10
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
recursos de seus respectivos Estados (KALDOR, 2013, p. 2-3). A esse objetivo
se somaram reivindicações e disputas de cunho étnico, religioso e identitário,
processo que resultou na multiplicação de graves conflitos intraestatais ao redor
do globo
7
(KALDOR, 2013, p. 2-3).
Outro importante elemento do cenário pós-Guerra Fria foi a consolidação de
um momento de unipolaridade sistêmica em torno da supremacia estadunidense,
com a ausência momentânea de forças significativas de contestação global a
essa ordem (BUZAN; HANSEN, 2012, 257-258). Um dos reflexos dessa situação
foi uma considerável universalização do liberalismo político e econômico, à
época defendido e representado principalmente pelos EUA (PARIS, 2004, p. 19).
Assim, teses de autores como Francis Fukuyama (1989, p. 3), apontando a
democracia liberal e o capitalismo de livre mercado enquanto estágios máximos
e inevitáveis da evolução político-social humana, ganharam força nos meios
profissionais e acadêmicos mundiais (PARIS, 2004, p. 19). Logo, as principais
organizações internacionais, entidades políticas nacionais e demais entes de
atuação global aderiram a essa retórica, passando a atuar no sentido de disseminar
globalmente regras e modelos de governança radicados em princípios liberais
(PARIS, 2004, p. 19).
A partir de então, formou-se um novo entendimento acerca daquilo em que
consistiriam as principais “ameaças” à paz e à segurança e quais as estratégias
ideais para combatê-las. No lugar de preocupações com ameaças bélicas e nucleares,
emergiram enfoques em questões de identidade, fragilidade institucional, exclusão
de minorias e subdesenvolvimento econômico, identificadas como possíveis raízes
da eclosão de conflitos civis violentos (BLANCO, 2014, p. 270). Oliver Richmond
(2010, p. 19) categoriza tal percepção como marco fundamental da “segunda
geração” das abordagens à paz internacional, cuja principal característica é o
reconhecimento da negação de necessidades humanas básicas — sejam elas
políticas, econômicas, culturais, psicológicas etc. — enquanto força propulsora
da emergência de conflitos intraestatais, notadamente na periferia global.
Assim, surgem categorias como a de “Estados falidos”, referentes a entidades
estatais apontadas como incapazes de garantir a segurança, o estado de direito
e o bem-estar econômico e social de suas próprias populações (HELMAN;
7 Therése Pettersson e Peter Wallensteen (2015, p. 539) registram que os cinco primeiros anos posteriores à queda
do muro de Berlim (1989-1994) foram marcados pela maior ocorrência desse tipo de conflito desde o fim da
II Guerra Mundial até a contemporaneidade, com um ápice de cinquenta conflitos civis violentos registrados
em 1991.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
11Lucas Guerra, Ramon Blanco
RATNER, 1992, p. 3-6). Como pontua Blanco (2014, p. 294-295), tais Estados
passam a ser apontados pela narrativa ortodoxa como uma dupla ameaça: à
segurança de seus próprios cidadãos — por violar sistematicamente seus direitos
fundamentais — e à segurança da região em que se inserem e à segurança
internacional de maneira geral, uma vez que se vincula os “Estados falidos”
à produção de instabilidades, conflitos, grupos terroristas, crises migratórias,
dentre outras possíveis ameaças. Logo, o combate à “falência” dos Estados e aos
conflitos intraestatais violentos gerados por tal falência passa a ser prioridade na
agenda de construção de segurança e paz internacionais. Forma-se uma narrativa
triangular na qual a segurança, o desenvolvimento e a paz são apontados como
vértices indissociáveis e complementares que orientam as ações internacionais
em cenários pós-conflito (BLANCO, 2014, p. 272).
Progressivamente, a “santíssima trindade” das operações de paz tradicionais
vai se tornando obsoleta: diante da incapacidade de alguns Estados periféricos
de exercerem aquelas que se consideram as suas “funções primordiais”
8
, as
intervenções externas — por vezes com uso da força — para “capacitá-los” passam
a ser legitimadas perante a comunidade internacional (BELLAMY; WILLIAMS;
GRIFFIN, 2010, p. 29-30). Nesse processo, as organizações internacionais —
principalmente o Sistema ONU e as instituições financeiras internacionais —
passam a exercer protagonismo nos processos de intervenção e “reconstrução”
institucionais de cenários pós-conflito como estratégia para promover a segurança
e a paz (HERZ; HOFFMANN; TABAK, 2015, p. 88).
Nesse sentido, o documento Uma Agenda para a Paz, redigido em 1992 pelo à
época Secretário-Geral das Nações Unidas Boutros Boutros-Ghali, é paradigmático
por marcar o autorreconhecimento da ONU enquanto principal entidade responsável
pela garantia e manutenção da paz e da segurança internacionais (UN 1992,
p. 1-3). Além disso, o documento traz um inédito delineamento mais preciso
do entendimento da organização acerca do conceito de “paz” e quais são os
instrumentos mais adequados para concretizá-la (BLANCO, 2014, p. 275).
Na perspectiva do documento, a “paz” é entendida como a existência, em uma
sociedade, de condições de participação política democrática, garantia de acesso
popular ao desenvolvimento social e econômico e de mecanismos institucionais de
governança que assegurem o pleno funcionamento do estado de direito (UN, 1992,
p. 12-13). Quanto às políticas consideradas mais adequadas para se alcançar essa
8 De acordo com a narrativa internacional convencional: garantir a lei e a ordem, o pleno controle e autoridade
soberana sobre o território e a segurança e o bem-estar de sua população (HELMAN; RATNER, 1992, p. 3).
12
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
condição, a Agenda para a Paz (1992, p. 7-12) apresenta cinco possíveis ferramentas
para a resolução de conflitos e promoção da paz ao redor do globo. A primeira
delas, denominada diplomacia preventiva, refere-se a um conjunto de táticas de
prevenção à eclosão de conflitos violentos, envolvendo principalmente a mediação
por parte da ONU, a pedido dos Estados em litígio e de acordo com as regras
definidas por eles (UN, 1992, p. 4). As outras quatro dizem respeito aos distintos
tipos de operações de paz, a saber: operações de peacemaking (“pacificação”),
peace-enforcement (“imposição da paz”), peacekeeping (“manutenção da paz”) e
peacebuilding (“construção da paz”)
As operações de peacemaking (“pacificação”) são aquelas cujo objetivo é trazer
as partes beligerantes para um acordo, utilizando para tanto os meios estritamente
pacíficos previstos no Capítulo VI da Carta de São Francisco (UN, 1992, p. 7). Em
sentido diametralmente oposto, as operações de peace-enforcement (“imposição
da paz”) apresentam uma clara ruptura com os princípios das operações de paz
tradicionais, apelando diretamente para o respaldo do Capítulo VII da Carta da
ONU para justificar o uso da força na imposição da vontade do Conselho de
Segurança das Nações Unidas (CSNU) sobre partes beligerantes violentas relutantes
em aceitar um processo de negociação política por vias pacíficas e que consistam
em ameaça a suas respectivas populações civis (UN, 1992, p. 9-10).
Quanto às operações de peacekeeping (“manutenção da paz”), por um
lado, elas podem seguir o já referenciado modelo tradicional que vigorou ao
longo da Guerra Fria, mantendo-se fieis aos princípios da santíssima trindade
(consentimento, imparcialidade e proibição do uso da força) (UN, 1992, p. 10-11).
Por outro lado, a Agenda para a Paz prevê a possibilidade de uma atuação mais
versátil por parte dessas operações, podendo ser enviadas para cenários de violência
ainda em curso e tendo prerrogativa, portanto, para o uso da força para garantir
a manutenção da paz
9
(UN, 1992, p. 11). Seus mandatos podem ser mutáveis
ao longo da operação, seu pessoal composto por múltiplos atores estatais e não
estatais e suas atividades abrangem desde o patrulhamento de zonas neutras à
separação coercitiva de forças beligerantes e à proteção de civis e funcionários
internacionais em cenários de conflito (UN, 1992, p. 11-12).
Finalmente, as operações de peacebuilding (“construção da paz”) são
aquelas orientadas para a resolução das causas estruturais dos conflitos, tendo
9 Nesse sentido, Bellamy, Williams e Griffin (2010, p. 194) apontam que é corrente a categorização dessas operações
como juridicamente regidas pelo “capítulo 6 ½” da Carta de São Francisco, entre os princípios pacíficos e
consensuais do Capítulo VI e as medidas de coerção previstas em seu Capítulo VII.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
13Lucas Guerra, Ramon Blanco
por objetivo central evitar a reincidência dos mesmos (UN, 1992, p. 12). Assim,
uma vez que as injustiças sociais, disparidades econômicas e opressões políticas
são fatores compreendidos como raízes profundas da eclosão e reincidência de
conflitos violentos, a resposta oferecida pelas Nações Unidas é a promoção de
instituições e sistemas de governança capazes de combater tais raízes, favorecendo
o estabelecimento de uma paz autossustentável e de longa duração (RICHMOND,
2004, p. 37). Esse processo é implementado pelas operações de peacebuilding que,
para tanto, devem contar com a coordenação de diversos atores da comunidade
internacional, dentre os quais as organizações internacionais (com ênfase ao
sistema ONU), blocos regionais, instituições financeiras internacionais, ONGs,
agências de desenvolvimento, dentre outros responsáveis pela (re)construção da
paz em cenários pós-conflito (PARIS, 2002, 639-641; UN, 1992, p. 13-14).
Analisando as ferramentas previstas pela ONU na Agenda para a Paz à luz das
já referidas mudanças em curso na concepção de paz e segurança internacionais no
contexto pós-Guerra Fria, é possível notar uma maior abertura a medidas de caráter
interventor no direcionamento das ações da organização. Nesse sentido, Bellamy,
Williams e Griffin (2010, p. 279-281) notam que, mediante a “narrativa triangular”
vinculando segurança, desenvolvimento e paz, as operações de peacebuilding se
apresentam como a ferramenta mais adequada para a administração contemporânea
da paz e da segurança internacionais. Isso porque a um só tempo mesclam o
potencial de uso da força com a possibilidade de realização de atividades voltadas
para a reconstrução e remodelamento das instituições de governança social,
política e econômica dos países em situação pós-conflito (KOTZÉ, 2010, p. 219).
Tendo em vista essa importância, em 2008 o Departamento de Operações de
Paz das Nações Unidas (DPKO) publicou a Doutrina Capstone, documento que
reforça a centralidade das operações de peacebuilding como ferramentas centrais
para a gestão da paz e conflitos no cenário internacional contemporâneo. No
documento, são delineadas quatro diretrizes estratégicas para esse tipo de operação,
sendo elas: (1) a restauração da capacidade do Estado prover ordem e segurança à
sua população; (2) o fortalecimento do estado de direito e dos direitos humanos;
(3) o apoio à estruturação de instituições políticas legítimas, respaldadas pela
participação popular; (4) a promoção do desenvolvimento econômico e social
(DPKO, 2008, p. 23).
Para tanto, tais operações se ocupam de atividades diversas, que em muito
ultrapassam aquelas das operações de paz tradicionais. Dentre elas, destacam-se o
desarmamento, desmobilização e reintegração de combatentes (DDR), processos de
14
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
repatriação, treinamento de pessoal policial e militar, organização e monitoramento
de eleições, redação de constituições, reconstrução de infraestrutura básica,
provisão de alimentos e medicamentos, reconstrução e treinamento institucional/
administrativo dos sistemas judiciário, legislativo e executivo dos países pós-conflito,
dentre outras (BLANCO, 2014, p. 299; PARIS, 2004, p. 18). Para desenvolver esse
amplo leque de funções, as operações de peacebuilding geralmente contam com
grandes efetivos militares para eventuais necessidades coercitivas, mas que
são lideradas por funcionários públicos internacionais de organizações civis,
responsáveis pela reconstrução institucional priorizada nesse tipo de operação
(BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 279-283). Pela amplitude de tarefas
desempenhadas pelas operações de peacebuilding, autores como Giovanni Cellamari
(1999, p. 60) e Oliver Richmond (2010, p. 22) as categorizam como operações de
paz multidimensionais.
Uma importante característica que as operações de peacebuilding assumem
em sua configuração contemporânea e que vale a pena ser apresentada mais
detalhadamente é a intrínseca relação com processos de state-building (BELLAMY;
WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 257). Os processos de state-building são uma parte
específica das múltiplas atividades conduzidas pelas operações de peacebuilding,
especificamente voltados para a restauração e treinamento do serviço civil e
administrativo, fortalecimento da gestão financeira, capacitação dos poderes
executivo, legislativo e judiciário para exercer governo e a gestão das relações entre
Estado e sociedade civil (BLANCO, 2014, p. 298-299). Em suma, trata-se de uma
reconstrução das bases institucionais e infraestruturais do Estado para que esse
possa estabelecer efetivamente a governança sobre um território a partir daquelas
que são consideradas suas funções primordiais: o fornecimento de segurança física,
social e econômica à população e a regulação das relações dessa com o aparato
estatal, de modo a prevenir a emergência de novos conflitos violentos (BELLAMY;
WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 257 ; BLANCO, 2014, p. 301-303)
10
.
Oliver Richmond (2010, p. 22) caracteriza essa convergência entre as operações
de peacebuilding e os processos de state-building como a característica fundamental
do que chama de “terceira geração” das abordagens internacionais à construção
da paz. A partir dessa convergência, emerge o que o autor caracteriza como
um “consenso sobre peacebuilding” — o entendimento, compartilhado entre as
10 Para uma análise crítica mais alargada relativamente a um caso onde tal relação é a emblemática, no Timor-
Leste, ver (BLANCO, 2015).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
15Lucas Guerra, Ramon Blanco
principais organizações envolvidas com as operações de paz, de que a reconstrução
das capacidades de governança estatal via processos de state-building seria a
estratégia ideal para promover uma paz autossustentável e de longa duração em
cenários pós-conflito (RICHMOND, 2010, p. 22).
É importante notar que o “consenso sobre peacebuilding” foi arquitetado em
um ambiente marcado por uma aceitação generalizada da democracia liberal e
do capitalismo de livre mercado enquanto princípios triunfantes da governança
internacional (PARIS, 2004, p. 19). Tendo em vista tal contexto, autores como
Mark Duffield (2001, p. 10-11), Michael Pugh (2004, p. 40), Oliver Richmond
(2004, p. 91-91), Ramon Blanco (2014, p. 284-285) e Roland Paris (2002, p. 642)
convergem ao indicar que o “consenso sobre peacebuilding” que orienta as
operações de paz contemporâneas consiste na institucionalização de um modelo
específico e pretensamente universal de reconstrução de Estados e sociedades
pós-conflito, voltado para a promoção de democracias liberais orientadas para
o livre mercado enquanto estratégia ideal para a consolidação de sistemas de
governança estáveis e funcionais e para a concretização de uma paz de longa
duração. São essas as diretrizes da chamada paz liberal.
Como lembram Oliver Richmond (2005, p. 25-28), Ramon Blanco (2014,
p. 280-282) e Roland Paris (2004, p. 47-50), o enquadramento normativo que
rege a paz liberal aplicada pelas operações de peacebuilding contemporâneas
tem suas raízes no pensamento liberal ocidental emergente com os filósofos da
Ilustração. Assim, argumentos inicialmente levantados por autores como Adam
Smith (1988), Immanuel Kant (2008), John Locke (1978), Montesquieu (1996) e
mesmo federalistas estadunidenses, como James Madison, Alexander Hamilton
e John Jay (1993), são reeditados como pressupostos norteadores do modelo de
governança política, social e econômica proposto pelas operações de paz.
Dentre esses pressupostos, destacam-se os relacionados à argumentação em
torno das teses da “paz democrática” e da “paz pelo comércio”. Em suma, como
sintetiza Blanco (2014, p. 280), trata-se da pressuposição de que (1) regimes
democráticos são menos propensos a conflitos violentos internos e externos e
(2) o livre comércio e a interdependência econômica gerada por ele consistem em
um plataforma sólida para a manutenção da paz. Nas operações de peacebuilding
contemporâneas e processos de state-building conduzidos por elas, tais perspectivas
se cristalizam na:
16
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
noção de que promover a “liberalização” em países que recentemente
experimentaram guerra civil ajudaria a criar as condições para uma paz estável
e duradoura. Na esfera política, liberalização significa democratização, ou a
promoção de eleições periódicas e genuínas, limitações constitucionais ao
exercício do poder governamental e respeito pelas liberdades civis básicas [...]
Na esfera econômica, liberalização significa mercantilização, ou movimento
em direção a um modelo econômico orientado para o mercado, incluindo
medidas orientadas a minimizar a intervenção governamental na economia e
maximizar a liberdade de investidores, produtores e consumidores privados
para buscar seus respectivos interesses econômicos
11
(PARIS 2004, p. 5,
tradução nossa).
Com base na prevalência desses argumentos na narrativa internacional pós-
Guerra Fria, a democracia liberal orientada para o livre mercado passa a ser o
modelo de organização política, social e econômica considerado ideal para a
promoção da paz, da segurança e do desenvolvimento em países devastados
por conflitos (DUFFIELD, 2001, p. 10-11). Logo, as diretrizes promovidas pelas
operações que Richmond (2004, p. 91-92) caracteriza como de “peacebuilding
liberal” assumiram o perfil de promoção de sistemas de governança mais que de
meros processos de reconciliação. Subjacente ao “consenso sobre peacebuilding”,
portanto, estava a noção de que a concretização de uma paz autossustentável e
duradoura em sociedades pós-conflito só seria possível mediante a adoção dos
princípios da democratização, do estado de direito funcional, dos direitos humanos
individuais, da inserção ao livre mercado mundial e do modelo de desenvolvimento
neoliberal (BLANCO, 2014, p. 280).
Na esfera econômica, Michael Pugh (2005, 23-25) identifica que as operações
de peacebuilding tendem à implementação de modelos de governança econômica
norteados por uma concepção de desenvolvimento notadamente neoliberal. Assim,
são propostas diretrizes centradas na liberalização dos mercados, na redução da
gestão estatal sobre a economia, na supressão dos espaços públicos e coletivos
em detrimentos das privatizações e investimentos (principalmente externos)
privados e na crença de que tais diretrizes, em conjunto com as exportações, são
11 “the notion that promoting “liberalization” in countries that had recently experienced civil war would help to
create the conditions for a stable and lasting peace. In the political realm, liberalization means democratization,
or the promotion of periodic and genuine elections, constitutional limitations on the exercise of governmental
power, and respect for basic civil liberties […]. In the economic realm, liberalization means marketization, or
movement toward a market-oriented economic model, including measures aimed at minimizing government
intrusion in the economy, and maximizing the freedom for private investors, producers, and consumers to
pursue their respective economic interests”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
17Lucas Guerra, Ramon Blanco
elementos fundamentais para o crescimento econômico e promoção do bem-estar
social (PUGH, 2005, p. 25). No eixo político, Paris (2004, p. 5) nota a tentativa de
implementação de um modelo de democracia estritamente baseado na promoção de
eleições periódicas de representantes e na instituição de limitações constitucionais
ao poder dos Estados em situação pós-conflito.
Evidentemente, esse tipo de orientação das operações de peacebuilding sob
a égide da paz liberal foi progressivamente gerando uma série de críticas entre
diversos atores da comunidade internacional, desde setores da academia até
algumas das próprias organizações internacionais envolvidas com a resolução de
conflitos. Dentro do objetivo do artigo de apresentar uma ampla contextualização
acerca das operações de paz, a exposição de algumas dessas críticas é o objetivo
ao qual se presta a seção seguinte.
Perspectivas críticas às operações de peacebuilding
contemporâneas
Conforme se mencionou, apesar do termo “consenso sobre peacebuilding”,
se verifica que uma série de críticas e contrapontos surgem a tal paradigma
estruturado em torno dos princípios da paz liberal, especialmente nos meios
acadêmicos, mas também entre algumas agências civis de construção da paz
(BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 259-265). Seguindo o exemplo de
Aureo de Toledo Gomes (2013, p. 50), propomos aqui uma divisão em dois tipos
principais de crítica: as procedimentais (ou, nos termos de Gomes, “reformistas”)
e as estruturais.
As críticas que aqui chamamos “procedimentais” são aquelas que não
questionam os pressupostos teóricos e ideológicos da paz liberal, apenas divergem
acerca das melhores estratégias para avançar em relação à democratização e
mercantilização das sociedades pós-conflito, além de denunciar alguns desafios
pragmáticos que se manifestam nas operações de paz, como a disseminação de
doenças e abusos sexuais. Já as críticas “estruturais” envolvem um questionamento
dos pressupostos normativos das operações de peacebuilding liberal, buscando
evidenciar as conexões existentes entre essas e as relações de poder existentes no
cenário internacional. Dentre as críticas estruturais, apresentam-se nessa seção
aquelas realizadas a partir da Teoria Crítica e de enfoques pós-estruturalistas e
pós-coloniais.
18
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
As críticas procedimentais
Entre as críticas de tipo procedimental às operações de peacebuilding
contemporâneas, Ramon Blanco (2014, p. 283-284) ressalta aquelas mais diretamente
relacionadas a falhas na organização, centralização e planejamento na atuação
das diversas agências internacionais envolvidas com as operações de paz. Nesse
sentido, se enquadram as críticas feitas por Bellamy, Williams e Griffin (2010, p.
248) aos mandatos do Conselho de Segurança da ONU que orientam tais operações,
apontados como frequentemente imprecisos e inexequíveis. Os autores também
ressaltam a recorrente carência de recursos humanos, financeiros e materiais
suficientes para o cumprimento da ampla gama de atividades outorgado às
operações de paz (BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 248).
Outro enfoque crítico às operações de peacebuilding que pode ser alocado na
categoria procedimental diz respeito aos efeitos econômicos negativos que essas
podem acarretar nos locais em que atuam. Cedric de Coning, Chiyuki Aoi e Ramesh
Takur (2007, p. 170-171), por exemplo, verificam que os grandes contingentes civis,
policiais e militares que compõem as operações de paz tendem a gerar uma série
de atividades econômicas em torno de suas demandas (moradia, hospedagem,
alimentação, recursos humanos relacionados às próprias operações, serviços
pessoais etc.). Apesar dessa demanda contribuir para a geração de empregos,
os autores notam que também repercute em fatores danosos para as economias
locais, como no aumento nos preços de insumos básicos e intensificação das
desigualdades salariais, em benefício das parcelas que se aproximam de atividades
de peacebuilding financiadas por agentes externos (CONING; AOI; TAKUR,
2007, p. 170-171). Além disso, a abrupta retirada do pessoal internacional após
o término das operações frequentemente gera impactos econômicos negativos,
principalmente vinculados ao desemprego e à deflação (CONING; AOI; TAKUR,
2007, p. 170-171)
12
.
Ainda entre as críticas de tipo procedimental, destacam-se aquelas que
denunciam os casos de uso arbitrário da violência, abusos sexuais e estupros
perpetrados pelo pessoal internacional das operações de paz contra as populações
em cenários pós-conflito. Nesse sentido, Vanessa Kent (2007, p. 45), por exemplo,
indica que nas operações de paz ocorridas na Somália, Haiti, Moçambique,
12 As operações de peacebuilding no Kosovo (UNMIK) e no Afeganistão (UNAMA) são, como reporta Katarina
Ammitzboell (2007, p. 76-86), casos exemplares dos impactos econômicos negativos que podem ser provocados
por esse tipo de operação.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
19Lucas Guerra, Ramon Blanco
Kosovo, Bósnia e Camboja ao longo da década de 1990, os índices de prostituição,
estupros, escravidão sexual e mesmo de abuso sexual de crianças cresceram
exponencialmente, sem a devida punição dos agentes internacionais envolvidos
em tais atividades.
Acrescenta-se, ainda, o apontamento de casos de transmissão de graves
doenças infecciosas pelos contingentes das operações de paz. Harley Feldbaum,
Kelley Lee e Preeti Patel (2006, p. 775-776) evidenciam ocorrências de transmissão
de HIV/AIDS pelos efetivos de paz no Sudão do Sul e na Somália. José Luis
Patrola e Thalles Gomes (2011, p. 149), por sua vez, indicam a disseminação de
cólera pelas tropas da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
(MINUSTAH), tendo atingido aproximadamente cem mil habitantes do país e que
se verificou fatal para cerca de dois mil deles.
Finalmente, adiciona-se às críticas procedimentais aquelas que, apesar de
concordarem com o argumento central da paz liberal de que a mercantilização
e a democratização são as diretrizes de governança ideais para a construção de
uma paz duradoura e autossustentável em cenários pós-conflito, propõem modos
alternativos de implementá-las nesses cenários. Um exemplo é a proposição da
“institucionalização antes da liberalização” feita por Roland Paris (2004, p. 187-211).
Para o autor, a rápida liberalização política e econômica em cenário pós-conflito
pode gerar efeitos traumáticos, inclusive contribuindo para a reincidência de
episódios violentos. Sendo assim, a liberalização deveria se dar de modo gradual,
precedida da construção e fortalecimento de instituições
13
e culturas democráticas,
capazes de mitigar possíveis tensões resultantes do processo de adequação aos
moldes de governança liberal (PARIS, 2004, p. 187-211).
As críticas estruturais: Teoria Crítica
Enquanto as críticas procedimentais apresentadas na subseção anterior são
estritamente voltadas para desafios e problemáticas pontuais enfrentadas pelas
operações de paz, sem questionar seus pressupostos normativos, as abordagens
de crítica estrutural às operações de peacebuilding liberal são aquelas que
buscam compreender como essas operações e suas diretrizes contribuem para a
13 Partidos políticos moderados, mecanismos constitucionais de respeito aos resultados eleitorais, sistemas midiáticos
livres que previnam o discurso de ódio, reformas econômicas progressivas etc. (PARIS, 2004, p. 188-205).
20
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
legitimação e perpetuação das relações de poder inerentes a uma determinada
ordem mundial (GOMES, 2013, p. 55). Aqui, destacam-se as críticas estruturais
a partir da Teoria Crítica das Relações Internacionais, majoritariamente voltadas
para a desmistificação da suposta neutralidade e universalidade apresentadas
pelos princípios da paz liberal.
Nesse sentido, o objetivo dessas abordagens é analisar o papel ideológico
da paz liberal — e das operações de paz orientadas por ela — na perpetuação de
uma ordem mundial neoliberal. Também faz parte do enfoque da Teoria Crítica
uma especial atenção ao papel das organizações internacionais nesse processo
(BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 28; RICHMOND, 2008, p. 121-122).
Sendo assim, são três as dimensões das críticas estruturais, desde a perspectiva da
Teoria Crítica, examinadas nessa subseção: (1) as operações de peacebuilding e a
paz liberal como mecanismos de solução de problemas; (2) o papel desempenhado
por elas na perpetuação de uma ordem mundial neoliberal e (3) a participação
das organizações internacionais nesse processo.
Bellamy, Williams e Griffin (2010, p. 28) dão um primeiro passo no sentido da
primeira dimensão, ao identificar qual seria o “problema” central a ser “solucionado”
pelas operações de peacebuilding liberal na ordem mundial contemporânea.
Trata-se, na perspectiva dos autores, da contenção de movimentos e processos que
possam ameaçar a acumulação de lucro em escala mundial (BELLAMY; WILLIAMS;
GRIFFIN, 2010, p. 28). Mais precisamente, esse viés analítico sustenta que o
funcionamento da economia global capitalista tende a criar regiões periféricas no
sistema internacional, cujas péssimas condições socioeconômicas frequentemente
geram conflitos violentos (BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 28). Ao mesmo
tempo, as regiões centrais do sistema dependem dos fluxos de bens e capitais e
da mão de obra e matéria-prima baratas disponibilizadas pelas regiões periféricas.
Assim, a paz liberal e as políticas públicas internacionais influenciadas por
ela buscam essencialmente conter revoltas e conflitos que ameacem a ordem
mundial capitalista estabelecida e, ao mesmo tempo, perpetuar e legitimar essa
ordem (PUGH, 2004, p. 41). Assim, de acordo com Ian Taylor (2010, p. 169-170),
as operações de peacebuilding orientadas pela paz liberal buscam sobretudo
solucionar conflitos pontuais emergentes na periferia global, atendendo aos
interesses de forças sociais transnacionais que se beneficiam da manutenção de
certo grau de estabilidade nos países periféricos, em ordem de lograr explorar
seus recursos e incluí-los à rede de fluxos de bens e capitais.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
21Lucas Guerra, Ramon Blanco
A partir dessa constatação, é possível avançar um pouco mais a análise na
direção do segundo ponto proposto no início da subseção: o papel das operações
de peacebuilding liberal na perpetuação e legitimação de uma ordem mundial
neoliberal. Robert Cox (1999, p. 8-12), um dos principais expoentes da Teoria Crítica
das Relações Internacionais, aponta que uma das características centrais dessa
ordem, no campo econômico, é uma organização da produção transnacionalizada
e fragmentada — fortemente dependente dos recursos naturais e humanos baratos
ofertados pelos países periféricos para funcionar. Ainda de acordo com o autor, no
campo político prevalece uma forma de Estado enquanto aparato de adequação
das economias nacionais às demandas liberalizantes do capitalismo global (COX,
1999, p. 8-12).
Conforme constatam autores como Edward Newman (2009, p. 49), Michael
Pugh (2005, p. 24-35), Ian Taylor (2010, p. 160-162), Mark Duffield (2001, p. 34)
e Paul Cammack (2006, p. 3-6), as operações de peacebuilding exercem um papel
fundamental na disseminação do modelo de governança política e econômica
favorável à perpetuação de uma ordem mundial neoliberal. Pugh (2005, p. 24-35),
por exemplo, enfatiza que as diretrizes econômicas contidas nas proposições
orientadas pela paz liberal se baseiam na integração indiscriminada à economia
mundial como único caminho para o desenvolvimento e no protagonismo do
setor privado e dos investimentos externos diretos nesse processo. Abre-se
assim caminho para uma supressão dos bens e serviços públicos em prol das
privatizações e investimentos estatais focados no setor privado (PUGH, 2005,
p. 32-35). O resultado é a implementação de um modelo econômico que, na prática,
intensifica a marginalização dos setores mais pobres da população, favorece as
elites locais envolvidas com o capital transnacional e acentua as desigualdades
socioeconômicas internas em sociedades pós-conflito (PUGH, 2005, 32-35).
Além disso, as operações de peacebuilding liberal disseminam um modelo
de democracia estritamente procedimental, radicado em uma noção de nítida
separação entre a esfera econômica e a esfera política do todo social (TAYLOR,
2010, p. 160-162). Assim, o modelo de democracia perpetuado pelas operações de
peacebuilding tende a retirar o controle populacional democrático sobre processos
econômicos e favorecer a manutenção no poder de elites políticas aliadas ao capital
transnacional e à adequação local aos imperativos da ordem mundial neoliberal
(ROBINSON, 2013, p. 228; TAYLOR, 2010, p. 162).
Em síntese, pela ótica da Teoria Crítica das Relações Internacionais, as operações
de peacebuilding são lidas como ferramentas fundamentais das organizações
22
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
internacionais em sua função de perpetuar e legitimar uma ordem mundial
favorável aos interesses das forças sociais hegemônicas (elites transnacionais)
em determinados momentos históricos (COX, 2007, p. 119; PUGH, 2004, p. 45;
TAYLOR, 2010, p. 156). Desde esse enfoque, instituições como a ONU e suas
agências, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a União Europeia,
a Organização dos Estados Americanos (OEA) e mesmo diversas ONGs e think
tanks são apontadas como atores estruturantes da ordem mundial neoliberal
contemporânea (CAMMACK, 2006, p. 1-6; COX, 2007, p. 119-121; PARIS, 2002,
p. 641). Coordenando esse processo, haveria uma elite financeira e empresarial
transnacional que coordena os processos de peacebuilding, buscando avançar a
disseminação do neoliberalismo em escala global por intermédio das organizações
internacionais, com ênfase para o Sistema ONU e para as instituições financeiras
internacionais (PUGH, 2004, p. 46).
Como bem pontua Cammack (2006, p. 1), a atuação dessas organizações em
questões securitária no pós-Guerra Fria se voltou principalmente para a construção
de um paradigma de “segurança pela hegemonia capitalista”, cuja consolidação
se dá em grande parte pela atuação das operações de peacebuilding liberal. Para
o autor, tais operações exercem um papel fundamental para a disseminação dos
valores e imperativos capitalistas para os países periféricos, através da criação
de mercados abertos para a penetração pelo capital transnacional, a capacitação
de novos contingentes de trabalhadores baratos disponíveis para a exploração
pelo capital externo, o estabelecimento de hegemonias domésticas burguesas e a
asseguração da legitimidade desses processos via democracia liberal (CAMMACK,
2006, p. 6).
Com base nos argumentos apresentados, Michael Pugh (2004, p. 54) sustenta
que haveria um preço a pagar pela ajuda humanitária e proteção militar por
forças externas, representada pelas operações de peacebuilding liberal em
cenários pós-conflito: a manutenção da dependência em relação às partes mais
ricas do planeta e a sujeição às normas e demandas de uma economia neoliberal
globalizada. Assim, embora o modelo de governança política e econômica proposto
pela paz liberal possa trazer certos avanços para a participação democrática
de massas populares e para o enriquecimento de elites nacionais, destaca-se
que a transição em cenários pós-conflito sob o marco desse paradigma impõe
uma série de limitações a posteriores avanços socioeconômicos para as classes
populares (TAYLOR, 2010, p. 170). Nesse sentido, Taylor (2010, p.170) sustenta
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
23Lucas Guerra, Ramon Blanco
que as operações de peacebuilding liberal tendem a deixar como legado uma “paz
virtual”, favorável aos interesses das elites transnacionais que as financiam, mas
totalmente desvinculada — e, por vezes, prejudicial — às sociedades locais dos
países nos quais se inserem.
Outras perspectivas críticas estruturais
A subseção anterior apresentou perspectivas críticas de cunho estrutural
voltadas para a identificação da relação entre as operações de peacebuilding liberal
e o contexto global mais amplo no qual essas se inserem. A presente subseção,
por sua vez, apresenta outras perspectivas críticas que igualmente questionam
os pressupostos normativos das operações de paz, porém com um enfoque mais
direcionado aos seus impactos nas sociedades e populações locais. Nesse sentido,
seguindo a categorização proposta por Aureo de Toledo Gomes (2013, p. 55),
enfatizam-se as críticas influenciadas por perspectivas pós-estruturalistas e pós-
coloniais.
Desde um enfoque mais propriamente pós-estruturalista, mesclando
conceitos foucaltianos com contribuições teóricas da Escola Inglesa das Relações
Internacionais, Ramon Blanco (2017a, p. 85) sustenta que as operações de paz
são dispositivos de “normalização” e “disciplinarização” de Estados e sociedades
pós-conflito, consistindo portanto em ferramentas de exercício de governo
(compreendido como “conduta das condutas”) na sociedade internacional.
Nesse processo, os modelos de Estado e de sociedade considerados “normais”,
devendo ser universalmente aplicados, são os dos Estados liberais-democráticos
ocidentais — as democracias de livre mercado —, reproduzidos pelas operações
de peacebuilding através de mecanismos de “disciplina” (punição e recompensa)
e “biopolítica” (controle sobre meios de reprodução da vida da população) em
cenários pós-conflito (BLANCO, 2017a, p. 85).
A partir de percepções semelhantes, emergem as críticas estruturais de caráter
mais notadamente pós-colonial, baseadas principalmente na denúncia de ecos do
colonialismo presentes nas operações de paz (GUERRA; BLANCO, 2017; PARIS,
2002, p. 637-641) e na busca por um protagonismo de atores locais nos processos
de construção da paz em sociedades pós-conflito (RICHMOND, 2010, p. 26). No
eixo das críticas que apontam possíveis traços colonialistas nas operações de paz,
Jonathan Hill (2005, p. 148) foca nos processos de state-building implementados
24
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
pelas operações de peacebuilding, indicando como tais processos partem de
uma concepção pejorativa dos Estados periféricos, apontando-os como versões
“depravadas” da versão de estatalidade pretensamente “correta” e “superior”
verificada nos processos de formação estatal da Europa Ocidental.
Jarat Chopra (2002, p. 994-999) acrescenta a essa perspectiva uma crítica
à objetificação das sociedades pós-conflito presente nas abordagens correntes à
construção da paz, na qual as sociedades locais são abordadas como recipientes de
fórmulas lideradas por atores externos, e não como agentes ativos dos processos
de pacificação. Como consequência, David Chandler (2006, p. 189-195) nota que
os processos de peacebuilding e state-building contemporâneos tendem a construir
“Estados fantasmas”, dotados de personalidade jurídica internacional, mas carentes
de legitimidade política e social junto à sociedade local. A verificação dessa
problemática das operações de paz contemporâneas deu origem àquela que Oliver
Richmond (2010, p. 26) chama de “quarta geração” das abordagens à resolução
de conflitos e construção da paz internacional, sendo essa fundamentalmente
caracterizada pela “virada local”, ou seja, a reivindicação do protagonismo local
nos processos decisórios e ações práticas de construção da paz.
Nesse sentido, autores como David Roberts (2011, p. 20-22), Karolina Werner
(2010, p. 72-73) e Robert Mac Ginty (2010, p. 348-352), por exemplo, defendem que
uma paz autossustentável e de longa duração não poderia ser obtida pela imposição
de modelos específicos de governança política, social e econômica protagonizada
por atores externos, mas tão somente a partir de uma base em costumes locais,
histórica e culturalmente enraizados na forma de viver da população nativa, e
com o protagonismo ativo dessa nos processos de construção da paz. Mac Ginty
(2010, p. 348-352), um dos principais expoentes dessa perspectiva, reivindica
a inclusão da dimensão “indígena” nas operações de paz, de modo que essas
passem a englobar técnicas de reconciliação e resolução de conflito próprias das
tradições locais, voltando-se para as relações do dia a dia, práticas culturais e
simbólicas e para o diálogo constante, mais do que para a mera celebração de
acordos e tentativa de construção de instituições junto às elites locais.
O que o autor propõe, porém, não é a substituição completa da paz liberal por
uma “paz indígena”, mas sim um processo de hibridização entre ambas, de modo
a gerar novos modelos de abordagem à construção da paz (MAC GINTY, 2010,
p. 360-362). Richmond (2013, p. 79-86) também se coloca favorável à perspectiva
de hibridização da paz, indicando que esse processo teria o potencial de utilizar-
se das ferramentas e possibilidades ofertadas a princípio pelas operações de paz
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
25Lucas Guerra, Ramon Blanco
ortodoxas — tais como a narrativa de participação democrática, representatividade,
desenvolvimento e direitos fundamentais — para promover outras formas
de organização política, social e econômica que não a liberal-ocidental, mais
coerentes com as realidades, perspectivas, cosmovisões e reivindicações locais
das sociedades pós-conflito.
Não obstante, é necessário apontar que verificam-se também, ainda no escopo
crítico da literatura sobre o tema, perspectivas menos otimistas acerca da “paz
híbrida”. Aureo de Toledo Gomes (2013, p. 67-68), por exemplo, entende que
o processo de hibridização da paz pode vir a servir ao propósito de reforço da
paz liberal, cabendo fundamentalmente aos agentes externos a decisão de quais
princípios locais incluir em suas formulações de políticas nos cenários pós-conflito.
Em perspectiva semelhante, Suthaharan Nadarajah e David Rampton (2015,
p. 25-28) indicam que os projetos de paz híbrida tendem a favorecer a penetração
dos pressupostos da paz liberal na dimensão cotidiana das populações locais,
servindo como plataforma de avanço para a disseminação global de uma ordem
neoliberal. Nota-se, portanto, que a identificação e análise de marcos normativos
alternativos à paz liberal para a condução das operações de paz contemporâneas
é um processo corrente, ainda com poucos resultados concretos obtidos e uma
série de questionamentos possíveis para futuras investigações.
Conclusão
Com base no que foi apresentado ao longo desse artigo, é possível constatar que
as operações de paz da ONU (em conjunto com demais organizações internacionais
governamentais e não governamentais) não são ferramentas meramente técnicas
ou neutras de gestão de conflitos e promoção da paz, mas sim mecanismos que
refletem as relações de poder em evidência em contextos particulares da política
internacional. Nesse sentido, na primeira seção se trabalhou a questão da diferença
nos modelos de atuação das operações de paz no contexto de tensão bipolar própria
da Guerra Fria e do período posterior ao conflito. Particular ênfase foi dada à
configuração das operações de paz ditas multidimensionais próprias do contexto
pós-Guerra Fria, especialmente às operações de peacebuilding e aos processos
de construção de governança política, econômica e social implementados por
elas. Ainda na primeira seção, foram apresentados os pressupostos centrais do
argumento da paz liberal que guia as operações de peacebuilding contemporâneas,
26
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
A Construção da Paz no Cenário Internacional: do Peacekeeping Tradicional [...]
orientando-as no sentido da promoção da democracia liberal e do livre mercado
como estratégias ideais para a reconstrução de cenários pós-conflito.
A segunda seção, por sua vez, foi dedicada à apresentação de algumas das
principais críticas direcionadas às operações de paz das Nações Unidas. Por
um lado, foram expostas as críticas procedimentais, relacionadas a aspectos
pragmáticos, tais como abusos sexuais, impactos econômicos negativos e uso
arbitrário da força, eventualmente perpetrados pelos contingentes das operações.
Por outro lado, expôs-se também as críticas que aqui chamamos “estruturais”,
que se utilizam de referenciais teóricos para apontar as relações de poder e
dominação inerentes às operações de paz, tanto em sua relação com um contexto
de ordem mundial mais amplo — como nos enfoques da Teoria Crítica — quanto
de sua incidência nas populações e sociedades locais, como nas perspectivas pós-
estruturalistas e pós-coloniais.
Levando-se em consideração as discussões delineadas ao longo do texto,
esse artigo pretende servir como contribuição referencial para futuras possíveis
investigações sobre o tema da construção da paz no cenário internacional. Nesse
sentido, destacam-se aqui duas potenciais grandes avenidas de investigação.
A primeira delas diz respeito à reflexão acerca da participação dos países do Sul
Global nos processos de pacificação e operações de paz. É notório que tais países
já participam, em largo número e com amplos contingentes, das operações de paz
das Nações Unidas. Contudo, esses países têm a sua participação majoritariamente
limitada à contribuição com efetivos militares, ficando excluídos dos processos
decisórios e do delineamento da própria ideia de “paz” a ser construída em cenários
pós-conflito
14
. Nesse sentido, problematizar novas agendas, doutrinas e abordagens
a partir do olhar e vivência do Sul Global pode trazer importantes contribuições
ao debate, reflexão e prática da construção da paz no cenário internacional.
Em segundo lugar, ainda numa perspectiva analítica desde o Sul Global,
uma importante orientação de pesquisas pode se dar no sentido de identificar
e trazer para o debate distintos entendimentos de “paz” e dos processos para a
sua construção a partir de cosmovisões, práticas, culturas e saberes dos diversos
povos localizados em cenários pós-conflito. Conforme destacado na subseção
final do artigo, são vários os desafios nesse sentido. Ainda assim, entende-se que
somente a partir desse processo é possível a superação do caráter da construção
da paz no cenário internacional enquanto mais um mecanismo, dentre diversos
14 Para mais informações sobre como um ator do Sul Global, no caso o Brasil, participa ativamente na construção
da sua própria subalternidade no que toca à construção da paz internacional, ver, por exemplo, Blanco (2017b).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 5-30
27Lucas Guerra, Ramon Blanco
outros, de disciplinarização e normalização do Sul Global a partir de parâmetros
e modelos arbitrariamente formulados no Norte. Abre-se, assim, espaço para um
direcionamento a entendimentos e práticas da construção da paz potencialmente
mais emancipatórias e consonantes com as pluralidades e particularidades locais.
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31Raphael Padula
O pensamento geoestratégico e os documentos
estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
Geostrategic thinking and strategic documents
of the United States in the post-Cold War
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.808
Raphael Padula
1
Resumo
O propósito do artigo é mostrar que há uma conexão entre o pensamento geopolítico clássico
anglo-saxão (Mahan, Mackinder e Spykman), as formulações geoestratégicas de Brzezinski e
Kissinger durante a Guerra Fria e o pós Guerra Fria, e os documentos estratégicos dos Estados
Unidos nesse último período. Essa hipótese é comprovada através da prioridade atribuída
à Eurásia (relações Leste-Oeste, no hemisfério Norte), mudando somente a intensidade de
atuação em suas diferentes áreas em função da conjuntura histórica. Ao mesmo tempo, não
se deixa de atentar para uma geoestratégia permanente de supremacia na América (hemisfério
Ocidental). A pesquisa se apoia em bibliografia original dos autores abordados e na análise
de documentos estratégicos selecionados de todos os governos estadunidenses na era pós
Guerra Fria entre 1991-2016 (Bush a Obama).
Palavras-chave: Estados Unidos; Geopolítica; Geoestratégia; Eurásia; OTAN.
Abstract
The papers’ goal is to show the connection between the classical Anglo-Saxon geopolitical
thought (Mahan, Mackinder and Spykman), the geostrategic formulations of Brzezinski and
Kissinger during the Cold War and the Post Cold War era, and the United States strategic
documents in this latter period. Such hypothesis is proved by the priority given to Eurasia
1 Coordenador e Professor Permanente da Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de
Economia (IE/UFRJ), Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) da área de Economia
Política Internacional, da graduação de Relações Internacionais. Economista pelo IE/UFRJ (2004), Mestre (2005)
e Doutor (2010) em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ. Editor da revista Oikos — Revista de Economia
Política Internacional. Membro do grupo de pesquisa "Poder Global e Geopolítica do Capitalismo".
Artigo submetido em 24/05/2018 e aprovado em 23/08/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
32 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
(East-West relations in the Northern Hemisphere), changing only the intensity of action in its
different areas in due to historical conjuncture. At the same time, a permanent geostrategy
of supremacy in America (Western Hemisphere) is also regarded. The research is based on
the original bibliography of the authors and the analysis of selected strategic documents
from all US governments in the Post Cold War between 1991-2016 (Bush to Obama).
Keywords: United States, Geopolitics, Geoestrategy, Eurasia, NATO.
O homem de Estado que conduz a política externa só pode tomar em conta
os valores de justiça, equidade e tolerância na medida em que contribuam
ao objetivo de poder ou enquanto não interfiram nele. Pode utilizá-los como
instrumentos que desde o ponto de vista moral justifiquem a aspiração de
poder, porém deve rechaçá-los no instante em que sua aplicação se traduza em
debilidade. Não se busca o poder para o alcance de valores morais, porém se
utilizam os valores morais para facilitar a aquisição de poder.
(Spykman, 1942, p. 26, tradução nossa)
2
Introdução
O eixo geográfico de orientação para a geoestratégia dos Estados Unidos é
um tema fundamental no seu debate pós Guerra Fria. Quais seriam as relações
fundamentais para os EUA? Norte-Sul, centrada no hemisfério ocidental ou América?
Ou Leste-Oeste, centrada no hemisfério Norte ou nas relações da América do Norte
com a Eurásia (KAPLAN, 2015)? Ao mesmo tempo, a dimensão ética aparece
permanentemente nos debates sobre política externa dos EUA (ANDERSON, 2015).
O argumento central do artigo é de que há uma conexão entre o pensamento
geopolítico clássico anglo-saxão (Mahan, Mackinder e Spykman), as formulações
geoestratégicas de Brzezinski e Kissinger durante a Guerra Fria e o pós Guerra
Fria, e os documentos estratégicos dos EUA nesse último período, até o governo
Barack Obama (1991-2016). A hipótese principal é de que tal conexão se comprova
através da prioridade atribuída à Eurásia (relações Leste-Oeste no hemisfério Norte),
mudando somente a intensidade de atuação em diferentes áreas do continente em
2 “The statesman who conducts foreign policy can concern himself with values of justice, fairness, and tolerance only
in the extent that they contribute to or do not interfere with the power objective. They can be used instrumentally as
moral justification for the power quest, but they must be discarded the moment their application brings weakness.
The search for power is not made for the achievement of moral values; moral values are used to facilitate the
attainment of power”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
33Raphael Padula
função da conjuntura histórica. Ao mesmo tempo, não se deixa de atentar para
uma geoestratégia permanente de supremacia na América (hemisfério ocidental).
A pesquisa se apoia em bibliografia original dos autores abordados e na análise
de documentos estratégicos selecionados de todos os governos estadunidenses
na era pós Guerra Fria. Kissinger e Brzezinski foram selecionados em razão de
sua influência no debate geoestratégico e nos governos dos partidos Republicano
e Democrata, respectivamente.
Vale ressaltar que, no debate geoestratégico estadunidense, tais posições se
diferenciam de autores que defendem uma menor ou mesmo retirada da participação
dos EUA na Eurásia (e na OTAN), como Mearsheimer e Walt (2016), no primeiro
caso, ou Huntington (2005) e Kaplan (2015), no segundo — que defendem que a
principal ameaça aos EUA viria de suas relações com o hemisfério ocidental, ou
do México, em particular. No entanto, por razões de escopo e espaço, esse debate
não será objeto desse artigo.
Para cumprir seu objetivo, o artigo se divide em 5 seções, além da introdução.
A primeira resume a posição dos autores da geopolítica clássica anglo-saxã.
A segunda sintetiza as visões de Brzezinski e Kissinger sobre a Guerra Fria.
A terceira aborda a visão dos mesmos autores para a era pós Guerra Fria.
A quarta seção apresenta uma análise dos documentos estratégicos selecionados.
A última seção apresenta as considerações finais.
A geopolítica clássica: centralidade da Eurásia e hegemonia
hemisférica
Mesmo antes da formação de um pensamento geopolítico, um dos pais-
fundadores dos EUA, Alexander Hamilton (1787), em um dos seus artigos que
formaram os Federalist Papers, aponta que da união das treze colônias emergiria
um grande sistema capaz de equilibrar as relações de poder no Atlântico Norte e
ditar os termos das relações entre o Velho e o Novo Mundo. A Doutrina Monroe,
anunciada pelo presidente estadunidense ao congresso em 1823, explicitou a
preocupação com a projeção de potências externas no hemisfério ocidental,
e assim o perímetro de segurança dos EUA.
Mais especificamente, o debate da geopolítica clássica, especialmente os autores
da escola anglo-saxã, trouxeram importantes contribuições para a formulação da
geoestratégia estadunidense, assim como para o seu debate atual. Ao estudar a
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
34 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
evolução do domínio marítimo britânico como a fonte de sua supremacia global, o
almirante estadunidense Mahan (1890) salienta a importância do domínio de ilhas
transoceânicas, de passagens estratégicas e portos continentais para o controle
de rotas marítimas estratégicas. Na verdade, esse é um dos pilares da política
externa britânica, desde que abandonou sua política de tentar se expandir pelo
continente europeu, após a guerra dos Cem Anos (1337-1453) contra a França. Ao
pregar a necessidade do desenvolvimento do poder naval estadunidense, Mahan
prescreveu como imprescindível no curto prazo o domínio do Mar do Caribe e do
Golfo do México, assim como a construção de um canal transoceânico no istmo do
Panamá sob o controle estadunidense, para que suas marinhas de guerra e mercante
auferissem maior capacidade de mobilidade entre os oceanos Atlânticos e Pacífico,
proporcionando maior segurança territorial e maior expansão produtiva-industrial
e comercial. Assim, o autor justificou o imperialismo dos EUA na América Latina
por questões de segurança e de expansão industrial-comercial. Ainda, no médio
prazo, apontou que os EUA deveriam controlar o triângulo Panamá-Havaí-Alaska,
para sua segurança no Pacífico, e emergir como um grande poder no Atlântico
Norte.
Já o geógrafo britânico Mackinder (1904), ao formular sua teoria da supremacia
do poder terrestre, apontou a Eurásia como o continente basilar para o equilíbrio
ou disputa de poder global, por razões materiais: massa territorial, população,
recursos econômicos e industriais e poder militar. Na sua visão, o Estado (ou
aliança) que dominasse a Eurásia controlaria os rumos da política mundial. Na
verdade, olhando para um autêntico domínio terrestre exercido pela Rússia na área
central da Eurásia, e ainda vislumbrando a possibilidade de domínio ou aliança
com a Alemanha na área central da Europa, o autor colocou em evidência um dos
pilares da política externa britânica, praticados desde a contenção da expansão
do Império Habsburgo nos séculos XV-XVI: estabelecer um poder dividido e
equilibrado na Eurásia, sem deixar que nenhuma potência ou aliança alcance a
supremacia. Ou ainda, o princípio da política de contenção nas bordas da Eurásia,
para evitar que o poder terrestre se torne anfíbio.
Mas foi Spykman (1942) que sintetizou a geoestratégia estadunidense, partindo
de sua posição geográfica. O autor a um só tempo justifica o intervencionismo
(e a preocupação com o equilíbrio de poder) na Eurásia e a hegemonia no
hemisfério ocidental. Spykman observa um paralelismo geográfico entre a América
do Norte e a Eurásia, por terem a mesma vizinhança (Atlântico, Pacífico e Mar
Ártico) e, portanto, se cercarem mutuamente, estando próximas e interligadas por
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
35Raphael Padula
ilhas transoceânicas — ainda mais com o avanço do poder aéreo e das tecnologias
que proporcionam maior raio de alcance para a agressão militar. Assim, os EUA
seriam uma ilha transoceânica cercada pelas extremidades da Eurásia e deveria
atuar permanentemente nessa área geográfica para promover seu equilíbrio de
poder, além de dominar as ilhas transatlânticas e transpacíficas. Não interessaria
uma federação da Europa formando um único ator com supremacia na região.
Na América, hemisfério ocidental, a supremacia estadunidense não poderia ser
ameaçada, dentro do seu objetivo mais amplo de segurança; não só na “América
Mediterrânea” (Mar do Caribe e Golfo do México, incluindo Venezuela e Colômbia),
mas também na “zona equidistante meridional” ao sul do Amazonas, para utilizar
as referências espaciais de Spykman. Por haver um desequilíbrio de poder tão
grande e revelado, e também pela proximidade e continuidade geográfica, a política
estadunidense deveria ser de hegemonia, promovendo a permanente dependência
política de seus Estados, e afastando a projeção e alianças de potências externas.
Sobretudo, seria necessário dispor de seus recursos e territórios estratégicos por
razões de segurança, formando um sistema autárquico, caso alguma potência ou
aliança viesse a dominar a Eurásia.
Brzezinski e Kissinger: a geoestratégia na Guerra Fria
A Geopolítica de Contenção à expansão e à influência da União Soviética
praticada pelos EUA durante a Guerra Fria, formulada por George Kennan em seu
“longo telegrama” e colocada em ação inicialmente pela Doutrina Truman, seguiram
a ideia de que a Eurásia seria o continente basilar na disputa de poder global, ainda
que o presidente tenha se apoiado no discurso da luta do bem contra o mal. Do
ponto de vista da segurança, isso se cristalizou na formação da Organização do
Tratado da Aliança do Atlântico Norte (OTAN) em 1949. Na extremidade oriental
da Eurásia, foram estabelecidos acordos de segurança bilaterais, após a Revolução
Comunista na China em 1949 e a Guerra na Península da Coreia iniciada em 1950.
Brzezinski e Kissinger formularam visões geoestratégicas e guias de ação para os
EUA nesse sentido, mantendo o foco geopolítico na Eurásia.
Brzezinski (1986), em Game Plan, apontou a Eurásia como o continente
basilar na confrontação entre EUA e URSS. Ainda, atribuiu uma razão geográfica
para o conflito e seus possíveis desdobramentos, ao afirmar que se tratava de
uma colisão entre uma potência marítima transoceânica, que passou a identificar
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
36 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
as bordas da Eurásia como seu perímetro de segurança e área de atuação,
e um poder terrestre transcontinental, que tinha como imperativo geoestratégico
a expansão para essa mesma área da Eurásia em busca de uma saída para os
“mares quentes”. A primeira tentava conter a segunda e confiná-la no interior da
Eurásia, enquanto a segunda buscava expulsar a primeira da Eurásia e isolá-la
no continente americano.
Para o autor, tal rivalidade pela Eurásia se desenvolveu em três frentes
estratégicas, originadas em diferentes momentos, a saber: na extremidade ocidental
da Eurásia, entre 1947-1949, com a tentativa de ascensão comunista na Grécia
e na Turquia e a Crise de Berlim; na extremidade oriental da Eurásia, originada
com a Revolução Comunista na China em 1949 e a Guerra da Coreia em 1950;
a frente do Sudoeste Asiático, envolvendo o Oriente Médio, impulsionada em
1979 pela invasão soviética ao Afeganistão e pela Revolução Islâmica no Irã.
O controle dessa última área seria crucial para o poder de barganha e influência
dos EUA sobre as demais em razão de sua importância para o abastecimento
de petróleo, não só dos EUA, mas para os aliados. Seu controle possibilita aos
EUA a capacidade de atuar como uma espécie de garantidor do acesso aos bens
energéticos — ou do funcionamento do “mercado”, além de negar acesso a rivais
revelados ou potenciais. Isso se cristalizou na chamada Doutrina Carter formulada
por Brzezinski como seu assessor de segurança, sintetizada pelo presidente no
seu discurso ao congresso em 1980 (KLARE, 2005).
Embora não desenvolva suas reflexões fundamentadas em fatores geográficos,
mas em termos de balança de poder, Kissinger (1994), em Diplomacia, destaca a
importância da estratégia estadunidense para a Eurásia como um elemento basilar
para sua supremacia e rivalidade diante da URSS. Na referida obra, destaca que,
a partir da percepção de temor mútuo entre URSS e China, formulou e trabalhou
junto ao presidente Nixon na diplomacia triangular como estratégia geopolítica
dos EUA frente à URSS e à China, aproximando os EUA da última.
Ambos, Brzezinski e Kissinger, encaram a supremacia hemisférica dos EUA
como um fator permanente na sua geoestratégia no âmbito da Guerra Fria. Portanto,
a América Latina é vista como uma área periférica, mas de intervenção contínua
dos EUA. Vale colocar em relevo as formulações de James Burnham (1947), na qual
a visão geopolítica de contenção é ampliada para regiões mais periféricas onde a
penetração do comunismo se caracterizaria pela criação de redes de subversão.
Nessas áreas e países, os EUA deveriam atuar apoiando a contenção da guerra
revolucionária e insurrecional.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
37Raphael Padula
Brzezinski e Kissinger: a geoestratégia dos EUA no pós Guerra Fria
No debate geoestratégico dos EUA no século XXI, Brzezinski e Kissinger seguem
apontando a centralidade das relações Leste-Oeste em suas análises geoestratégicas,
ou seja, entre os países do hemisfério norte. Mais especificamente, o equilíbrio de
poder na Eurásia a ser promovido pelos EUA segue como decisivo. Mas, dependendo
da conjuntura, atribuem foco e intensidade de atuação estratégica estadunidense
diferenciada para as áreas da Eurásia, conjugando tática e estratégia.
No livro Strategic Vision, assim como no artigo Balancing the East, Upgrading
the West — U.S. Grand Strategy in an Age of Upheaval, Brzezinski (2012a;
2012b) aponta desafios e caminhos para que os EUA mantenham sua posição
de primazia. Quanto às recomendações, o autor começa deixando claro que é
fundamental promover um equilíbrio geopolítico novo e estável na Eurásia, “de
longe, o continente mais importante do mundo” (BRZEZINSKI, 2012a, p.130),
geopoliticamente axial por questões materiais, citando Mackinder. Na sua visão,
os EUA desperdiçaram a oportunidade de avançar no vácuo de poder pós Guerra
Fria, quando emergiu como único superpoder global. Após os ataques de 11 de
setembro de 2001, a “guerra ao terror” de George W. Bush teria transformado os
EUA num “Estado cruzadista”, deixando-o despreparado para encarar os novos
desafios geopolíticos do século XXI e carente de uma visão estratégica de longo
prazo, o que levou a uma deterioração do seu poder relativo. Ao mesmo tempo,
afirma que o presidente Obama não teria promovido as mudanças necessárias
para estabelecer uma visão de longo prazo (BRZEZINSKI, 2012a, p. 122).
A Europa está menos unida e mais fraca (se tornou uma extensão do Ocidente,
sem visão estratégica e dependente militarmente dos EUA), enquanto Turquia e
Rússia ficaram à margem da comunidade ocidental, e no Oriente a China tem
crescido em termos econômicos, políticos e militares, criando rivalidades reais e
potenciais. Assim, para Brzezinski, atualmente a Eurásia apresenta volatilidades
que a colocam como a arena central da geopolítica global, onde: (1) as ameaças
imediatas provém do leste do Canal de Suez, do oeste da província chinesa
de Xinjiang, e da fronteira sul pós soviética (do Cáucaso e da Ásia Central);
(2) o desafio de longo prazo é a contínua mudança do centro de gravidade
(distribuição de poder global) do Ocidente para o Oriente, da Europa para a Ásia,
e possivelmente dos EUA para a China. Essa impõe a necessidade de uma visão
geoestratégica de longo prazo visando a promoção de um equilíbrio de poder
transcontinental na Eurásia (BRZEZINSKI, 2012a, p.123).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
38 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
Para isso, Brzezinski propõe que os EUA devem atuar como o promotor e
garantidor de um renovado “Ocidente Ampliado” (Larger West), envolvendo a
Turquia e a Rússia, de forma gradual, por meio de um processo de democratização
e eventualmente aderindo às normas do “Ocidente”. Esse objetivo de longo prazo
poderia ser alcançado no segundo quarto do século XXI. A Turquia se destacaria
por sua influência histórica na área do antigo Império Otomano, por atuar como
uma ponte de acesso da Europa ao Mar Cáspio e à Ásia Central (via aliança com
Geórgia e Azerbaijão), que são áreas disputadas com a Rússia, e por ter sido em
parte já incorporada ao Ocidente através da OTAN. A relevância da Rússia se
deve à sua posição geográfica central e transcontinental na Eurásia, e por ter em
sua orientação geoestratégica a retomada do status de antigo império, que busca
influência sobre a Ásia Central e sobre parte da Europa dividida. Assim, nessa
tarefa, a liderança dos EUA na OTAN seria imprescindível, assim como trabalhar
por uma Europa unida, fomentando a cooperação entre seus atores chave.
Outro tabuleiro seria o “Oriente Complexo”, na região Ásia-Pacífico, onde
os EUA deveriam atuar como um promotor do equilíbrio regional de “um novo
oriente estável e cooperativo”. Para ele, por seu peso econômico e demográfico
frente a uma Europa declinante, essa região é crucial para a estabilidade global.
No entanto, apresenta enorme potencial de eclodir um conflito local que pode
arrastar os EUA e levar a uma guerra maior. Isso se deve às disputas pelo posto
de maior potência regional, combinado com ressentimentos, desconfianças,
contenciosos e conflitos históricos, envolvendo também aliados estratégicos dos
EUA (BRZEZINSKI, 2012a, p.157-158). Para Brzezinski, as ambições chinesas
se tornam cada vez mais claras, assentadas em assertividade nacionalista,
modernização nacional e paciência histórica, que despertam medo e rivalidades
históricas com Japão e Índia, por exemplo. Assim, os EUA deveriam ajudar
os países a evitar uma batalha pelo domínio da região, mediando conflitos e
promovendo o equilíbrio entre rivais. Mas alerta que os EUA não podem mais
impor um equilíbrio de poder à região (BRZEZINSKI, 2012a, p.131, 161). Mas,
para ele, embora seja apontada frequentemente como a sucessora dos EUA, a
China não estaria preparada, disposta ou interessada em assumir o papel global
dos EUA. Pelo contrário, busca maior influência, de forma paciente, cautelosa e
não conflitante, entendendo que um rápido declínio dos EUA levaria a uma crise
global que não a interessaria, já que o país tira proveito da ordem promovida
pelos EUA sem incorrer nos seus custos. Até porque sua geografia possibilita um
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
39Raphael Padula
possível cerco por parte dos rivais vizinhos (BRZEZINSKI, 2012a, p.79-89, 119).
Na visão de Brzezinski (2012a), os EUA deveriam se aproximar da China,
e não só diminuir as possibilidades de um conflito EUA-China, mas também
trabalhar para que não haja erros de cálculo e conflitos entre Japão e China, China
e Índia e China e Rússia. Devem buscar estabelecer um triângulo estratégico de
cooperação entre EUA-Japão-China, envolvendo uma duradoura reconciliação
entre China e Japão, e atuar dentro do princípio de que os EUA devem manter
obrigações com Japão e Coreia do Sul, mas, ao mesmo tempo, não permitindo ser
arrastado para uma guerra entre potências asiáticas. Aponta que, nesse quadro
conflitivo potencial, sua estabilidade depende em parte de como os EUA vão lidar
com dois triângulos regionais sobrepostos centrados na China, onde ele pode ser
um ator chave para alterar equilíbrios e resultados (BRZEZINSKI, 2012a, p.162).
Primeiro, o triângulo China-Índia-Paquistão, que envolve a primazia na Ásia entre
os dois primeiros, numa relação inerentemente competitiva e antagônica, tendo o
terceiro como ponto regional de contenção. Nesse caso, o papel dos EUA deve ser
cauteloso e prudente, especialmente na aliança com a Índia, evitando envolvimento
militar, para não despertar ou legitimar uma hostilidade nacionalista chinesa,
que inclusive interessaria à Rússia. A conveniência de tal postura já não ficaria
clara no segundo triângulo, China-Japão-Coreia do Sul, no Sudeste da Ásia, por
envolver a questão da primazia da China frente à posição dos EUA no Pacífico. De
qualquer forma, um Japão fortalecido e ativo traria uma contribuição importante
para a estabilidade global.
Por fim, Brzezinski (2012a, p.181) afirma que, se os EUA forem bem-sucedidos
no Ocidente, formando uma ampla zona de cooperação democrática e estável da
América do Norte à Europa, estendendo-se através da Eurásia (eventualmente
envolvendo Rússia e Turquia) na direção do Japão e da Coreia do Sul, elevaria o
apelo dos princípios centrais do Ocidente frente a outras culturas, encorajando a
emergência de uma cultura política democrática universal.
Kissinger (2014, p. 374), em Word Order, aponta que os EUA precisam de uma
estratégia e de uma diplomacia à altura para manter sua supremacia diante da
complexidade da(s) ordem(s) internacional(is) atual(is). Ao destacar a importância
geopolítica e histórica da parceria atlântica para os EUA, Kissinger assinala que é
fundamental sua renovação e continuidade, assim como apoiar a União Europeia
e evitar que ela desande para um vácuo político, pois:
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
40 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
Separados da Europa no plano da política, da economia e da defesa, os
Estados Unidos, em termos geopolíticos, se tornariam uma ilha ao largo da
Eurásia, e a própria Europa poderia ser um prolongamento das extensões da
Ásia e do Oriente Médio (KISSINGER, 2014, p.99-100).
Kissinger aponta que a ordem internacional na Ásia é historicamente
caracterizada pela participação de potências externas, atualmente marcada por
uma “variedade de grupos multilaterais e mecanismos bilaterais” (KISSINGER,
2014, p. 210-211), alguns puramente regionais e alguns com participação inclusive
dos EUA ou da Rússia. Na opinião do autor, a região apresenta uma complexidade
geoestratégica por conta de suas rivalidades regionais e apresenta duas balanças
de poder: uma no Sul e outra no Leste. Embora tenha procurado não tratar da
balança do Sul após sua retirada do Afeganistão, para ele, os EUA não poderão
deixar de atuar na mesma, pois deixariam um vácuo de poder para expansionismos
e rivalidades que levaria à confrontação (KISSINGER, 2014, p.212-213). Já no Leste
da Ásia, aponta que os EUA não são tanto um promotor quanto parte integral
do equilíbrio. Há vários equilíbrios nessa área, inclusive um entre EUA, Japão
e China. Para ele, a atuação dos EUA exigirá moderação, força e legitimidade,
combinando equilíbrio de poder com o conceito de parceria, para evitar uma
confrontação militar ou uma hegemonia chinesa.
Sobre as relações EUA-China, na visão de Kissinger, mesmo que os EUA
declinem, os lideres estatais chineses sabem que preservarão muito do seu
poder. Para ele, nenhum país sozinho tem a capacidade de exercer o papel de
liderança dos EUA. Mas percebe que a China representa um desafio estrutural
na distribuição de poder global. Por isso, é preciso evitar uma tragédia, como as
guerras hegemônicas que ocorreram na Europa no início do século XX. A relação
entre EUA e China deve ser regida pela busca de equilíbrio baseado tanto no poder
quanto na legitimidade. Os EUA não podem deixar de ter um olho na balança de
poder ao buscar normas para estabelecer legitimidade e cooperação, e vice-versa
(KISSINGER, 2014).
Assim, Brzezinski e Kissinger atribuem importância à atuação permanente dos
EUA na Eurásia e na OTAN, embora o primeiro se mostre um legítimo herdeiro da
geopolítica clássica, enquanto o segundo baseie mais sua análise em uma política
de equilíbrio de poder global. A atuação no Oriente Médio também aparece como
importante para ambos: no sentido de garantir o abastecimento dos aliados e negar
acesso a rivais potenciais ou revelados, auferindo maior poder de barganha, não
importando os custos econômicos de tais ações, que são superados pelos ganhos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
41Raphael Padula
estratégicos. Se a China se aproveita da presença militar e estabilidade patrocinada
pelos EUA na região, a partir da visão de Michael Klare (2008), podemos interpretar
que seu controle, especialmente em momentos de crise e conflitos, é fundamental
politicamente. É importante ressaltar que, nas análises geoestratégicas tanto de
Brzezinski quanto de Kissinger, as preocupações centrais (prioridades) são discutir
e delinear objetivos geoestratégicos (de segurança) que não devem ser limitados
por debates economicistas e orçamentários, o que seria inadequado, já que os
EUA é o país emissor da moeda internacional sem lastro. Ainda que Brzezinski
(2012a) vislumbre que o endividamento dos EUA diante de um crescente credor
que é um potencial contestador de sua posição de supremacia, a China, poderia
levar a uma vulnerabilidade e a um questionamento da hegemonia estadunidense
e de sua moeda internacional no longo prazo.
Sobre o continente americano, e a América Latina, ambos autores apontam
como imprescindível a hegemonia estadunidense, e deve ter atenção permanente no
seu cálculo estratégico, embora o foco principal seja a Eurásia. Assim, a projeção
de potências externas deve obter uma atenção e ações cuidadosas por parte dos
EUA, principalmente para não despertar hostilidades por parte dos governos (com
apelo em suas sociedades) dos demais países do continente. Sobre o México,
Brzezinski (2012a) afirma que os EUA deveriam cooperar pelo desenvolvimento
através do NAFTA e pela segurança através do apoio ao combate aos cartéis de
drogas. Mas alerta que um EUA declinante levaria a um nacionalismo protecionista
e anti-imigração estadunidense e a um revanchismo e a reivindicações de territórios
perdidos por parte do México. Nesse contexto, a China desempenharia um papel
mais relevante no hemisfério ocidental.
Vale destacar que Brzezinski e Kissinger divergem em suas visões sobre as
relações EUA-China e EUA-Rússia. Kissinger (2014) destaca as relações triangulares
com China e Japão e com Rússia e China. Ele critica a demonização da Rússia.
Afirma que essa deve ser abordada como uma grande potência na estratégia e
nas negociações diplomáticas pelos EUA, adaptando-se (e não dando um “reset”)
às circunstâncias atuais. Assim, os EUA não podem chegar e impor um “plano
pronto”, tampouco encarar a Rússia como um membro potencial e natural da
OTAN, que aderiria automaticamente às regras do chamado Ocidente (KISSINGER,
2016b). É preciso entender a história e a natureza da insegurança russa, assim
como sua importância geográfica, órbita de influência e natureza expansionista. Só
assim é possível estabelecer relações que busquem reconhecer suas características
especiais, mas também compreender as necessidades dos EUA. Para Kissinger, “O
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
42 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
objetivo deve ser encontrar uma diplomacia para integrar a Rússia a uma ordem
mundial que deixe margem para cooperação“ (KISSINGER, 2016a, tradução nossa).
3
Kissinger argumenta sobre a possibilidade de uma geopolítica triangular
EUA-Rússia-China, com os EUA se aproximando do vértice mais fraco (Rússia)
para se contrapor ao mais forte (China), nos moldes da estratégia praticada por
Nixon-Kissinger frente à URSS. Atualmente, o desafio estrutural para os EUA está
na China. Por isso, “Na emergente ordem multipolar, a Rússia deve ser vista como
um elemento essencial de qualquer novo equilíbrio global, não preliminarmente
como uma ameaça aos Estados Unidos” (KISSINGER, 2016c, tradução nossa).
4
Deve-se ter em conta que Kissinger não acredita que China e Rússia possam
estabelecer uma reaproximação duradoura devido às suas naturezas. Na sua
visão, se a Rússia mostra claramente querer isso, é em parte porque os EUA não
lhe deixaram escolha. Finalmente, para Kissinger
... o desafio da China é um problema muito mais sutil que aquele colocado
pela União Soviética. O problema soviético era em grande parte estratégico.
Esta é uma questão cultural: podem duas civilizações que não pensam de
forma igual, pelo menos até agora, chegar a uma fórmula de coexistência que
produza ordem mundial? (KISSINGER, 2015, tradução nossa).
5
Já Brzezinski, a partir da crise de 2008, passou a advogar a formação de
um G2 (group of two) informal entre China e EUA, baseado na interdependência
e interesse comum entre ambos, cooperando em uma espécie de hegemonia
compartilhada, na qual os Estados Unidos reconhecessem a importância econômica
chinesa — e da prática de um keynesiamismo orientado a impulsionar a
economia estadunidense — enquanto os EUA mantêm seu papel de supremacia
político-militar e tecnológica (BRZEZINSKI, 2009). Em sua obra, as possibilidades
de uma parceria e cooperação entre EUA e Rússia aparecem sempre como remotas,
devido aos antagonismos geográficos e consequentes divergências geopolíticas,
explicitados, por exemplo, após a crise da Ucrânia (BRZEZINSKI, 1986; 2012).
3 “The goal should be to find a diplomacy to integrate Russia into a world order which leaves scope for cooperation”.
4 “In the emerging multipolar order, Russia should be perceived as an essential element of any new global
equilibrium, not primarily as a threat to the United States”.
5 “… the challenge of China is a much subtler problem than that of the Soviet Union. The Soviet problem was
largely strategic. This is a cultural issue: Can two civilizations that do not, at least as yet, think alike come to a
coexistence formula that produces world order?
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
43Raphael Padula
A geoestratégia dos EUA: sua continuidade pós Guerra Fria
Esta seção se dedica à geoestratégia estadunidense pós Guerra Fria revelada
em documentos estratégicos de Estado selecionados, com destaque à relação
com a Eurásia e a América Latina, a partir de objetivos, interesses e ameaças
apresentados.
Com o fim da Guerra Fria, da dissolução da URSS e do bloco socialista, os
EUA deixavam de possuir uma ameaça clara a combater que legitimasse seus
altos gastos militares e presença militar global. Assim, seria preciso identificar
novas ameaças que fossem palatáveis dentro e fora das suas fronteiras. Olhando
para a OTAN, a questão se torna ainda mais complexa, visto que foi criada sob
a liderança dos EUA no âmbito da Doutrina Truman com a missão de conter o
avanço socialista-soviético na Europa. Ao mesmo tempo, representa um instrumento
para a presença e controle militar estadunidense na região. Assim, do ângulo da
geoestratégia dos EUA, era preciso dar um novo sentido à organização.
Nesse momento, os EUA começaram a promover a retórica de que o mundo
pós Guerra Fria seria pacífico, livre de disputas e conflitos interestatais globais,
apenas com algumas conturbações regionais. Ao mesmo tempo, elegeram como
novas ameaças à paz e à estabilidade global as de caráter não estatais, como o
narcotráfico, catástrofes ambientais, inimigos do meio ambiente, fluxos migratórios
conturbadores, o terrorismo de grupos islâmicos radicados e espalhados em
diferentes países — que posteriormente configurariam o terrorismo global —, mas
também Estados (ou líderes) violadores de direitos humanos e da democracia,
os Estados “irresponsáveis” que viessem a apoiar grupos terroristas, ou Estados
falidos cuja fraqueza favorecesse o surgimento e manutenção de tais grupos em
seus territórios. Especificamente na América Latina, o discurso sobre o combate
ao narcoterrorismo ganhou maior ênfase por conta da adesão e legitimidade entre
os governos da região dos anos de 1990, na sua maioria alinhados à Washington.
Confeccionado no governo republicano de George H. W. Bush (1989-1993),
o documento National Military Strategy of the United States — NMS, de 1991
(USA,1991), sublinhou a importância de tais ameaças. E, assim, a agenda de
segurança baseada em novas ameaças que os EUA promoveriam através de
organizações multilaterais regionais, como a OTAN e OEA, e na ONU, no âmbito
global. Com otimismo, anuncia o surgimento de uma nova era a partir da derrocada
do socialismo e do sucesso na Guerra do Golfo, através de uma ação militar
extremamente bem-sucedida autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
44 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
orquestrada pelos EUA e mostrando sua superioridade militar e capacidade de
liderança em uma ordem unipolar.
No entanto, uma avaliação mais acurada do NMS-1991 revela que a disputa
interestatal segue tendo papel central nos objetivos militares estadunidenses, mais
especificamente no sentido de minar a possibilidade do surgimento de potências
regionais e desafiantes globais em um cenário global incerto (de transição) pós
Guerra Fria
6
. O objetivo de preservar a confiança na capacidade dos EUA de
prevenir qualquer perigo real de ameaçá-lo ou competir militarmente aparece
como decisivo. Com grande foco na promoção do equilíbrio regional e em disputas
interestatais, revela-se uma preocupação em manter a Europa Ocidental unida, mas,
em termos de forças militares e identidade de segurança, cada vez mais atrelada à
OTAN, sob a tutela dos EUA — e não formando uma força própria independente.
Especificamente sobre a Alemanha, fica claro o objetivo de mantê-la como um
protetorado militar dos EUA, combinado a um protagonismo econômico e político
regional. A Europa, sob a órbita da OTAN, seria importante para aproveitar as
oportunidades do vácuo de poder deixado no Leste Europeu pelo fim da URSS.
Quanto ao Japão e à Ásia-Pacifico, o NMS-1991 aponta como objetivo reforçar
os laços militares bilaterais, reconhecendo o papel de protagonista do país do
ponto de vista econômico, mas, ao mesmo tempo, impedindo sua remilitarização
— nesse momento, a China ainda não mostrava a pujança dos anos 2000.
Sobre a Rússia, herdeira do arsenal nuclear soviético, o documento revela
a crença na persistência de rivalidades e aponta a necessidade de evitar que ela
volte a ser o que era quarenta anos antes, com sua robustez militar competitiva.
Ou seja, seria preciso conter sua remilitarização, ao mesmo tempo buscando
promover sua democracia.
Ainda, o NMS-1991 reafirma a preocupação permanente com o hemisfério
ocidental na direção de uma política de segurança em que as forças militares
na América Latina tenham sua capacidade restringida à autodefesa, combater
o narcotráfico, atuar em assistência a catástrofes e manter a paz internacional
(consistente com os princípios e missões da OEA e da ONU), onde temas como
direitos humanos e florescimento e manutenção de democracias são repetidos por
6 “No Golfo, vimos os Estados Unidos desempenhando o papel sonhado por seus fundadores, sendo a nação
líder do mundo orquestrando e sancionando a ação coletiva contra a agressão. Mas ainda nos mantemos em
um período de transição”. No original, “In the gulf, we saw the United States playing the role dreamed of by its
founders, with the world’s leading nation orchestrating and sanctioning collective action against aggression. But
we still remain in a period of transition” (USA, 1991, p. 5, tradução nossa).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
45Raphael Padula
diversas vezes. A agenda hemisférica dos EUA busca proliferar a noção de que
as ameaças à segurança dos países latino-americanos se originariam de inimigos
internos ou atores transnacionais difusos.
A importância da promoção de uma agenda de livre-comércio e, de forma
mais ampla, de liberalização econômica, é amplamente citada no documento, e
persiste nos documentos dos governos posteriores aqui abordados. Nos países
periféricos, a combinação de uma agenda de liberalização econômica, que levaria
à sua desindustrialização e menor capacidade de gerar tecnologias de ponta,
com uma agenda de segurança voltada a inimigos internos moldando suas forças
armadas, levaria inevitavelmente à dependência e inferioridade no campo bélico
em relação aos EUA.
Do ponto de vista das visões de Brzezinski e Kissinger e da herança geopolítica
clássica anglo-saxã, é importante notar que os documentos abordados do governo
republicano de Bush revelam-se congruentes ao destacar o foco nas disputas
interestatais e na Eurásia, a importância das relações com a Europa sob a tutela
da OTAN e dos EUA, a desconfiança em relação a um possível ressurgimento
da Rússia como rival geopolítico histórico, o controle do Oriente Médio e do
Sudeste da Ásia, tutelando o Japão, e a supremacia hemisférica na América. Toda
retórica sobre novas ameaças aponta para a necessidade de um discurso ético e
legitimador de uma política mais ampla de manutenção da supremacia, de altos
gastos e presença militar global.
Na verdade, a década de 1990 não foi pacífica, mas um período caracterizado
por várias intervenções militares, por exemplo, na antiga Iugoslávia e na Somália
(além da intervenção no Golfo já citada), muitas sob o manto de causas humanitárias,
especialmente durante o governo democrata de Bill Clinton (1993-2001).
Os documentos A National Security Strategy of Engagement and Enlargement
de 1994 e de 1996 confirmam a mudança retórica quanto às ameaças a serem
combatidas pelos EUA com o fim da Guerra Fria, mas tornando-as mais diversas,
apontando: os conflitos étnicos e os rogue states que colocam ameaças à
estabilidade regional em várias partes do globo, a proliferação de armas nucleares
como um desafio maior, a degradação ambiental e o crescimento demográfico
ameaçando a estabilidade política de vários países e regiões, além de sublinhar a
importância do combate ao narcotráfico, da promoção da democracia e dos direitos
humanos. Embora tenha como pano de fundo um discurso multilateralista, que
prima pelo papel dos organismos internacionais e pela “governança global”, os
documentos revelam como objetivos centrais dos EUA, que se reforçam mutuamente:
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
46 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
a confiança nas suas forças militares, sua revitalização econômica e a promoção
da democracia. Observa as oportunidades sem precedentes apresentadas aos EUA
pela assimetria de poder no sistema internacional pós Guerra Fria. No entanto,
aponta que “Mesmo com o fim da Guerra Fria, nossa nação precisa manter forças
militares suficientes para deter diversas ameaças e, quando necessário, lutar e
vencer nossos adversários” (USA, 1994, p.ii, tradução nossa).
7
Mais adiante, o
documento aponta que a Rússia possui um futuro incerto e que a China mantém
um regime repressivo, mesmo assumindo um papel mais importante em temas
econômicos e políticos internacionais. Isso reforçaria o imperativo estratégico de
atuar na Eurásia, condizente com as visões de Brzezinski e Kissinger herdadas
da geopolítica clássica. Ainda, nesse mesmo sentido, os documentos tratam da
atuação em diferentes áreas da Eurásia, na OTAN e no hemisfério ocidental, com
o objetivo de manter a supremacia estadunidense no pós Guerra Fria.
Com o objetivo de promover a paz e a estabilidade em diferentes partes do
planeta, os documentos observam a importância da parceria transatlântica no
âmbito da OTAN, sob a liderança dos EUA, assim como seu papel na promoção de
tratados de livre-comércio. Destaca que Clinton convocou uma reunião de cúpula
da OTAN, em janeiro de 1994, que aprovou a Partnership For Peace, fundamental
para reforçar os laços transatlânticos e promover a estabilidade da Europa. Ambos
os documentos citados do governo Clinton afirmam que a estabilidade europeia
é vital para a segurança dos EUA. Esse deve ter como elemento mais importante
na sua estratégia na Europa a promoção da segurança através de cooperação e
fortalecimento militares, ajudando a confirmar o papel central da OTAN na Europa,
pois “A Guerra Fria acabou, mas a guerra em sim não acabou” (USA, 1994, p. 21,
tradução nossa).
8
Assinala a oportunidade sem precedentes de contribuir em favor
de uma Europa livre e unida, mas que seja cooperativa com os EUA. O objetivo de
levar a agenda de “novas ameaças” à OTAN já estava claro nas intervenções dos
anos de 1990: “Actualmente, a OTAN desempenha um papel crucial, ajudando a
gerir conflitos étnicos e nacionais na Europa. Com a liderança dos EUA, a OTAN
proveu a força por detrás dos esforços para a consecução de um acordo pacífico
na antiga Jugoslávia” (USA, 1996, p. 32, tradução nossa).
9
Nesse sentido, afirma
7 “Even with the Cold War over, our nation must maintain military forces that are sufficient to deter diverse threats
and, when necessary, to fight and win against our adversaries”.
8 “The Cold War is over, but war itself is not over”.
9 “Today, NATO plays a crucial role helping to manage ethnic and national conflict in Europe. With U.S. leadership,
NATO has provided the muscle behind efforts to bring about a peaceful settlement in the former Yugoslavia”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
47Raphael Padula
o objetivo de ampliar a OTAN e levar a democracia em direção ao leste, para a
área antes influenciada pela URSS.
Ao destacar que o Leste da Ásia é uma região de crescente importância para
a prosperidade e segurança dos EUA, o documento aponta que Clinton busca
uma estratégia integradora de uma “nova comunidade do Pacífico”, “que liga os
requisitos de segurança às realidades econômicas e nossa preocupação com a
democracia e os direitos humanos” (USA, 1994, p. 21, tradução nossa).
10
A pedra
angular dessa política seria o aprofundamento de laços bilaterais com aliados
(como Japão, Coreia do Sul, Austrália, Tailândia e Filipinas), combinado com a
continuidade da presença militar estadunidense.
Quanto à segurança hemisférica, a parte do documento de 1994 chamada
Integrated Regional Approaches: the Western Hemisphere promove o foco nas novas
ameaças e na democracia, assim como a Cúpula das Américas e as Conferências
de Ministros da Defesa seriam os instrumentos de difusão dessa agenda. Ainda,
comemora a criação do NAFTA em 1994.
Voltando ao tema da OTAN, sua “nova doutrina” pós Guerra Fria foi anunciada
durante a comemoração dos seus 50 anos. Um dos itens do capítulo quinto do
documento NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement revelou o novo
conceito estratégico da OTAN:
Desdobrar e sustentar capacidades expedicionárias para operações militares
além da área abrangida pelo tratado quando requerido para impedir um
ataque na área abrangida pelo Tratado ou para proteger os direitos e outros
interesses vitais dos membros da Aliança. (NATO, 2020, tradução nossa)
11
Assim, foram flexibilizadas tanto a área geográfica de atuação quanto as
ameaças a serem combatidas, que passam a ser subjetivas e imprecisas, de acordo
com o que seus membros identificarem ou interpretarem. É nesse quadro que
observamos a expansão da OTAN para o leste (assim como a da União Europeia),
sob o comando dos EUA, incluindo antigos membros do Pacto de Varsóvia, numa
área observada pela Rússia como de interesse estratégico. Tal manobra geopolítica,
mais uma vez, segue os preceitos da geopolítica clássica, presentes nas visões
de Brzezinski e Kissinger ao abordarem a rivalidade geopolítica com a Rússia e
a importância da Eurásia.
10 “…which links security requirements with economic realities and our concern for democracy and human rights”.
11Deploy and sustain expeditionary capabilities for military operations beyond the treaty area when required to
prevent an attack on the treaty area or to protect the legal rights and other vital interests of Alliance members”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
48 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
A preocupação com a dependência energética externa dos EUA aparece no
documento de 1998, A National Security Strategy for a New Century, destacada
na seção “Providing for energy security:
Os Estados Unidos dependem do petróleo para cerca de 40% de suas
necessidades de energia primária e cerca de metade de nossas necessidades
de petróleo são atendidas com importações. Embora importemos menos de
10% das exportações do Golfo Pérsico, nossos aliados na Europa e no Japão
representam cerca de 85% dessas exportações, ressaltando assim a importância
estratégica contínua da região. (USA, 1998, p.32, tradução nossa)
12
Tal quadro reforça a importância da Eurásia e do Oriente Médio. Na verdade,
reflete uma dinâmica histórica de crescente dependência de importações de
petróleo, assim como a preocupação com o papel de “guardião” do abastecimento
dos aliados como um mecanismo de influência política, realçada na seção anterior.
Por isso, tanto Brzezinski quanto Kissinger apontam a importância de os EUA
permanecerem e participarem ativamente da política no Oriente Médio. Klare (2005,
p. 13) destaca que, em 1973, as importações de petróleo dos EUA ultrapassaram a
marca de 30% do consumo interno; em 1976, alcançaram 40%; atingindo 45% em
1977. Nesse âmbito, com a invasão soviética ao Afeganistão e a revolução iraniana
em 1979, foi lançada a Doutrina Carter, e o Comando Central dos EUA foi criado
em 1983 para atuar no Oriente Médio. Em 1997, as importações chegaram a 49%
do abastecimento interno e, em 1998, ultrapassam a barreira dos 50%, um marco,
digamos, psicológico, perto da chegada do século XXI. Na interpretação de Klare
(2008), desde a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA atuaram como principal
abastecedor petroleiro das potências aliadas, a Doutrina Carter seguiu e seguirá
guiando a estratégia estadunidense, na qual a segurança energética é vista como
um tema de segurança nacional, e não como um tema econômico — reforçando
que suas máquinas militares são movidas predominantemente a petróleo.
O republicano George W. Bush (2001-2009) chega ao poder comprometido com
as prioridades estabelecidas pelo grupo neoconservador do think tankProject
for the New America Century” (PNAC), que passaram a guiar a geoestratégia
estadunidense: aumentar gastos com defesa, promover a “liberdade política”
em todo o mundo e preservar e estender uma ordem internacional amigável.
12
The United States depends on oil for about 40 percent of its primary energy needs and roughly half of our oil
needs are met with imports. Although we import less than 10% of Persian Gulf exports, our allies in Europe
and Japan account for about 85% of these exports, thus underscoring the continued strategic importance
of the region”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
49Raphael Padula
Sobretudo, ganha destaque o objetivo de aumentar os fluxos de petróleo e gás do
exterior, diante do problema de segurança energética (e da redução de estoques)
dos EUA, cujas importações eram responsáveis por mais da metade do consumo
interno e mais de 30% do déficit comercial. Tais prioridades podem ser buscadas
de forma coadunada e sinérgica, por isso mostram organicidade e, em termos
políticos, ganharam maior legitimidade retórica e viabilidade de perseguição após
os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Em 2002, o documento National Security Strategy explicitou a doutrina de
ataques preventivos”, que deu maior flexibilidade para a atuação militar dos
EUA, desde que identificassem unilateralmente uma ameaça potencial atrelada à
atuação de grupos terroristas, em qualquer parte ou território nacional do globo.
O discurso unilateralista neoconservador, que via o multilateralismo como uma
demonstração de fraqueza, ganha força como um discurso ético de luta contra o
mal, legitimador de uma intervenção global: “Milhares de terroristas treinados
permanecem à solta com células na América do Norte, América do Sul, Europa,
África, Oriente Médio e toda a Ásia.” (USA, 2002, p. 5, tradução nossa).
13
A importância da OTAN como uma espécie de força militar global da ONU, sob
a tutela e incorporando a agenda de segurança dos EUA, é reforçada no governo
Bush, como afirma o documento da estratégia nacional de 2006 (USA, 2006,
p. 35-38). Ao mesmo tempo, deixa pistas de que intervenções militares, com ou
sem o consentimento da ONU, em áreas ricas em petróleo ou rotas estratégicas
podem ser necessárias.
A dependência mundial desses poucos fornecedores não é responsável nem
sustentável a longo prazo. A chave para garantir nossa segurança energética
é diversificar as regiões de onde vêm os recursos energéticos e os tipos de
recursos energéticos de que dependemos. A Administração trabalhará com
países ricos em recursos para aumentar sua abertura, transparência e estado
de direito. Isso promoverá uma governança democrática efetiva e atrairá o
investimento essencial para o desenvolvimento de seus recursos e a expansão
da gama de fornecedores de energia. (USA, 2006, p.37, tradução nossa)
14
13Thousands of trained terrorists remain at large with cells in North America, South America, Europe, Africa, the
Middle East, and across Asia”.
14The world’s dependence on these few suppliers is neither responsible nor sustainable over the long term. The
key to ensuring our energy security is diversity in the regions from which energy resources come and in the types
of energy resources on which we rely. The Administration will work with resource-rich countries to increase
their openness, transparency, and rule of law. This will promote effective democratic governance and attract the
investment essential to developing their resources and expanding the range of energy suppliers”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
50 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
Assim como nas recomendações de Brzezinski e Kissinger, os documentos
estratégicos do governo Bush destacam a importância da atuação política e militar
dos EUA na Eurásia, como continente basilar, mas com maior ênfase no Oriente
Médio, devido a questões conjunturais — como a necessidade de controlar o
acesso a fontes energéticas e combater o terrorismo. É interessante ressaltar que,
nesse período, já se destacam mudanças importantes. Uma delas, a clara ascensão
econômica da China e da Índia, com elevadas taxas de crescimento do PIB, em
média 8% e 6% ao ano, respectivamente (enquanto, nos anos de 1990, foram de
6% e 4% ao ano). Ainda, a retomada de uma política externa mais assertiva da
Rússia, especialmente no seu entorno geográfico da antiga URSS. Questões que
tiveram uma dose de “déficit de atenção” nos documentos estratégicos analisados,
e que apoiam a crítica de Brzezinski (2012a) anteriormente mencionada, de que
os EUA teriam se tornado um “Estado cruzadista” sem visão estratégica de longo
prazo diante dos grandes desafios do século XXI.
Quanto à preocupação com a China, apontava para seu regime político
autocrático, sua contínua expansão militar sem transparência e práticas econômicas
protecionistas, incluindo a busca por acesso garantido a recursos energéticos
por meio de acordos políticos e utilizando investimentos/financiamentos como
instrumentos, e até mesmo apoiando países abundantes em recursos naturais com
regimes políticos não democráticos (USA, 2006). No entanto, não há qualquer
menção sobre a distribuição de poder global ou um desafio à superioridade
estadunidense.
Quanto à Rússia, a continuidade da expansão para o leste da OTAN e
interações militares (como venda de armamentos e treinamento), englobando
Estados da antiga URSS e chegando às fronteiras da Rússia, e a proposta de
instalação de um escudo antimísseis no Leste Europeu, tendo como contrapartida
uma postura assertiva russa, marcaram a reativação das tensões e uma postura
não cooperativa nas relações bilaterais por parte dos EUA no governo George W.
Bush, e desembocaram no conflito entre Rússia e Geórgia.
Devido à herança recebida do governo anterior, especialmente seu envolvimento
e foco no Oriente Médio, a política do governo democrata de Barack Obama para a
Ásia se caracterizou inicialmente por uma postura reativa. No entanto, em 2010 é
possível identificar um redirecionamento do foco da política externa e de segurança
para a região da Ásia-Pacífico, no sentido de contrabalançar a ascensão chinesa.
O governo passou a liderar a Trans-Pacific Partnership como a pedra angular de
sua política para a região, com o objetivo de gerar empregos e renda nos EUA.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
51Raphael Padula
O Quadrennial Defense Review — QDR de 2014 e o National Security Strategy —
NSS de 2015 consubstanciam o redirecionamento em direção à Ásia-Pacífico como
prioridade geoestratégica, visando contrabalançar o peso da China, em detrimento
do Oriente Médio, mas sem deixar de participar dos demais tabuleiros da Eurásia.
Ou seja, seguem fundamentais a participação e presença na Eurásia e suas sub-
regiões, assim como na OTAN, num contexto de rivalidade interestatal pela disputa
de poder global, mas mudando a área prioritária em razão de fatores conjunturais
e estruturais, o que revela que os documentos estratégicos do governo Obama
acompanham a visão geopolítica clássica presente em Brzezinski ou Kissinger.
Os NSS de 2010 e 2014 reafirmam a importância de preservar a superioridade
militar dos EUA e sua capacidade de enfrentar múltiplas ameaças de nações, atores
não estatais e Estados falidos, mas trazendo de volta a questão do multilateralismo,
através de um “engajamento abrangente” sob a liderança estadunidense, e
da importância do poder do ponto de vista moral (ou de um discurso ético
legitimamente aceito), que teria sido deteriorado pelo unilateralismo do governo
Bush. Os documentos deixam claro o comprometimento com o envolvimento
na Eurásia, com a OTAN e os aliados na Ásia-Pacífico. Afirmam que as relações
com os aliados europeus, especialmente da OTAN, devem ser fortalecidas e são
importantes no campo econômico e da segurança, para deter “ameaças vitais” (USA,
2010a, p. 41). Sobre a Ásia, aponta que seu crescimento econômico significativo,
assim como de seus centros emergentes, tem conectado seu futuro à prosperidade
dos EUA, o que o leva a buscar um profundo engajamento na região, inclusive
buscando um papel maior em arranjos multilaterais, como a ASEAN, APEC e
TPP. Destaca as alianças bilaterais com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Filipinas
e Tailândia, sendo suas revitalizações estratégicas para a segurança e prosperidade
na Ásia-Pacífico, levando em conta as tendências e desafios do século XXI. Nesse
ponto, Japão e Coreia são destacados como países líderes e parceiros fundamentais
para presença militar, integração regional, difusão da agenda de segurança e dos
valores estadunidenses na região (USA, 2010a).
Os documentos QDR e NSS do governo Obama (USA, 2014; USA 2015) mostram
uma preocupação central com a distribuição de poder global, especialmente diante
da ascensão da China, mas fazendo referência também a Rússia, Índia, Brasil e
África do Sul. O NSS observa a ascensão e maior participação internacional da
China e da Índia, os países mais populosos do mundo, e também faz referência a
centros de influência emergentes” como o Brasil e a África do Sul. Mas observa
a Rússia “emergindo” recentemente, e a necessidade de estabelecer uma relação
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
52 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
cooperativa, especialmente por conta de seu arsenal nuclear e de sua relação com
vizinhos. O NSS de 2010 observa que todos esses países, juntos, estão construindo
maior influência e voz internacional. Tais preocupações refletem uma preocupação
com o fortalecimento e as articulações no âmbito do BRICS. O QDR 2010 cita o
desenvolvimento e os investimentos militares chineses como potenciais ameaças,
o que fariam aumentar o número de interrogações quanto a suas intenções de
longo prazo. Por fim, o documento aponta um conjunto de ações geoestratégicas
dos EUA, em termos militares, para contrabalançar possíveis movimentos daqueles
que identifica como potenciais contestadores de sua supremacia, nomeadamente,
China e Rússia (USA, 2010b). Já no NSS de 2014, no contexto da crise política gerada
na disputa pela Ucrânia e consequente invasão à Crimeia por parte da Rússia,
aponta essa como uma ameaça à Europa, preocupando-se com a dependência
energética europeia e ucraniana, e a necessidade de manter sanções e conter as
agressões e violações à soberania. Sobre a questão energética, aparece nos NSSs
a preocupação em buscar novas tecnologias para reduzir a dependência externa
de petróleo. O discurso do governo Obama sempre esteve voltado para fontes
alternativas e renováveis, para diminuir o déficit comercial e a dependência
energética estadunidenses. No entanto, aborda também a questão do Oriente
Médio, e sua relação com o acesso assegurado a energias fósseis para os EUA e
seus aliados, como um tema de segurança energética (USA, 2010a).
Sobre a América, o documento Western Hemisphere Defense Policy Statement,
do Departamento de Defesa, de 2012, refere-se às novas ameaças como “desafios
complexos do século 21” no campo da segurança e à necessidade de proliferar essa
agenda por meio de ações bilaterais, organizações multilaterais (especialmente
regionais), think tanks e pesquisas. Reforça também que as forças armadas dos
países latino-americanos devem se dedicar ao combate às chamadas novas ameaças.
Considerações finais
Os documentos estratégicos analisados revelam uma continuidade na
geoestratégia estadunidense pós Guerra Fria: uma presença permanente e de
protagonismo na OTAN, com objetivo de manter o controle militar sobre a Europa
Ocidental, avançar em direção à Rússia e à Ásia Central, especialmente buscando
conter seu possível avanço e influência. Ainda, revela uma estratégia de promoção
do equilíbrio de poder na Eurásia, em suas diferentes áreas, primeiro com maior
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
53Raphael Padula
ênfase no Oriente Médio e recentemente na Ásia-Pacífico, para contrabalançar
a ascensão chinesa. A presença militar estadunidense no Oriente Médio mostra
também um caráter permanente, por razões estratégicas, que lhe auferem poder
de barganha frente aos aliados e capacidade de negar acesso aos rivais em
momentos de crise política — no sentido da Doutrina Carter. Ao mesmo tempo,
mantêm uma política de supremacia hemisférica. Ainda, a retórica sobre “novas
ameaças” e a legitimidade interna e externa parecem importantes do ponto de vista
de manter uma presença e capacidade de intervenção militar global, assim como
altos gastos militares para o seu complexo industrial-militar, todos fundamentais
para a liderança militar e tecnológica global e para a estratégica de manutenção
da supremacia global dos EUA.
Assim as ações de Estado dos EUA e sua continuidade são influenciadas
pelas concepções de Kissinger e de Brzezinski, que seguem a geopolítica clássica
no sentido de apontar a Eurásia como o continente basilar para o equilíbrio e os
rumos da política de poder global; e colocando os objetivos estratégicos acima
de qualquer discussão sobre custos econômicos ou limites orçamentários. Para
Brzezinski e Kissinger, a presença militar na OTAN, no Oriente Médio e no Sudeste
da Ásia são irrevogáveis, visto que os EUA devem se preocupar com o equilíbrio de
poder global, sendo esse o continente mais relevante. Vale ressaltar que qualquer
discussão sobre limite orçamentário perderia relevância se fosse observado que os
EUA emitem a moeda internacional sem lastro, não enfrentando limites nos seus
gastos e endividamento, sustentados também em seu poder militar e tecnológico.
Embora a hegemonia hemisférica apareça como um consenso para todos os
autores aqui abordados, as relações fundamentais para a geoestratégia dos EUA
estão no eixo Leste-Oeste, entre os países do hemisfério norte.
É importante observar que, qualquer que tenha sido o partido na Presidência dos
EUA no período analisado, com suas diferenças táticas, os objetivos geoestratégicos
que prevaleceram, mostrando continuidade, foram os apontados por Kissinger
ou Brzezinski, influenciados pela geopolítica clássica. E qualquer presidente que
tente mudar isso enfrentará resistências e restrições dentro do próprio Estado.
No pós Guerra Fria, a atuação militar dos EUA na América Latina vem
sendo mantida por meio de diversos instrumentos
15
, sob a retórica de prevenir e
promover a capacidade de combate às novas ameaças (PADULA, 2015). Enquanto
15 Estabelecimento de bases operacionais (inclusive na Colômbia, próximas à Amazônia), ajuda econômica e
militar (como o Andean Trade Promotion and Drug Eradication Act), staff talks, exercícios militares conjuntos,
ações cívico-sociais, a reativação recente da sua IV Frota para o Atlântico Sul e comércio seletivo de armas.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
54 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
a atuação dos EUA, no “grande jogo” da Eurásia, segue as orientações dos seus
documentos estratégicos, diante de um quadro de significativa complexidade,
com a utilização de meios militares, geopolíticos e geoeconômicos, e midiáticos.
Revela-se uma grande disputa entre EUA e seus aliados na OTAN, de um lado, e
China e Rússia e seus aliados, do outro, que deve ter impacto determinante no
futuro geopolítico global; sendo importante que sejam desenvolvidas pesquisas
sobre os seus desdobramentos, incluindo destaque para a Organização da
Cooperação de Xangai.
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____. National Security Strategy, 2015. Disponível em: <http://nssarchive.us/>.
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56 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
Não-alinhamento, cooperação internacional
e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria:
o caso egípcio (1955-1967)
1
Non-alignment, foreign aid and development in the
Cold War context: the Egyptian case (1955-1967)
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.792
Pedro Rocha Fleury Curado
2
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir o papel funcional da política externa do não-alinhamento
para as políticas de desenvolvimento econômico e militar de países periféricos durante a
Guerra Fria. Para tanto, propõe-se um estudo de caso sobre a política externa do governo
egípcio de Gamal Abdel Nasser (1954-1970). Ao longo do texto, argumenta-se que a política
externa “não alinhada” aos principais blocos da Guerra Fria representou um poderoso
instrumento de barganha internacional por parte do governo egípcio entre os anos de 1955
e de 1967. Para respaldar essa afirmação, o texto evidencia a relação existente entre, por
um lado, as melhores condições externas para a viabilização dos programas internos de
desenvolvimento e, por outro, as relações ambíguas cultivadas pelo governo Nasser com
Estados Unidos e União Soviética. Tais relações, por sua vez, somente foram possíveis graças
a um permanente jogo de compensações de ordem geopolítica que envolvia a capacidade
do governo egípcio de intervir nos interesses regionais das duas superpotências.
Palavras-chave: Egito; Cooperação Internacional; Não-alinhamento; Desenvolvimento;
Geopolítica.
Abstract
The objective of this article is to discuss the functional role of the non-alignment foreign
policy for economical and military development of Third World countries during the Cold war.
To do so, it presents a case study on the Egyptian Gamal Nasser’s foreign policy (1954-1970).
1 O presente trabalho contou com financiamento da FAPERJ.
2 Professor Adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IRID-UFRJ).
Artigo submetido em 25/04/2018 e aprovado em 30/08/2018.
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57Pedro Rocha Fleury Curado
Along the text, it argues that the “non-aligned” foreign policy in the Cold war represented
a powerful instrument of international bargain by the Egyptian government. To back that
statement, the text evidences the existent relationship among, on one side, the best external
conditions for the foreign aid programs and, for other, the ambiguous relationships cultivated
by the Nasser’s government with United States and Soviet Union.Such relationships were
only possible thanks to a permanent game of geopolitical compensations involving the
regional interests of the two superpowers.
Keywords: Egypt; Foreign Aid; Non-alignment; Development; Geopolitics.
Introdução
O não-alinhamento foi uma estratégia de política externa difundida entre
um grupo de países do então chamado Terceiro Mundo durante a Guerra Fria.
Caracterizava-se pelo gerenciamento autônomo de uma agenda internacional
dissociada das pressões por alinhamento automático a um dos blocos antagônicos
do conflito bipolar. O presente texto objetiva discutir este modelo de posicionamento
político no sistema internacional a partir de seu caráter funcional para a obtenção de
acordos vantajosos no âmbito da cooperação internacional para o desenvolvimento.
Como questão de fundo, busca-se responder a seguinte indagação: diante de uma
conjuntura sistêmica caracterizada pela polarização entre as duas superpotências,
teria a agenda “não-alinhada” representado um instrumento de efetivo suporte
aos programas de desenvolvimento interno dos países não-alinhados?
Como método, adota-se a política externa egípcia sob o governo de Gamal
Abdel Nasser como um estudo de caso. A partir dela, busca-se reler o processo
de implementação dos programas de desenvolvimento egípcio relacionando-os à
projeção geopolítica deste país durante os anos de maior intensidade da política
externa não-alinhada. Mais precisamente, o marco temporal compreende os
anos entre a conferência de Bandung
3
(1955) e a conferência de Cartum
4
(1967),
3 A Conferência de Bandung ocorreu entre os dias 18 e 24 de abril de 1955 e contou com vinte e nove países da
África e da Ásia. Herdeira do movimento Afro-Asiático, a conferência buscou pressionar as potências internacionais
pelo fim do colonialismo e pelo direito dos países presentes de não se vincularem a qualquer um dos blocos da
Guerra Fria. A conferência de Bandung deu origem a uma série de conferências periódicas reunindo líderes de
países em desenvolvimento. A partir da conferência de Belgrado, em 1961, os países participantes passaram a
se declarar membros do “movimento dos não-alinhados”.
4 A Conferência de Cartum foi uma conferência da Liga Árabe ocorrida em setembro de 1967. Com a derrota na
Guerra dos Seis Dias (junho de 1967), o Egito, até então um importante ator no cenário regional, testemunhou
a ocupação de parte de seu território (o Sinai) por Israel. Além disso, as dívidas contraídas com a participação
egípcia na Guerra do Iêmen (1962-1967), somadas à perda material da Guerra dos Seis Dias, fizeram com que
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58 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
essa última realizada poucos meses após a Guerra dos Seis Dias
5
. Enquanto a
conferência de Bandung produziu as condições materiais para o florescimento
do movimento dos não-alinhados, a resolução apresentada pela conferência de
Cartum, organizada pela Liga Árabe, representou o reordenamento da correlação
de forças entre os Estados árabes do Oriente Médio, expondo o Egito a uma
condição de fragilidade e dependência que o tornava incapaz de seguir atuando
externamente com o mesmo protagonismo regional.
Representante particularmente ativo do movimento dos não-alinhados durante
as décadas de 1950 e 1960, o Egito empreendeu ao longo desse mesmo período um
rigoroso programa interno de industrialização acelerada e militarização do Estado,
mantendo, simultaneamente, canais abertos para relações diplomáticas em alto
nível com os Estados Unidos e a União Soviética. Fosse na condição de provedores
de recursos financeiros, armamentos, alimentos e/ou capacitação técnica, ambas
as superpotências contribuíram em alguma medida com os programas estratégicos
apresentados pelo governo egípcio. Ao longo do texto, busca-se destacar a
importância do não-alinhamento como fator condicionante para o papel que o
Egito assumiria nas estratégias regionais de ambas as superpotências. Conforme
o governo egípcio tornou-se capaz de sustentar e incrementar sua inserção no
tabuleiro geopolítico do Oriente Médio, melhor posicionado esteve para celebrar
programas de cooperação internacional, tanto com os Estados Unidos como com
a União Soviética.
Como resultado desse processo, é importante destacar que a própria
autorrepresentação de uma política externa construída em torno da recusa em
aderir a um dos dois blocos da Guerra Fria legitimava-se indiretamente pela
implementação interna de uma política “nacional-desenvolvimentista” de caráter
híbrido, que incluísse alusões aos programas de desenvolvimento para o Terceiro
Mundo propagados pela propaganda política de ambas as superpotências. Tal
fenômeno era verificado tanto na referência ao modelo de industrialização
acelerada soviético como na busca por uma melhor inserção na economia
capitalista global e pela criação interna de uma sociedade de consumo de massa
inspirada no modelo americano (CARRÉ, 1993; FARAH, 2009). Em suma, o
o governo Nasser se visse constrangido a contrair empréstimos internacionais. A ajuda financeira saudita
representou, naquele momento, uma reconfiguração na correlação de forças entre aqueles dois países no contexto
de uma disputa regional pela liderança dos países árabes. Sobre esse episódio, ver Oren (2002) e Halliday (2005).
5 A Guerra dos Seis Dias ocorreu em junho de 1967 e teve início com um ataque aéreo preventivo de Israel contra
a Força Aérea egípcia estacionada no Sinai. Em resposta, Egito, Jordânia e Síria uniram-se para contra-atacar,
mas foram derrotados. Após seis dias, Israel havia ocupado o Sinai, as Colinas de Golã e a Cisjordânia.
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59Pedro Rocha Fleury Curado
não-alinhamento será aqui entendido tanto pelas relações internacionalmente
construídas a partir desse posicionamento como por seus impactos domésticos.
Os grandes projetos do nacional-desenvolvimentismo egípcio foram diretamente
impactados pelas flutuações e instabilidades do ambiente externo, do mesmo modo
que a ação internacional do governo egípcio esteve, por diversas vezes, pautada
por necessidades imediatas de ordem prática relacionadas aos financiamentos,
cooperação técnica, consolidação de compradores externos para commodities
produzidas internamente e, em particular, provimento de armas.
O texto está dividido em quatro partes. Na primeira, destacaremos a
particularidade do não-alinhamento egípcio no contexto da Guerra Fria, assim
como a especificidade de seu posicionamento geopolítico para os interesses
das superpotências. Na segunda, propomos analisar os acordos de cooperação
estabelecidos entre o Egito e os Estados Unidos. Na terceira parte, faremos o
mesmo em relação ao Egito e à União Soviética. Por fim, apresentaremos algumas
considerações finais.
O não-alinhamento egípcio e a Guerra Fria
O movimento dos países não-alinhados adquiriu forma em meio à dinâmica de
transposição da Guerra Fria para os novos Estados emergentes da descolonização
(KENNEDY, 1989; HOBSBAWN, 1994; GADDIS, 2005). Herdeira das reivindicações
políticas do movimento Afro-Asiático, a conferência de Bandung (Indonésia)
de 1955 serviu como marco político para um conjunto de emergentes países
reivindicarem o status “não-alinhado” diante do conflito entre os blocos da Guerra
Fria. Para muitos dos países presentes, recém-saídos de variados e complexos
processos de emancipação do jugo colonial, a adesão a qualquer um dos blocos era
percebida como uma nova forma de subjugação nacional aos interesses externos
(JANSEN, 1966). Os principais líderes que melhor expressavam o movimento dos
não-alinhados nas relações internacionais eram Gamal Nasser (Egito), Jawaharlal
Nerhu (Índia), Josip Broz Tito (Iugoslávia) e Sukarno (Indonésia). Posteriormente,
juntar-se-iam outros líderes “terceiro-mundistas”, como o argelino Ben Bella e
o ganês Kwame Nkrumah. As conferências internacionais dos não-alinhados
ocorreram periodicamente durante os anos de Guerra Fria e reuniram formalmente
representantes de grande parte dos novos países criados ao longo do processo de
descolonização da Ásia e da África.
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60 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
O surgimento do não-alinhamento como um posicionamento internacional,
respaldado por um movimento composto majoritariamente por novos Estados
independentes, impactou nas relações construídas entre Estados Unidos e União
Soviética com o Terceiro Mundo. A força política e publicitária do não-alinhamento,
assim como sua amplitude e crescente número de países participantes em cada
reunião, terminou por pressionar os policy makers de ambas as superpotências a
redefinir suas respectivas estratégias voltadas para a criação de zonas de influência.
Ao longo desse processo, os programas de cooperação para o desenvolvimento
tornaram-se um forte instrumento de barganha política para países que não
fossem abertamente alinhados a um bloco ou outro. Da perspectiva dos governos
terceiro-mundistas, uma política externa orientada pelo não-alinhamento permitia
reivindicar neutralidade diante do conflito bipolar e, como resultado, ter aberto
o diálogo e a possibilidade de negociar programas de “ajuda” sem a necessidade
de respondê-los com fidelidade política à agenda internacional do país provedor.
Entretanto, um governo não-alinhado poderia ser mais ou menos importante
para o jogo da Guerra Fria conforme pudesse oferecer vantagens ou representar
empecilhos de ordem geopolítica. Tal relevância podia ser medida a partir
das seguintes características: 1) a detenção de um posicionamento geográfico
estratégico para a segurança de rotas comerciais marítimas ou terrestres, assim
como a importância do acesso aos seus portos para a estratégia naval das
superpotências; 2) um posicionamento geográfico interessante para a contenção
da projeção de poder político ou territorial do bloco antagônico, 3) a posse de
recursos energéticos e matérias-primas; 4) as características econômicas, o potencial
militar e a representação político-ideológica assumida pelo governo; 5) o combate
doméstico às organizações políticas simpáticas ou filiadas ao bloco antagônico.
A rivalidade competitiva entre as duas superpotências produziu, portanto,
a valorização de certas zonas do Terceiro Mundo como espaços privilegiados do
conflito da Guerra Fria (KENNEDY, 1989; HOBSBAWN, 1994). No caso do Egito,
o não-alinhamento era uma dimensão estruturante de sua política externa, mas
não era a única. Alçado ao papel de liderança pan-arabista, o governo de Gamal
Nasser possuía uma agenda internacional própria e associada ao intervencionismo
político e militar em seu entorno regional
6
. A conquista de uma estatura política
6 A política externa para o Oriente Médio do regime Nasser foi particularmente ativa. Além da participação direta
em três guerras (Guerra de Suez, Guerra do Iêmen, Guerra dos Seis Dias), o Egito também patrocinou com
dinheiro e armas grupos insurrecionais contra seus rivais árabes. Especialmente contando com a simpatia de
grupos nativos pan-arabistas, o governo Nasser armou e financiou movimentos contrários aos governos do Rei
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61Pedro Rocha Fleury Curado
internacional, expressa na condição de um dos líderes do anticolonialismo e da
emancipação do “povo árabe”, serviu, nesse caso, para redimensionar a importância
geopolítica do Egito diante da Guerra Fria. Nesse ponto, destaca-se a relação entre
duas dimensões complementares da política externa. A primeira delas definia-se
pelas vantagens existentes diante da condição de país periférico subordinado ao
jogo da Guerra Fria, isto é, a política externa egípcia posicionava-se no conflito
da Guerra Fria buscando lograr maneiras de explorar a tensão existente entre
Estados Unidos e União Soviética para celebrar vantajosos acordos de cooperação
internacional para o desenvolvimento com ambas as superpotências. A segunda
dimensão dizia respeito à política externa regional, fator esse de grande importância
para reforçar a estatura internacional do Egito como liderança árabe e, como
consequência, aumentar seu poder de barganha nas negociações internacionais.
A maneira como o governo Nasser lograva projetar seu poder sobre os países de
seu entorno geográfico impactava diretamente os interesses regionais das duas
superpotências. O valor geoestratégico atrelado ao Egito no jogo da Guerra Fria
estava, portanto, diretamente associado à sua capacidade de efetivamente exercer
o papel de liderança regional e influenciar o jogo político de seu entorno imediato.
Entretanto, se a formalização dos acordos de cooperação internacional para os
programas de desenvolvimento egípcio ocorriam porque o Egito exercia um papel
potencialmente importante para a configuração dos voláteis cenários geopolíticos
regionais, resta perguntar: seriam tais acordos efetivamente expressivos e
duradouros? Para responder a tal questão, é necessária uma breve contextualização.
As políticas de crescimento econômico dos anos de 1950 e de 1960 foram
fortemente influenciadas pela preponderância das teorias desenvolvimentistas
entre os economistas e os cientistas políticos. Tanto os programas de “ajuda”
estadunidense como soviético eram apresentados, do ponto de vista teórico,
como uma forma de valorização do processo de industrialização da periferia,
sendo a indústria a representação do “progresso” ou da “modernização”.
O desenvolvimentismo egípcio, expresso através de seus principais programas
voltados para a transformação da base produtiva, até então predominantemente
agrícola, não escapava desse paradigma maior de seu tempo: buscava-se viabilizar
um processo de industrialização acelerada capaz de incrementar a renda nacional,
melhorar o nível médio de vida e fortalecer a segurança do Estado diante das
ameaças externas.
Hussein (Jordânia), Rei Faisal (Arábia Saudita), General Kassam (Iraque), entre outros. Sobre a “guerra fria
árabe”, ver Kerr (1965).
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62 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
No plano geopolítico, a importância internacional do Egito durante as décadas
de 1950 e de 1960 era devida aos seguintes fatores: 1) natural-geográficos, já que
tratava-se do país no qual localizava-se o delta do rio Nilo e o Canal de Suez, além
de o país compor uma região que divide África e Ásia, o mar Mediterrâneo e o
Vermelho; 2) políticos, por ser o Estado com maior influência política na região,
e até então o único dotado de instituições modernas; 3) econômicos, posto que o
Egito era a primeira economia do mundo árabe; 4) culturais, pois contava com as
principais industrias musicais e cinematográficas de todo o Oriente Médio, assim
como os maiores meios de comunicação e instituições de ensino prestigiosas,
como a Universidade Al-Azhar; e 5) demográficos, posto ser o país mais populoso
de toda a África do norte e Oriente Médio, com cerca de 30 milhões de pessoas
durante as décadas de 1960 e de 1970 (HINNERBUSCH, 2003; LAURENS, 2007).
Diante de uma região com estruturas políticas frágeis ou ainda em formação,
a política externa regional do governo Nasser foi usada para potencializar a
estatura internacional do país. A compra de armas soviéticas pelo Egito em 1955
resultou numa primeira aproximação entre esse país e a União Soviética. Desde
então, a cooperação rapidamente foi estendida para setores não militares. Fora do
Pacto de Varsóvia, o Egito foi o primeiro país do Terceiro Mundo a efetivamente
receber esse tipo de atenção da política externa de Moscou (LAURENS, 2007;
WATERBURY, 1983). Esse, por sua vez, rapidamente multiplicaria suas relações
com a periferia global, ofertando apoio financeiro, técnico, político e militar aos
governos nacionalistas que, em contrapartida, servissem de algum modo aos
interesses geoestratégicos da União Soviética no contexto da Guerra Fria.
Na ocasião, tal fenômeno significou o fim do monopólio do bloco Ocidental
como agente único da promoção do desenvolvimento no Terceiro Mundo, tornando
os programas de cooperação internacional de diferentes naturezas, oferecidos
pela União Soviética, um instrumento efetivo de incremento das relações entre
essa e os novos Estados africanos e asiáticos emancipados do jugo colonial.
A competição entre as duas superpotências da Guerra Fria por novas e maiores
zonas de influência permitiu com que um grupo de países não-alinhados a qualquer
um dos dois blocos buscasse suavizar sua dependência externa para a viabilização
dos programas de desenvolvimento domésticos, multiplicando seus provedores
de “ajuda externa”. Dentre os países não-alinhados, o caso do Egito porta a
singularidade de ter inaugurado essa via de desenvolvimento “multidependente”,
a partir da compra de armas soviéticas em 1955.
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63Pedro Rocha Fleury Curado
Até então, os principais parceiros para o fornecimento de material bélico
e de cooperação econômica para o Egito eram a Grã-Bretanha e a França. Os
principais mercados importadores da produção nacional egípcia eram igualmente
esses dois países, mais os Estados Unidos. Esse último, durante os primeiros anos
de governo Nasser, exerceu o papel de provedor de créditos e apoio técnico para
programas chave do planejamento estatal (WATERBURY, 1983). Em função do
forte caráter anticolonialista do movimento dos Oficiais Livres, que levou Nasser
ao poder, as tensões com a França e, principalmente, a Grã-Bretanha tornaram-se
latentes (POMMIER, 2008). O contrário ocorria com os Estados Unidos, já que
esse não portava consigo o peso de um passado colonialista. Além disso, esse
país era dotado de um atrativo adicional: os programas de ajuda anunciados no
Point Four de Harry Truman, aspecto esse simbolicamente representativo para a
incorporação sistemática dos programas de “cooperação para o desenvolvimento”
nas relações dos Estados Unidos com países do Terceiro Mundo no contexto da
Guerra Fria (RIST, 2013).
No caso do Egito, sua importância geoestratégica não foi dada de imediato pela
sua posição no conflito global, mas forçada pelo seu próprio governo ao “convidar”
a União Soviética para cooperar com seus programas de desenvolvimento
econômico e incremento do poderio militar. O desenrolar das relações egípcias
com ambas as superpotências seguiu, a partir daí, um equilíbrio tênue montado
sobre um jogo de compensações estreitamente dependente do modo como se
dava a inserção egípcia na dinâmica das relações interestatais do Oriente Médio.
Sob a agenda do não-alinhamento, o Egito logrou fazer com que Estados Unidos
e União Soviética estivessem envolvidos na viabilização da agenda nacional-
desenvolvimentista implementada na esfera doméstica. A seguir, propõe-se uma
análise sobre a ajuda técnica e econômica americana durante o período de maior
ativismo externo do governo Nasser.
A cooperação estadunidense e o desenvolvimento egípcio
Durante a crise de Suez (1956), uma série de consultores e técnicos americanos
que trabalhavam em projetos de desenvolvimento no Egito (especialmente
associados à renovação das técnicas de cultivo agrícola, como as plantações de
algodão) saíram do país (BURNS, 1985; FERRO, 2006).
Após o conflito, e com
a aproximação entre Egito e União Soviética para níveis de cooperação além da
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64 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
esfera militar, o governo dos Estados Unidos reagiu à perda de influência direta
sobre o governo egípcio, inaugurando a Doutrina Eisenhower (1957)
7
. O objetivo
implícito dessa era conter a expansão do nacionalismo árabe e, consequentemente,
isolar o governo egípcio (YAQUB, 2004). Assim, todos os acordos de cooperação
com o Egito foram temporariamente suspensos, ao mesmo tempo em que os
Estados Unidos aderiam ao bloqueio econômico criado por França e Grã-Bretanha
para retaliar a nacionalização do Canal de Suez e das companhias estrangeiras
britânicas e francesas instaladas no Egito. Com a Doutrina Eisenhower, os Estados
Unidos mantinham uma promessa de apoio militar aos
governos árabes que se
sentissem ameaçados pela retórica expansionista do governo Nasser. Entretanto, a
relação entre Egito e Estados Unidos
retomou a normalidade com o desenrolar dos
acontecimentos tanto na esfera regional como na política doméstica da República
Árabe Unida. Na esfera regional, Nasser rapidamente provou ser útil à política
externa estadunidense ao integrar a Síria e representar, com isso, um impedimento
ao crescimento da influência soviética ancorada na revolução iraquiana do general
Qasim, em 1958. Outro fator relevante aos olhos dos Estados Unidos: no plano
doméstico, o governo Nasser perseguia toda organização política de esquerda
identificada ou não com o comunismo (GORDON, 1992 ; CREMENS, 1963; KERR,
1965). Cabe lembrar que a ascensão de Qasim no Iraque e sua aliança com a
União Soviética haviam inviabilizado a arquitetura do Pacto de Bagdá organizado
pelos britânicos.
Assim, em maio de 1958, os termos da nova relação de cooperação dos
Estados Unidos com o desenvolvimento econômico egípcio passaram a estar
encarnados na Public Law 480 (PL 480), conhecido por Food for peace. Essa relação
foi amplificada com a eleição de John Kennedy para a presidência americana,
em 1960, em sincronia tanto com o lançamento pelo governo egípcio de seu
primeiro Plano Quinquenal como da aprovação e implementação das novas “leis
socialistas”. O governo Kennedy (1961-1963) concedia especial atenção aos não-
alinhados. Com relação ao governo Nasser, a mudança de percepção da cúpula
do governo americano era radical: o nacionalismo árabe, longe de ser um canal
para a entrada do comunismo, passava a ser visto como uma forma de bloquear
o expansionismo do mesmo (BURNS, 1985).
7 De acordo com a Doutrina Eisenhower, uma país do Oriente Médio poderia requerer ajuda externa estadunidense
militar ou econômica caso se sentisse ameaçado por algum país aliado ao bloco soviético. No livro Containing
Arab Nationalism, Salim Yaqub (2004) defende que a implementação da Doutrina Eisenhower tinha como
principal objetivo controlar a política regional do governo Nasser.
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65Pedro Rocha Fleury Curado
Assim, através da PL 480, navios norte-americanos carregados de trigo e
alimentos passaram a descarregar em portos egípcios, contribuindo de maneira
significativa para aliviar a dependência de alimentos importados e favorecendo
a manutenção do balanço de pagamentos em ordem. Entre janeiro de 1961 e
fevereiro de 1962, a administração americana assinou três acordos no âmbito
do programa Food for Peace com o governo egípcio, nos quais se comprometia
a prover 170 milhões de dólares em commodities (BURNS, 1985).
Esses acordos
iniciais foram suplementados por uma segunda rodada de acordos em que estava
previsto o incremento da ajuda em 24 milhões de dólares em uma segunda rodada
e 43 milhões em uma terceira. Em 1961, o provimento de trigo americano (no
quadro da PL 480) ao mercado egípcio contabilizava 77% do total de
importações
egípcias dessa commodity. Em 1962, esse montante chegou a atingir
99% das
importações nacionais do mesmo produto (BURNS, 1985).
Fatores externos, como
a morte de Kennedy, a ascensão de Lyndon Johnson à presidência americana e
o engajamento egípcio cada vez mais profundo na guerra do Iêmen (1962-1967),
coincidiram para arrefecer novamente as relações entre Egito e Estados Unidos
em 1965. Em 1966, o programa de ajuda foi novamente retomado, mas dessa vez
em menor escala.
O programa Food for peace representou o principal eixo da cooperação para
o desenvolvimento entre o Egito e os Estados Unidos. Através da PL 480, a
cooperação cobriu o período total entre 1954 e 1966, tendo sido particularmente
relevante entre 1958 e 1964. Durante o período total, cerca de 643 milhões de
dólares foram enviados ao Egito por navio na forma de grãos e alimentos que
serviam em grande medida para o consumo urbano (BURNS, 1985).
Com relação ao comércio propriamente dito entre os dois países, os Estados
Unidos jamais deixaram de ser um parceiro comercial importante para o Egito.
Em 1954, os estadunidenses representavam 11% das importações egípcias e
5% das exportações. Em 1962, em pleno processo de implementação do Plano
Quinquenal egípcio, o governo Nasser importava 25% da soma de todos os seus
produtos dos EUA e exportava 6% a esse parceiro. Já em 1965, a relação era de
36% de importações e 3% das exportações aos EUA (BURNS, 1985).
Cabe ressaltar o impacto direto que a provisão de alimentos e grãos norte-
americanos produzia no orçamento do Estado egípcio. Isso porque a dependência
de alimentos importados para suprir uma população em pleno crescimento
demográfico representava um fardo às contas do Estado que, além disso, ainda
subsidiava equipamentos e matérias-primas necessárias à produção agrícola.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
66 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
A provisão de alimentos e grãos americanos, em um montante significativo
como aquele em que foi negociado, permitia ao governo egípcio redirecionar
parcela expressiva do orçamento estatal, normalmente destinado a comprar tais
commodities, para efetivamente investi-los em programas de modernização da
indústria, infraestrutura e produção agrícola. Isso é
particularmente relevante
quando lembramos que, entre 1960-1965, vigorava o
ambicioso Plano Quinquenal
cujo objetivo anunciado era industrializar massivamente o país em um curto
espaço de tempo. Em outubro de 1962, após uma avaliação positiva do governo
Kennedy sobre as relações desenvolvidas entre os Estados Unidos e o Egito a
partir da PL 480
8
, decide-se pelo incremento da cooperação internacional com o
anúncio do aporte de 431.8 milhões de dólares em alimentos e grãos para o triênio
1963, 1964 e 1965 (BURNS, 1985).
Durante esses últimos três anos, entretanto, o agravamento da guerra do Iêmen
desgastou as relações entre Nasser e Kennedy. A despeito do reconhecimento
da legitimidade da república iemenita feita pelo presidente Kennedy em 1962, o
prolongamento da guerra civil interna e, principalmente, o crescimento das tensões
entre o Egito e a Arábia Saudita fizeram com que os estrategistas estadunidenses
revisassem sua posição original diante do conflito: percebia-se uma crescente
ameaça de o conflito transbordar as fronteiras e impactar sobre a segurança
dos poços de petróleo sauditas. Essa posição foi confirmada pelo sucessor de
Kennedy, Lyndon Johnson, que também temia o engajamento das Forças Armadas
egípcias em território iemenita, posto que isso contribuía para reforçar os laços de
dependência militar do Egito com a União Soviética (KHALIDI, 2009; KERR, 1965).
O governo Johnson, por sua vez, insatisfeito com o desenrolar da participação
egípcia nos eventos da região e sem nutrir pessoal afeição à figura de Nasser, passou
a articular internamente para derrubar os acordos que comprometiam os Estados
Unidos a prover ajuda em alimentos e grãos ao Egito para o triênio 1963-1965.
Burns narra as discussões internas dentro do congresso e o peso da participação
do lobby judeu para interromper os acordos de cooperação (BURNS, 1985).
Como resultado, em 1965, a ajuda externa americana é interrompida. Em
1966, quando se estimava a necessidade de o governo egípcio importar cerca
de 300 milhões de dólares em alimentos e grãos, o governo americano volta a
propor a integração do Egito na PL 480 nos mesmos marcos do período anterior.
8 Embora as relações entre Kennedy e Nasser fossem predominantemente positivas, existiam algumas desavenças,
como ficou patente no caso da Guerra no Congo, no qual cada país apoiava lados antagônicos do conflito.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
67Pedro Rocha Fleury Curado
Entretanto, nessa ocasião, o montante oferecido foi bem inferior aos
anteriores:
55 milhões de dólares ao longo de seis meses (BURNS, 1985).
Como observou Mabro (1975), o grande sucesso da política externa do governo
Nasser em relação à Guerra Fria foi assegurar a ajuda americana em períodos
chave de grande investimento, ao mesmo tempo em que ampliava com a União
Soviética o comprometimento dessa com os programas para a industrialização
egípcia. Isso explica, em parte, a alta taxa de crescimento econômico egípcio entre
1957 e 1964. Tal crescimento contínuo foi enormemente financiado por acordos
de cooperação internacional proclamados com os dois blocos. Os Estados Unidos
mantinham a cooperação, comprometendo-se a comprar parte da produção egípcia,
principalmente entre 1959 e 1962.
Vejamos, a seguir, o papel desempenhado pelos
acordos de cooperação soviética durante o mesmo período.
O papel da cooperação soviética para a industrialização do Egito
No caso da relação egipto-soviética, ocorreu uma maior diversificação entre
os setores mobilizados. Na esfera militar, por exemplo, a cooperação soviética
teve início após a venda de armas militares repassadas ao Egito através da
Checoslováquia em 1955 e estava inscrita na nova estratégia do governo de Nikita
Khrushchev, orientada para disputar zonas de influência com o bloco ocidental
no Terceiro Mundo.
O Egito tornou-se um elemento importante para a nova estratégia internacional
soviética e, do lado russo, o eventual sucesso da relação entre os governos
Nasser e Khrushchev passou a ser percebido como um ativo portador de
diferentes vantagens: 1) tratava-se de uma forma de adentrar zonas de influência
tradicionalmente ocidentais (como o Oriente Médio); 2) reduzia a capacidade de
ingerência dos Estado Unidos sobre uma região próxima à fronteira sudoeste do
território russo, rompendo localmente com a estratégia estadunidense de contenção
do expansionismo russo; 3) facilitava a saída da frota soviética pelos mares quentes
do Mediterrâneo através do potencial acesso aos portos de Estados mediterrâneos
amigos”, como era o caso do Egito; 4) o possível sucesso da ajuda soviética na
transformação do Egito em uma potência militar e industrial tornaria esse país
uma imensa plataforma de divulgação do modelo de desenvolvimento russo. Tal
fenômeno melhoraria a imagem da União Soviética diante do Terceiro Mundo e
poderia proporcionar alianças com outros governos nacionalistas não-alinhados.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
68 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
A percepção dos estrategistas soviéticos dessas
potencialidades significou,
na prática, uma atenção especial, assim como certa tolerância com eventuais
divergências entre Moscou e o Cairo.
A transformação das Forças Armadas egípcias em uma potência militar
regional era um objetivo declarado dos Oficiais Livres desde sua ascensão ao
poder. Assim, o mercado de armas soviético serviu, a partir de 1955, aos propósitos
imediatos voltados para o incremento do potencial militar do país. De fato, o Egito
tornou-se o principal comprador de material militar russo fora do bloco soviético,
o que exprime algo sobre a importância dada ao Egito pela política soviética para
o Terceiro Mundo (ver Tabelas 1 e 2). Segundo Henry Laurens (2007), somente
a Índia possuía números comparáveis aos do Egito em termos de ajuda militar
soviética.
Tabela 1. A venda de armamentos da União Soviética para o Terceiro Mundo,
Oriente Médio e Egito entre 1954 e 1966 (em milhões de dólares)
1955-1959 1960-1966
Total de armas exportadas pela URSS para o Terceiro Mundo 777 3.115
Para o Oriente Médio 546 987
Para o Egito 223 536
Total do valor em armas importadas pelo Egito 3.185 556
Fonte: Dawisha, 1979.
Tabela 2. Valor gasto pelo Egito na compra de armamentos junto
a todo o bloco socialista (ano/valor em milhões de dólares)
1955 336
1956-57 170
1963 500
1965 310
No que diz respeito à ajuda econômica soviética (e do bloco socialista), essa
teve início em 1958 após a assinatura de entre os dois países em 1957. Na ocasião,
a União Soviética havia oferecido 700 milhões de rublos em empréstimos com
baixos juros para financiar o primeiro plano trienal de industrialização egípcia
(1957-1960). Os créditos seriam usados para importar equipamentos e contratar
técnicos soviéticos (MABRO, 1975).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
69Pedro Rocha Fleury Curado
Os termos dos acordos de cooperação econômica propostos pela União
Soviética datam de 1958 e eram uniformes de maneira geral. Créditos eram cobertos
em rublos a fim de serem pagos com 2.5% de juros em um período de dez a vinte
anos. A União Soviética ainda se comprometia a comprar 50% da produção de
algodão a
preços acima do mercado, como forma de pagamento (MABRO, 1975).
O segundo acordo
ocorreu em dezembro 1958 e estava relacionado ao financiamento
da primeira etapa de construção da barragem de Assuã (cerca de 400 milhões
de rublos). Em agosto de 1960, um novo empréstimo para o financiamento da
segunda etapa de construção da barragem foi acordado, dessa vez no valor de
900 milhões de rublos. Os valores dos empréstimos nos anos seguintes foram
enquadrados no primeiro e segundo Planos Quinquenais (1960-1965 e 1965-1970)
e expressavam o progressivo engajamento soviético no financiamento dos
programas de industrialização egípcios (ver Tabela 3).
Tabela 3. Ajuda econômica soviética ao Egito (em milhões de dólares)
Ano
Estimativa de montante cumulativo da ajuda
soviética desde 1954 até o ano em questão
Acréscimo anual
1961 681 -
1962 711 30
1963 765 54
1964 1.282 517
1965 1.408 126
1966 1.415 7
1967 1.535 120
Fonte: Mabro, 1975.
Não havia oferta de cooperação do lado ocidental que se aproximasse dos
termos vantajosos oferecidos pelos soviéticos. O Banco Mundial, por exemplo,
era na maior parte do tempo reticente em realizar empréstimos ao setor público
dos países “subdesenvolvidos” (WATERBURY, 1983; HANSEN, 1991). Nos termos
dos acordos para créditos oferecidos pelos soviéticos, esses se comprometiam a
avaliar o custo dos projetos, a expedição de equipamentos, os salários dos técnicos
soviéticos e as despesas com suas viagens. O Egito era obrigado a cobrir todos
os gastos dos técnicos soviéticos enquanto esses estivessem operando em solo
egípcio, assim como estava comprometido em prover a eles materiais e adequadas
condições de trabalho. A União Soviética também permitia a opção de estabelecer
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
70 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
subcontratos para projetos de desenvolvimento econômico com outros países do
Leste Europeu (DAWISHA, 1979).
Pela perspectiva soviética, era mais vantajoso apoiar os programas de
desenvolvimento domésticos do Terceiro Mundo com financiamentos em projetos
específicos do que adotar amplos programas de ajuda, existindo para tanto três
razões centrais: 1) projetos específicos eram funcionais para fins de propaganda;
2) eram práticos para fins logísticos e organizacionais, dado ser mais fácil estimar
os fundos necessários quando esses obedecem a projetos específicos, o mesmo
valendo para o planejamento do número de técnicos a serem empregados; 3) o
apoio a projetos específicos estimulava o desenvolvimento do setor estatal no país
receptor, o que era em si um objetivo dos soviéticos (DAWISHA, 1979).
É importante ressaltar o papel dos programas de cooperação soviética na
cobertura dos gastos empreendidos durante o esforço de industrialização egípcia.
Entre 1955 e 1967, a
União Soviética contribuiu com cerca de 826 milhões de
dólares em ajuda não militar.
Já os demais países do bloco soviético contribuíram
com mais 709 milhões de dólares no mesmo período (MABRO, 1974, 1975; FERRIS,
2011). Mais da metade da ajuda soviética não militar foi direcionada às duas fases
de construção da barragem de Assuã (ver Tabela 4).
Tabela 4. Créditos soviéticos ao Egito, 1955-1964
Data
Valor
(em milhões
de dólares)
Razão
Taxa de
juros
Prazo para
o pagamento
Janeiro de 1958 175 Plano trienal (1958-1960) 2.5% 12 anos
Dezembro de 1958 100 Primeira fase de Assuã 2.5% 12 anos
Agosto de 1960 225 Segunda fase de Assuã 2.5% 12 anos
Junho de 1963 44 Plano quinquenal 2.5% 12 anos
Maio de 1964 282 Plano quinquenal 2.5% 12 anos
Fonte: Ferris, 2011.
A barragem de Assuã foi o principal projeto isolado do qual participaram
os soviéticos. Em 1958, isto é, dois anos após o abandono da participação
estadunidense das negociações para a viabilização da construção da represa de
Assuã, os soviéticos lograram fechar um acordo com as autoridades egípcias para
participarem da execução do projeto. Durante o processo de implementação,
mais de 300 fábricas soviéticas participaram da manufatura de cerca de 500.000
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
71Pedro Rocha Fleury Curado
toneladas de equipamentos utilizados durante a construção da represa (DAWISHA,
1979). Assim, os soviéticos proviam a expertise técnica e os equipamentos, mas
não apenas isso: o projeto teria 27,8% do seu custo total pago pela União Soviética
(ver Tabela 5).
Em 1964, durante o período em que Khrushchev realizou uma visita de
dezesseis dias ao Egito para a inauguração da barragem de Assuã, a política
soviética para o Egito era percebida por Moscou de maneira indubitavelmente
satisfatória: a antes total influência ocidental sobre o Oriente Médio havia sido
neutralizada e a política soviética havia progredido por etapas sucessivas. Isso
contribuiu para que Khrushchev julgasse também de maneira positiva sua ampla
política de apoio aos governos nacionalistas do Terceiro Mundo.
Tabela 5. Contribuição financeira soviética para a construção da barragem de Assuã
(em milhões de dólares)
Custo total Parcela soviética Porcentagem soviética
Primeira etapa 614 100 16.2
Segunda etapa 515 225 40.8
Total 1.165 325 27.8
Fonte: Dawisha, 1979.
Em função do Egito pós-1957 e da união Soviética serem economias planificadas,
tornou-se possível negociar o preço e o volume dos produtos a serem trocados
sem maiores dificuldades. Existia entre os dois a prática de favorecer o Egito nos
acordos comerciais, posto que o preço das mercadorias por esse exportadas eram
fixadas a um valor acima do mercado (MABRO, 1975).
Em particular, destacava-
se o preço do arroz e do algodão egípcios exportados para a União Soviética. Tais
produtos serviam como forma de pagamento aos empréstimos acordados entre
os dois países e eram não raramente fixados a um preço acima do mercado em
40% e 20%, respectivamente (DAWISHA, 1979).
Para além da vantajosa relação comercial e financeira, os soviéticos estabeleceram
também significativos acordos de cooperação na esfera educacional, com especial
ênfase em formação técnica, visando a ocupação de funções administrativas
específicas. Como observa Dawisha,
A construção de centros técnicos produziu impacto imediato no sistema
educacional egípcio. Entre 1956 e 1975, a União Soviética contribuiu para a
construção e equipamento de 43 centros de formação técnica, responsáveis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
72 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
pela graduação de 85.000 egípcios. A ênfase nos centros técnicos orientava-
se para a provisão de técnicas vocacionais básicas, mas também tinham
relação com o crescimento do nível médio de alfabetização e com o ensino
de habilidades gerenciais. (DAWISHA, 1979, p. 195. Tradução nossa)
9
.
Um fator externo contribuiu ainda para que a União Soviética ampliasse seu
engajamento na promoção do desenvolvimento no Terceiro Mundo. No início da
década de 1960, os soviéticos foram constrangidos a fazer avançar rapidamente
seu programa de ajuda externa a governos não-alinhados, por acreditar existir
uma concorrência “entre comunistas” advinda da China popular. Essa, após a
ruptura das relações com a União Soviética
10
, passou a acusá-la abertamente de
ser um Estado tão imperialista como seriam os Estados Unidos e de fazer uso de
teses revisionistas para legitimar internamente uma política externa apoiada na
coexistência pacífica” com o bloco ocidental (KAMISKY; KRUK, 1988). No lado
soviético, o efeito produzido pela competição “entre comunistas” foi
a impulsão
de uma política de demarcação de suas zonas de influência no Terceiro
Mundo,
ampliando o volume de ofertas para manutenção de relações privilegiadas com
certos Estados chave para sua estratégia de projeção geopolítica.
O Egito, diante desse novo contexto no qual as opções de barganha se
estendiam também dentro da própria fricção do bloco comunista
11
,
fortaleceu sua
condição de objeto prioritário da política assistencialista soviética. A despeito das
tensões existentes por conta de posicionamentos divergentes no tabuleiro regional,
Egito e União Soviética mantiveram relações estreitas e significativamente mais
estáveis que as relações entre egípcios e norte-americanos durante o período aqui
analisado. Com a derrota na Guerra dos Seis Dias (1967), o Egito perdeu parte
importante de sua frota aérea e, mais grave, passou a ter parte de seu território
— o Sinai — ocupado. Em outras palavras, a guerra reduziu consideravelmente
a capacidade de o governo Nasser continuar a agir como um ator decisivo no
9 The construction of technical centers had the most immediate effect on the educational system in Egypt. Between
1956 and 1975, the Soviet Union helped to build and equip 43 such centers from which over 85.000 Egyptians
have graduated. Emphasis in the centers has been on providing basic vocational skills but has also dealt with
raising standards of literacy and with providing management skills.
10 Após anos de crescentes tensões diplomáticas, a ruptura das relações entre Egito e Estados Unidos ocorreu
formalmente em 1963.
11 Embora Nasser tenha obtido certo volume em ajuda alimentar da China, especialmente após a suspensão da
PL 480 pelos Estados Unidos em 1965, o fato é que, como bem aponta Dawisha (1979), o governo de Mao
não possuía meios nem econômicos nem militares de fazer concorrência com a União Soviética por zonas de
influência comunistas no Terceiro Mundo.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
73Pedro Rocha Fleury Curado
Oriente Médio, seja na condição de liderança árabe, seja na função de agente
dinamizador das tensões da Guerra Fria que envolviam a região (LAURENS, 1991;
OREN, 2002). O resultado foi a impossibilidade de manutenção de uma política
externa capaz de instrumentar o peso geopolítico do país para negociar apoios
com os dois lados da Guerra Fria. Efetivamente, a partir de então e durante os
anos seguintes, o Egito reduziria enormemente o caráter autônomo de sua política
externa para se tornar mais vulnerável e dependente do suporte exclusivo do
bloco soviético. Segundo o próprio Gamal Nasser, as circunstâncias haviam feito
do não-alinhamento uma impossibilidade factual (HEIKAL, 1972, 1986; FERRIS,
2013; DAWISHA, 1976).
Considerações finais
Ao compararmos a cooperação internacional entre Egito, Estados Unidos e
União Soviética, foi preciso considerar representado pelo governo Nasser para
cada uma das superpotências em termos regionais e globais, dado o contexto da
Guerra Fria. Assim, a maior propensão do lado soviético em arcar com os custos
de programas de ajuda externa vantajosos ao Egito ocorria justamente em função
desse país possuir elevada importância na estratégia soviética de projeção de
seu poder estatal no globo. Tal percepção da importância egípcia não ocorria, ao
menos na mesma escala, do lado das prioridades definidas pelos Estados Unidos.
No caso, após um período de inicial desinteresse em atender as demandas do
governo dos Oficiais Livres, os EUA acabaram pressionados a redefinir e valorizar
uma janela de negociação aberta com o Egito. Tal revisão somente foi possível
após o Egito “convidar” a União Soviética para contribuir com seus programas
de obtenção de armamentos e desenvolvimento econômico. Do ponto de vista
norte-americano, embora o Egito mantivesse um papel central na elaboração
da estratégia estadunidense para o Oriente Médio durante o período 1955-1967,
seu peso era contrabalançado pela existência de outros aliados regionais, como
a Arábia Saudita e, num momento posterior, Israel.
No caso soviético, o
apoio
regional existente para além do governo Nasser, como o ocorrido temporariamente
na Síria e no Iraque, era mais fluido e instável.
Na política soviética, a condescendência com o elevado grau de autonomia dos
movimentos nacionalistas não-alinhados, tal como expresso na relação especial
desenvolvida com o Egito, representava algo mais profundo, como uma revisão
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
74 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
das próprias teorias que até então orientavam a política externa daquele país.
Buscando usar o exemplo de sua relação com o Egito para projetar sua influência
sobre novos governos, os instrumentos de propaganda soviética reforçaram a
percepção de ser o Egito de Gamal Nasser um modelo de sucesso para os países
do Terceiro Mundo, garantido graças aos financiamentos e à expertise técnica
soviética. A Guerra dos Seis Dias em 1967 e a subsequente reordenação da
correlação de forças entre os Estados árabes esvaziaram a capacidade egípcia de
agir regionalmente para manter-se em equilíbrio em relação ao jogo de forças
dos interesses regionais de Estados Unidos e União Soviética. O resultado dessa
transformação no tabuleiro geopolítico da região foi o fim das condições materiais
que permitiram ao Egito utilizar o não-alinhamento como instrumento eficaz
para viabilizar financiamentos, peças e técnicos para seus principais programa
internos de desenvolvimento.
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76 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
Expectativas promissoras:
comércio e perspectivas de cooperação bilateral
nas relações Brasil–União Soviética (1964-1967)
Promising Expectations:
trade and perspectives of bilateral cooperation
between Brazil and the Soviet Union (1964-1967)
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.773
Gianfranco Caterina
1
Resumo
Este artigo busca compreender a dinâmica das relações entre Brasil e União Soviética logo
após o golpe civil-militar de 1964. Apesar da retórica anticomunista, das arbitrariedades e
perseguições a elementos considerados subversivos e comunistas brasileiros, o regime que
se instalou após a tomada de poder em abril de 1964 permanecia interessado na manutenção
de boas relações com a superpotência euroasiática. Argumenta-se que o comércio teve
papel relevante nesse período, levando à busca por uma institucionalização das relações
interestatais, visando a retomada das conversações acerca de assistência soviética a grandes
projetos de infraestrutura no país. Dentro dessa chave de entendimento, a URSS poderia
desempenhar um papel relevante na industrialização do Brasil. Em 1967, o Brasil retomava
o posto de principal parceiro comercial da URSS na América Latina (excetuando-se Cuba).
No entanto, as cifras eram inferiores em comparação às trocas no biênio 1962-63. Este artigo
busca evidenciar como esforços de reaproximação foram importantes para moldar ações de
cooperação econômica e estratégica posteriores entre os dois países.
Palavras-chave: Política Externa Brasileira; União Soviética; Regime Militar; Cooperação
Econômica.
1 Doutorando em História, Política e Bens Culturais no CPDOC/FGV no Rio de Janeiro. É mestre em História Social
pela PUC-SP (2012) e especialista em Economia pela EESP-FGV (2014). Em 2016, foi pesquisador visitante na
George Washington University em Washington, DC.
Artigo submetido em 06/03/2018 e aprovado em 06/09/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
77Gianfranco Caterina
Abstract
This article assesses the relationship between the governments of Brazil and the Soviet
Union after the 1964 civil-military coup. Despite the anti-Communist rhetoric, arbitrariness
and persecutions of so-called subversive elements and Brazilian communists, the regime
that gained power in April 1964 was still interested in maintaining good relations with
the USSR. We argue that trade played an important role during this period; it fostered an
institutionalization of inter-state relations, which in turn led to the resumption of conversations
about Soviet assistance for big infrastructure projects in Brazil. Within this framework,
the USSR would be able to play a relevant role in Brazil’s industrialization. In 1967, Brazil
regained the position of the most important Soviet trade partner in Latin America (except
for Cuba). However, the figures were still smaller than those for bilateral trade in 1962-63.
This paper seeks to explain how rapprochement efforts were important for promoting later
strategic and economic cooperation between the two countries.
Keywords: Brazilian Foreign Policy; Soviet Union; Military Regime; Economic Cooperation.
Introdução
2
A normalização das relações diplomáticas entre Brasil e União Soviética,
iniciada ao final da Segunda Guerra Mundial, durou apenas dois anos e meio.
Em outubro de 1947, o governo Dutra rompeu relações com a URSS, gerando um
distanciamento que perdurou por algum tempo. Seria somente em dezembro de
1959 que o presidente Kubitschek enviaria uma missão a Moscou para a assinatura
de um acordo comercial bilateral. Em 1961, aconteceria a abertura de respectivos
escritórios comerciais e o reestabelecimento de relações diplomáticas entre os
dois países (VOLCHEK, 1985).
Sabe-se, no entanto, que uma das justificativas oficiais para a intervenção
militar em 1964 foi o temor, de parte das elites civil e militar do País, que o Brasil
enveredasse para uma trajetória de cunho socialista. Esses grupos nutriam também
uma enorme desconfiança do presidente João Goulart. Com isso em mente, este
artigo buscará responder à seguinte pergunta: como os esforços de reaproximação
entre o Brasil e a URSS, após o golpe civil-militar de 1964, foram importantes para
modelar ações de cooperação econômica bilateral que ocorreriam posteriormente?
O primeiro passo para responder a essa questão de forma satisfatória é uma
discussão bibliográfica bem fundamentada. É consenso na literatura sublinhar a
2 Agradeço ao professor Alexandre Moreli por seus comentários e sugestões.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
78 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
singularidade das relações diplomáticas entre Brasil e União Soviética logo após
o golpe civil-militar de 1964. Vizentini argumenta que a retórica típica da Guerra
Fria e das fronteiras ideológicas “não correspondeu plenamente à prática” nas
interações com a superpotência euroasiática. Segundo ele, a manutenção de laços
diplomáticos plenos com a URSS e com os países de seu bloco derivavam de
“necessidades comerciais”, além do fato de que a atuação internacional soviética
se pautava por uma “diplomacia tradicional e legalista, e não revolucionária como
a de Cuba e da China” (VIZENTINI, 1998, p. 61).
Essa tendência se acentuaria ao longo dos anos de 1960. A União Soviética,
após o cisma com a República Popular da China e dificuldades em sua parceria com
Cuba, estava mais interessada na manutenção do status quo global e preocupada
com sua própria conjuntura doméstica do que com a difusão revolucionária do
comunismo, especialmente após a ascensão de Leonid Brejnev como secretário-
geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em outubro de 1964. Daí se
deduz uma das razões que indicam por que o Brasil rompeu relações diplomáticas
com Cuba logo após o golpe de 1964, mas não o fez com a URSS — além dos
conhecidos interesses comerciais e econômicos envolvidos
3
.
De forma análoga a Vizentini, Cervo situa as relações brasileiro-soviéticas
dentro de um “universalismo inevitável” durante o governo Castello Branco. Ele
sublinha que o governo brasileiro tinha a “intenção” de que as relações “puramente
comerciais” passassem ao estágio de relações econômicas, nas quais “se agregassem
componentes de desenvolvimento, como importação de máquinas, equipamentos e
tecnologias” (CERVO; BUENO, 2008, p. 377-379). Ou seja, a superpotência socialista
poderia exercer um papel relevante no esforço de industrialização do Brasil.
Argumentamos, dessa forma, que a manutenção das relações bilaterais procede
desses três pontos: o fato de o anticomunismo da cúpula militar brasileira estar
concentrado em Cuba e não na URSS, mudanças domésticas importantes em
curso na superpotência socialista, e a possibilidade de a mesma exercer um papel
importante na industrialização do Brasil. Assim, o interesse brasileiro iria além da
mera expansão comercial apontada por outros dois autores como fator principal
de aglutinação entre os dois países (SILVA, 2014; BARRETO FILHO, 2006). André
Reis da Silva destaca que os contatos comerciais “aumentaram”, e concorda com
3 Sobre Cuba deve-se mencionar também a pressão que o governo estadunidense vinha realizando em outros países
da região desde a expulsão do país caribenho da OEA. Além disso, o Brasil tinha uma série de compromissos
econômicos com credores daquele país que precisavam ser urgentemente equacionados. O gesto político da
ruptura com Cuba sublinharia a mudança de comando e o engajamento do novo governo brasileiro em reformas
econômicas visando restaurar sua credibilidade no sistema financeiro internacional.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
79Gianfranco Caterina
Vizentini e Cervo que, em relação à URSS, o discurso calcado na Guerra Fria “não
correspondeu à prática” (SILVA, 2014, p. 41).
O objetivo deste artigo é, portanto, investigar como essas interações entre os
governos do Brasil e da URSS, durante a primeira administração do regime militar,
foram importantes para a institucionalização das relações interestatais, visando
a retomada das conversações acerca de assistência soviética a grandes projetos
de infraestrutura no país. Cervo lembra que foram restabelecidos contatos por
delegações bilaterais e reunida, pela primeira vez, a Comissão Mista Bilateral
prevista no Acordo de Comércio e Pagamentos de 1963 (CERVO; BUENO, 2008).
As delegações brasileiras que estiveram na URSS nesse período buscaram manter
vivo o interesse soviético em participar de empreendimentos no ramo energético
no Brasil. Em relação ao comércio, no final de 1967, o país retomava o posto de
principal parceiro comercial da URSS na América Latina (excetuando-se Cuba).
Para realizar este estudo, concentraremos nossas atenções na análise de
fontes primárias. Serão utilizados documentos brasileiros, tanto do Arquivo
Histórico do Ministério das Relações Exteriores (AHMRE), em Brasília, como os
do acervo do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), no Rio de Janeiro. Além deles,
documentos russos obtidos no GARF (Arquivo Estatal da Federação Russa), em
Moscou, também serão empregados. Destaco que eventuais erros na tradução
desses registros do idioma russo são de minha inteira responsabilidade.
O texto está estruturado em quatro itens. O primeiro apresenta as preocupações
anticomunistas do novo governo brasileiro logo após tomar o poder em abril
de 1964. Em seguida, trata das iniciativas de reaproximação diplomáticas entre
Brasil e URSS iniciadas poucos meses depois. O terceiro analisa, em detalhes, as
visitas à URSS das comitivas lideradas por ministros brasileiros em 1965 e 1967.
Além disso, comenta a vinda do ministro do Comércio Exterior da URSS ao Brasil
em 1966 e outras iniciativas e interações diplomáticas entre os dois países. Por
último, expõem-se as conclusões e as perspectivas para as relações bilaterais nos
anos subsequentes.
Golpe civil-militar, anticomunismo e relações bilaterais
Com o golpe civil-militar sendo deflagrado no Brasil em 1º de abril de 1964,
num cenário doméstico ainda indefinido, o embaixador do Brasil em Moscou,
Henrique Rodrigues Valle, enviava uma correspondência detalhada sobre os
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
80 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
“objetivos econômicos” do governo brasileiro na União Soviética. Dividia-os em
três setores: comercial, financeiro e técnico-científico. Valle projetava um comércio
bilateral que atingiria US$ 500 milhões de parte a parte em 1970. Tal volume
possibilitaria “transações financeiras para o desenvolvimento econômico do Brasil”.
Sobre o terceiro item, o embaixador afirmava que, de acordo com as mesmas
projeções, seria possível financiar uma ampla assistência técnica soviética, mas
que, na “maioria das vezes”, essa estaria vinculada à “aquisição de equipamentos”.
Por fim, ele solicitava ao Itamaraty mais recursos financeiros e humanos a fim
de “concretizar as excelentes promessas econômicas do posto” (AHMRE, 1964a).
Ao mesmo tempo, a radicalização político-ideológica apontava para um
desfecho no Brasil. O presidente João Goulart saiu do Rio a Brasília e depois
a Porto Alegre numa última tentativa de organizar alguma resistência com o
ex-governador Leonel Brizola. No entanto, o presidente do Senado já havia
declarado vaga a presidência da República antes mesmo de Goulart exilar-se
no Uruguai. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumia
interinamente o cargo. Ao mesmo tempo, uma junta de militares de alta patente
das três Armas assumia o poder de facto por duas semanas. Após a decretação do
Ato Institucional, o marechal Castello Branco assumia o poder no dia 15 de abril,
eleito indiretamente por um Congresso Nacional desfigurado pelo AI-1.
Nesse cenário interno radicalizado pelo anticomunismo, seria natural que os
representantes soviéticos no país se inquietassem. Em Moscou, Valle foi convocado
para uma reunião pelo ministro interino das Relações Exteriores. A Embaixada
da URSS no Rio afirmava em correspondência ao governo soviético que esperava
que as autoridades brasileiras agissem de acordo com princípios fundamentais do
Direito Internacional, de forma a tomar as providências necessárias para garantir
a segurança da Embaixada, bem como de seu pessoal, e dos cidadãos soviéticos
que se encontravam no Brasil (AHMRE, 1964b).
Ainda durante o governo provisório de Mazzilli, assumia a chancelaria
o ex-embaixador em Moscou e Havana, Vasco Leitão da Cunha. Ele seria
mantido após a ascensão de Castello ao poder. Nas semanas seguintes, Cunha
confrontar-se-ia com diversas denúncias de espionagem, favorecimento e
financiamento de “atividades subversivas” por cidadãos estrangeiros no país. No
dia 6 de abril, por exemplo, o embaixador do Brasil no México, Manuel Pio Corrêa
Junior, escreveu uma carta pessoal ao chanceler acusando o governo cubano de
conceder apoio financeiro a Leonel Brizola e seus apoiadores; afirmando inclusive
que a primeira parcela dessas subvenções chegou a ser paga (CPDOC-FGV, 1964a).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
81Gianfranco Caterina
Esse clima de perseguição e anticomunismo minaram as relações diplomáticas
entre o Brasil e o bloco soviético durante o primeiro semestre de 1964. Já no início
de julho, entretanto, o presidente brasileiro enviou uma mensagem pessoal a
Nikita Khrushchev afirmando que o país tinha interesse no incremento comercial
com a URSS (VIZENTINI, 1998). Na busca por restaurar alguma confiança,
Castello procurava justificar a necessidade da intervenção dos militares na política
nacional e, ao mesmo tempo, moderar a maré anticomunista. Para o presidente,
as relações com os países do Leste Europeu deveriam ser “mantidas e, em certos
terrenos, ampliadas”. Segundo ele, o comércio entre o Brasil e os países do bloco
soviético poderia ser “mutuamente proveitoso: estamos prontos a aumentar
nossas trocas, desde que elas não sejam veículo de influências inaceitáveis”
(MRE, 1966 ). Os instrumentos legais necessários para que isso ocorresse na
prática já existiam. O Acordo de Comércio e Pagamentos assinado entre os dois
países em 1963 — o qual também previa reuniões regulares no âmbito de uma
Comissão Mista bilateral — estava em vigência. Desde o reatamento em 1961, as
trocas comerciais cresciam de maneira significativa e sempre com saldo positivo
para o Brasil — apesar de o volume total ainda ser pequeno quando comparado
aos parceiros tradicionais (MILLER, 1989).
Restaurando a confiança pelo comércio
Ao fazer um balanço dos principais pontos do mês de maio, a Embaixada em
Moscou comentava sobre como fora retratada na imprensa soviética a tomada de
poder pelos militares no Brasil. Afirmava que, embora considerada pela grande
maioria um “golpe reacionário”, as críticas eram em “termos ponderados” apesar
de “inúmeros exageros e erros de informação” (AHMRE, 1964c).
No início de agosto, o presidente do Conselho do Soviete Supremo, Anastas
Mikoyan, acusou o recebimento de carta enviada por Castello Branco. Segundo
a Embaixada em Moscou, a comunicação avisava a respeito de o presidente
haver “tomado posse no cargo” (AHMRE, 1964d). No final de julho, o Congresso
Nacional, por meio da Emenda Constitucional nº 9, prorrogava o mandato do
presidente até 15 de março de 1967. Havia, portanto, uma indicação ao governo
soviético de que o novo governo brasileiro estava se consolidando no poder e que
Castello não exerceria apenas um mandato “tampão”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
82 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
Algumas semanas depois, o governo brasileiro fazia novo esforço para
reforçar às missões diplomáticas do Leste Europeu que a diminuição do comércio
com o bloco soviético era algo conjuntural, e não resultado de qualquer tipo de
discriminação ideológica. Em comunicação a Moscou, o Itamaraty argumentava
que a diminuição havida nas trocas era fruto de “inevitáveis reajustamentos”
ocorridos no país após a tomada de poder pelos militares. Dizia ainda que, apesar
das dificuldades momentâneas, considerava o quadro de comércio com o Leste
Europeu “promissor” (AHMRE, 1964e).
De acordo com Rupprecht (2011) havia um desejo, de ambas as partes, de
manter relações diplomáticas amistosas. No começo de setembro, Mikoyan enviou
um telegrama a Castello Branco desejando “felicitações” por motivo do aniversário
da independência do Brasil. O político soviético expressava a “esperança” de que
as relações bilaterais se desenvolvessem no interesse dos povos de ambos os países
(AHMRE, 1964f). Da mesma forma, no dia 7 de setembro de 1964, o Izvestia publicou
um artigo congratulando o Brasil pelo aniversário de independência e desejando
o “fortalecimento de relações amigáveis entre os dois países” (AHMRE, 1964g).
Uma semana depois, o embaixador Valle escreveu uma carta pessoal ao
chanceler mostrando-se “muito bem impressionado” com os “inúmeros contatos”
que estava mantendo com as autoridades do governo soviético. Disse que manteve
conversas com o embaixador da URSS no Brasil, Andrei Fomin — que se encontrava
na capital soviética — bem como com funcionários do Departamento de América
Latina do Ministério de Negócios Estrangeiros da URSS. Afirmou ainda que teve
uma longa entrevista com o ministro do Exterior, Andrei Gromyko, e com seu vice,
Vassily Kuznetsov. Notou que todos se mostraram “visivelmente interessados”
na manutenção de boas relações bilaterais — inclusive não se limitando apenas
a conversas sobre as possibilidades de comércio (CPDOC-FGV, 1964b).
No final de setembro, a Petrobras assinava um compromisso prevendo a
aquisição adicional” de 2 milhões de toneladas de petróleo da URSS para o
ano seguinte (AHMRE, 1964h). Descontada certa dose de cortesia diplomática
recíproca, as relações bilaterais estavam ganhando importância de fato — mais
pelas perspectivas futuras do que pelos dados presentes.
A mudança de tom também estava relacionada com a troca de comando em
curso na URSS. Em 14 de outubro de 1964, o Comitê Central do PCUS confirmou o
afastamento de Khrushchev, e a nomeação do novo líder, Leonid Brejnev, encerrando
uma conspiração interna que estava em marcha desde março. Duras acusações de
quadros importantes do Partido sobre a política doméstica de Khrushchev, bem
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
83Gianfranco Caterina
como decisões precipitadas no campo externo, selaram sua retirada do posto.
Brejnev não possuía experiência alguma em assuntos de política exterior. Além
da importante influência de Gromyko, deve-se pesar também, principalmente no
início de sua administração, a proeminência do primeiro-ministro Alexei Kosygin
nos assuntos externos do país — inclusive representando a URSS em diversos
encontros com líderes estrangeiros (SAVRANSKAYA; TAUBMAN, 2011).
Ao mesmo tempo, o ano de 1964 foi marcado pelo início de uma aproximação
política, econômica e cultural entre EUA e URSS. Um grupo de mais de 90
empresários estadunidenses de alto perfil foi a Moscou em novembro a fim de
verificar as possibilidades de expansão das relações econômico-comerciais entre
os dois países (AHMRE, 1964i). A comitiva estadunidense foi recebida pela alta
cúpula do PCUS. De Moscou, Valle falava em uma “radical mudança na filosofia
e na pragmática socialista”. A longo prazo, afirmava que a mudança poderia ser
ainda “mais radical” em comparação aos parâmetros que regiam as relações entre
os mundos capitalista e socialista (AHMRE, 1964i).
Preparando o terreno para novas parcerias
No início de abril de 1965, o embaixador Valle esteve com o premiê Kosygin.
Este, segundo o diplomata brasileiro, enfatizou a importância do desenvolvimento
das relações bilaterais em “todos os setores” e que não haveria “limites à
melhoria das relações entre os dois países”. Assinalou o “substancial progresso”
no intercâmbio comercial — mesmo afirmando em seguida que as relações
econômicas ainda estariam “bastante aquém” das “possibilidades reais”. Voltou
a dizer que a URSS tinha “grande interesse” no aumento das trocas comerciais
com o Brasil e solicitou que suas opiniões fossem transmitidas diretamente ao
presidente Castello Branco (AHMRE, 1965a).
Estavam firmadas as bases, portanto, para um encontro de alto nível. Isso
se concretizaria em setembro com uma visita do civil mais influente do governo
à URSS, o ministro do Planejamento Roberto Campos. Antes de sua partida, no
entanto, o chefe de gabinete do chanceler Cunha, Mozart Gurgel Valente, enviou
algumas “respostas aconselháveis” a três perguntas que considerava “previsíveis”
dos interlocutores soviéticos. A primeira era uma negação à possibilidade de
instalação de um Consulado da URSS em São Paulo. De acordo com Valente, o
governo brasileiro não via “utilidade prática”, mas se houvesse “incremento do
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
84 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
comércio” poderia reavaliar o assunto. O segundo ponto dizia respeito à instalação
de um Escritório Comercial da URSS em São Paulo. Esse estaria autorizado desde
que “a conclusão de um acordo de cooperação econômica” viesse a “criar a
expectativa de um incremento do intercâmbio”. O último dizia respeito à aquisição
de uma casa pelo governo soviético para ser a nova sede da representação soviética
no Rio de Janeiro. O governo brasileiro afirmava aguardar a “conclusão dos estudos
jurídicos” para se manifestar sobre o assunto. (AHMRE, 1965b). Nas três respostas,
o mesmo dilema para a administração brasileira: os possíveis ganhos no campo
econômico-comercial compensariam potenciais ameaças à segurança nacional?
Ainda antes da viagem, em agosto, uma reunião no âmbito do Conselho
de Segurança Nacional foi convocada para discutir aspectos gerais da viagem
do ministro à União Soviética. Nesse encontro, o próprio Campos colocou-se
favoravelmente à possibilidade de financiamento soviético a obras de infraestrutura
no país; citou particularmente uma planta piloto de xisto betuminoso e o projeto da
usina hidrelétrica de Ilha Solteira no Estado de São Paulo. Apesar de o presidente
também ser favorável, a maioria dos integrantes do CSN se mostrou contrária a
essa empreitada — principalmente a cúpula militar. As razões eram conhecidas:
possibilidade de infiltração comunista e/ou deterioração das relações com o
governo estadunidense (CSN, 1965).
Mesmo assim, durante a primeira quinzena de setembro de 1965, uma
comitiva liderada por Campos esteve por 12 dias na URSS. A delegação esteve
em Moscou, Leningrado (São Petersburgo), Volgogrado (ex-Stalingrado), Tallinn
e Bratsk — cidade siberiana que abrigava a então maior usina hidrelétrica do
mundo. Na Estônia, o interesse estava na visita a uma planta de exploração de
xisto betuminoso; já em Volgogrado, em conhecer uma grande siderúrgica e outra
importante usina hidrelétrica no rio Volga (CAMPOS, 2004).
O ministro propunha que a melhor maneira de assegurar uma “corrente de
exportação de equipamentos” seria que a União Soviética financiasse a execução
de projetos. Entretanto, apresentava, da mesma forma, dificuldades a serem
equacionadas, se o governo soviético desejasse operar esses financiamentos
de cooperação econômica como havia feito, por exemplo, nos casos do Egito e
da Índia (AHMRE, 1966m). Isso porque, segundo Campos, havia empreiteiros
brasileiros capacitados, alguns até com capacidade ociosa em maquinaria, para a
realização desse tipo de projeto. Assim, seria impossível entregar aos soviéticos
a “responsabilidade total” dessas empreitadas. Pelo mesmo motivo, a assistência
técnica necessária poderia ser mais limitada (AHMRE, 1965c).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
85Gianfranco Caterina
O governo brasileiro dava preferência a ter um “crédito global” junto ao
governo soviético que seria empregado em projetos analisados posteriormente
no âmbito da Comissão Mista bilateral; evitando um compromisso imediato por
parte da comitiva brasileira com uma “lista de projetos” já previamente elaborada
por sua contraparte soviética (AHMRE, 1965c).
De acordo com o ministro, a reação dos representantes comunistas foi “bastante
negativa”. Queixaram-se de que havia realmente “grande interesse” em alguns
projetos, mas mostraram decepção em relação à falta de uma disposição clara
por parte do governo brasileiro em indicá-los. Relembraram tentativas anteriores
infrutíferas causadas por imaturidade do projeto ou oposição governamental
(AHMRE, 1965c). Referiam-se ao contrato assinado em 1960 entre a organização
de comércio exterior soviética Tiajpromexport e a empresa brasileira Companhia
Industrial de Rochas Betuminosas (CIRB) (AHMRE, 1965d) para a exploração do
xisto, e conversações a respeito de Sete Quedas (AHMRE, 1964j).
Ainda segundo Campos, o governo soviético tinha “enorme interesse” em
prestar assistência técnica ao Brasil e em iniciar conversações imediatamente
sobre projetos específicos de interesse comum. Nutriam simpatia, por exemplo,
pelo projeto da usina de Ilha Solteira,
em SP, estimando-o em cerca de US$ 160
milhões — entre matérias-primas e maquinaria importada. No entanto, para
o Brasil, de acordo com o ministro, o adiamento de indicações sobre projetos
específicos poderia ser benéfico: daria tempo para o Conselho de Segurança
Nacional deliberar sobre a questão do xisto betuminoso (AHMRE, 1966a) e
proporcionaria uma melhor certificação das condições técnicas (visitas a usinas
hidrelétricas e fábricas de equipamento soviéticas) por parte do responsável do
lado brasileiro (AHMRE, 1965c).
Dessa forma, a viagem de Campos serviu para abrir as “portas para a
cooperação econômica com o campo soviético”, já que, dois meses depois, o
ministro-conselheiro Nogueira Porto iria a Moscou para a Reunião da Comissão
Mista prometendo envolver os empresários paulistas nas trocas comerciais com a
URSS (VIZENTINI, 1998, p. 63-64). Poucas semanas antes da chegada de Campos
a Moscou, Valle, em reunião com Kuznetsov, já havia afirmado que representantes
de muitas empresas brasileiras estavam interessados em visitar a URSS, num
futuro próximo, a fim de estabelecer contato com suas organizações comerciais
(GARF, 1965).
O pragmatismo soviético nas relações com o Brasil era fruto de mudanças
importantes que estavam ocorrendo na URSS. De Moscou, Valle, em comunicação
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
86 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
ao Itamaraty, usava como exemplo a atuação de Kosygin, agindo pela construção
da paz entre Índia e Paquistão nas reuniões de Tashkent, como exemplo de uma
convencionalização” da diplomacia soviética. O argumento era o seguinte:
embora não abandonasse sua antiga pretensão de liderar o movimento comunista
internacional, a URSS teria de se preocupar mais com suas questões internas;
principalmente com relação às expectativas de melhoria da condição de vida da
maior parte de sua população. Tal anseio seria “bem mais forte” do que o ardor
revolucionário das gerações que fizeram a Revolução de 1917 e lutaram contra
a Alemanha nazista (AHMRE, 1966b).
Havia, de fato, mudanças importantes em andamento na economia e na
política externa soviéticas. Do ponto de vista comercial, houve uma reorientação
geográfica dos fluxos. Em 1958, a URSS comerciava com 70 países, dos quais
50 por meio de acordos bilaterais. No fim de 1964, esses números elevaram-se
respectivamente para 100 e 70. No período 1958-64, o comércio da URSS com os
países de seu bloco cresceu 68%. Já com os países desenvolvidos capitalistas,
o aumento foi de 126%. O número de países em desenvolvimento com os quais a
URSS mantinha acordos de comércio e pagamentos passou de 17, em 1958, para
40, em 1964 (AHMRE, 1966c).
Obviamente, um aumento do comércio bilateral interessava ao Brasil.
O especialista em assuntos econômicos da Embaixada em Moscou considerava o
mercado soviético “bastante promissor” para alguns produtos brasileiros (AHMRE,
1966d). O encarregado de negócios afirmava que a possibilidade de assinatura de
um protocolo para a venda financiada de máquinas e equipamentos soviéticos
ao Brasil oferecia uma oportunidade “afresh” para pensar as possibilidades
do comércio bilateral (AHMRE, 1966e e 1966f). Poucos dias depois, sugestões
de modificações a uma segunda proposta soviética foram feitas por um grupo
integrado por representantes ministeriais e de autarquias do governo brasileiro
(AHMRE, 1966g).
Com “a expectativa de um incremento do intercâmbio” realizada — lembrando
a condição estabelecida pelo chefe de gabinete do chanceler em correspondência
a Campos antes de sua viagem à URSS —, havia chegado o momento de analisar
seriamente a proposta soviética de instalar “agências comerciais soviéticas” não
somente em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro — mediante reciprocidade
(AHMRE, 1966h).
De acordo com comunicação da Secretaria Geral Adjunta para Assuntos
de Europa Oriental e Ásia, o novo chefe de gabinete do chanceler, Pio Corrêa,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
87Gianfranco Caterina
comunicou-se com o chefe do SNI, Golbery do Couto e Silva, a respeito disso
em julho de 1966. Afirmava que o Itamaraty pretendia autorizar a abertura das
representações, pois a equipe econômica do governo, ministro Campos “à frente”,
insistiram sobre a necessidade de os soviéticos agirem “junto ao setor privado
brasileiro no sentido de estimular sua capacidade de importação de produtos da
área socialista” (AHMRE, 1966h). Pio Corrêa também se comunicou diretamente
com a mesma Secretaria, afirmando seu desejo de se ter apenas dois cidadãos
soviéticos trabalhando em cada representação. Em resposta, Meira Penna temia
que tal medida pudesse desinteressar as autoridades soviéticas pela assinatura
de um protocolo para máquinas e equipamentos, e que isso implicasse no
cancelamento da própria viagem” do ministro do Comércio Exterior, Nikolai
Patolichev, ao Brasil — marcada para o mês seguinte. Ele fazia questão de
lembrar que estava “em jogo” um “financiamento da ordem de US$ 100 milhões”
e, em “última análise, todo o futuro de nossas relações comerciais com a URSS”
(AHMRE, 1966i, 1966j e 1966k).
Em agosto de 1966, o Itamaraty enviou uma nota à Embaixada soviética
concordando com a instalação da Seção de Representação Comercial em São
Paulo (AHMRE, 1966h). A decisão havia sido tomada provavelmente no final de
julho ou início de agosto. Com as exigências de segurança atendidas, o Escritório
Comercial da URSS seria finalmente aberto em janeiro de 1967, proporcionando
um acesso “direto” ao mercado paulista (AHMRE, 1966h).
Também em agosto, Patolichev chegava ao país para assinar o Protocolo para
Fornecimento de Máquinas e Equipamentos. Nele, o governo soviético concedia
um crédito de US$ 100 milhões ao Brasil para o período 1966-69. No entanto,
mesmo com tal incentivo, apesar de grandes flutuações anuais, o petróleo chegou
a responder por 90% do valor exportado da URSS ao Brasil; e liderava isolado
como principal produto soviético enviado ao país em 1966 (BLASIER, 1989).
As condições de pagamento eram atraentes. Previam juros de 4% e um prazo de
carência de dois a oito anos de amortização, após a entrega dos equipamentos.
Três meses depois, uma delegação de burocratas brasileiros esteve em Moscou
para discutir o conteúdo de listas de mercadorias entre Brasil e URSS para o triênio
1965-68, além das modalidades de financiamento em cruzeiros às pequenas e
médias indústrias (VIZENTINI, 1998).
Após essa aproximação concreta, uma proposta de cooperação científica seria
cogitada por parte do Brasil. Em uma conversa com o vice-diretor do Departamento
de Américas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Valle considerava possível
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
88 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
a assinatura de um acordo bilateral no campo da astronomia. Baseando-se em
um entendimento já existente entre URSS e Chile, o embaixador comentava a
assistência técnica fornecida ao país andino. Segundo ele, uma iniciativa desse
tipo com o Brasil seria “útil para ambas as partes” (GARF, 1966a). Pelo lado
da superpotência, a Academia de Ciências da URSS mostrou-se imediatamente
interessada e pronta para iniciar negociações visando um acordo de cooperação
científica para pesquisa astronômica com auxílio de satélites artificiais; o assunto
reapareceria posteriormente (GARF, 1966b) (AHMRE, 1969). No ano seguinte,
Valle — em conversa com um diplomata soviético — reafirmou o interesse do
governo brasileiro e de cientistas do país em estabelecer um intercâmbio regular
de informações técnicas e científicas com a URSS (GARF, 1967).
Esse tipo de aproximação tinha se tornado possível porque uma atmosfera
de distensão entre as duas superpotências estava emergindo. Quando o ministro
da Indústria e Comércio do Brasil, Paulo Egydio Martins, chegou em Moscou
chefiando uma missão comercial, em janeiro de 1967, foi avisado da disposição
do embaixador dos EUA na capital soviética em encontrá-lo. De acordo com as
memórias do ministro, Llewellyn Thompson foi vê-lo na Embaixada dizendo que
achava “fundamental estabelecer um entendimento maior com a União Soviética
através do comércio” (MARTINS, 2007, p. 300). Também na Embaixada, Valle
ofereceu um almoço que contou com a presença de diversos embaixadores
latino-americanos creditados em Moscou (AHMRE, 1967a). A comitiva brasileira
incluía 30 grandes empresários brasileiros (MARTINS, 2007).
Em Moscou, o grupo esteve com o ministro Patolichev e com o presidente
do Presidium, Nikolai Podgorny, numa reunião que integrava os empresários
brasileiros e os diversos representantes das organizações de comércio exterior
soviéticas. De acordo com Martins, por iniciativa dele, foi alocada uma cota de
açúcar brasileiro nas importações soviéticas — já que a URSS adquiria o produto
majoritariamente de Cuba. Além disso, o café solúvel estava com vendas crescentes
na URSS; fato que estimulou a ida da missão (MARTINS, 2007).
Havia uma perspectiva de aplicação imediata do Protocolo Patolichev por meio
de um projeto para construção de uma fábrica petroquímica no Brasil. O valor do
projeto era de US$ 5 milhões, o que permitiu ainda a exportação de manufaturas
brasileiras à URSS no valor de US$ 1,25 milhão (AHMRE, 1967b).
Ao final de 1967, o Brasil já retomava o posto de maior parceiro comercial
da URSS na América Latina (excetuando-se Cuba). No entanto, o volume
das trocas era menor do que em 1962-1963. Um aumento expressivo das
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
89Gianfranco Caterina
exportações à URSS se daria somente em 1972 (MILLER, 1989) no auge do chamado
“milagre econômico”. No entanto, os créditos soviéticos utilizados totalizavam
apenas US$ 4 milhões em 1969, e US$ 6 milhões em 1971 (MILLER, 1989)
(PRIZEL, 1990).
Mesmo assim, ainda no final de 1969, o Protocolo sobre Fornecimento de
Maquinaria e Equipamentos da URSS ao Brasil seria assinado — substituindo o
Protocolo Patolichev — no valor de US$ 100 milhões para o período de 1970-74.
(VIZENTINI, 1998). Finalmente, em 1970, acordos entre a Energomashexport
e CESP (Centrais Elétricas São Paulo) seriam concluídos. O entendimento
tratava do fornecimento de equipamentos e turbinas para a usina hidrelétrica
de Capivara, na divisa entre SP e PR (VIZENTINI, 1998). Elas se tornariam, em
1977, as primeiras turbinas hidroelétricas soviéticas em operação na América
Latina (MILLER, 1989). Dois anos depois, a usina hidrelétrica de Sobradinho
(BA) também entraria em operação utilizando turbinas soviéticas. O acordo para
o fornecimento dos equipamentos havia sido assinado em 1975 (PRIZEL, 1990)
(BLASIER, 1989). Eram projetos de grande porte e de importância estratégica para o
desenvolvimento do Brasil.
Apesar de mostrar-se interessada por Sete Quedas desde os primórdios do
projeto, os soviéticos não conseguiriam participar do fornecimento de máquinas
para esse enorme empreendimento. O interesse soviético no setor energético
brasileiro reapareceria renovado, numa conjuntura de aproximação entre os dois
países, no início do governo Figueiredo (1979-1985).
Conclusão
Após a ruptura de 1964, a equipe econômica de Castello Branco considerava
importante ampliar as trocas com o bloco soviético. Esses contatos possibilitaram
uma maior institucionalização das relações bilaterais, uma reativação das
conversações acerca de financiamentos, programas de assistência técnica e
cooperação econômica entre os dois países.
O aprofundamento das relações econômicas, no entanto, esbarrava nas
preocupações brasileiras com segurança interna. O aumento de representações
soviéticas no Brasil ensejava um debate dentro do governo brasileiro sobre a
conveniência ou não de uma maior presença da URSS no país. Essa questão
permaneceu como fonte de discórdia até o fim do regime militar em 1985.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 76-93
90 Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações [...]
No entanto, conforme mencionamos, mesmo com a ruptura de 1964, a
manutenção das relações bilaterais ocorreu devido a três fatores: o fato de o
anticomunismo da cúpula militar brasileira estar concentrado em Cuba e não na
URSS, mudanças domésticas importantes em curso na superpotência socialista
e a possibilidade de a mesma exercer um papel importante na industrialização
do Brasil.
Além disso, as relações com a União Soviética poderiam servir como uma
espécie de barganha em relação a eventuais ruídos nas interações do Brasil com
os Estados Unidos. É interessante notar que a aproximação do Brasil aos EUA
durante o governo Castello Branco não correspondeu a um afastamento da URSS.
Assim, percebe-se que havia aspectos da détente entre as duas superpotências
já em 1964. Foi nessa conjuntura que se iniciaram os esforços para uma
reaproximação entre Brasil e URSS. A viagem de Roberto Campos, o entendimento
a respeito da exploração de xisto, a assinatura do Protocolo Patolichev, a missão
chefiada por Paulo Egydio, a construção da planta petroquímica na Bahia,
o início das conversações a respeito da cooperação técnico-científica no campo da
astronomia e a abertura do Escritório Comercial da URSS em São Paulo atestam
esse objetivo. O gradual incremento comercial, a ativação da Comissão Mista
Bilateral e, mais tarde, a assinatura do Protocolo de Maquinaria e Equipamentos
assegurariam a confiança e a estrutura legal necessárias para que projetos de
cooperação econômica bilateral ocorressem na década seguinte.
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Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
94 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
A economia da Rússia no século 21:
as dinâmicas da ascensão econômica e da
relativa estagnação após a crise global de 2008
The economy of Russia in the 21
st
century:
the dynamics of economic rise and the relative
stagnation after the global crises of 2008
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.768
Rafael Henrique Dias Manzi
1
Resumo
O desempenho da economia da Rússia na primeira década após o esfacelamento político
da União Soviética foi marcado por instabilidades macroeconômicas e por uma profunda
recessão econômica. Esse cenário reverteu-se a partir do início do século 21 quando o país
entrou em um novo ciclo de expansão econômica marcada por uma expressiva aceleração
das taxas de crescimento do PIB. Contudo, a partir da década de 2010, a economia russa
perdeu dinamismo e o processo de convergência de renda com os países desenvolvidos
estagnou-se novamente. O principal objetivo do artigo é fazer uma análise do processo de
ascensão econômica da Rússia e do atual quadro de relativa estagnação a partir da eclosão
da crise global de 2008. Os resultados apontam que o quadro de relativa estagnação da
economia da Rússia não está ligado somente a fatores conjunturais, como a queda dos
preços das commodities energéticas nos mercados internacionais e o acirramento das tensões
geopolíticas com o mundo ocidental, mas refletem também, em grande medida, fragilidades
domésticas da economia russa.
Palavras-chave: Rússia; Economia Internacional; Superciclo de Commodities; Petróleo;
Geopolítica.
Abstract
The performance of Russia’s economy in the first decade after the break-up of the Soviet
Union was marked by macroeconomic instabilities and a deep economic recession. This
scenario reverted from the beginning of the 21
st
century when the country entered a new cycle
1 Doutor em relações internacionais pela Universidade de Brasília UnB.
Artigo submetido em 26/02/2018 e aprovado em 26/07/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
95Rafael Henrique Dias Manzi
of economic expansion marked by a significant acceleration of GDP growth rates. However,
from the decade of 2010 the Russia economy registered an economic growth slowdown and
the process of income convergence within the developed countries stagnated again. The
main objective of the article is to analyze the process of economic growth in Russia and the
current situation of relative stagnation after the outbreak of the global crisis of 2008. The
results indicate that the relative stagnation of Russia’s economy is not only related just to
conjuncture factors, such as the fall in the prices of energy commodities in the international
markets and the intensification of geopolitical tensions with the Western world, but also
reflect to a great extent, domestic weaknesses of the Russian economy.
Keywords: Russia; International Economics; Commodities Supercycle; Oil Crude; Geopolitics.
Introdução
A queda do muro de Berlim (1989) e o esfacelamento político da União
Soviética (1991) colocaram fim à ordem bipolar que caracterizou a dinâmica
geopolítica do sistema internacional a partir do fim da década de 1940. Nesse
período, os Estados Unidos e a União Soviética disputaram a hegemonia do sistema
internacional do ponto de vista geopolítico e econômico. O conflito geopolítico
e econômico (capitalismo x socialismo) estendeu-se pela América Latina, África,
Ásia e Europa e foi caracterizado pelo confronto indireto por áreas de influência
entre as duas superpotências globais (FRIEDEN, 2008).
Com o fim da Guerra Fria, na década de 1990, o status da Rússia de
superpotência do sistema internacional chegou ao fim com o surgimento de uma
nova ordem internacional marcada inicialmente pela hegemonia das democracias
de mercado
2
. No aspecto econômico, os anos de1990 foram marcados pela
transição da Rússia para uma economia de mercado e por uma profunda crise
econômica. Essa conjuntura passou a ser alterada a partir do início da década
de 2000, quando a Rússia registrou elevadas taxas de crescimento econômico.
Isso não sugere que o país reconquistou o espaço ocupado no período da Guerra
Fria, mas que o crescimento da economia russa reverteu enormemente o processo
de declínio registrado pela Rússia ao longo dos anos de1990. Contudo, a partir
do início da década de 2010, a economia russa começou a demonstrar sinais de
fragilidade em virtude da forte desaceleração das taxas de crescimento do PIB,
que culminou em uma recessão econômica no biênio 2015/2016.
2 Sobre o conceito do termo hegemonia das democracias de mercado ver Viola; Leis (2007).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
96 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
O principal objetivo do artigo é examinar a conjuntura da economia da Rússia
com o intuito de examinar as variáveis que explicam tanto o processo de aceleração
das taxas de crescimento a partir do início da década de 2000 quanto o quadro
de relativa estagnação a partir da eclosão da crise global de 2008. O argumento
central do artigo é de que as dinâmicas internacionais, principalmente no tocante
à evolução da demanda e dos preços das commodities energéticas é uma variável
fundamental para compreender o processo de ascensão da economia da Rússia
a partir do fim da década de 1990. Contudo, o quadro de relativa estagnação da
economia da Rússia a partir da década de 2010 é reflexo de fragilidades domésticas
ligadas principalmente ao baixo nível de diversificação produtiva, à estagnação
dos indicadores de produtividade e eficiência econômica e também relacionada
aos níveis insuficientes de investimentos domésticos.
Do ponto de vista da metodologia empregada, o argumento central do artigo
é construído a partir da sistematização de variáveis estruturais e conjunturais
que explicam o desempenho da economia da Rússia a partir do fim da década de
1990. Em virtude da importância do setor de petróleo e gás natural, a evolução dos
preços e da demanda internacional por commodities energéticas constitui-se na
principal variável que afeta o desempenho de curto prazo da economia russa. Ao
mesmo tempo, serão identificadas e analisadas as variáveis domésticas que estão
relacionadas ao quadro de relativa estagnação da economia da Rússia em virtude
da incapacidade do país em acelerar o processo de diversificação e modernização
produtiva. Em relação aos aspectos domésticos, destacam-se : a adoção de políticas
econômicas que resultaram no aprofundamento das relações de crony capitalism
com reflexos negativos sobre os níveis de produtividade e eficiência econômica;
disfuncionalidades do setor financeiro que reduzem a disponibilidade de recursos
para investimentos domésticos e; fragilidades institucionais no tocante aos direitos
de propriedade que acabam por gerar desincentivos para a realização de novos
investimentos produtivos. Esses dados serão construídos a partir da bibliografia
já existente e também da interpretação de fontes primárias e secundárias.
Nessa perspectiva, o artigo é dividido em três seções. Na primeira, examinaremos
as dinâmicas econômicas na primeira década após o fim da Guerra Fria e os fatores
que explicam a ascensão econômica da Rússia a partir do início do novo milênio.
Na segunda, discutir-se-á a performance da economia russa a partir de 2008 e
como dinâmicas relacionadas ao fim do superciclo das commodities internacionais
e do acirramento das disputas geopolíticas da Rússia com o mundo ocidental têm
impacto sobre a economia russa. Na última seção, serão analisadas as variáveis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
97Rafael Henrique Dias Manzi
domésticas que explicam porque, apesar da expansão da renda ao longo do
superciclo das commodities internacionais, não ocorreu um processo de maior
diversificação e modernização da economia da Rússia.
A economia da Rússia no pós-Guerra Fria: da década “perdida”
aos anos doutorado de 2000
Quando Mikhail Gorbachev ascendeu ao cargo de secretário-geral da União
Soviética, a economia soviética já não apresentava mais o mesmo dinamismo
das décadas de 1950 e 1960. Nesse período, aventou-se inclusive a possibilidade
de que o desempenho da economia soviética iria transformar o país na maior
economia do mundo, superando até mesmo os Estados Unidos (JOFFE, 2014).
A partir de meados da década de 1970, a performance da economia soviética já
não era mais a mesma em virtude do baixo dinamismo econômico do país. Entre
1975 e 1985, por exemplo, a taxa média de crescimento da União Soviética caiu
para patamares inferiores à 2.5% ao ano (OFER, 1987).
A desaceleração da economia da União Soviética era um sintoma da exaustão
do modelo de crescimento econômico baseado principalmente no acúmulo de
capitais. Como observa Ofer (1987, p. 1814-1815), a perda de dinamismo da
economia soviética a partir da década de 1970 está relacionada a três fatores:
“Primeiro, o crescimento extensivo é, por natureza, exaurível, à medida que
existe um processo de próprio declínio da própria produtividade do capital.
Em segundo lugar, a mudança tecnológica e a melhoria da eficiência não
ocorreram de modo suficiente para acelerar o crescimento dos indicadores de
produtividade. Na verdade, a contribuição da tecnologia declinou ao longo
dos anos, refletindo a crescente dificuldade de adquirir tecnologias mais
eficientes do ocidente. Finalmente, o declínio do crescimento foi acelerado
em virtude da estratégia adotada pelas autoridades soviéticas de acelerar a
convergência de renda do país com o mundo ocidental ter chegado ao seu
limite em virtude da estagnação da produtividade econômica
3
”.
3 “First, extensive growth is by nature exhaustible, as manifested in the unavoidable decline in the growth rates of
inputs. Second, technological change and improved efficiency failed to replace in replace input growth, in fact,
the contribution of technology declined over the years, reflecting the increased difficulty of borrowing Western
technologies cheaply. Finally, the decline growth was accelerated by the strategy of haste. Haste not only made
the growth curse decline more steeply but has also been partly responsible for the difficulties encountered by
the Soviet economy is shifting to an intensive path.”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
98 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
É dentro desse contexto de fragilidades econômicas que ascende, Mikhail
Gorbachev, ao cargo de secretário-geral do partido comunista. Mikhail Gorbachev
assumiu com a principal missão de instaurar reformas econômicas com o intuito de
elevar as taxas de crescimento econômico da já cambaleante economia soviética.
Tanto a perestroika quanto a glasnost tinham como objetivo enfraquecer o controle
do partido comunista sobre a sociedade, mas não ocasionar um colapso econômico
e político da União Soviética
4
. Ou seja, as reformas econômicas tinham como ponto
central dinamizar a economia soviética, mas com o propósito de impedir uma
crise política que colocasse em risco o próprio regime comunista, o que acabou
de fato ocorrendo a partir dos eventos que culminaram na crise do comunismo
soviético no início da década de 1990.
Mesmo que relativamente tímidas, as reformas do período Gorbachev
reduziram a centralização econômica, incentivaram a criação de joint ventures
com a participação de empresas estatais e legalizaram a existência de cooperativas
privadas. Em junho de 1987, o governo russo promulgou a Law of State Enterprise
para reduzir o planejamento central da economia da União Soviética. A lei
autorizou empresas a venderem produtos a preços de mercado e o fechamento
de empresas que eram consideradas pelo governo russo como ineficientes. Outra
medida para reduzir o controle estatal foi à criação da Lei das Cooperativas
em 1988. Nesse caso, o governo russo permitiu a formação de empresas para a
exportação de commodities que tinham os preços, anteriormente ao início das
reformas econômicas, controlados pelas autoridades políticas de Moscou. Além
disso, a criação da Law on Leasing de 1989 possibilitou aos funcionários das estatais
realizarem operações de leasing e compra das empresas estatais. (LETICHE, 2007).
As reformas impetradas pela nova administração acabaram por desgastar e
enfraquecer ainda mais o regime político e culminou na crise do comunismo soviético.
Na década de 1990, as reformas econômicas intensificaram-se principalmente no
tocante a transferências dos ativos públicos para o setor privado. O processo
de privatização teve duas fases. Na primeira, o programa de privatização das
empresas estatais russas teve início em outubro de 1992 e foi finalizado em junho
de 1994. Nesse período, aproximadamente 70% das empresas estatais de grande
e médio porte e 90% das pequenas companhias foram transferidas para o setor
4 O termo glasnost é de origem russa e significa abertura. Foi designado para representar o processo de reforma
política na União Soviética que representou a redução do poder do partido comunista e a realização de eleições
multipartidárias. A perestroika é também um termo russo, mas tem uma conotação mais voltada a economia
que pode ser entendido como “reestruturação” econômica e liberalização econômica.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
99Rafael Henrique Dias Manzi
privado. Já a segunda fase ocorreu ao longo de 1995 e 1996, sendo caracterizada
pela venda direta de empresas estatais ao setor privado por meio de initial public
offerings (IPOs). Quando o programa de privatização da Rússia chegou ao fim,
aproximadamente 70% do PIB, já estava sob o controle do setor privado. (VINHAS
DE SOUZA, 2007).
O processo de transição para uma economia de mercado na Rússia gerou
desequilíbrios econômicos decorrentes do descasamento entre oferta e demanda
que se refletiram na profunda crise econômica da década de 1990
5
. Entre 1992 e
1999, por exemplo, o PIB per capita russo teve uma contração próxima de 25%.
As fragilidades econômicas decorriam principalmente das elevadas taxas de
inflação, desequilíbrios fiscais e vulnerabilidade externa em virtude da excessiva
valorização do rublo russo e do baixo nível de reservas internacionais. Além
disso, as instabilidades econômicas em outros mercados emergentes da década
de 1990, como as crises financeiras no México (1994) e Ásia (1997), contribuíram
para elevar as percepções de riscos na solidez das economias emergentes e da
própria Rússia. A combinação entre fragilidades macroeconômicas domésticas e
instabilidades nos mercados financeiros acabou por culminar na eclosão da crise
financeira de 1999 (FRIEDEN, 2008).
O período de estagnação econômica fica mais evidente a partir da evolução dos
indicadores de renda da economia da Rússia. A Figura 1 demonstra a evolução da
renda per capita da Rússia em Paridade de poder de Compra (PPC) em comparação
aos Estados Unidos, Japão e Alemanha. O PIB per capita em PPC russo registrou
significativa redução em relação à renda de um residente nos Estados Unidos,
Alemanha e Japão a partir do início da década de 1990. Em relação aos Estados
Unidos, por exemplo, a renda per capita da Rússia declinou de aproximadamente
45% da renda estadunidense, em 1992, para 30.6% no ano de 2000.
5 Esse fenômeno decorreu, por exemplo, da existência de uma significativa alocação de capitais e recursos
humanos para o setor militar durante o período da União Soviética. Com o fim da Guerra Fria e a redução dos
gastos militares, houve uma significativa redução da demanda de bens ligados ao setor de armamentos. Assim,
setores que eram ligados diretamente ou mesmo indiretamente ao complexo militar tiveram forte redução da
demanda por seus bens, o que contribuiu para reduzir a própria capacidade produtiva da economia da Rússia.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
100 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
Figura 1. Percentual do PIB per capita em PPC da Rússia em relação
à renda per capita dos Estados Unidos, Alemanha e Japão
20
30
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70
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1992
1995
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Estados Unidos Alemanha Japão
Fonte: FMI, 2018a.
Esse processo de declínio econômico da Rússia chegou ao fim a partir do
fim da década de 1990, quando o país entrou em um novo ciclo de expansão
econômica. O PIB da Rússia, entre 1999 e 2008, registrou crescimento médio de
6.8% ao ano — acima do observado na economia mundial (4.2% ao ano) e mesmo
superior ao das economias emergentes e pobres (6.1%). Nesse mesmo período, a
renda per capita em PPC da Rússia mais do que dobrou, passando de US$ 9.889
para US$ 23.047. Esse fenômeno é também captado na Figura 1, que demonstra
a reversão de declínio econômico da Rússia em relação ao mundo desenvolvido,
pelo menos até a eclosão da crise global de 2008.
O período de transição e recuperação da economia russa, depois da profunda
recessão econômica da década de 1990, pode ser dividido em três fases. Na
primeira, que tem início no fim de 1998 e vai até o fim do primeiro semestre
de 1999, a recuperação econômica decorreu em grande medida da melhora da
competitividade artificial (já que foi por meio do câmbio) da Rússia em virtude da
desvalorização do rublo. Por um lado, a redução de perto de 50% das importações
nesse período foi importante porque contribuiu para aumentar o nível das reservas
internacionais em um período de fragilidade das contas externas do país. A segunda
foi marcada pelo início do processo de aumento dos preços internacionais do
petróleo a partir do fim de 1999. Já a terceira fase é marcada pela continuidade
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
101Rafael Henrique Dias Manzi
do processo de elevação do preço do petróleo nos mercados internacionais e pelo
início de reformas econômicas realizadas principalmente ao longo do primeiro
mandato de Vladimir Putin, que melhoraram consideravelmente os indicadores
macroeconômicos da Rússia (LETICHE, 2007).
O início de ciclo da expansão da economia da Rússia nesse período é resultado
da interação entre dinâmicas domésticas e externas.
Primeiro, a recessão econômica da Rússia na década de 1990 reduziu
consideravelmente a utilização dos fatores de produção do país devido à própria
desorganização econômica no processo de transição para uma economia de
mercado. A taxa de desemprego, por exemplo, saltou de 5.2% em 1992 para
13.3% em 1998. Mesmo a produção de petróleo, que é o principal produto de
exportação da Rússia, teve considerável redução na década de 1990. A produção
diária de petróleo reduziu-se de 8.02 milhões de barris, em 1992, para 6.09 milhões,
em 1998, quando os preços do produto atingiram os menores valores na década
de 1990. Foi observada também uma queda na produção de gás natural, outro
importante produto de exportação da Rússia. Nesse sentido, com o fim do período
de turbulências macroeconômicas a partir do fim da década de 1990, a economia
russa começou a ter um período de recuperação econômica à medida que houve
uma redução da própria capacidade ociosa dos fatores de produção que estavam
subutilizados na década de 1990. (VINHAS DE SOUZA, 2007).
Shleifer e; Treisman (2005) argumentam também que o desempenho da
economia russa nesse período não pode ser estigmatizado em virtude apenas dos
indicadores econômicos e sugere que a intensidade da recessão econômica foi
menor do que o habitualmente aceito por três motivos: (1) os indicadores oficiais
superestimaram o PIB da Rússia no início da década de 1990 no período de transição
para uma economia de mercado, devido em grande medida à contabilização de
gastos militares, projetos ainda em desenvolvimento e outros produtos que não
tinham mais demanda com a transição da Rússia para uma economia de mercado,
(2) houve um crescimento acelerado da economia informal na década de 1990 que
não foi captada pelos indicadores oficiais, o que na prática sugere que a recessão
econômica foi menos intensa e (3) outros indicadores sugerem que os níveis de
consumo no agregado da população não tiveram uma redução proporcional à
redução do PIB per capita russo.
Outro fator fundamental no processo de recuperação da economia da Rússia
está ligado à evolução dos preços e da demanda das commodities energéticas.
Os preços do petróleo, que haviam recuado para valores próximos de US$ 12
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
102 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
dólares o barril no fim de 1998, começaram a subir gradualmente a partir do fim
de 1999. A média anual do preço do barril nos mercados internacionais saltou de
aproximadamente US$ 13 dólares, em 1998, para valores ao redor de US$ 100 no
decorrer da década de 2000. Os preços do gás natural registraram também forte
elevação nos mercados internacionais. A média de preço das exportações russas
de gás natural por metro cúbico elevou-se de US$ 85, em 2000, para US$ 109,
em 2004, e atingiu seu maior valor em 2008, quando foram comercializadas no
exterior a um preço médio de US$ 353 por metro cúbico.
A evolução dos preços e da demanda internacional por commodities energéticas
é uma variável central para o desempenho econômico da Rússia em virtude da
elevada importância que o setor de petróleo e gás tem para a economia russa.
Após o descobrimento de novas reservas de petróleo e gás natural no oeste da
Sibéria, na década de 1970, a economia russa passou a ser mais dependente da
exploração de commodities energéticas. Cálculos de Kuboniwa (2015) apontam
que, entre 2005 e 2013, por exemplo, o valor adicionado do setor de petróleo e
gás foi em média de aproximadamente 20% do PIB da Rússia. Esses valores não
decorrem apenas da exploração stricto sensu do setor de petróleo e gás, mas
também dos efeitos indiretos que essas atividades geram sobre o restante da
economia da Rússia.
A importância do setor de petróleo e gás natural para a economia russa pode
ser observada também sob a ótica da geração de rents
6
. Com a elevação dos
preços e da demanda internacional, houve um significativo aumento dos rents,
que elevaram naturalmente a renda da Rússia na década de 2000. Nas palavras
de Gaddy e; Ickes (2015, p. 13): “Entre 1999 e 2013, os rents totais cresceram
em aproximadamente US$ 4.2 trilhões. Desse total, em torno de US$ 3.2 trilhões
decorreu do aumento dos preços do petróleo e do gás e o restante do aumento
de 1 US$ trilhão da produção.”
7
6 Gaddy e; Ickes (2013a) definem rent como a diferença entre as receitas obtidas com a venda de petróleo e os
custos de produção do petróleo. Assim, rent é igual aos lucros realizados com a produção de petróleo. Nas
palavras dos autores (2013a, p. 311): “Rents pode ser definido como a diferença de renda recebida das vendas
de petróleo menos o custo de produção do mesmo”.
7 “Between 1999 and 2013, total rent grew by about USD 4.2 trillion. Of that, 3.2 trillion was due to the increase
in the oil and gas prices, and 1.0 trillion to the increase in the quantity of oil and gas produced”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
103Rafael Henrique Dias Manzi
Figura 2. Evolução das exportações totais da Rússia em US$ bilhões
(coluna da esquerda) e do percentual das exportações de combustíveis
em relação ao total (linha vermelha e coluna da direita)
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1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Exportações totais (em US$ bilhões) Exportações de combustíveis (% do total)
Fonte: Banco Mundial, 2018.
A elevada dependência da Rússia na exploração de commodities energéticas fica
mais evidente com os dados da Figura 2, que demonstra a evolução das exportações
totais do país e o percentual das exportações de combustíveis em relação ao total.
As exportações de combustíveis começaram a ter maior crescimento proporcional
em relação a outros bens e serviços a partir de 2000,quando atingiram 50% das
exportações totais da Rússia. Essa proporção cresceu ao longo da década de 2000
e as exportações de combustíveis atingiram um total de 70.2% das exportações
totais da Rússia em 2013
8
. Esses dados apenas confirmam a importância do setor
de petróleo e gás e a baixa capacidade de diversificação da pauta de exportação
da Rússia.
8 Além da produção de petróleo e gás natural, a Rússia possui em sua pauta de exportações outros produtos
primários, como ferro, carvão e minerais. Esses produtos representam aproximadamente 8-9% da pauta de
exportação russa. Quando são adicionados esses bens à participação de commodities agrícolas, minerais e
combustíveis nas exportações totais da Rússia, chega-se a uma média próxima de 70-75% do total, o que reforça
o caráter de baixa diversificação da estrutura produtiva russa (CONNOLLY, 2017).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
104 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
Figura 3. Evolução do preço internacional do petróleo (coluna da direita)
e receitas do governo russo em bilhões de rublos (coluna da esquerda)
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25000
30000
Receitas (bilhões de rublos) Preço petróleo
Fonte: FMI, 2018b. Para calcular o preço médio anual do petróleo utilizamos a média mensal em cada ano.
Na Figura 3, é possível observar o aumento significativo do preço do petróleo
nos mercados internacionais a partir do início da década de 2000. Sabitova e;
Shavaleyeva (2015) argumentam que a evolução do preço do petróleo e do gás
natural teve três efeitos positivos para a economia da Rússia.
Primeiro, a elevação dos preços e da demanda internacional por commodities
energéticas teve um impacto direto sobre o setor público da Rússia. Como é
possível observar na Figura 3, existe uma relação direta entre a evolução dos
preços internacionais do petróleo e a elevação das receitas tributárias do governo
russo. À medida que houve um significativo aumento das receitas tributárias,
os déficits fiscais foram revertidos em crescentes superávits fiscais ao longo da
década de 2000.
A situação fiscal da Rússia teve sensível melhora também devido à realização
de uma reforma tributária que aumentou consideravelmente a tributação sobre
os ganhos econômicos oriundos da produção e exportação de petróleo, gás e
derivados. Os impostos corporativos sobre os lucros das empresas petrolíferas
cresceram de uma média de 10-15%, em 1999, para um montante próximo de
30-35%, em 2005. Como resultado, as receitas tributárias oriundas da produção
de petróleo e gás saltaram de aproximadamente 1 trilhão de rublos, em 2004, para
4.3 trilhões de rublos, em 2008. Tal crescimento da arrecadação foi canalizado
principalmente para impostos controlados pelo governo federal da Rússia. Em 2004,
30% das receitas federais do governo russo eram provenientes de impostos e taxas
sobre o setor de petróleo e gás. Já em 2008, esse percentual aumentou para 47%.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
105Rafael Henrique Dias Manzi
Como resultado, as receitas do governo federal, entre 2004 e 2008, quase que
triplicaram — de 3.4 trilhões de rublos em 2004 para 9.2 trilhões em 2008.
Outro instrumento importante que contribuiu para a estabilização macroeco-
nômica a e melhora da situação fiscal da Rússia nesse período decorreu da crião
do Russian Oil Stabilization Fund (OFS). O propósito do fundo era: a) reduzir a
volatilidade das receitas tributárias em virtude da variação dos preços do petróleo
nos mercados internacionais e b) ser utilizado para a realização de operações
de esterilização
9
no mercado financeiro da Rússia. Na prática, quando os preços
do petróleo estivessem acima de certo patamar, estabelecido pelo governo russo,
haveria a canalização das divisas internacionais para o OFS. Em contraposição,
quando os preços ficassem abaixo do valor de referência mínimo, o governo russo
iria se financiar dos montantes alocados no OFS. A criação do OFS foi importante
porque propiciou ao governo russo aumentar a previsibilidade das receitas tribu-
tárias oriundas da taxação do setor de petróleo, em virtude da volatilidade dos
preços das commodities energéticas nos mercados internacionais. (ASTROV, 2007).
A sensível melhora da situação fiscal do governo russo foi fundamental
para a estabilização econômica na década de 2000, após intensas instabilidades
macroeconômicas observadas ao longo da primeira década após o fim da Guerra
Fria. A melhora da situação fiscal propiciou uma significativa redução da dívida
pública, que havia alcançado um montante próximo de 92% do PIB da Rússia no
fim da década de 1999. Esse montante reduziu-se progressivamente ao longo da
década de 2000 e,em 2008, a dívida pública russa já era de apenas 7.4% do PIB
— valor esse bem inferior à média observada em outras economias emergentes.
Em segundo lugar, a expansão das receitas fiscais permitiu ao governo russo
ampliar o gasto público a partir do início dos anos 2000. O crescimento dos gastos
públicos traduziu-se em melhoria dos serviços públicos e aumento da demanda
doméstica. A elevação dos gastos públicos propiciou também um aumento das
taxas de investimento realizado principalmente pelo governo central da Rússia.
Ou seja, a elevação das receitas oriundas da exportação de gás e petróleo teve
reflexos indiretos em outros setores da economia russa à medida que ocorreu
uma ampliação da renda doméstica. Nas palavras de Aleksashenko (2012, p. 45):
9 Esterilização é um termo utilizado para designar as operações realizadas por um banco central nacional para
controlar a liquidez e os meios de pagamento em uma economia nacional. As operações de esterilização podem
ser realizadas por meio da compra e venda de títulos públicos. São utilizadas normalmente para enxugar o
excesso de liquidez em virtude da entrada excessiva de divisas internacionais por meio das exportações ou
mesmo da entrada de investimentos internacionais.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
106 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
Além do aumento das receitas tributárias, a renda oriunda do setor de
petróleo e gás resultou em efeitos indiretos sobre o crescimento econômico.
Assim, mesmo que não mais do que 1.5 — 2% (de um crescimento médio
anual de 7 por cento entre 2000 e 2008) do crescimento do PIB possa ser
atribuído diretamente ao setor de óleo e gás, outros 3 — 4% da expansão
econômica derivam de efeitos indiretos da entrada de divisas internacionais
que resultaram em uma rápida expansão da demanda doméstica. externos
que resultaram em uma rápida expansão da demanda doméstica
10
”.
Por último, as crescentes receitas oriundas da exportação de commodities
energéticas reduziram consideravelmente a vulnerabilidade externa da economia
frente à ocorrência de choques externos, esse último um dos principais fatores
para a eclosão da crise financeira de 1998. As exportações russas, que atingiram
o montante de US$ 74 bilhões em 1999, cresceram progressivamente a partir da
elevação dos preços e da demanda internacional por commodities energéticas.
Entre 1999 e 2008, as exportações totais se multiplicaram em aproximadamente
seis vezes. Como resultado desse fenômeno, as reservas internacionais do país
subiram de pouco mais de US$ 17 bilhões, em 1999, para mais de US$ 426 bilhões,
em 2008. Não por acaso, o gigantesco crescimento das reservas internacionais
foi fundamental para a criação de um colchão de liquidez para a redução da
vulnerabilidade externa da Rússia frente a choques externos
11
.
Em suma, o início do boom das commodities internacionais ao longo da
década de 2000 gerou efeitos diretos sobre a economia da Rússia. De todo
modo, a significativa melhora da performance da economia da Rússia a partir do
fim da década de 1990 não pode ser também descontextualizada dos aspectos
domésticos. A realização de uma reforma tributária que canalizou o aumento dos
rents para o setor público e a criação de um fundo financeiro foram instrumentos
importantes para equilibrar as contas públicas da Rússia, que era uma das
principais fragilidades macroeconômicas do país na década de 1990. À medida
10 “Besides their direct influence on budgetary incomes, oil proceeds have exercised a substantial indirect effect
on economic growth. Thus, even if no more than 1.5 — 2 percent (out of 7 per cent average annual growth in
2000-2008) of overall expansion could be attributed directly to growth in the oil and gas industry, another 3-4
percentage point derive from its indirect effects, in the form of an influx of external finance resulting in a rapid
expansion of internal demand”.
11 Importante ressaltar que esse fenômeno não ficou circunscrito à Rússia. Após as crises financeiras da década
de 1990, importantes economias emergentes passaram a adotar estratégias que tinham como objetivo elevar os
níveis de reservas internacionais para reduzir a vulnerabilidade externa frente a choques dentro da economia
mundial. Essas estratégias eram baseadas principalmente na desvalorização artificial do câmbio e em políticas
voltadas à promoção de exportações. Sobre o tema ver Wolf (2008).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
107Rafael Henrique Dias Manzi
que ocorreu uma estabilização dos indicadores macroeconômicos, ocorreu também
uma elevação dos fatores de produção, subutilizados na década de 1990. Assim,
ocorreu progressivamente a eliminação dos desequilíbrios entre oferta e demanda
presentes na década de 1990, quando a Rússia se tornou uma economia de mercado
(HANSON, 2007).
A economia da Rússia no pós-crise global de 2008
O início da crise no setor imobiliário dos Estados Unidos, e que posteriormente
tornou-se global, teve impactos diretos sobre a economia mundial e a própria
Rússia. A dimensão da magnitude da crise global de 2008 é descrita nas seguintes
palavras de Roubinie; Mihn (2010, p. 150) “No quarto trimestre de 2008 e no
primeiro trimestre de 2009 a economia global se contraiu numa porcentagem que
só teve paralelo, em tamanho e profundidade, com o colapso de 1929 a 1931, que
deu início à grande depressão”.
Tabela 1. Crescimento econômico em preços constantes (% do PIB)
em economias e grupos de países selecionados
País Média (1999-2008) 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Rússia 6.8 -7.8 4.5 4 3.5 1.2 0.7 -2.8 -0.2 1.7
Mundo 4.1 -0.1 5.3 4.2 3.5 3.4 3.5 3.3 3.2 3.6
Países Desenvolvidos 2.4 -3.4 3 1.7 1.1 1.3 2 2.2 1.6 2.1
Países Emergentes e Pobres 6.1 2.8 7.4 6.4 5.3 5.1 4.6 4.2 4.3 4.6
Fonte: FMI, 2018a.
A recessão da economia global só não foi mais profunda devido à rápida
recuperação das economias emergentes e pobres — liderados principalmente
por China e Índia — que, apesar da desaceleração econômica, registraram um
crescimento médio próximo de 2.8% em 2009. A Tabela 1 demonstra o quadro de
deterioração da economia global a partir da crise global de 2008. Essa conjuntura
da economia global teve reflexos diretos sobre a Rússia a partir da eclosão da crise
global de 2008. Em 2009, por exemplo, a economia russa teve o pior desempenho
desde o fim da década de 1990, ao registrar uma retração de 7.8%, que foi superior
inclusive à registrada nos Estados Unidos.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
108 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
Nos anos posteriores à eclosão da crise global de 2008, ocorreu uma
progressiva redução das taxas de crescimento do PIB da Rússia, que culminou na
recessão econômica no biênio 2015/2016. Uma explicação natural para essa nova
conjuntura da economia da Rússia está ligada ao fim do superciclo das commodities
internacionais e à recessão econômica na Europa, que reduziu ainda mais a
demanda por produtos russos. De fato, a partir de 2014, houve forte desaceleração
dos preços das commodities energéticas nos mercados internacionais. Os preços
do petróleo começaram a declinar no segundo semestre de 2014 e atingiram, em
2015, os menores valores desde o início da década de 2000. Em janeiro de 2016,
por exemplo, o preço do barril era negociado a valores próximos de 30 US$
12
.
Apesar da forte redução dos preços das commodities energéticas, a economia
da Rússia já havia perdido dinamismo a partir do início da década de 2010,
quando o crescimento do PIB registrou significativa desaceleração em comparação
ao período pré-crise global de 2008. Essa constatação sugere que o modelo de
crescimento econômico começou a exaurir-se no período pós-crise global de 2008
e foi acentuado a partir da queda dos preços das commodities energéticas nos
mercados internacionais. Ou seja, a perda de dinamismo da economia da Rússia
está ligada a outros fatores que vão além do fim do superciclo das commodities
internacionais.
Um segundo fator da conjuntura internacional, que vai além de questões
econômicas e que está influenciando a economia da Rússia, decorre das rivalidades
geopolíticas com o mundo ocidental. O acirramento das disputas da Rússia com
o mundo ocidental atingiu o ápice com a eclosão da crise da Crimeia no início de
2014, que culminou na aplicação de sanções econômicas contra a Rússia por parte
do mundo ocidental desenvolvido. Essas sanções podem ser classificadas em três
níveis: sanções diplomáticas, contra pessoas e organizações e sanções econômicas
13
.
No tocante aos aspectos econômicos, as sanções ocidentais contra a Rússia
podem ser classificadas em dois tipos: (1) financeiras — que restringem a realização
de operações de empréstimos e transações financeiras realizadas entre bancos
e instituições financeiras ocidentais com empresas financeiras e não-financeiras
12 A redução dos preços e da demanda do petróleo nos mercados internacionais não é somente um fenômeno
ligado à desaceleração da economia global. O surgimento e expansão da indústria de xisto nos Estados Unidos,
a maior oferta proveniente de fontes alternativas de energia (eólica, solar) e a política da Arábia Saudita de não
reduzir a produção de petróleo tiveram reflexos diretos sobre os preços internacionais do petróleo em virtude
do aumento da oferta. Sobre o assunto ver Viola e; Basso (2015).
13 Para ver um resumo e detalhes de cada sanção aplicada contra a Rússia, ver European Parliament (2015).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
109Rafael Henrique Dias Manzi
russas e (2) embargo para a venda e comercialização de tecnologias desenvolvidas
por empresas ocidentais para a Rússia. Além disso, as sanções implicaram a
existência de restrições para atuação em conjunto de empresas ocidentais e russas
no desenvolvimento de projetos voltados para o setor de petróleo e gás.
A aplicação das sanções financeiras reduziu consideravelmente os níveis de
interdependência financeira entre bancos e empresas da Rússia com instituições
bancárias do mundo ocidental. Em 2014 e 2015, as empresas e instituições
financeiras da Rússia foram obrigadas a liquidar débitos com bancos ocidentais
que totalizaram valores próximos a US$ 180 bilhões. A liquidação desses débitos
foi o principal fator que contribuiu para a súbita saída de capitais internacionais e
a desvalorização do rublo russo nesse período (EUROPEAN PARLIAMENT, 2015).
Figura 4. Evolução da entrada de IED (US$ bilhões) na Rússia
0
10
20
30
40
50
60
70
80
IED (US$ bilhões)
Fonte: Unctad, 2018.
O clima de incerteza gerado pelas sanções econômicas e pela intensificação
das rivalidades geopolíticas reduziu também os níveis de investimentos externos
de longo prazo realizados principalmente por empresas ocidentais na Rússia.
A Figura 4 demonstra que a entrada de Investimento Estrangeiro Direto (IED)
na Rússia atingiu seus menores níveis em 2014 e 2015. Mesmo com o relativo
crescimento registrado em 2016, as sanções econômicas tiveram forte impacto
sobre a realização de investimentos internacionais na Rússia, no curto prazo, na
média trienal de 2014-2016.
A adoção de sanções econômicas tem reflexos no curto prazo já que
impossibilita que empresas russas realizem operações de empréstimos com bancos
e instituições financeiras, principalmente com os países da Europa Ocidental.
Além disso, as proibições de transferência de bens que contém tecnologia militar
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
110 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
ocidental afetam diretamente a cadeia de produção de armamentos da Rússia, que
é outro importante setor dessa economia. Mas esses efeitos tendem a ter reflexos
para a economia russa no médio prazo, especialmente no tocante à prospecção
de novos campos de petróleo (CONNOLLY; SENDSTAD, 2017). Como observa
Connolly et al. (2015):
A recuperação da produção após o fim da União Soviética deveu-se em
grande parte ao aumento da produção nos campos convencionais e ao papel
desempenhado pelas joint-ventures com as empresas Ocidentais. Mas o declínio
da produção nos campos convencionais no oeste da Sibéria seria compensado
pelo aumento da produção de petróleo no Ártico. Devido à perda de acesso
ao capital e tecnologia norte-americana esse esperado aumento da produção
ficou comprometido em um futuro próximo. Além disso, a imposição de um
prazo máximo de noventa dias para o pagamento de empréstimos contraídos
com instituições financeiras da União Europeia resulta em uma redução de
recursos financeiros para a realização de investimentos no setor de petróleo
14
”.
De todo modo, mesmo que a deterioração da conjuntura internacional tenha
gerado reflexos econômicos negativos, a relativa estagnação da economia da
Rússia, a partir do início da década de 2010, decorre principalmente de aspectos
domésticos. Essa constatação tem suas bases no próprio desempenho da economia
da Rússia que, antes do fim do superciclo das commodities internacionais e do
próprio acirramento das disputas geopolíticas com o mundo ocidental, já dava
sinais de forte desaceleração econômica. Entre 2009 e 2013, por exemplo, a taxa
de crescimento do PIB da Rússia foi de apenas 1.2% ao ano.
As dinâmicas estruturais da estagnação da economia da Rússia
O quadro de relativa estagnação da economia da Rússia a partir da década
de 2010 reforça a percepção da existência de fragilidades domésticas de caráter
estrutural. Ou seja, apesar de uma deterioração da conjuntura internacional, devido
14 “The recovery of production during the post-Soviet period was largely due to enhanced output at conventional
fields and the key role played by joint ventures (JVs) with Western companies. But the expected decline in
oil production from onshore conventional fields in Western Siberia was to be compensated for by tight oil
production and Arctic exploration. Owing to the loss of access to US technology and capital, such plans are now
jeopardized. Moreover, the 90-day maturity period for new debt issued by Russian energy companies stipulated
by the EU sanctions poses limits on various types of potential financing.”
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
111Rafael Henrique Dias Manzi
à própria desaceleração da economia global no contexto pós-crise de 2008, do
fim do superciclo das commodities internacionais e dos reflexos econômicos em
virtude das sanções econômicas contra a Rússia, a forte desaceleração econômica
a partir do início da década de 2010 está relacionada a questões domésticas.
Tabela 2. Evolução da produtividade por trabalhador (em US$ constantes
de PPC de 2011) em economias e grupos de países selecionados
País 1991 2000 2008 2016
Rússia 43.758 31.746 47.309 49.076
Países de renda média alta 12.814 15.204 23.044 31.835
Países de alta renda 65.467 78.685 86.485 91.447
Mundo 21.232 24.278 29.515 33.725
Fonte: Organização Internacional do Trabalho, 2018.
O quadro de relativa estagnação da economia russa pode ser observado por
meio da produtividade do trabalho. Como é possível observar na Tabela 2, a
produtividade do trabalhador russo passou por alterações a partir do início da
década de 1990. Em um primeiro momento, houve uma significativa queda da
produtividade do trabalhador russo em comparação aos países de alta renda na
década de 1990. Esse fenômeno foi revertido a partir do início da década de 2000,
em virtude das elevadas taxas de crescimento do PIB no período de maior ascensão
econômica da Rússia. Contudo, a partir de 2008, o processo de convergência da
produtividade do trabalhador russo em relação aos países de alta renda chegou
ao fim. Entre 2008 e 2016, a produtividade média de um trabalhador da Rússia
em comparação à média dos países de alta renda reduziu-se de 54% para 53%.
Esse quadro apenas confirma a percepção de que, mesmo com o quadro de
relativa estagnação econômica das economias desenvolvidas após a eclosão da
crise global de 2008, a Rússia não deu continuidade ao processo de convergência
ou catch up de renda em virtude de fragilidades domésticas. Essas fragilidades
são resultado de uma economia que possui indicadores de produtividade e
competitividade abaixo da média observada nos países de alta renda e também
de níveis de investimentos produtivos insuficientes para elevar os estoques de
capitais e promover uma maior diversificação produtiva.
No período de maior bonança da economia global e do superciclo das
commodities internacionais, os recursos oriundos da exportação de hidrocarbonetos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
112 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
não foram convertidos em um aumento sistêmico da competitividade e da
produtividade dos demais setores da economia da Rússia. Gaddy e; Ickes (2015)
apontam que esse processo decorre da administração dos rents (rent management)
a partir da era Putin, que priorizou a transferência dos recursos para atividades
de menor competitividade e produtividade. Os preços domésticos, por exemplo,
reduzem a lucratividade das empresas em virtude de subsídios que variam entre
31% a 46% em relação aos preços internacionais. Ademais, o governo russo
subsidia o gás natural que é exportado para os países da Comunidade dos Estados
Independentes (CEI). Persistem também outros canais indiretos que reduzem
a rentabilidade das empresas em virtude do pagamento de propinas a agentes
públicos e custos excessivos
15
.
Para Gaddy e; Ickes (2013a), a dinâmica pelo qual são distribuídos os rents
oriundos do setor de petróleo e gás cria um dualismo nas atividades produtivas
da Rússia. O primeiro é representado pelo setor de produção e comercialização
de hidrocarbonetos, sendo responsável pelo aumento da renda nacional ao longo
da década de 2000. Já o segundo setor é representado por atividades produtivas
de menor produtividade e que são beneficiadas pela transferência dos rents do
setor de petróleo e gás natural. Essa dinâmica é um dos principais fatores que
explicam porque o aumento dos rents durante o superciclo das commodities
internacionais não ocasionou um processo de modernização e diversificação
produtiva da economia da Rússia. (GURIEV; TSYVINSKI, 2010). Nas palavras de
Kudrin e; Gurvich (2015):
As enormes receitas excedentes que o país recebeu devido às condições
favoráveis nos mercados de produtos primários resultaram em um crescimento
considerável da produção, um aumento recorde da renda das famílias (juntamente
com um aumento da renda em todos os setores, incluindo o setor público,
pensões, etc), e garantiram a estabilidade macroeconômica. De todo modo, não
se pode dizer que o aumento desses recursos tenham resultado em um processo
de modernização econômica (na forma de investimentos governamentais,
despesas para criar instituições de desenvolvimento, vários subsídios, etc.)
15 Os custos excessivos decorrem principalmente de ineficiências produtivas na exploração de petróleo e gás
natural. O transporte do petróleo, por exemplo, é realizado principalmente por meio de ferrovias, que é um
meio de transporte significativamente mais dispendioso em comparação à utilização de oleodutos. A preferência
pela utilização de ferrovias está ligada a interesses das autoridades políticas de Moscou. A Uralvagonzavod
é a principal empresa produtora de vagões de trem e também fornece tanques para o exército da Rússia e se
beneficia diretamente da utilização de ferrovias para o transporte de petróleo.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
113Rafael Henrique Dias Manzi
que produziram resultados tangíveis, já que a competitividade internacional da
Rússia não teve melhora significativa
16
.
Connolly (2015) argumenta que a formulação composta por dois setores é
excessivamente reducionista e deve ser contemplada pela existência de um
terceiro setor que é formado por empresas relativamente pequenas e que atuam
principalmente no setor de serviços. Esse setor não depende da transferência
de recursos do setor estatal para se manter competitivo nos mercados
nacionais e internacionais. Embora esse setor não necessite de subsídios
estatais, a performance da economia russa afeta diretamente sua produtividade
em virtude da necessidade do estado russo prover, principalmente, infra-
estrutura, saúde e educação pública. Nesse sentido, a exaustão financeira do
estado russo afeta diretamente o desempenho econômico desse setor que gera
aproximadamente 20% dos empregos e da renda na Rússia
17
.
Tabela 3. Participação das exportações da Rússia nos mercados mundiais
(% do total global)
2001 2008 2013
Non-fuel 0.88 1.21 1.02
Máquinas e equipamentos 0.28 0.30 0.33
% da Rússia nos mercados globais 0.94 2.67 2.81
Fonte: Kudrin; Gurvich, (2015).
A incapacidade da Rússia em reduzir a dependência das exportações de
petróleo e elevar os níveis de produtividade do país em setores não ligados à
produção de commodities energéticas pode ser observada mais precisamente na
Tabela 3. A participação das exportações russas ganhou espaço nos mercados
internacionais ao saltar de 0.94% das exportações mundiais, em 2001, para 2.81%,
em 2013. Contudo, o crescimento do market sharing da Rússia nos mercados
globais decorreu, em grande medida, do aumento das exportações de commodities
16 “The huge surplus revenues the country received due to favourable conditions in the primary material markets
considerably accelerated production growth, ensured a record-breaking increase in household income (together
with wages in all branches, including the public sectors, pensions, etc), and enhanced macroeconomic stability.
At the time, one cannot say that the substantial resources allocated for economic modernization (in the form
of government investments, expenses for creating developmental institutions, various subsidies, etc.) yielded
any tangible results, as Russia’s international competitiveness has not improved.”
17 Esse setor é composto de empresas que possuem competitividade nos mercados internacionais. A Rússia possui,
por exemplo, aproximadamente 2.300 empresas do setor de softwares. Desse total, em torno de 1500 exportam
produtos de alto valor agregado relacionados a serviços e produtos na indústria de softwares. Além do setor
da informática, nesse grupo encontram-se empresas de transporte e serviços financeiros e gerais.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
114 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
energéticas. As exportações russas oriundas de setores não ligados ao setor de
hidrocarbonetos ficaram praticamente estagnadas nesse período. Entre 2001 e
2013, por exemplo, as exportações russas de máquinas e equipamentos tiveram
um crescimento substancialmente menor em comparação ao setor energético
(KUDRIN; GURVICH, 2015).
Um segundo fator que afeta a eficiência produtiva da economia da Rússia está
relacionado ao aprofundamento das relações de crony capitalism. Os anos 1990
foram marcados essencialmente pelo progressivo processo de desmantelamento
do Estado russo por meio da realização de um amplo processo de privatização das
empresas estatais. A partir do segundo mandato de Vladimir Putin (2004–2008),
esse processo começou a ser revertido por meio da maior centralização das
receitas oriundas de impostos e taxas, no âmbito do governo federal russo, e
pelo crescimento da participação do Estado como acionista, principalmente, das
empresas ligadas ao setor energético (ASLUND, 2014).
Empresas do setor financeiro, energia, transportes e mídia passaram a ser
mais controladas pelo governo, seja por meio de regulação ou da participação
acionário do governo russo. Em 2005, por exemplo, 70% dos ativos do setor
financeiro eram controlados por agentes privados enquanto que, em 2015, esse
percentual já havia caído pela metade. Em meados de 2015, aproximadamente
55% da economia russa estava sob controle direto do Estado. Essas políticas
incluem também o apoio a grandes empresas públicas e privadas nacionais por
meio da existência de subsídios e financiamentos estatais. Além disso, o Estado
russo estabeleceu uma política de “campeões nacionais”, com o intuito de dar
suporte a empresas nacionais. Em resumo, as reformas conduzidas no período
Putin culminaram com a transição do crony capitalism dos anos 1990, representado
pelo crescente poder dos oligarcas, para um mix, com o fortalecimento também
de um capitalismo de Estado. Nas palavras de Djankov (2015),
“Essa mudança resultou no fim do capitalismo de compadrio e no início do
capitalismo de estado, onde o Estado ou possuía os principais ativos produtivos
ou eram mantidos por amigos pessoais do presidente, que colocariam suas
empresas à disposição do Estado em troca por meio de contratos públicos,
acesso a crédito fácil através de bancos estatais e a proteção de sua riqueza.
18
18 “This shift presaged the end of crony capitalism and the start of state capitalism, where the state either owned
the main productive assets outright or they were held by personal friends of the president, who would put
their companies at the disposal of the state in exchange of government contracts, access to easy credit through
state-owned banks, and the protection of their wealth”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
115Rafael Henrique Dias Manzi
A disfuncionalidade desse modelo pode ser percebida por meio da origem e
crescimento da classe de bilionários do país. O aumento do número de bilionários
em um país normalmente é resultado de dois fenômenos: (1) surgimento de
novos empreendedores que atuam na produção ou serviços de alta tecnologia.
Nesse caso, o acúmulo de fortunas decorre da exploração de novos mercados
e tecnologias de alto valor agregado
19
; e (2) a classe de bilionários é composta
essencialmente por empresários que atuam em setores tradicionais como
construção, mercado imobiliário, mineração, hidrocarbonetos e outras commodities
(SHARMA, 2016).
Sharma (2016) classifica o primeiro tipo como os “bons bilionários” e o
segundo tipo como os “maus milionários”. Essa classificação decorre do fato
que a riqueza dos bons bilionários tem origem essencialmente na produção de
bens e serviços em setores de alto valor agregado, que se reflete em inovação e
competitividade sistêmica da economia de um país. Não por acaso, por exemplo,
os bons bilionários que produzem bens e serviços com maior nível de inovação
e também no limite da fronteira tecnológica concentram-se principalmente nas
economias desenvolvidas e ricas. Ao contrário, nos setores constituídos pelos maus
bilionários, o nível de inovação e competição tende a ser menor e o acúmulo de
fortunas decorre em grande medida da associação direta ou indireta com o setor
público e derivam de atividades predominantemente baseadas no rent-seeking.
Esse é precisamente o caso da Rússia.
A existência de um elevado percentual da renda nacional controlada pelos
“maus bilionários” é um sinal de uma economia com menor propensão à inovação
e, por seguinte, modernização. Na prática, o processo de modernização produtiva
de uma economia decorre, em grande medida, do processo de criação destrutiva
20
e
do surgimento de novas tecnologias disruptivas
21
. Em economias onde predominam
os maus bilionários, tal fenômeno é bloqueado pelos grupos econômicos que se
19 Esses novos bilionários, em muitos casos, são fundadores de empresas que tiveram crescimento gigantesco em
poucos anos e incluem, por exemplo, os fundadores de empresas como Facebook, Amazon, Google e outras
ligadas principalmente ao setor de alta tecnologia.
20 O termo destruição criativa foi cunhado pelo economista austríaco, Joseph Schumpeter, para descrever o processo
de desenvolvimento econômico em uma economia capitalista. A substituição de processos produtivos por novas
técnicas produtivas mais eficientes é a base do processo de inovação de economias de mercado. Sobre o termo
e sua aplicação no caso russo, ver Guriev e; Tsyvinski (2010).
21 O termo tecnologia disruptiva é utilizado para designar o surgimento de novos padrões tecnológicos que implique
em uma ruptura com os padrões de tecnologias vigentes. Esse é o caso principalmente das tecnologias ligadas
à terceira e à quarta revoluções industriais. Sobre as características gerais da quarta revolução industrial, ver
Schwab (2016).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
116 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
beneficiam do status quo, o que acaba reduzindo os níveis de competitividade
sistêmica do próprio país Como ressalta Sharma (2016, p. 131): “É um mau sinal
quando a classe bilionária de um país possui uma parcela excessiva da economia,
se torna uma elite entrincheirada e inata, e produz sua riqueza principalmente
de indústrias que dependem da regulamentação governamental. Uma economia
saudável precisa de magnatas produtivos e não de magnatas corruptos
22
”.
Além de questões relacionadas à eficiência econômica, a relativa estagnação
da economia da Rússia está relacionada também à insuficiência de investimentos
produtivos. Nas palavras de Aleksashenko (2012, p. 37): “Considera-se que, nas
economias em desenvolvimento, o investimento deve representar 25% a 30% do
PIB, na Rússia os níveis de investimento estão em um nível não maior do que
21-22%
23
. Como é possível observar na Tabela 4, a taxa média de investimento na
Rússia, entre 2000 e 2015, ficou abaixo da média observada nas maiores economias
emergentes — com exceção do Brasil — e também em um patamar inferior à
observada na própria média global. Mesmo no período de maior crescimento do
PIB, entre 2000 e 2008, a taxa média de investimento ficou ao redor de 20% do PIB.
Tabela 4. Taxa média anual de investimento em % do PIB, entre 2000 e 2015,
em economias emergentes selecionadas
Média anual em % do PIB (2000-2015)
China 42.6%
Índia 35.3%
Indonésia 30.1%
Turquia 26.3%
México 22.3%
Rússia 20.5%
Brasil 19.4%
Mundo 24.3%
Fonte: FMI, 2018a.
Connoly (2013) observa que, no caso da Rússia, existe forte relação de
causalidade entre o baixo nível de desenvolvimento dos mercados financeiros e
22 “It’s a bad sign if the billionaire class owns a bloated share of the economy, becomes an entrenched and inbred
elite, and produces its wealth mainly from politically connected industries. A healthy economy needs an evolving
cast of productive tycoons, not a fixed cast of corrupt tycoons”.
23 “It is considered that in developing economies investment should make up 25-30 per cent of GDP, yet Russia
the level is no higher than 21-22 per cent”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
117Rafael Henrique Dias Manzi
a realização de investimentos produtivos. Esse fenômeno é resultado da interação
de quatro fatores: (1) o Estado controla e aloca a maior parte do crédito nacional,
o que naturalmente reduz a disponibilidade da poupança para setores não
contemplados pelas autoridades econômicas da Rússia, (2) o sistema privado
bancário russo é composto majoritariamente por pequenos bancos. Os maiores
bancos estão sob o controle estatal e direcionam seus empréstimos essencialmente
para grandes empresas que possuem apoio político de Moscou, (3) o sistema
financeiro russo é financiado basicamente por operações bancárias. As empresas que
possuem ações negociadas nas bolsas de valores são predominantemente grandes
companhias ligadas ao setor energético e os mercados para a comercialização de
dívidas privadas têm pouca relevância e (4) a participação de bancos estrangeiros
é limitada, o que reduz a oferta final de capitais para potenciais tomadores de
empréstimo na Rússia.
O baixo nível de investimentos produtivos da Rússia está relacionado
também a questões relativas aos direitos de propriedade. O relatório do World
Economic Forum (2017)
24
aponta que, nessas variáveis, a Rússia possui notas e
posicionamento bem abaixo do esperado para uma economia de alta renda média
que busca convergir seus níveis de renda para os níveis de países desenvolvidos.
Alguns desses dados estão disponibilizados na Tabela 5.
Tabela 5. Evolução das notas e posição da Rússia em tópicos específicos no
relatório de competitividade do World Economic Forum (2016-2017)
Nota (1-7) Posição no Ranking Global
Direitos de propriedade privada 3.5 123º
Independência do judiciário 3.3 117º
Proteção dos direitos dos acionistas minoritários 3.5 116º
Fonte: World Economic Forum (2017).
No ranking de competitividade global, a Rússia ocupa a 43ª posição geral.
Todavia, nos quesitos tocantes a questões que envolvemos direitos de propriedade
privada, independência do judiciário e proteção aos acionistas minoritários, a
posição da Rússia é bem abaixo da média observada em comparação às economias
de alta renda. A evolução desses quesitos é fundamental, principalmente para a
24 Mesmo que a construção desses índices envolva valores subjetivos e de difícil mensuração, a própria metodologia
empregada é baseada na opinião dos próprios agentes econômicos, o que reforça a importância desses quesitos
para melhorar o próprio ambiente de negócios no país.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
118 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
transição de países de renda média para economias desenvolvidas. No caso russo,
existe forte nexo entre direitos de propriedade privada, proteção aos acionistas
minoritários, independência do judiciário e a realização de investimentos
produtivos. Esse fenômeno tem impactos negativos principalmente para a realização
de investimentos de longo prazo e explicam a redução dos investimentos, por
exemplo, na exploração de novas reservas de hidrocarbonetos que comprometem a
produção futura no setor energético. Como observam Gaddy e; Ickes (2013, p. 574):
“Quando há incerteza sobre os direitos de propriedade, a melhor decisão é esgotar
os recursos no curto prazo e não desenvolver novos campos para o futuro”
25
.
Considerações Finais
Em certo sentido, não é exagero comparar literalmente o desempenho da
economia da Rússia a partir do fim da Guerra Fria ao trajeto de uma montanha
russa. Essa constatação deve-se à alta volatilidade dos indicadores de renda da
Rússia a partir da transição do país para uma economia de mercado no início
dos anos de 1990. A década de 1990, por exemplo, foi marcada por intensas
instabilidades macroeconômicas e por uma profunda recessão econômica. Esse
período acabou a partir do fim dos anos de1990, quando teve início um novo
ciclo de expansão econômica que se prolongou até a eclosão da crise global de
2008. O período de recuperação da economia da Rússia não ocorre por acaso e
está ligado principalmente ao início do superciclo das commodities internacionais
e à realização de reformas domésticas que foram decisivas para colocar fim às
instabilidades macroeconômicas que marcaram a década perdida de 1990.
Após a eclosão da crise global de 2008, a economia da Rússia entrou em
uma nova fase marcada por uma relativa estagnação econômica. Mesmo com a
recuperação dos preços das commodities energéticas, após o epicentro da crise
global de 2008, a economia da Rússia já não mostrou o mesmo dinamismo em
comparação aos anos de maior crescimento econômico. Entre 2010 e 2014, ocorreu
um progressivo declínio da taxa de crescimento do PIB e o país entrou em recessão
econômica a partir do biênio 2015/2016. Além da substancial queda dos preços
das commodities energéticas, as rivalidades políticas da Rússia com o mundo
ocidental entraram em uma nova fase a partir da eclosão da crise da Crimeia.
A aplicação de sanções econômicas reduziu consideravelmente o acesso das
25 “When there is uncertainty over the future of one’s property, the optimal decision is to deplete what you have,
not to develop new fields for the future”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
119Rafael Henrique Dias Manzi
empresas russas aos mercados financeiros internacionais e também tem reflexos
sobre o setor de petróleo e gás em virtude de restrições impostas pelos governos
dos Estados Unidos e da Europa para transferência de tecnologia e a realização
de empreendimentos em comum com empresas da Rússia.
Esse cenário apenas reforça a percepção de que os preços das commodities
energéticas é uma variável fundamental para explicar o desempenho da economia
da Rússia nas últimas décadas. De todo modo, o significativo crescimento
da renda a partir do início do superciclo das commodities internacionais não
resultou em ganhos estruturais de longo prazo no tocante a um maior processo
de modernização e diversificação produtiva da economia da Rússia. Ao contrário
disso, a dependência do setor de petróleo e gás, como principal indutor do
crescimento econômico, elevou-se no decorrer da década de 2000. Essa dinâmica
está relacionada diretamente a uma dualidade no sistema produtivo russo e à
transferência dos rents do setor de petróleo e gás para outras atividades que
possuem menores níveis de competitividade e produtividade.
A incapacidade de maior diversificação produtiva da Rússia reflete-se,
por exemplo, na alta concentração de commodities energéticas na pauta de
exportação do país. Além de questões relacionadas à baixa eficiência econômica,
a economia russa registra também taxas de investimento inferiores aos países
em desenvolvimento que passaram por períodos de aceleração econômica a
partir do início do novo milênio. Essas deformidades e fragilidades e a transição
incompleta da Rússia para uma economia de mercado mais competitiva é expressa
nas seguintes palavras de Letiche (2007, p. 60):
Para alcançar o desenvolvimento econômico no longo prazo, a Rússia
depende do estabelecimento de um ambiente de negócios satisfatório para
a expansão do investimento privado. No entanto, no recente processo de
transição, as reformas políticas e econômicas na Rússia enfrentam um trilema
marcado pela existência de: um sistema econômico de quase-mercado, uma
burocracia destrutiva e a persistência de uma corrupção sistêmica. Essas
características resultam não apenas na redução da taxa de investimento
nacional e estrangeiro, mas impedem também uma maior integração da
Rússia com a própria economia mundial
26
.
26 Russia’s long-term success in economic development is contingent on establishing a satisfactory environment
for a high and sustained level of private investment. However, in the recent transition, Russia’s economic and
political progress has been hampered by a trilemma: a quasi-market system, a destructive bureaucracy and
systemic corruption. These conditions had the effect not only of decelerating the rate of growth in domestic
and foreign investment, but also of impeding Russia’s advance into the global economy.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 94-122
120 A economia da Rússia no século 21: as dinâmicas da ascensão econômica [...]
Nesse sentido, mesmo após as reformas econômicas que culminaram em uma
significativa transferência dos ativos públicos para o setor privado, a economia
da Rússia ainda apresenta problemas estruturais que afetam negativamente o
desempenho econômico do país. Entre as principais fragilidades domésticas,
destacam-se: a reversão parcial do processo de privatização realizado na década
de 1990, que aprofundou as relações de crony capitalism e reduziu a eficiência
produtiva da economia da Rússia; deformidades no sistema financeiro que elevam
os investimentos em setores de baixa competitividade em detrimento da alocação
do crédito para atividades de maior eficiência e produtividade e; insegurança
jurídica relacionada aos direitos de propriedade privada que acabam gerando
desincentivos para a realização de novos investimentos produtivos que impliquem
em um processo de maior diversidade produtiva da Rússia.
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123João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
La cooperación de China en América Latina:
¿hacia una Nueva Economía Estructural?
A Cooperação da China na América Latina:
Rumo a uma Nova Economia Estrutural?
Chinese cooperation in Latin America:
¿toward a New Structural Economics?
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.806
Eduardo Crivelli Minutti
1
Giuseppe Lo Brutto
2
Resumen
Durante la primera década del siglo XXI, América Latina fortaleció sus relaciones con China,
hasta convertirse en un socio estratégico para el comercio, la inversión y la cooperación de
este país asiático. Se trata de una asociación estratégica que, comprendida bajo la teoría
de la Nueva Economía Estructural, se aleja de los esquemas tradicionales de ayuda para
revestir a la cooperación al desarrollo de dialogo político, acuerdos comerciales, inversiones
y préstamos no-concesionados en infraestructura, buscando reequilibrar las relaciones
económicas internacionales. Por tal motivo, el objetivo de este trabajo es dar cuenta de la
cooperación al desarrollo que China realiza en los marcos de una posible transformación
estructural en la región latinoamericana.
Palabras clave: Cooperación Sur-Sur; Nueva Economía Estructural; China; América Latina.
1 Maestro en Sociología por el Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades “Alfonso Vélez Pliego” (ICSyH)
de la Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (BUAP). Estudiante del Doctorado en Sociología en el
ICSyH-BUAP. Profesor de la Licenciatura en Relaciones Internacionales de la Facultad de Derecho y Ciencias
Sociales de la BUAP. Secretario del Grupo de Investigación en Cooperación Sur-Sur e Integraciones Regionales
(GI CSS-IR) de la Red Española de Estudios del Desarrollo (REEDES). Correo: edoardocrivelli@hotmaiñ.com
2 Doctor en Economía Política del Desarrollo por la de la Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (BUAP).
Profesor-investigador titular del Posgrado en Sociología del Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades
Alfonso Vélez Pliego” (ICSyH) de la BUAP. Coordinador del Grupo de Investigación en Cooperación Sur-Sur
e Integraciones Regionales (GI CSS-IR) de la Red Española de Estudios del Desarrollo (REEDES). Miembro del
Sistema Nacional de Investigadores (SNI) del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONACyT) de México.
Correo: giuseloby@msn.com
Artigo submetido em 21/05/2018 e aprovado em 16/08/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
124 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
Resumo
Durante a primeira década do século XXI, a América Latina fortaleceu as suas relações com
a China até se tornar um sócio estratégico para o comércio, o investimento e a cooperação
com o país asiático. Trata-se de uma associação estratégica que, compreendida sob a teoria
da Nova Economia Estrutural, se afasta dos esquemas tradicionais de ajuda que norteiam a
cooperação para o desenvolvimento de diálogo político, acordos comerciais, investimentos
e empréstimos não-concessionados em infraestrutura, buscando reequilibrar as relações
econômicas internacionais. Deste modo, o objetivo do trabalho é analisar a cooperação para
o desenvolvimento que a China realiza nos marcos de uma possível transformação estrutural
na região latino-americano.
Palavras-chave: Cooperação Sul-Sul; Nova Economia Estrutural; China; América Latina.
Abstract
During the first decade of the 21st century, Latin America strengthened its relations with China
until becoming a strategic partner for the trade, investment and cooperation of this Asian
country. It is a strategic association that, under the theory of the New Structural Economy,
moves away from the traditional aid schemes to revert to the development cooperation of
political dialogue, trade agreements, investments and non-concessional loans in infrastructure,
seeking to rebalance the international economic relations. For this reason, the objective of
this work is to give an account of the development cooperation that China is making in the
framework of a possible structural transformation in the Latin American region.
Key words: South-South Cooperation; New Structural Economics; China; Latin America.
Introducción
Al volver a examinar las estrategias para lograr un desarrollo sostenible en
los países del Sur ante la reciente crisis financiera, Justin Yifu Lin (2010; 2012),
en colaboración con Ya Wang (LIN; WANG; 2017), ha propuesto la teoría de la
Nueva Economía Estructural (NEE), en un afán de valorizar el cambio estructural
y la modernización industrial que no han recibido la suficiente atención en la
literatura económica tradicional, resultando insuficiente a la hora de buscar
estrategias efectivas para impulsar un crecimiento sostenible (LIN, 2010, p. ii).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
125João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
Haciendo uso del enfoque neoclásico, la NEE basa su hipótesis en el hecho de
que la estructura económica (incluida la tecnología, la industria y la infraestructura
dura y blanda
3
) es endógena a la estructura de dotación factorial, que se da en
cualquier momento específico y que cambia en el tiempo. Por ello, seguir la
ventaja comparativa para desarrollar industrias es la mejor manera para que un
país sea competitivo, tenga excedentes económicos, fomente el ahorro y mejore
la estructura de dotación, manteniendo la modernización industrial, crecimiento
en ingresos y reducción de la pobreza. Esto se da/ocurre con la necesidad de
generar un mercado competitivo para las industrias en desarrollo de acuerdo
con las ventajas comparativas de cada país y un Estado desarrollista facilitador
de mejorar su “infraestructura dura y blanda que la modernización industrial
requiere” (LIN; WANG, 2017, p. 15-16 ). En otras palabras, la NEE sustenta una
estrategia de desarrollo acompañada de recomendaciones de política económica.
Ante ello, la hipótesis que guía este trabajo es que la NEE surge como una
teoría-estrategia política que puede reconfigurar e incluso ser la base para la
construcción de un nuevo régimen de cooperación al desarrollo bajo el liderazgo
de Beijing
4
. A la luz de esta premisa, como hipótesis predictiva, la cooperación
entre China y América Latina (AL) se insertará en el esquema de la Nueva Ruta
de la Seda propuesta por el presidente Xi Jinping, aunque este macroproyecto ha
desplazado por ahora solo algunas sinergias hasta dicha región.
En este panorama, el objetivo del presente artículo es identificar algunas
cuestiones sobre los procesos de cooperación entre China y AL en su avance hacia
un nuevo régimen de cooperación internacional, comprendido bajo la teoría de la
NEE. Para lograr dicho cometido y deslumbrar aquellos elementos que permiten
avanzar hacia nuestra hipótesis de trabajo, este artículo se divide en cuatro partes,
3 La infraestructura “dura” (hard) se refiere a aquello tangible, como las carreteras, puentes, puertos, etc.; mientras
que la “blanda” o “suave” (soft) se relaciona con aquello intangible, como el ambiente financiero y legal para la
implementación de las inversiones. Ambos tipos de infraestructura son necesarios para facilitar las transacciones
de producción y de mercado, permitiendo que la economía llegue a su frontera de posibilidades de producción
al reducir los costos de transacción (LIN; WANG, 2017, p. 25).
4 Recuperando la tradición desarrollista de las teorías dependentistas a favor de una transformación de la estructura
productiva (industrialización), los países del G77 y China afirmaron un compromiso para dar forma a la agenda
internacional para el desarrollo después de 2015, en cuyo centro está la teoría de la NEE (DOMÍNGUEZ, 2017, p. 70).
La NEE es considerada la teoría económica que sustenta el nuevo régimen internacional de CSS, asumiendo el patrón
difusionista del desarrollo a partir de la trayectoria en V invertida (flying geese pattern), según la cual China, en su
proceso de graduación en desarrollo, reasignará las industrias más intensivas en mano de obra hacia otros países
menos desarrollados, donde la inversión en infraestructuras permitirá capturar esa ventana de oportunidad por las
ventajas de una mano de obra más barata, generando empleos, reduciendo la pobreza y ayudando así a subir por
la escalera del desarrollo como hizo China en su historia reciente (DOMÍNGUEZ, 2018, p. 61).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
126 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
partiendo, en primer lugar, de algunas consideraciones generales sobre las nuevas
dinámicas de la cooperación internacional que permitan diferenciarlas de la
ayuda tradicional; en segundo lugar, se reflexiona sobre la intensificación de las
relaciones entre China y AL en el siglo XXI, poniendo énfasis en el hecho de que
el sistema de ayuda chino se articula en el diálogo político, acuerdos comerciales
y una nueva forma de financiación del desarrollo
5
; en tercer lugar se presentan
una serie de datos que permiten considerar si China y los países latinoamericanos
van avanzando hacia la NEE; y, por último, se presentan algunas consideraciones
finales que permiten ayudarnos a vislumbrar los procesos de cooperación china
en la región.
Las nuevas dinámicas de la cooperación internacional
Durante la segunda mitad del siglo XX, la ideología de la cooperación
internacional para el desarrollo (CID) justificó un conjunto de medidas económicas
y políticas con el propósito teórico de promover el progreso económico y social
en aquellas “zonas atrasadas”, que supuestamente debían transitar al desarrollo
(LO BRUTTO, 2017, p. 59). Aunque lejos de ser un concepto aplicable a todo tiempo
y lugar, la CID tuvo diferentes enfoques, prioridades y modalidades operativas,
resultando en la mayoría de los casos un recurso a favor del posicionamiento
político y geoestratégico que promocionó los intereses empresariales privados
de los países ricos en detrimento del interés público de los países receptores
más pobres
6
.
Sin embargo, desde finales del siglo pasado, las cosas empezaron a
cambiar y la mayoría de los países de renta media alta iniciaron a consolidar su
posición internacional como receptores y donantes de cooperación, aunque casi
exclusivamente bajo las modalidades de la asistencia técnica e intercambios de
5 Rafael Domínguez (2016, p. 68-69) señala que la Cooperación Sur-Sur (CSS) hizo desde sus inicios un uso
intensivo de los tres pilares que incluye la Cooperación Internacional para el Desarrollo (CID) como herramienta
de política exterior: el diálogo político; los acuerdos comerciales y la cooperación financiera y técnica. Es por
ello que nuestra hipótesis de trabajo se sustenta en el hecho de que hoy la cooperación china recupera el
sentido de lo que fue la CSS en los ’50 del siglo pasado, intentando analizar el fenómeno en cuestión con una
perspectiva histórica y crítica.
6 La ayuda tradicional al desarrollo ha resultado en gran medida inadecuada para impulsar el crecimiento en
las economías de mercado emergentes, por ello, alcanzar los Objetivos del Desarrollo Sostenible (ODS) para
el 2030, así como combatir el cambio climático según los objetivos en la última reunión del COP21, requerirá
grandes cantidades de recursos que parecen inalcanzables (LIN; WANG, 2017, p. 1).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
127João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
buenas prácticas. La creciente importancia de la cooperación Sur-Sur (CSS)
7
y de
la cooperación triangular permitieron ganar mucho terreno en el reconocimiento
de las capacidades de estos países menos desarrollados para complementar los
flujos tradicionales de cooperación y contribuir a la provisión de bienes públicos
globales (DOMÍNGUEZ; RODRÍGUEZ, 2017, p. 8).
La secuencia histórica de la CID se vio modificada, porque el mundo en
desarrollo se hizo cada vez más diverso y complejo, así como por el desplazamiento
parcial de los centros de gravitación del poder económico y político a escala
internacional, sobre todo debido al surgimiento de nuevas potencias regionales
y globales que han pasado de ser receptores a proveedores de cooperación.
La emergencia de nuevos actores también generó un doble desafío en la agenda
de investigación, pues obligó a indagar sobre el grado de correspondencia que
existe entre la realidad de su proceder internacional y los atributos que los propios
países otorgan a su cooperación; asimismo se develó la necesidad de trascender los
rasgos que se consideran comunes para investigar las diferencias de los modelos
de CSS (SANTANDER, 2016, p. 18-19).
El cambio en las dinámicas de la CID se observa en el paso del bilateralismo
al multilateralismo en un escenario en el que China ha sabido tomar un gran
liderazgo, formando cuerpos multilaterales que reflejan sus ideas de desarrollo,
experiencias y conocimiento táctico para una inclusiva y sustentable transformación
estructural del Sur global, incluyendo a muchos países latinoamericanos que
participan activamente en este proceso (LIN; WANG, 2017 p. 7).
En este sentido, se recupera la idea de la “crisis de identidad” de la tradicional
forma de cooperación internacional para el desarrollo como resultado de las
contradicciones recurrentes del sistema de ayuda, la proliferación de nuevos
actores públicos y privados, así como por la disolución de la metáfora jerárquica
Norte-Sur ordenadora de las relaciones internacionales (DOMÍNGUEZ, 2011, p. 1).
Así, surge una nueva identidad de la CSS como la continuidad a la crisis de identidad
de la tradicional forma de cooperación Norte-Sur (LO BRUTTO; GONZÁLEZ, 2015,
p. 11). Por eso, es importante comprender la geopolítica internacional contemporánea
en la que China y otras potencias emergentes pueden desempeñar un papel
7 La CSS nace de la confluencia del Movimiento de Países No Alineados (1961) tras la conferencia de Bandung
(1955) y la creación el G77 (1964) en el seno de la UNCTAD (Conferencia sobre Comercio y Desarrollo), a la que
luego se invitaría a China, que había asistido a Bandung como asociado permanente cuando tomó su asiento
en Naciones Unidas, en 1971. En ese sentido, la CSS fue un intento de construir coaliciones internacionales
para cambiar el orden económico mundial (DOMÍNGUEZ, 2016, p. 67).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
128 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
benigno hacia un orden mundial más razonable y estable, a través de una cabal
comprensión de la propia CSS en perspectiva histórica (DOMÍNGUEZ, 2017, p. 61).
De esta forma, a partir del proyecto de expansión global de China en el siglo
XXI, la NEE busca ser una estrategia efectiva y sustentable para que un país de
bajos ingresos alcance un crecimiento y un desarrollo dinámico al fortalecer
aquellos sectores en los que tiene ventajas comparativas latentes, es decir, en
donde los costos de producción son bajos, pero los costos transaccionales son
altos debido a una infraestructura dura y blanda inadecuadas (LIN, 2012, p. 6).
Siguiendo a Rafael Domínguez (2016), se observa que el discurso de la
CSS, como relación horizontal, encuentra su coherencia con el mandato de las
agencias, secretarías o direcciones de cooperación internacional centradas en la
cooperación no reembolsable. No obstante, los valores de horizontalidad, respeto
de la soberanía, no condicionalidad y beneficio mutuo vinculados a buena parte de
la retórica y autolegitimación de la CSS también se han transmitido a los donantes
del Comité de Ayuda al Desarrollo (CAD), pero con un doble efecto perverso, al
entorpecer el entendimiento cabal de la misma y obstaculizar el fortalecimiento
de la CSS para el desarrollo como proyecto de régimen internacional.
Al defender la idea de la financiación del desarrollo como alternativa a
la Ayuda Oficial al Desarrollo (AOD), China define su postura de ir más allá de la
ayuda hacia una estrategia más amplia, incluyendo el comercio y la inversión que
podrían llevar a la transformación estructural de AL. Por eso, en la era de la NEE
se revisa la definición de AOD que propone la Organización para la Cooperación
y el Desarrollo Económicos (OCDE)
8
, que ni siquiera incluye los instrumentos
básicos para facilitar la transformación estructural en los países receptores, como
lo son la inversión de capital y los grandes préstamos no-concesionales para
infraestructura
9
.
8 La AOD es definida como aquellos flujos dirigidos a países y/o a instituciones multilaterales de desarrollo que
figuran en la lista de países receptores del CAD y que son proporcionados por organismos oficiales, incluidos
gobiernos estatales y locales, cuyas transacciones se administran con el objetivo de promover el desarrollo y
el bienestar económicos de los países en desarrollo y son de carácter concesional, llevando un elemento de
donación de al menos el 25% (OECD, 2008, p. 1). Sin embargo, esta categorización ha generado orientaciones
concretas que han impulsado y a la vez reprimido y negado ciertas prácticas sociales llamadas CID en desmedro
de otras (LEMUS, 2017, p. 44).
9 China ha dejado en claro que la inversión y el comercio son el eje sobre el cual se debe mover la cooperación
para el desarrollo, los cuales han comprobado ser herramientas más efectivas para la reducción de la pobreza y
la disminución de la igualdad. Esto ha sido acompañado por la ideología China de la ayuda mutua en relación
con su experiencia de crecimiento a los países con los que coopera, ofreciéndoles la metodología en las cuales
ellos se han especializado (LIN; WANG, 2017, p. 7).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
129João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
Ante ello, como se verá en el siguiente apartado, China ha sabido combinar la
ayuda con comercio e inversión para que tanto los donantes como los receptores se
beneficien por igual, evitando los famosos “cuellos de botella” característicos del
modelo de AOD estándar, que separa la ayuda del comercio y la inversión privada
y que, en consecuencia, impide que los países exploten sus ventajas comparativas
(LIN; WANG, 2017, p. 2-3). Pero para llegar a este punto ha sido fundamental el
dialogo político y la formalización de distintos acuerdos comerciales que van en
línea con los planes chinos de expansión global, en los que AL juega un papel
muy importante.
La intensificación de las relaciones entre China y América Latina
Con el fin de dejar atrás antiguos enfoques de economía estructural basados
en sustitución de importaciones que afectan negativamente a la competitividad
de varias cadenas de valor, prohibiendo las importaciones y aumentando los
aranceles, la NEE opta, más bien, por reformular las políticas comerciales con la
gradual liberalización del comercio, pero en cuya transición el Estado considere
proporcionar cierta protección temporal a las industrias que no son consistentes
con la ventaja comparativa del país (LIN, 2012, p. 242). En la reformulación de
políticas comerciales, el diálogo y los acuerdos son fundamentales a la hora de
reforzar los posicionamientos políticos comunes y lograr una inserción autónoma,
no dependiente, en la globalización.
Por eso, si bien las relaciones de China con AL no son nuevas, si lo es su
intensificación en los últimos años. Sobre todo en el marco de la Guerra Fría
(1947-1991), la estrecha relación geopolítica con los Estados Unidos (EEUU)
impidió que la política de ayuda exterior de la República Popular China (RPCh)
fuera prominente en esta región. Sin embargo, la historia de la relación China-
AL muestra que la ayuda china ha sido una palanca diplomática indispensable
para promover el establecimiento y consolidación de relaciones diplomáticas y
comerciales entre ambas partes. En lo que va del siglo XXI, 20 países de AL han
recibido diferentes formas de ayuda de China, siendo los países del Caribe los
principales receptores (HONGBO, 2017, p. 281).
Desde la primera gira oficial del presidente Jiang Zemin, en 2001, y después con
las visitas del presidente Hu Jintao, en 2004, 2005 y 2008, China operó siguiendo el
principio de no provocación a los EEUU, pero ocupando paulatinamente espacios
dejados por los estadounidenses (DOMINGUEZ, 2017, p. 69). La RPCh empezó
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
130 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
a esbozar otra forma de ayuda y cooperación al desarrollo que ha mejorado su
imagen y erosionado indirectamente el poder estadounidense en AL, a partir de
una política comercial que marcó su inició con la firma de un Tratado de Libre
Comercio (TLC) con Chile, en el 2006. El gobierno chino se mostró interesado en
fortalecer sus relaciones con los países latinoamericanos, publicando, incluso, en
2008, un documento conocido como “El libro Blanco de las Políticas de China hacia
América Latina”, en el que por primera vez las autoridades chinas enunciaron
que sus vínculos con la región deberían basarse en relaciones de equidad y
cooperación mutuamente beneficiosas (MRERPC, 2016). Posteriormente, en el 2010,
Perú también subscribió un TLC con China y un año después lo hizo Costa Rica,
abriendo, de esta forma, la puerta y las condiciones arancelarias para el acceso
al mercado chino considerablemente más favorables que el régimen general de
nación más favorecida en el que se habían basado las transacciones precedentes
(MARTÍNEZ, 2015).
Los países latinoamericanos vieron con buenos ojos la invitación para
integrarse a los proyectos chinos en el ámbito del comercio, las inversiones y
el desarrollo infraestructural y, en este contexto, el gobierno chino reafirmó su
compromiso con AL a través de la implementación del Plan de Cooperación
“1+3+6”
10
, anunciado por el presidente Xi en la IV Cumbre de los BRICS, en
2014, en donde, además, se invitó a la Comunidad de Estados Latinoamericanos
y Caribeños (CELAC) a sumarse a esta iniciativa. Así, en 2015, en el marco de
la Primera Cumbre CELAC-China, se confirmó para esta región un crédito chino
especial en infraestructura por un monto de USD 20.000 millones; líneas de crédito
preferencial de USD 10.000 millones y un fondo de USD 5,000 millones, así como
también otro fondo especial de cooperación agrícola de USD 50 millones más.
Para el afianzamiento de los distintos proyectos de cooperación enmarcados en
ese plan, también se contemplaron 6.000 becas de capacitación para los países
miembros de la CELAC y un programa de invitación de 1.000 líderes de partidos
políticos a China y la formación de otros 1.000 líderes en la región en los sucesivos
cinco años (PORTELLES, 2015).
Es evidente que China también se ha preocupado por promover un intercambio
cultural más estrecho con los países latinoamericanos al fortalecer su presencia
en los órganos legislativos, partidos políticos y gobiernos locales, es decir, con
10 La fórmula “1+3+6” parte de un programa de cooperación de los próximos cinco años (2015-2020) que
pretende avanzar con la fuerza de tres motores: el comercio, la inversión y la cooperación financiera, con los
que se desarrollan seis ejes en el ámbito de la cooperación energética, recursos naturales, construcción de
infraestructuras, agricultura, manufactura, innovación tecnológica y tecnología informática (PORTELLES, 2015).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
131João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
todos aquellos actores importantes en la toma de decisiones y, en consecuencia, de
fundamental importancia para el desarrollo de la diplomacia china en esta región.
AL es importante para la diplomacia del gobierno de Beijín que busca
ganar aliados en la resolución de la controversia sobre el estatus político y el
reconocimiento internacional de Taiwán como parte de la RPCh. De los 18 países
que reconocen a Taiwán como Estado soberano, 10 se encuentran en AL, motivo
por el cual el gobierno chino pide a los países de esta región que mantengan
su política de reconocimiento de “una sola China” — como consecuencia, por
ejemplo, en 2007 Costa Rica optó por romper la relación de más de 60 años con
la isla para establecer relaciones con la RPCh (BBC, 2017).
La diplomacia china se ha intensificado desde que Xi Jinping visitó AL como
vicepresidente, en 2009 y 2011, y luego como presidente, en 2013, 2014 y 2016, lo
que ya suma cinco visitas a la región, firmando más de 280 acuerdos con 11 países
11
,
cifra que podría elevarse si se consideran las visitas de otros dignatarios chinos
a AL y las numerosas visitas de los presidentes y dignatarios latinoamericanos
en China (IISCAL, 2016).
De esta forma, China ha ido ganando terreno en AL, consolidándose hoy como
el principal socio comercial de Brasil, Chile y Perú y el segundo en importancia para
México, Argentina y Venezuela. Pero a diferencia de los EEUU y otras potencias
europeas, este país asiático se ha insertado en la región como un actor pragmático,
mostrando mayor interés en las relaciones económicas y comerciales que en los
aspectos políticos internos.
El compromiso estratégico con la región fue refrendado una vez más en
2016, con un segundo “Documento sobre la Política China hacia América Latina”,
complementando el texto lanzado ocho años antes debido a la creciente inversión
de las empresas chinas que se alinearán con las necesidades de los países
latinoamericanos para un desarrollo independiente (MRERPC, 2016), y luego a
finales de 2017, cuando el gobierno chino propuso un TLC entre su país y la CELAC.
Por estos motivos, muchos gobiernos de AL han descartado la preocupación sobre
la posible injerencia de la RPCh en los asuntos políticos locales, vislumbrando
en la política comercial china una ventana de oportunidad para el desarrollo
estructural de la región.
11 En el marco de la visita del Presidente Xi Jinping a México, Costa Rica, y Trinidad y Tobago, en junio de 2013,
se firmaron más de 25 acuerdos. Luego, durante su visita a Brasil, Venezuela, Argentina y Cuba, en julio de
2014, se consolidaron más de 120 acuerdos. Más de 70 acuerdos fueron firmados, también, durante la visita del
Premier Li Keqiang en Brasil, Colombia, Perú y Chile, en mayo de 2015, y posteriormente fueron concretados
más de 30 tras su estancia en Cuba, en septiembre de 2016. Recientemente, en noviembre de 2016, se firmaron
41 acuerdos durante la nueva visita de Xi Jinping a Ecuador, Perú y Chile (IISCAL, 2016).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
132 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
China y América Latina ¿hacia una Nueva Economía Estructural?
A diferencia de otros donantes tradicionales, China se ha caracterizado por
disponer de asistencia rápida y eficaz, con cooperación pragmática y selectividad
bilateral que atiende a las necesidades de AL por diversificar sus relaciones políticas
y comerciales, avanzando en una agenda de dialogo que facilita el comercio, las
inversiones y la colaboración (CEPAL, 2011, p. 30-32). Así bien, la NEE sugiere
la liberación gradual del comercio en un enfoque pragmático de doble vía que
ayude a una economía en transición a evitar interrupciones socioeconómicas
innecesarias y costosas, mientras la conduce a un sistema de precios basados en
el mercado y asignación de recursos (LIN, 2012, p. 78).
En esta lógica, el comercio entre AL y China se ha intensificado en los últimos
años, siendo mutuamente beneficioso, en la medida en que los países latinoamericanos
empezaron a diversificar sus destinos de exportación y los chinos accedieron a una
fuente confiable de recursos para potencializar su desarrollo. Por ello, el comercio
bilateral entre ambas partes pasó de USD 15.765 millones en el año 2001, llegando
a un máximo de USD 277.175 millones en el 2014, con un crecimiento promedio
del 26% anual
12
, tal y como se muestra en la siguiente gráfica.
Grafica 1. Comercio de bienes entre América Latina y China (2000-2017)
Fuente: CEPAL, (2018, p. 39 ).
12 Se trata de una cifra considerable si se tiene en cuenta que el comercio de AL con el mundo creció a razón del
10% durante el mismo período (ROLDÁN, et alt.2016, p. 37).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
133João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
Los economistas suelen coincidir en que el mercado debe ser el mecanismo
básico para la asignación de recursos, pero es el gobierno quien debe desempeñar
un papel activo en la coordinación de inversiones para la modernización y
diversificación industrial y en la compensación de externalidades generadas
por los primeros motores en el proceso dinámico de crecimiento. Por eso, en un
nuevo enfoque de economía estructural, los países que cooperan dan cuenta de
las lecciones aprendidas de los éxitos y fracasos del crecimiento de las últimas
décadas, avanzando en un enfoque neoclásico para estudiar los determinantes y la
dinámica de la estructura económica de cada parte involucrada (LIN, 2012, p. 6).
Desde esta perspectiva, se comprende que, al especializarse en la producción
y exportación de materias primarias, cuyos costes de producción son relativamente
más bajos respecto al resto del mundo y por tanto en ventaja comparativa,
desde el año 2001, el 51% de las exportaciones de AL hacia la RPCh se centraran
principalmente en productos básicos, cifra que ascendió al 71% en 2014, mientras
que las exportaciones de bienes intermedios representaron el 24%, los bienes
de consumo el 3% y otros bienes el 2%, pese a tener mayor valor agregado
(ROLDÁN et al, 2016, p. 37). En la siguiente tabla se muestran las cinco principales
mercancías latinoamericanas exportadas hacia China y las importaciones desde
este país en AL desde 2011 hasta 2015.
Tabla 1: 5 Principales importaciones y exportaciones, 2011-2015
Exportaciones de ALyC
hacia China
Porcentaje
Importaciones de ALyC
procedentes de China
Porcentaje
Soja, Otras Semillas Oleaginosas 19.2% Equipos de telecomunicaciones 9.7%
Menas, Concentrados de Hierro 16.8% Máquinas de procesamiento de datos 3.8%
Cobre 12.2% Barcos, botes y estructuras flotantes 3.3.%
Petróleo no refinado 11.8% Instrumentos y aparatos ópticos 3.3%
Menas, concentrados de Cobre 10% Otros equipos eléctricos 2.3%
Total de las 5 principales
exportaciones respecto al resto
69.2%
Total de las 5 principales
importaciones respecto al resto
22.5%
UNSD, 2017.
Analizados estos datos desde la tradicional perspectiva del CAD, que separa
la ayuda del comercio, la preocupación de muchos especialistas gira en torno a
pensar que, al asignar a los países latinoamericanos un rol de subordinación en la
producción de materias primas, China se ha ido consolidando como un exportador
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
134 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
de productos manufacturados que tienen mayor valor agregado, generando cierta
dependencia económica de los países de la región, que, por el contrario, han
tenido relativamente poco éxito en la comercialización de sus manufacturas en
este país asiático
13
. Por lo tanto, los países latinoamericanos se verían afectados
por los cambios de la economía china
14
, tal y como se muestra en el siguiente
mapa en el que se observa la exposición de los países de AL ante los cambios
en la demanda China, a partir de un índice de dependencia de las exportaciones
aplicado y medido de 0 a 1, indicando entre más alto sea el número, más expuesto
está el exportador a disrupciones en el comercio con China
15
.
Mapa 1: Dependencia de los países latinoamericanos hacia China
Fuente: ROLDÁN, et al, 2016, p. 39
13 Estas consideraciones fueron desarrolladas a partir de una de las tres versiones de la Teoría de la Dependencia,
en concreto, el enfoque de Fernando H. Cardoso y Enzo Faletto (1972, p. 24-25).
14 Desde cierta perspectiva, Kevin Gallagher (2016) considera que AL debería aprovechar las oportunidades que se
presentan, combinando y aprovechando las relaciones tanto con EEUU como con China, mirando hacia ambos
en una visión más amplia en la búsqueda de sus beneficios.
15 Casanova, Le y Ferreira (2015) cuantifican la exposición relativa de los países exportadores latinoamericanos
ante cambios en la demanda china usando datos que fueron analizados para tres períodos de interés: el período
2003-2006, que marca los primeros años de crecimiento del comercio entre China y AL; el período 2007-2010,
que incluye el inicio de la crisis financiera global y su respectiva recuperación; y, por último, el período 2011-
2014, que refleja el comienzo de la caída de los precios de las materias primas en los mercados internacionales
y el inicio de una era de menor crecimiento económico chino (ROLDÁN et al, 2016, p. 39).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
135João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
El mapa indica que Venezuela es el país latinoamericano más sensible a las
fluctuaciones del comercio con China, seguido por Chile y Colombia, que también
muestran una alta dependencia hacia este mercado asiático. La dependencia de
Perú, Brasil y Argentina es menor, mientras que México, aunque es uno de los
mayores exportadores latinoamericanos hacia China, no es tan dependiente,
debido a la mayor diversificación de sus exportaciones y a la alta dependencia
que sostiene con los EEUU. Otros países como Ecuador, Bolivia y Uruguay, pese
a no estar entre los principales socios comerciales de China en esta región, tienen
índices de dependencia bastante elevados (ROLDÁN et al, 2016, p. 39). Cabe
destacar que la inversión china en productos básicos persiste, incluso después
de la caída significativa en los precios de las materias primas, en 2014, cuando
otras empresas extranjeras comenzaron a retomar inversiones más grandes en el
sector extractivo de esta región.
Sin embargo, desde la perspectiva de la NEE, se comprende que el modelo de
mercado chino, basado en el intercambio de lo que yo tengo, con lo que tú tienes,
parte de un intercambio mutuo en igualdad de condiciones, trabajando juntos
para alcanzar soluciones con múltiples ganancias (LIN; WANG, 2017, p. 4). China
opera en una idea de “ayuda” con comercio, una perspectiva muy diferente a la
que tiene el CAD, que identifica esta lógica como un “neocolonialismo” (importar
recursos y exportar manufacturas). Visto de manera inversa, para China, la “ayuda”
tradicional representa una limosna de carácter unilateral, aunque ese país no
posea como tal una política de ayuda exterior, lo que deja al aire una posibilidad
de definirla puntualmente, si bien tampoco imposibilita a que lo chinos tomen
en cuenta la ayuda al exterior, plasmando los rubros en los que otorga ayuda en
su libro Blanco.
Desde esta perspectiva, es inútil hacer una comparación entre la AOD y la
lógica de la ayuda que otorga la RPCh. En este sentido, la lógica china va más
allá incluso de los principios de la CSS, apoyándose más bien en el desarrollo
de acciones donde China se presenta como un instructor de lo que sabe hacer
bien, con lo que consigue una capacitación hacia el receptor, ayudándole a salir
adelante con la propuesta en un enfoque de ganar-ganar. La propuesta china no es
una receta acelerada como un salto al desarrollo ni mucho menos una propuesta
a desafiar a las ventajas comparativas de cada país, más bien es un desarrollo
gradual a través del fortalecimiento de esas ventajas comparativas, siempre y
cuando estas se encuentran en el área de conocimiento de China, ya que no ofrece
de ninguna manera enseñar lo que no sabe (LIN; WANG, 2017, p. 91-93).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
136 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
Ahora bien, en años más recientes, las exportaciones latinoamericanas hacia
China han disminuido considerablemente en combustibles, productos mineros o
metales, como en aquellos proveedores de alimentos o manufacturas. En general,
se estima que la caída de dichas exportaciones fue del 14% en 2015, sumando
tres años consecutivos de caída que afectaron a casi todos los países de la región
(BID, 2015a ). Sin embargo, para el 2016 el volumen del comercio entre AL y
China mostró un crecimiento del 1.3%, y según las proyecciones, para el 2017
habría crecido hasta un 16%, acercándose a los USD 266.000 millones, una cifra
ligeramente inferior al máximo histórico de USD 268.000 millones alcanzado
en 2013 (BID 2015b). Esto supone una importante recuperación después de tres
años consecutivos de caídas del valor del intercambio bilateral, período en que
se produjo una contracción acumulada del 14%. La recuperación del valor de
los envíos regionales a China, fue proyectada, en 2017, del 25%, influida por los
mayores precios del petróleo y otros productos básicos (CEPAL, 2018).
No obstante, en este escenario, las empresas chinas han volcado sus intereses
hacia el sector de servicios, en línea con el cambio en la economía interna de
China, donde los servicios están comprendiendo en más del 50% de su Producto
Interno Bruto (PIB). La mayor atención en los servicios, que van desde la
generación y transmisión de electricidad hasta las tecnologías de la información,
comunicaciones, finanzas y transportes, es un signo del aumento de la confianza
cada vez mayor en estos productos por parte de consumidores de clase media
latinoamericana. De este modo, en los últimos años la Inversión Extranjera Directa
(IED) china hacia AL ha cambiado del sector agrario al sector servicio, tal y como
se muestra en la siguiente gráfica.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
137João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
Grafica 2: IED China en América Latina, cambios al sector servicios
Fuente: Bureau van Dijk, FDI Markets, apud AVENDANO, MELGUIZO; MINER, 2017, p. 7.
Si bien las industrias extractivas siguen representando más del 60% de la
IED total de China en la región, aunque del 2013 al 2016 ha disminuido en un
37% respecto al periodo comprendido entre 2003 a 2012. Por consiguiente, las
inversiones en el sector de servicios han aumentado del 21% de la IED china de 2003
a 2012 a más del 50% en los cuatro años siguientes (incluida la energía alternativa).
La minería ha sido el sector más atractivo para el desarrollo de nuevos proyectos de
inversión de China en AL, con un 27% del monto total de inversiones anunciadas
entre 2004 y octubre de 2017. La diversificación sectorial de las inversiones chinas
registrada permite observar que, mientras que los metales representaron el 42% y
las energías fósiles el 18% del total de inversiones anunciadas entre 2004 y 2010,
ambos sectores representaron solo el 20% y el 6% en el período más reciente —
2011-2017. El cambio fue compensado por el aumento de las inversiones en sectores
como los de telecomunicaciones, inmobiliario, alimentos o energías renovables,
mostrando el interés de las empresas chinas por ingresar a nuevos sectores en
la región. El sector de energía ha sido el principal objetivo de China en AL, pues
el 49% del monto total de adquisiciones realizadas por empresas chinas en la
región se volcó hacia este sector, con un 12% en energías renovables; la minería
y las empresas de servicios básicos representaron el 9% y el 33% del total de las
inversiones respectivamente. En este sentido, la venta de importantes empresas
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
138 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
de energía en el Brasil explicaría un crecimiento sustantivo de las inversiones de
China, cuyo valor alcanzó los USD 17,000 millones en 2017 (CEPAL, 2018, p. 57).
El nuevo enfoque de economía estructural considera que la IED representa una
de las principales fuentes de beneficios económicos para los países receptores, ya
que les permite crear fuentes de empleo, mejorar los salarios, recibir transferencia
de conocimientos y tecnología, así como aumentar la productividad y el comercio en
sus territorios. Eso es menos propenso a retrocesos repentinos durante los pánicos
generados por los préstamos bancarios, el financiamiento de la deuda y la inversión
de cartera, y no genera los mismos problemas de crisis financieras, como lo hacen
los bruscos retrocesos de la deuda y los flujos de inversión de cartera (capital
golondrino). Además, la IED generalmente trae tecnología, administración, acceso
a mercados y redes sociales que a menudo faltan en los países en desarrollo y que
son cruciales para la modernización industrial. Por lo tanto, la liberalización de
la inversión directa debería ser, por lo general, un atractivo componente de una
estrategia de desarrollo más amplia (LIN, 2012, p. 34). Los beneficios estratégicos
para el país inversionista también son importantes, pues los efectos de la IED pueden
ser sustanciales, incluyendo la percepción de una mejor imagen en el exterior, la
persuasión a otros para que la acompañen en las organizaciones internacionales
y la formación de políticas amistosas con otros países.
A diferencia de otros actores en la inversión internacional, las empresas
chinas son prevalentemente estatales y han mostrado la capacidad de alinear las
tendencias económicas con las prioridades de su gobierno, haciendo explícito
su principio de respeto mutuo y no interferencia en los asuntos internos de los
países. Es relevante destacar que los flujos acumulativos de IED china en AL han
alcanzado más de USD 110.000 millones, de los cuales USD 60.000 millones se
concentraron solo en Brasil (AVENDANO; MELGUIZO; MINER, 2017, p. 2-6).
China está en condiciones de situarse, a partir de la Nueva Ruta de la Seda, como
el nuevo líder de un régimen internacional de CSS y, en este sentido, es importante
señalar que esta iniciativa abarca también (por la Ruta Marítima) a AL con algunos
de los macro proyectos financiados con capital chino, como la plataforma de la
isla de Cuba, a modo de base naval, y los proyectos de comunicación del Gran
Canal de Nicaragua, el ferrocarril bioceánico Brasil-Perú y el túnel Argentina-Chile
(DOMÍNGUEZ, 2018, p. 56).
Por ello, no es de extrañarse que la IED procedente de China haya aumentado
notablemente en la región, pues desde 1990 llegaron a la región cerca de USD 7.000
millones de inversión directa china, cifra que se duplicó tan solo en el año 2010,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
139João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
acercándose a los USD 14.000 millones (equivalentes a un 11% de la IED total recibida
por la región en ese año)
16
. Aunque después de 2010 se registró menor intensidad
en las inversiones chinas, que fueron entre USD 6.000 y USD 10.000 millones
anuales, siguieron representando entre un 3% y un 8% de los flujos totales de IED
recibidos por AL (CEPAL, 2016, p. 40). En total, entre 2005 y 2016, ingresaron a la
región cerca de USD 90.000 millones procedentes de China, cifra que representa
aproximadamente el 5% de la IED recibida por AL (CEPAL, 2018, p. 56).
Si bien es cierto que entre 2010 y 2014 cerca del 90% de las inversiones chinas
estimadas se dirigieron hacia recursos naturales, dicho sector absorbió solo el
25% del total de este tipo de inversiones que la región recibió desde otras partes
del mundo en el mismo período. Pese a que los anuncios de nuevos proyectos
de inversión chinos en la región cayeron de USD 10.000 millones en 2014 a USD
3.700 millones en 2015, China se posicionó como el quinto país con mayores
montos de inversión anunciados en AL, después de los EEUU, España, Francia y
Japón. Entre 2005 y 2015, la mitad de esta inversión anunciada correspondió a
proyectos en Brasil (30%) y Perú (20%), se sobresaliendo, también, México (13%),
Argentina (9%) y Venezuela (5%). Las inversiones efectivamente materializadas
en México aún se mantienen en niveles muy bajos, representando apenas el 0,1%
del total de la IED recibida por este país en 2015, ya que para finales de 2014 se
cancelaron dos grandes proyectos: el Dragon Mart, en Cancún, y el tren de alta
velocidad entre la Ciudad de México y Querétaro (CEPAL, 2016, p. 47). Para el
2017, se produjo un aumento marcado de los montos totales de IED china en
AL, alcanzando un estimado de USD 25.000 millones, lo que representa el 15%
de lo ingresado a esta región en ese año. Desde 2005 a 2017, Brasil es el país
latinoamericano que ha recibido más IED procedente de China, concentrando el
55% del total de esta inversión, seguido por Perú con el 17% y la Argentina con
el 9%. Juntos estos tres países concentran el 81% de los ingresos de IED de China
en la región (CEPAL, 2018, p 56).
Por último, otro de los aspectos fundamentales de la NEE es el otorgamiento
de préstamos no-concesiónales, en los que China ha jugado un papel relevante
como nueva fuente de financiamiento a sus socios. A diferencia de los préstamos
del Fondo Monetario Internacional (FMI) y del Banco Mundial (BM), los chinos no
16 En 2010, tres cuartas partes del total de la IED china en la región correspondieron prácticamente a dos grandes
adquisiciones en la industria petrolera, efectuadas por Sinopec en el Brasil y por CNOOC en la Argentina, aunque
también otras empresas chinas de diferentes sectores llegaron a la región o aumentaron considerablemente su
presencia en ese mismo año (CEPAL, 2016).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
140 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
imponen condiciones políticas a cambio de ayuda e inversión, lo cual ha erosionado
profundamente algunos de los fundamentos del Consenso de Washington
(VADELL; RAMOS; NEVES, 2014, p. 96). En general, los préstamos chinos en
AL han sido complementarios en términos de cobertura de países en comparación
con el financiamiento multilateral de las fuentes de financiamiento tradicional.
El núcleo del financiamiento chino en esta región se ha concentrado
principalmente en infraestructura, energía y minería, en contraste con las
instituciones financieras internacionales, incluyendo la Confederación Andina
de Fomento (el Banco de Desarrollo de AL) (CAF), el Banco Interamericano de
Desarrollo (BID) y el BM, que se han enfocado más en mercados financieros,
educación, salud, medio ambiente y en algunos aspectos de la administración
pública como la modernización del Estado y la impartición de justicia. Como
se observa en la siguiente gráfica, entre 2007 y 2014, AL recibió más dinero de
China que del BM y del BID juntos, pues los bancos chinos tienen la posibilidad
de financiar a empresas o países a los que las entidades tradicionales no pueden
acceder, estableciendo acuerdos basados en un intercambio de servicios y
productos, y no solo de dinero, de esta forma los chinos exigen bajos intereses,
actuando en zonas más pobres o con economías más volubles (CASAS, 2015).
Grafica 3. Préstamos bilaterales y multilaterales seleccionados en América Latina
(en millones de dólares)
Fuente: OECD; ECLAC; CAF, 2015. p. 152
17
17 Los préstamos chinos incluyen aquellos proporcionados, principalmente, por el China Development Bank y
China ExIm Bank. Los préstamos del Banco Mundial son del Banco Interamericano de Reconstrucción y Fomento
y Compromisos de Asociación Internacional de Fomento (GALLAGHER; MYERS, 2017).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
141João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
En 2010, por ejemplo, la RPCh prestó USD 10.000 millones a Argentina con
bajo interés, para que este país sudamericano construyera una red ferroviaria.
Las empresas encargadas del proyecto eran socias del Estado chino, por lo que
el receptor último del dinero era la propia China. Este tipo de garantías son las
que permiten a China fijar condiciones tan competitivas, pues, cerca del 69% de
los préstamos emitidos por este país asiático en AL se han hecho a cambio de
petróleo que respalda la deuda y mantiene el riesgo a un nivel mínimo. Además,
el dinero chino es más atractivo que el de los oferentes tradicionales, porque no
impone medidas intervencionistas, es decir, Beijing no controla la transparencia
ni la eficiencia de la inversión, mientras que organismos como el BM exigen
declaraciones financieras o informes de evaluación a los prestatarios. Por eso,
muchos de los países con gobiernos de izquierda han preferido recurrir a China
para evitar, así, la imposición de políticas neoliberales (CASAS, 2015).
Entre 2005 y 2017, el financiamiento multilateral y bilateral chino se dirigió
principalmente a Venezuela, con un total de 17 préstamos por valor de USD 62.200
millones, seguido por Brasil, que recibió 12 préstamos por USD 42.100 millones,
continuando Argentina con 11 préstamos por valor de USD 18.200 millones, Ecuador
con 13 préstamos por USD 17.400 millones y Bolivia, que recibió 10 préstamos
por USD 3.500 millones. Sin embargo, como se muestra en la gráfica que sigue,
en 2017, el financiamiento chino en AL llegó a su nivel más bajo de los últimos
cinco años, con tan solo USD 9.000 millones, debido a que dos bancos estatales
chinos — China Development Bank y Eximbank — se abstuvieron de realizar
préstamos a Venezuela
18
.
Grafica 4. Financiamiento Estatal de China en América Latina (2007-20117)
(en millones de dólares)
Fuente: GALLAGHER & MYERS (2017).
18 Aunque China continúa comprometida diplomáticamente, los funcionarios chinos se han vuelto cada vez más
cautelosos con las condiciones de los préstamos a Venezuela (MYERS; GALLAGHER, 2018).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
142 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
La disminución en el financiamiento de China en AL también se debe a que
otras fuentes de financiamiento, como los fondos regionales, han adquirido mayor
relevancia en los últimos años, pero podría volver a aumentar si se aprueban
proyectos integrados a la iniciativa china la Nueva Ruta de la Seda en esta región
(MYERS; GALLAGHER, 2018). No obstante, como se ha expuesto en este apartado,
el fortalecimiento del comercio y la inversión de infraestructuras en transportes,
telecomunicaciones y energéticos como ejes sobre los que se debe mover la ayuda,
ha fraguado una relación más estrecha entre China y AL en sectores públicos y
privados, que ha ido desdibujando las líneas marcadas por la cooperación y la
ayuda tradicionales, avanzando así en la senda que propone la NEE.
Consideraciones Finales
¿Estamos frente a una NEE en AL? y ¿en qué se diferencia la cooperación china
con respecto al sistema tradicional de ayuda? Para responder a estas preguntas,
hemos apuntado en este trabajo que, en primer lugar, la NEE se encuentra en un
momento inicial y AL podría asumir un papel importante en los próximos años si
consideramos las enormes relaciones políticas, económicas, comerciales y de ayuda
que se han construido a lo largo de estos últimos casi 20 años. Aunque a lo largo de
este trabajo se ha intentado señalar esta estrategia en la región, es también cierto
que AL vive al igual que las demás regiones del mundo un fenómeno de fuerte
acercamiento al gigante asiático que va asumiendo año tras año dimensiones cada
vez más grandes. En segundo lugar, es importante señalar como la cooperación
china sustentada en la NEE abriría un parteaguas importante con respecto a la
forma en que se han dado los flujos de cooperación tradicional, recuperando por
un lado aquella visión altruista de la CSS de la segunda posguerra del siglo pasado,
y, por otro lado, abriendo la misma concepción en que se ha entendido la ayuda
hasta nuestros días. En ese sentido, y aunado a ello, es posible observar como el
CAD, a través de los Total Official Support for Sustenaible Development (TOSSD),
ha creado un nuevo mecanismo de ayuda que se presenta como alternativo tanto
a la visión tradicional de la AOD como a la misma manera en que la RPCh ha
entendido su forma de cooperar y ayudar. Abriendo al capital privado la AOD
y direccionando todo este esfuerzo hacia el conseguimiento de los Objetivos
del Desarrollo Sostenible (ODS), se está desdibujando un nuevo modelo de
cooperación en competencia con el modelo chino que no se rige por los patrones
de la AOD y del CAD. Esto ha generado un nuevo modelo de colaboración que
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
143João Manoel Losada Moreira; Roberto Tadeu Soares Pinto
entremezcla comercio, inversiones, préstamos y créditos, permitiendo a los países
con dificultades acceder a los mercados internacionales con dichos financiamientos
(DREHER; FUCHS, 2012, p. 4).
El interés de China es incorporar tecnologías y conocimientos en sus
exportaciones, para generar transformaciones estructurales en sectores de alta
productividad en AL, pues, desde 2015, los chinos se han consolidado como los
mayores productores mundiales de manufacturas, los mayores exportadores y los
segundos importadores de bienes, mostrando un creciente interés en el sector
servicios, absorbiendo cerca de una cuarta parte de la producción mundial de
bienes manufactureros (CEPAL, 2016, p. 9).
Con ello, los países latinoamericanos también reforzaron su acervo de
inversiones recíprocas con el país asiático, contemplando una cifra de al menos
USD 250.000 millones para el 2025, poniendo de manifiesto que las inversiones
chinas en esta región, lejos de disminuir, pretenden aumentar y diversificarse en
actividades no extractivas que contribuyan a la creación de capacidades productivas
y empleos de calidad en los países receptores. Las perspectivas de un crecimiento
en AL y la inversión china en esta región pueden jugar un papel importante en
la continuación de la trayectoria ascendente, avanzando hacia una NEE.
Aunque AL todavía carece de una estrategia consolidada hacia el gigante
asiático, mostrando su necesidad de priorizar en temas como la tecnología, la
creación de cadenas de valor, la ampliación de la oferta exportadora y la generación
de mayor productividad avanzan con fuerza en la senda de la NEE a través de
encadenamientos productivos cada vez más sólidos con China, impulsando sus
ventajas comparativas en el nuevo orden internacional que sigue gestándose.
Finalmente, podríamos decir que esta nueva identidad de la cooperación
china sigue en construcción, poniendo en evidencia que se rehace en los intereses
de la CSS del siglo pasado, pero que hoy, en una realidad totalmente diferente,
recuperar sus principios significa no solamente sentar las bases para un nuevo
modelo de cooperación sustentado en la Nueva Economía Estructural, sino también
apunta hacia la construcción de un nuevo orden multipolar basado en la paz, en
la cooperación internacional, más que en la hegemonía, la extrema inequidad y
la guerra (HARRIS, 2016, p. 512). Claramente, este trabajo ha intentado mostrar
cuales son los pilares de esta nueva identidad de la cooperación china, sin embargo,
este análisis abriría el debate también hacia los beneficios y/o dependencia que
esta relación podría causar. En este sentido, futuras investigaciones alrededor
de esta temática deberán considerar estos otros elementos para avanzar en el
entendimiento de este nuevo orden multipolar al que apunta China.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 123-146
144 Instituições para Fomentar a Integração do Setor Elétrico na América do Sul
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147Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
A participação dos países em desenvolvimento
e menos desenvolvidos no Órgão de Solução de
Controvérsias da Organização Mundial do Comércio
The participation of developing countries and
least developed countries in the Dispute Settlement
Body of the World Trade Organization
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.760
Andréa Freire de Lucena
1
Samuel Rufino de Carvalho
2
Resumo
O Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio almeja
solucionar as disputas comerciais dos países, por meio da supervisão, do monitoramento e
da averiguação do cumprimento de suas regras. Um dos entraves do sistema diz respeito às
dessemelhanças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Este artigo investiga a
existência de assimetrias de participação entre os países menos desenvolvidos (PMD), países
em desenvolvimento (PED) e países desenvolvidos (PD) no âmbito do Órgão de Solução de
Controvérsias, desde a sua criação em 1995 até o ano de 2016. Os dados coletados foram
trabalhados pelo uso dos métodos estatístico e comparativo, com a intenção de se obter uma
análise minuciosa acerca das disputas comerciais e verificar os níveis de desigualdade de
atuação na instituição. Observou-se que o Órgão possui assimetrias evidentes de participação,
que refletem a divisão internacional do trabalho presente no sistema internacional, em que
os Estados de maiores rendas atuam mais facilmente com vistas a suprir suas demandas.
Palavras-chave: Órgão de Solução de Controvérsias; Organização Mundial do Comércio;
Assimetrias.
1 Professora e pesquisadora da graduação em Ciências Econômicas e do mestrado em Ciência Política da
Universidade Federal de Goiás (UFG).
2 Discente do Programa de Mestrado em Ciência Política (UFG), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Graduou-se em 2016 em Relações Internacionais (UFG).
Artigo submetido em 27/01/2018 e aprovado em 30/08/2018.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
148 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
Abstract
The World Trade Organization’s Dispute Settlement Body (DSB) seeks to resolve the trade
disputes of countries through supervision, monitoring and enforcement of its rules. One
of the barriers of the system concerns dissimilarities between developed and developing
countries. This paper investigates the existence of asymmetries of participation amongst the
least developed countries (LDC), the developing countries (DCs) and the developed countries
(DC) within the Dispute Settlement Body, from its creation to 2016. The data collected were
worked through the use of statistical and comparative methods, with the goal of obtaining
a detailed analysis of the commercial disputes and verifying the levels of inequality within
the institution. It was observed that the DSB has clear asymmetries of participation, which
reflect the international division of labor present in the international system, where the
higher income states act more easily in order to meet their demands.
Keywords: Dispute Settlement Body; World Trade Organization; Asymmetries.
Introdução
A Organização Mundial do Comércio (OMC), surgida em janeiro de 1995, é a
principal instituição comercial de cunho global. Originada por meio da substituição
do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), a organização tem como pedra
angular conter os gargalos que enfraquecem o comércio internacional e promover
mais segurança e estabilidade às relações multilaterais, utilizando-se cada vez
mais de aparatos jurídicos como principal meio regulador.
A OMC apresenta-se como provedora de relações mais justas ao comércio
mundial. Para isso, alguns princípios tornam-se fundamentais para a sua existência:
o princípio da não discriminação, o qual assume a necessidade de tratar os outros
atores igualmente; o princípio do livre-comércio, que deve ser estabelecido de forma
gradual por meio das negociações; o princípio da previsibilidade, que presume a
segurança e a transparência dos compromissos acordados; o princípio da promoção
de competições justas; e o princípio de encorajamento do desenvolvimento e de
reformas econômicas, que procura promover o crescimento das nações menos
privilegiadas economicamente mediante um tratamento diferenciado (WTO, 2017c).
Para que os princípios da organização sejam assegurados, surgem algumas
ferramentas auxiliadoras. Nesse sentido, o Órgão de Solução de Controvérsias
(OSC) da OMC emerge como sendo um dos principais instrumentos do sistema
multilateral de comércio. Baseando-se no Entendimento Relativo às Normas e
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
149Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC), o órgão atua como elemento
fomentador dos princípios da organização, por intermédio das resoluções dos
conflitos comerciais entre as nações.
Os países em desenvolvimento compõem mais de três quartos dos membros
da OMC, e tiveram participações ativas no regime internacional de comércio
durante as rodadas do Gatt (WTO, 2017b). Sob esse viés, a atuação desses países
— consoante o último princípio descrito — torna-se o foco deste artigo, uma vez
que se intenciona averiguar a assimetria de participação dos países em função do
seu grau de desenvolvimento, por intermédio de uma análise do comportamento
das nações perante o OSC. A questão norteadora desta investigação perquire se
realmente há assimetrias de participação entre os países menos desenvolvidos,
em desenvolvimento e desenvolvidos no âmbito do OSC. Caso haja, pretende-se
averiguar se as teorias dos regimes conseguem explicar tais assimetrias.
A pesquisa recorreu a dois métodos de análise dos dados: o comparativo
e o estatístico. O primeiro diz respeito à coleta de informações relacionadas às
controvérsias internacionais levadas ao OSC. Para tanto, criou-se um banco de
dados digital, que contribuiu para uma análise detalhada de todos os contenciosos
existentes no Órgão até o ano de 2016. Tendo em vista a complexidade que envolve
cada contenda comercial, a plataforma providenciou, de um modo dinâmico, um
lócus único, onde todas as características relevantes das disputas estão presentes,
o que permitiu a comparação entre os países. O trabalho apoiou-se na taxa de
solução de controvérsias, que auxiliou a execução do segundo método, o estatístico.
O artigo está estruturado ao redor de dois pontos centrais. A primeira parte
discorre sobre as teorias de regimes internacionais e a sua importância como
aparato explicativo da atuação cooperativa dos atores. Na segunda parte, realiza-se
uma análise detalhada dos 514 contenciosos levados ao OSC até dezembro de 2016.
A investigação gira em torno das distintas participações entre os Países Menos
Desenvolvidos (PMD), Países em Desenvolvimento (PED) e Países Desenvolvidos
(PD). Por fim, discute-se alguns aspectos das teorias dos regimes que podem
explicar os dados analisados e, consequentemente, as assimetrias.
Regimes internacionais
John Gerard Ruggie (1975) definiu regime como “um conjunto de expectativas
mútuas, regras e regulamentos, planos, energias organizacionais e comprometimentos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
150 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
financeiros, os quais foram aceitos por um grupo de Estados”
3
(1975, p. 570,
tradução dos autores). A noção de regime embasa-se na ideia da existência de
agentes reguladores das ações dos Estados, os quais contribuiriam à tendência de
cooperação entre eles. Nesse sentido, Krasner (2012, p. 93) caracterizou regime
como “princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões de
determinada área das relações internacionais em torno dos quais convergem as
expectativas dos atores”.
A proposta de Krasner para a compreensão de regime tornou-se substancial
na literatura existente sobre o tema. Para o autor, o termo deve ser entendido no
sentido de “variáveis intervenientes, estando entre fatores causais básicos e os
resultados e comportamentos relacionados” (KRASNER, 2012, p. 93). Ou seja,
averígua-se nos regimes o pressuposto da existência de padrões de comportamentos
compreendidos como recurso para se chegar a determinados resultados por meio
da convergência de ações entre os atores. Desse modo, Krasner discorre sob uma
perspectiva otimista a respeito da existência de regimes, ao analisar, sobretudo,
como esses podem contribuir para os resultados do campo de interação dos agentes.
Pode-se compreender que o conceito de regimes está relacionado à noção de
arranjos influenciadores do comportamento dos atores, que, muitas vezes, são
entendidos como Estados nacionais. Para uma melhor compreensão de como os
atores agem levando em consideração a existência dos regimes, faz-se necessário
estudar o arcabouço teórico sobre o tema, que abarca três abordagens distintas,
destacadas pelos enfoques no “poder, interesse ou conhecimento” (LUCENA, 2012,
p. 34). Por seu turno, Krasner (2012) as define como estrutural convencional,
estrutural modificada e grociana.
A primeira abordagem ressalta a indisposição dos Estados em cooperar.
A interação entre as nações funciona como um espelho das relações de poder
do sistema internacional. Encontram-se nas bases dessa premissa as concepções
(neo)realistas das relações internacionais: fatores como natureza humana, ganhos
relativos, Estados como os principais atores, anarquia, racionalismo, insegurança e
sobrevivência tornam-se os quesitos primordiais que moldam as ações dos Estados.
Krasner (2012, p. 97) define o campo teórico como estruturalista convencional, o
qual “vê o conceito de regime como inútil, se não enganoso”. Autores como Kenneth
Waltz, Joseph Grieco e Susan Strange, entre outros, contribuíram com estudos
tendo em vista as relações de poder como principais influentes da cooperação.
3 [A] set of mutual expectations, rules and regulations, plans, organizational energies and financial commitments,
which have been accepted by a group of states.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
151Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
Nesse sentido, alguns estudiosos defendem a existência da teoria da estabilidade
hegemônica e da relevância dos ganhos relativos como pressupostos que explicam
a cooperação entre os Estados. A primeira assertiva diz respeito à propensão que os
Estados têm a cooperar quando se estabelece um hegemon no sistema internacional.
A potência hegemônica é caracterizada como a nação com maior poder relativo
que possui, em alusão a Morgenthau (2003), os chamados elementos de poder
nacional, como geografia, recursos naturais, capacidade industrial, preparação
militar e população. De igual modo, aspectos como índole nacional, governo
e diplomacia contribuem para o aumento do poderio de uma nação. Contudo,
para o surgimento de uma potência hegemônica é necessário haver mais do que
os elementos de poder, pois o país precisa ter a intenção de se propagar como
hegemônico, sendo que, segundo Gramsci, a hegemonia pressupõe o consentimento
do poder da nação mais forte pelos demais Estados (ALVES, 2010).
A segunda abordagem no campo das teorias de regimes é fundamentada
pela interação dos atores baseada no interesse. O arcabouço teórico sugere que
a intenção dos Estados em cooperar está ligada diretamente ao interesse que tais
atores têm no sistema internacional. A vertente compartilha de algumas premissas
da anterior, como os pressupostos de que os atores são racionais e buscam a
maximização dos ganhos, o sistema internacional é anárquico e as instituições
existem. Porém, as duas distinguem-se quanto ao grau de influência que os
três fatores estabelecem em um Estado. Também denominada estruturalismo
modificado, o quadro explicativo baseia-se nas teorias (neo)liberais das relações
internacionais. Portanto, nota-se que as instituições internacionais se transformam
em fatores atenuantes da anarquia, as quais possuem grande capacidade de
influenciar o comportamento de uma nação. Arthur Stein, Robert Keohane e
Joseph Nye contribuem para o campo teórico.
Um dos principais pressupostos de análise disserta que os atores buscam
ganhos absolutos, pois, uma vez sendo racionais, as preocupações e ações permeiam
somente seus ganhos e perdas individuais. Os Estados coordenam suas ações para
que seja possível obter ganhos que não seriam adquiridos sem a cooperação.
Posto isso, afigura-se a real função dos regimes internacionais: influenciar as
preferências e facilitar a cooperação (KEOHANE, 1984). Compreende-se, desse
modo, que os regimes internacionais são arranjos interestatais regulamentadores
de determinadas áreas. Eles surgem com o objetivo de superar problemas de
ação coletiva e coordenar o comportamento dos Estados, visando a um resultado
minimamente benéfico a todos.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
152 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
As duas primeiras abordagens afirmam que fatores exógenos são os
influenciadores exclusivos das ações dos Estados. O terceiro enfoque, contudo,
ressalta a importância que os aspectos endógenos apresentam à cooperação e a
maneira como toda a relação humana pode ser uma variável significante para o
estabelecimento de interação entre os Estados. Krasner (2012) nomeia a vertente
como abordagem grociana. Pressupõe-se que as ideias, as crenças, os valores e
as normas são quesitos primordiais presentes na interação entre as nações. Sendo
assim, observa-se, na abordagem, a participação construtivista como base teórica,
em que se pode encontrar a presença de autores como Donald Puchala e Raymond
Hopkins, Oran Young, Friedrich Kratochwil, entre outros. O campo analítico sugere
duas teorias principais: o construtivismo fraco e o construtivismo forte.
O primeiro assume a importância da racionalidade dos atores e da busca
pela maximização dos ganhos; entretanto, o que o agente compreende como
racional não é uma condição dada, já que os atores dependem do conhecimento
para perceber suas utilidades e moldar suas ações. Os teóricos subentendem três
principais aspectos modeladores do conhecimento: a função interpretativa, uma
vez que o conhecimento é gerado a partir da interpretação; o papel da comunidade
epistêmica, que auxilia os tomadores de decisão ao disponibilizar informações
científicas; e o mérito da intersubjetividade, a qual contém ideias pré-definidas
dos problemas e das preocupações. Os construtivistas fortes asseveram que os
atores agem conforme suas identidades; essas, por sua vez, podem ou não ser
racionais. A preocupação gira em torno de como as identidades são formadas e
como elas influenciam o conhecimento que, por seu turno, leva à criação dos
regimes (HASENCLEVER, MAYER; RITTBERGER, 1997).
Consoante à importância das teorias de regimes internacionais, percebe-
se que a OMC possui papel relevante na propagação do regime internacional
do comércio. Uma Organização Internacional Governamental (OIG) de porte
global atua no sistema internacional de duas formas, como mecanismo e como
ator. Considerando a primeira característica, a OMC torna-se palco de discussão
para os seus membros, dissemina informações, possibilita a consulta técnica,
apresenta-se como um lócus onde os países têm voz, ou seja, disponibiliza uma
série de instrumentos que promove e fortifica o regime de comércio. Como ator,
a instituição é responsável por favorecer a legitimação das normas e regras do
comércio internacional (WTO, 2017d).
Dessa maneira, ressalta-se a importância dos regimes internacionais para
atenuar as diferenças econômicas entre os Estados. Young (1989) acentua como
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
153Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
o “terceiro mundo” pode utilizar-se dos regimes para clamar por uma nova
ordem econômica internacional. Seguindo esse pressuposto, o OSC, pautado na
igualdade de participação dos países e na não discriminação, serviria como um
meio de se alcançar menores desigualdades entre os países no aspecto comercial.
O Órgão apresenta-se como um dos principais mecanismos da organização, já que
a possibilidade de resolver disputas é fundamental para o sistema multilateral de
comércio (WTO, 2017c).
O Órgão de Solução de Controvérsias e a participação dos países
em relação a seus níveis de desenvolvimento
O OSC, desde a sua criação, revelou-se como um aparato institucional
requisitado pelas nações que intencionavam utilizá-lo como um meio para
conter as irregularidades do comércio internacional. Em comparação ao sistema
solucionador de controvérsias do Gatt, o OSC apresentou, em média, um total de
contenciosos 3,5 vezes maior (AZEVÊDO, 2015; WTO, 2017a)
4
. Ao longo dos seus
22 anos de atividade, 514 contenciosos foram demandados ao Órgão. Esse número
elevado de disputas mostra a relevância de se compreender as características do
processo decisório do OSC, desde o estabelecimento de uma contenda ao seu
resultado final
5
. Sob esse prisma, encontra-se, a seguir, uma análise minuciosa do
desenrolar dos processos, com enfoque nas participações entre as nações baseada
nos distintos graus de desenvolvimento.
No que diz respeito ao número de demandantes, nota-se que, dos 514
6
contenciosos, 299 tiveram os países desenvolvimento como interpelantes, 242 foram
4 O Gatt, durante sua vigência, foi responsável pelo tratamento de 300 contenciosos, o que configura a média de
6,38 disputas por ano. Por sua vez, a média anual do OSC é de 23,36 contendas.
5 Os contenciosos que ocorrem no OSC podem passar por quatro fases. A primeira, denominada Consulta, é menos
formal. Nela, um país demonstra uma insatisfação nas relações comerciais com outro e demanda esclarecimentos.
Caso o problema não seja resolvido, segue-se para a fase do Painel. Os painelistas são responsáveis por definir os
prazos dos procedimentos das disputas e, ao final, fazem recomendações de conduta para as partes conflitantes.
Quando um ator fica insatisfeito com o resultado do Painel, ele possui o direito à Apelação, que é a terceira
fase. O Corpo de Apelação pode concordar, modificar ou divergir das considerações proferidas pelo Painel.
A última etapa é a adesão às recomendações. Nesse momento, serão estabelecidos os prazos e as formas pelas
quais os Estados entrarão em conformidade com as decisões do Painel ou da Apelação. Caso as decisões não
sejam cumpridas, o país prejudicado pode solicitar medidas compensatórias, suspensão de concessões ou outras
obrigações (WTO, 1994).
6 O somatório dos países demandantes (299+242+1) é maior do que o número de contenciosos (514) devido
à necessidade de efetuar a contagem de 35 demandantes nas contendas que possuem mais de um país como
interpelante: DS217, com nove demandantes; DS35, com seis; DS27 e DS158, com cinco cada uma; DS16 e
DS58, com quatro cada uma; e a DS234, com dois. Tem-se: 514 + 35 = 542 demandantes.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
154 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
iniciados por países em desenvolvimento e apenas um país menos desenvolvido,
Bangladesh, foi responsável pela abertura de uma disputa (WTO, 2017a).
Em números absolutos, a discrepância entre as nações não é tão evidente —
quando se compara os PED em relação aos PD. Contudo, a assimetria torna-se
mais notória se analisada a atuação dos Estados proporcionalmente, uma vez
que os PED e os PMD representam mais de três quartos dos países-membros da
OMC e demandaram, em contraste, apenas 44,8% das disputas (WTO, 2017a).
Outrossim, a desigualdade é ostensiva se observada a atividade dos PMD perante
o órgão, em todas as fases e características dos processos de resolução de conflito.
Figura 1. Relação de abertura de contenciosos anualmente por classe de país
(1995–2016)
25
38
51
40
30
36
23
37
27
19
12
20
13
18
14
17
8
27
19
14
11
15
0
10
20
30
40
50
60
Países Desenvolvidos Países em Desenvolvimento Total
Fonte: WTO, 2017a.
Os dez primeiros anos de vigência do OSC contaram com um número maior de
disputas, em relação aos últimos 12 anos. Os anos iniciais foram reveladores das
ações dos Estados com maior poder econômico e com disponibilidades superiores
de recursos como demandantes de novos contenciosos ao OSC. Entretanto, a
partir de 2000, observa-se uma mudança no domínio de demandas por parte
dos PD, posto que os PED somaram o montante de 30 contenciosos a mais em
correspondência aos PD. A Figura 1 ilustra a quantidade de contenciosos abertos
anualmente até 2016.
Os países com maiores números de contenciosos iniciados no órgão foram os
Estados Unidos (EUA), com 111, a União Europeia (UE), com 97, e o Canadá, com
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
155Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
35, os quais, juntos, representam o mesmo montante de contendas abertas por
todos os PED e por Bangladesh — 243 disputas. Nesse sentido, torna-se, mais uma
vez, evidente a discrepância de participação diante do OSC. Contudo, ressalvas
devem ser feitas. A União Europeia, por exemplo, atua como Estado membro
unitário, situação que contribui para o aumento da cifra. Ademais, presencia-se
uma atuação relevante de alguns países em desenvolvimento, sobretudo das nações
emergentes. O Brasil caracteriza-se como a parte mais atuante em interpelações
dentre os PED, fator que o posiciona como o quarto país com o maior número de
contendas abertas (30). De mesma maneira, Índia (23), México (23) e Argentina (20)
demonstram participações consideráveis (WTO, 2017a).
Para Árabe Neto e Lopes (2012, p. 331), os BICS (Brasil, Índia, China e África
do Sul, desconsiderando a Rússia) tornaram-se “atores relevantes em ambas as
posições, ofensivas e defensivas” no que concerne às disputas internacionais
de comércio. Por sua vez, Aguiar (2014, p. 172) postula que a participação dos
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no OSC foi responsável pela
“transição no paradigma da predominância da utilização do mecanismo pelos
países desenvolvidos”. Alega-se que, excetuando-se os gargalos de participação
da coalizão, os BRICS atuam como influenciadores nas atividades das outras
nações em desenvolvimento/emergentes no órgão. A Figura 2 elucida o número
de contendas por membros.
Figura 2. Quantidade de interpelações por membro (1995-2016)
111
97
35
22
9
7
5
44
3
11
30
23 23
20
17
13 13
10 10
9
8
7
6
55555
1
28
0
20
40
60
80
100
120
Estados Unidos
União Europeia
Canadá
Japão
Nova Zelândi
a
Austrália
Hungria
Noruega
Suíça
Polônia
Rep. Tcheca
Dinamarca
Brasil
Índia
México
Argentin
a
Coreia do Su
l
China
Tailândia
Chile
Indonési
a
Guatemala
Honduras
Panamá
Taipé
Colômbi
a
Costa Rica
Paquistão
Filipinas
Ucrânia
Banglades
h
Outros PE
D
Fonte: WTO, 2017a.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
156 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
Apesar de alguns países em desenvolvimento mostrarem-se progressivamente
como atores de importância no OSC — Brasil e Índia, por exemplo —, as nações de
menores rendas ainda continuam à margem das atividades. O continente africano,
no qual se encontra o maior número de PMD, demonstra uma participação ínfima
no tocante à utilização do órgão solucionador de conflitos comerciais. Apenas
três países da região atuaram diretamente em contenciosos, nenhum deles como
demandante. Marrocos, Egito e África do Sul foram questionados, respectivamente,
uma, quatro e cinco vezes. Todas essas contendas tiveram como demandantes
outros PED, com exceção da DS305, na qual os EUA questionaram o Egito a
respeito das tarifas aplicadas pelo último a certos produtos têxteis e de vestuário.
Ressalta-se que, até 2016, nenhuma disputa teve como vitorioso um país africano
(WTO, 2017a).
Figura 3. Quantidade de disputas por membro interpelado (1995-2016)
128
82
18
15 15
333
18
37
23
22
16 16
14 14
13
9
65
0
20
40
60
80
100
120
140
Fonte: WTO, 2017a.
No que se refere às partes interpeladas, os PED foram acionados em 44,5% dos
contenciosos. Em mesma análise feita por Lopes (2014), esses países tinham sido
questionados em 33,81% dos casos. Nesse sentido, percebe-se que, em um período
de dois anos, a cifra subiu mais de 10%, valor que ilustra, possivelmente, uma
caracterização desses países como sendo atores econômicos mais expressivos. Os
PD, por seu turno, seguem como os mais significativos nessa categoria, dado que
os EUA (182) e a União Europeia (82) foram os membros que mais responderam
às contendas. Ressalta-se a situação chinesa, visto que o país prestou satisfações
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
157Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
37 vezes ao OSC, questionado, em maior parte, pelos EUA (19) e pela UE (8).
O montante é ainda mais arrebatador ao notar que a adesão da China à OMC
ocorreu apenas em 2001. A Figura 3 analisa a quantidade de membros com o
status de interpelados.
Averígua-se que nenhum país menos desenvolvido foi interpelado no OSC.
Esse aspecto é altamente positivo, no sentido de que os PMD não necessitam arcar
com os altos custos financeiros e políticos oriundos do processo de responder a
um contencioso, ademais, não tem suas ações comerciais questionadas. Todavia,
o não envolvimento direto em uma disputa acarreta uma maior dificuldade de os
PMD se mobilizarem em busca de um sistema multilateral de comércio mais justo.
A esse respeito, a participação desse grupo de países no OSC dá-se, exce-
tuando-se o caso de Bangladesh
7
, exclusivamente como terceiras partes. Contudo,
apenas cinco países, dos 44 listados com o status de menos desenvolvidos pela
Organização das Nações Unidas (UN, 2015), atuaram como observadores em disputas.
Malawi (6 disputas), Tanzânia (3 disputas), Senegal (2 disputas), Bangladesh
(1 disputa) e Benin (1 disputa) foram os únicos PMD nessa categoria. O montante
de participação representa somente 0,57% do somatório das atividades totais como
terceiras partes. Ao todo, os membros da OMC atuaram como espectadores 2.294
vezes, das quais os PED tiveram um percentual considerável, marcando a grandeza
de 66%, com 1.516 participações. Por sua vez, os PD foram responsáveis por não
mais que 33% da quantidade total, operando 765 vezes (WTO, 2017a).
Não obstante a maior participação dos PED, os PD continuam sendo os
primeiros do ranking. Desse modo, Japão (163), União Europeia (159), Estados
Unidos (134) e Canadá (114), juntos, exerceram atividades indiretas em 570 ocasiões.
Ademais, destaca-se a atuação dos PED, principalmente dos países emergentes,
que marcaram cifras próximas às dos PD. China (133), Índia (121), Brasil (105),
Coreia do Sul (105) e Taipé (92) foram os mais ativos da categoria (WTO, 2017a).
No que concerne aos assuntos, assinala-se que ambos os grupos de países
demandaram contenciosos referentes a bens, exclusivamente, com 255 contendas
abertas pelos PD e 222 pelos PED, nesse setor. Apenas uma pequena quantidade
de disputas foi, unicamente, relativa ao setor de serviços — cinco questionamentos
por parte dos PD e, igualmente, cinco dos PED. Observa-se uma considerável
discrepância em relação às disputas que tiveram como assunto somente a
7 A disputa iniciada por Bangladesh — único PMD interpelante — tinha como assunto bens, especificamente,
produtos eletrônicos. Bangladesh questionou a Índia em relação à adoção de uma medida de antidumping sobre
as importações de baterias de chumbo bangladeshianas (WTO, 2017a).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
158 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
propriedade intelectual: os PD iniciaram 19 interpelações contra apenas 3 dos
PED. Alguns contenciosos tiveram mais de um tipo de assunto em uma única
disputa. Nesse sentido, bens e propriedade intelectual foram solicitados ao OSC
em cinco oportunidades pelos PD e em um mesmo número de vezes pelos PED;
bens e serviços foram questionados em oito ocasiões por cada grupo de países;
e serviços e propriedade intelectual foram levantados por países desenvolvidos
em apenas dois contenciosos (WTO, 2017a).
Ao se observar, especificamente, os assuntos que fizeram parte das disputas
do OSC, percebe-se que, em maior parte, foram efetuados questionamentos a
respeito dos tratamentos comerciais de alimentos — não animais — e produtos
agrícolas, tanto pelos PD (52 contendas) quanto pelos PED (48 contendas),
sendo que laticínios e bananas apresentaram maior número de disputas nessa
categoria. Por seguinte, acordos e tarifas: PD questionando 45 contendas e os
PED, 27, com destaque às medidas impostas a importações e à prática tarifária
estadunidense intitulada Zeroing. Animais e produtos derivados seguem no ranking
dos assuntos mais questionados (PD, 40; e PED, 28), tendo maior incidência
contendas relacionadas às aves, principalmente, à carne de frango. Os minerais
e produtos derivados (PD, 30; PED, 44) configuram os outros tipos de assuntos
mais demandados ao OSC, com ênfase ao aço (WTO, 2017a).
Por fim, os acordos da OMC foram questionados por meio dos contenciosos
1.167 vezes. Com relação aos acordos questionados pelas nações desenvolvidas,
76,3% dos casos envolveram o Gatt 1994, 24,4% foram relativos a subsídios e
medidas compensatórias, 18,7% à agricultura e 13,4% a questões de antidumping.
Por seu turno, o comportamento dos PED assemelhou-se ao dos PD, em que
os acordos mais questionados foram o Gatt 1994, antidumping, subsídios e
estabelecimento da OMC, representando 79,9%, 31,3%, 17,3% e 16,9% de suas
disputas, respectivamente. Acordos relacionados à agricultura e às medidas de
salvaguarda também revelaram grandes demandas por parte dos PED, apontando
10,7% ambos (WTO, 2017a).
Evolução dos conflitos
A inicialização de um contencioso é efetuada pela fase da consulta, o que pode
evidenciar soluções sem a necessidade de estabelecimento de painéis. Dos 514
contenciosos, 69 foram solucionadas na fase da consulta, dentre eles, 47 dos PD
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
159Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
como interpelantes e 22 dos PED. Nessa etapa, as contendas solucionadas foram
classificadas em: acordo mútuo; disputa substituída por outra; disputa terminada;
ou retirada da denúncia. Apurou-se que 153 contenciosos permanecem há mais de
dois anos sem nenhum procedimento tomado nessa fase, ou seja, há uma inação
por parte do OSC ou dos países envolvidos em prosseguir com essas disputas.
O OSC conta com 14 contenciosos aguardando procedimentos com menos de dois
anos na fase de consulta (WTO, 2017a).
291 casos seguiram para procedimentos mais formais, com o estabelecimento
de painéis. Apresentam-se 87 disputas resolvidas nessa fase, 47 interpeladas pelos
PD e 40, pelos PED, as quais revelam como resultados: acordo mútuo; decisão
do painel; disputa terminada; ou painel suspenso. Dentre elas, 44 aguardam
soluções. Além disso, 145 contendas tiveram as soluções dos painéis questionadas,
encaminhando-se então para a apelação. A fase solucionou 119 contenciosos, dos
quais 76 foram demandados pelos PD e 43, pelos PED. A apelação deixou quatro
contendas em andamento e duas aguardando implementações. Por fim, 22 conflitos
foram levados até a fase da arbitragem. Todos esses foram esclarecidos, tendo
como categorias: acordo de implementação; acordo mútuo; decisão do corpo de
apelação; ou retaliação permitida (WTO, 2017a).
Com o intuito de se compreender a efetividade do OSC, efetuou-se o cálculo
da Taxa de Solução de Controvérsias, que consiste na porcentagem das disputas
resolvidas em relação a todas as contendas existentes (excluindo-se aquelas em
andamento)
8
. A seguir, encontra-se a fórmula utilizada para o cálculo da taxa.
Qc + Qa + Qr
TS = –––––––––––––––––––––––––––––– x 100
Ct – (Cec + Cep + Cea)
Na qual:
TS — Taxa de Solução do Órgão de Solução de Controvérsias;
Qc — Quantidade de contenciosos solucionados na fase da consulta;
Qp — Quantidade de contenciosos solucionados na fase do painel;
Qa — Quantidade de contenciosos solucionados na fase da apelação;
Qr — Quantidade de contenciosos solucionados na fase da arbitragem;
Ct — Contenciosos totais solicitados no Órgão de Solução de Controvérsias;
Cec — Contenciosos que devem ser excluídos na etapa da consulta, evidenciados
por solicitações dos países entre 2015 e 2016;
8 A disputa referente a Bangladesh foi inserida nos cálculos referentes aos PED.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
160 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
Cep — Contenciosos que devem ser excluídos na etapa do painel, nesse caso,
as questões ainda sendo resolvidas;
Cea — Contenciosos que devem ser excluídos na etapa da apelação, nesse
caso, as questões ainda sendo resolvidas.
Apresenta-se como resultado de todos os 514 contenciosos:
69 + 87 + 119
TS = –––––––––––––––––––––––––– x 100 = 66,0%
514 – (14 + 44 + 06)
Efetuado o cálculo, evidencia-se que 66,0% dos contenciosos estabelecidos
perante o OSC foram resolvidos. Mesmo revelando-se acima de 50%, o valor
é questionável, visto que a função principal do órgão é possibilitar a todas as
contendas internacionais soluções satisfatórias. Considera-se que o processo de
análise pode sofrer alterações profundas, evidenciadas pela existência das 153
disputas estagnadas na fase de consulta, contribuindo para a baixa do índice. Tais
contenciosos, no entanto, podem ter sido solucionados por meio de acordos mútuos
entre as partes, porém, sem prestação de contas ao OSC, o que o impossibilita
de classificá-los como resolvidos. Para efeito de comparação, a taxa de solução
em 2006 era de 49% (LUCENA, 2006), figurando ao OSC um salto de 17,0% dos
contenciosos solucionados, de maneira a atribuir maior otimismo ao desempenho
do órgão.
A taxa de solução dos países em desenvolvimento é obtida pela aplicação
da fórmula:
22 + 40 + 43 + 06
TS = –––––––––––––––––––––––––––– x 100 = 6 0 , 9 8 %
223 – (12 + 24 + 05)
Por sua vez, a taxa de solução dos países desenvolvidos é determinada por:
47 + 47 + 76 + 16
TS = ––––––––––––––––––––––––––– x 100 = 6 9 , 4 0 %
291 – (02 + 20 + 01)
Percebe-se que a taxa de solução de controvérsias dos PED em relação aos
PD é 8,46% menor. Como já explicitado, uma das principais motivações que
influenciam as ações dos países perante o OSC é a possibilidade de solucionar
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
161Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
suas contendas. Uma taxa de solução menor para os países mais sensíveis
economicamente demonstra a discrepância de atuação. O percentual revela que,
além de apresentarem uma maior participação em praticamente todas as categorias
dos processos, os PD conseguem resolver seus contenciosos de um modo mais
eficaz em comparação aos PED.
Com relação aos resultados das disputas, os PD destacam-se como sendo as
nações que mais obtiveram vitórias nos contenciosos. Esse grupo venceu 35,42%
(192 contendas), em relação ao número total de disputas (542) e, em contrapartida,
os PED alcançaram êxito em 23,80% (129 contendas). A cifra denuncia, nas
palavras de Lopes (2014, p. 41), “que há uma desigualdade na acessibilidade
ao sistema do OSC, que afeta principalmente os países [em desenvolvimento e]
menos desenvolvidos”.
Figura 4. Duração dos contenciosos solucionados
13
38
25
24
8
31
27
41
53
36
18
25
0
10
20
30
40
50
60
Menos de um
ano
Entre 1 e 2
anos
Entre 2 e 3
anos
Entre 3 e 4
anos
Entre 4 e 5
anos
Mais de 5 anos
Países em Desenvolvimento Países Desenvolvidos
Fonte: WTO, 2017a.
Por último, analisa-se o tempo de resolução dos conflitos. A Figura 4 ilustra
que, em sua maioria, as disputas de ambos os grupos de países levaram menos de
três anos para alcançar soluções. Os números mostram-se positivos, pois desvelam
que as contendas solucionadas tramitaram com prazos próximos aos estipulados
no Entendimento sobre Regras e Procedimentos de Soluções de Controvérsias
(ESC). Contudo, é preciso dar atenção aos 56 contenciosos que demandaram mais
de cinco anos para serem concluídos, o que diminui a credibilidade do órgão,
sobretudo porque esse montante evidencia uma certa incapacidade de que as
normas referentes aos prazos sejam respeitadas.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
162 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
Assimetrias de participação no OSC e as teorias dos regimes
Os regimes estão conectados à ideia de ordem internacional (YOUNG, 1989).
Nessa perspectiva, na área comercial, compreende-se como ordem econômica
internacional o pressuposto de que os países podem, livremente, comprar e vender
em uma rede de mercados internacionais. Não obstante, deve-se questionar a
existência da liberdade comercial no sistema internacional, uma vez que os países
menos desenvolvidos e em desenvolvimento acabam convertendo-se em reféns
do papel a eles atribuídos na divisão internacional do trabalho. O OSC, dessa
maneira, reflete essa divisão, fator identificado quando se analisa as assimetrias
das participações em todas as categorias dos contenciosos. De fato, as assimetrias
de participação dos PMD, PED e PD nas diversas categorias de um contencioso
foram fortemente identificadas. O Quadro 1 resume o nível de desigualdade
presente na atuação desses grupos de países.
Quadro 1. Resumo das assimetrias de participação por grupo de países (1995-2016)
CATEGORIAS PD PED PMD
Países membros 7,98% 65,03% 26,99%
Demandantes 55,17% 44,65% 0,18%
Demandados 55,44% 44,55%
Terceiras partes 33,35% 66,09% 0,57%
Tempo médio Entre 2 e 3 anos Entre 1 e 2 anos
Vitórias 35,42% 23,80%
Taxa de solução 69,40% 60,98%
Fonte: elaborado pelos autores com dados da WTO, 2017a.
As assimetrias, na maioria dos casos, são consideradas negativas para os países
em desenvolvimento e para os menos desenvolvidos. Observa-se que, mesmo sendo
membros numerosamente significantes da instituição, esses grupos não conseguem
ter uma atuação em consonância com as suas demandas. As discrepâncias
descrevem os empecilhos que os Estados com menores rendas enfrentam em
um comércio internacional injusto. As teorias dos regimes internacionais, nesse
contexto, podem oferecer argumentos plausíveis capazes de explicar essas
assimetrias.
Contudo, um estudo pautado por apenas uma proposta teórica pode espelhar
uma investigação deficitária. Strange (1994) aponta que os estudantes da economia
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
163Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
política internacional são, frequentemente, pressionados a escolher um cardápio
dentre os três possíveis: o realismo, o marxismo ou o liberalismo. No entanto, a
autora afirma ser impossível haver uma única teoria capaz de abranger todas as
características e níveis de análise de uma determinada situação. Desse modo, as
metodologias de análise devem ser capazes de, dentre esses cardápios, “escolher
um aperitivo do realismo, um prato principal do liberalismo e uma sobremesa do
marxismo”
9
(STRANGE, 1994, p. 16, tradução dos autores), ou seja, eleger mais
de um arcabouço explicativo para um estudo.
A abordagem baseada no poder mostra-se relevante para explicar a atuação
dos Estados quando estes recorrem ao OSC visando a uma manutenção e/ou
expansão de poder. O poder deve ser compreendido como as capacidades possuídas
por um país. No caso específico da esfera comercial, pode-se considerar poderoso
aquele grupo de Estados que detêm um elevado Produto Interno Bruto (PIB) e
uma alta participação nas exportações mundiais. Os PED e os PMD apresentam
um montante de PIB um pouco maior do que os PD — enquanto os PED têm 52%
e os PMD, 1%, os PD possuem 47%. Com relação à participação nas exportações,
os PED e os PMD são responsáveis por 78% dos valores das exportações de todos
os países membros da OMC. Uma conclusão precipitada a partir desses números
poderia demonstrar que os PED e os PMD têm mais poder.
Entretanto, é preciso incluir na análise acima o número de países que
participam de cada grupo: 69 nações são PED, 8 são PMD e 24 são PD. Ao se fazer
uma média do PIB e do valor exportado por grupo de países, a compreensão do
poder se modifica. O PIB médio dos PD é mais do que o dobro que o dos PED,
no entanto, mesmo ao se considerar a média, a participação nas exportações dos
PED e dos PMD ainda é superior aos PD. Os Países Desenvolvidos, apesar de
terem maior PIB médio, possuem menor participação no total das exportações
(UNCTAD, 2018). Assim, os elevados recursos que os PD possuem e que podem
bancar os custos dos processos no OSC e a menor participação desse grupo de
países no total das exportações podem explicar o fato de esses países terem uma
participação maior no OSC.
Como as exportações fazem parte do PIB, os PD, portanto, se engajam
fortemente no OSC porque querem manter seu PIB elevado e não podem perder
mercado para os seus produtos. O tamanho pequeno do PIB, em resumo, é uma
barreira à entrada no OSC. Para confirmar essa hipótese, pode-se mencionar o
9 [T]o pick an appetizer from the realists, a main course from the liberals and a dessert from the Marxists.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
164 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
estudo realizado por Lucena e Mendonça (2017), que utilizou o modelo gravitacional
para verificar se as exportações estadunidenses, no início de cada disputa, são
influenciadas pelo PIB dos países que estão participando do contencioso. Os
resultados mostraram que as exportações norte-americanas são influenciadas
pelo PIB do país da disputa.
As teorias de interesse, por seu turno, promovem uma análise também
pertinente, sobretudo quando se questiona o porquê de os Estados continuarem
cooperando, por meio do OSC, mesmo havendo assimetrias muito evidentes.
A existência de uma sombra sobre o futuro, um conceito utilizado pelas teorias
baseadas no interesse, pode explicar a cooperação, no curto prazo, mesmo em
condições adversas. A sombra do futuro significa que os Estados, por terem dúvidas
sobre o futuro, adotam estratégias de longo prazo com os objetivos de obterem
mais informações e de desenvolverem condições mais adequadas para si. Os
Estados, nesse caso, mesmo não tendo condições momentâneas de defenderem
seus interesses, presumem que a cooperação é a melhor estratégia porque, no
longo prazo, eles poderão ter melhores condições e alterar o resultado do jogo.
Nesse sentido, quando se observa, no Quadro 1, que os países que participam
dos contenciosos como terceiras partes, verifica-se que aproximadamente 67%
deles fazem parte do grupo dos PED e PMD. Participar como terceira parte é
uma estratégia dos PED e PMD que visa conhecer os trâmites de uma disputa
até obter informações suficientes para defender seus interesses no longo prazo.
O horizonte de tempo das contendas abertas perante o OSC também confirma essa
hipótese, pois os conflitos que envolvem os países desenvolvidos são resolvidos
mais rapidamente. As disputas dos PD, de acordo com o Quadro 1, levam entre
um e dois anos para serem solucionadas, e as dos PED, entre dois e três anos.
Os países desenvolvidos, entretanto, adotam uma estratégia de longo prazo
quando percebem que têm uma elevada probabilidade de perda no curto prazo.
A lógica por trás dessa estratégia é ganhar tempo para fortalecer o setor econômico
doméstico e, assim, criar as condições para competir com os demais países. Como
exemplo, observa-se a atuação dos EUA. Quatro contendas merecem destaque:
DS160, solucionada em 2003; DS176, resolvida em 2002; DS184, terminada em 2001;
e DS217, em 2004. Todos esses contenciosos evidenciaram derrota estadunidense.
O marcante é que, mesmo passada mais de uma década, o Estado ainda não
entrou em conformidade, tal como sugerido pelo OSC. Além disso, os EUA, até
dezembro de 2016, enviaram relatórios mensais com a alegação de que estão
trabalhando para que as medidas entrem em consonância com as recomendações
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
165Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
da instituição. Aqui, é possível acrescentar outras duas proveis explicações das
teorias baseadas no interesse para a menor participação dos PED e PMD no OSC,
que é a presença de questões de ligação e a experiência normativo-institucional.
A existência de questões de ligação entre os países, que são interesses que
eles possuem em outras atividades desenvolvidas entre eles, pode desestimulá-los
a entrarem em uma disputa porque aquele possível conflito comercial é apenas
um dos interesses que aquele país tem com o outro e, caso ele não adote uma
estratégia cooperativa, os demais interesses poderão ser afetados. Os membros,
portanto, fazem uma análise do custo de oportunidade de entrar em uma disputa
comercial: quanto ele terá que sacrificar nas relações comerciais com o país da
disputa caso ele dê entrada em um processo no OSC contra aquele país. No início
do contencioso DS250 entre Brasil e Estados Unidos, em 2002, as exportações de
suco de laranja do Brasil eram de U$ 137.914.385,00. No início do contencioso
DS382 entre Brasil e Estados Unidos, em 2008, que também tratava do suco de
laranja, as exportações do produto tinham subido 308% no período 2002-2008
(MDIC — MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA, COMÉRCIO EXTERIOR E SERVIÇOS,
2018). Entretanto, o Brasil, em 2002, exportava 2936 produtos para o mercado
norte-americano e os fabricantes desses produtos temiam que os Estados Unidos
comprassem menos deles por causa dos conflitos comerciais relacionados ao
suco de laranja. Esse receio dos empresários brasileiros, especialmente se ele
for expresso nas associações empresariais e nos fóruns onde empresa e governo
debatem, pode influenciar o governo e fazer o mesmo ser mais cauteloso na
abertura de novos contenciosos.
A experiência normativo-institucional também pode explicar as assimetrias
existentes no OSC, pois, quanto mais experiente o país, maior a possibilidade
de ele acionar as instituições internacionais para defender seus interesses.
A qualidade da burocracia do governo, um indicador que pode ser utilizado
como proxy para experiência normativo-institucional, é maior nos PD. Enquanto
que, nesse grupo de países, ela é de 0,8 — em uma escala que varia entre zero
e 1, sendo que quanto mais próximo de 1, melhor —, nos PED e PMD, ela é de
0,47 (DAHLBERG et al., 2018).
Por fim, as teorias baseadas no conhecimento fornecem uma ferramenta
importante para se compreender as escolhas de um Estado-membro em iniciar
uma disputa. O conhecimento é uma fonte muito relevante (HAAS, 1992), uma
vez que os atores dependem dele para formularem estratégias plausíveis para a
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
166 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
resolução de um determinado problema. De igual modo, o conhecimento influencia
a própria percepção do que seria esse problema a ser combatido. Nesse aspecto,
um conhecimento profundo acerca de uma contenda internacional pauta-se como
variável impactante quando das interações dos membros perante o OSC. O papel
da comunidade epistêmica afigura-se como um fator que influencia a adesão de
conhecimento por parte dos atores.
Para iniciar e administrar uma disputa comercial, dois tipos de conhecimento
são fundamentais para que um membro participe com êxito em um processo:
o jurídico e o técnico. No concernente ao primeiro, ainda que as nações mais
fracas economicamente não possuam um arcabouço jurídico satisfatório que as
possibilite atuar mais ativamente perante o OSC, a própria OMC disponibiliza
profissionais competentes para auxiliarem esses países nos trâmites processuais.
O conhecimento técnico, aquele referente à natureza de uma disputa específica
(como medidas fitossanitárias, propriedade intelectual etc.), é acionado consoante
a capacidade de um ator/Estado em lidar com determinadas situações.
Nesse sentido, a relação entre os governos e a comunidade epistêmica, como
sugere a terceira abordagem, apresenta-se como um quesito positivo quando se
observa a participação perante o OSC e a existência de instituições científicas
de qualidade em um determinado país. No banco de dados disponibilizado pelo
QoG Institute, observa-se que as instituições científicas dos PD são de maior
qualidade do que as do PED e PMD. Em uma escala de 1 a 7, a qualidade das
instituições científicas dos Estados desenvolvidos atingiram o índice de 5,14,
enquanto aquelas dos menos desenvolvidos e em desenvolvimentos alcançaram
3,20 e 3,70, respectivamente (DAHLBERG et al., 2018). Outro indicador que pode
servir como proxy para mensurar a robustez da comunidade epistêmica de um país
é a quantidade de artigos publicados em periódicos científicos de acesso aberto.
Em 2014, foram publicados no mundo 1.490.237 artigos e os países desenvolvidos
publicaram 1.130.422, o que significou 78% das publicações (SCIENCE-METRIX,
2018). Os dados respaldam a noção de que os membros mais desenvolvidos
possuem maiores chances de acionarem suas instituições ricas em conhecimento, o
que afeta suas formas de atuação perante o OSC, influenciando em um tratamento
mais eficaz dos contenciosos.
Em suma, as teorias de regime podem auxiliar na compreensão de como
os Estados atuam no OSC, já que explicam o comportamento de determinados
atores e auxiliam de modo oportuno na interpretação de um conjunto de dados.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
167Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
Keohane e Nye (1987) postulam que os Estados estão gradativamente mais
interdependentes, o que contribui para o aumento da cooperação entre eles.
Contudo, ressalta-se que um aumento da interdependência não significa uma
diminuição das assimetrias. Nesse sentido, compreende-se a relevância das
instituições no que concerne à cooperação, pois elas não se limitam apenas a um
mecanismo de interação entre os Estados, mas configuram um meio coordenador
das relações dos atores. Com isso, as instituições funcionam como elementos
capazes de reduzir as diferenças e as assimetrias de informações (KEOHANE,
1984).
Considerações finais
As teorias de regimes internacionais são importantes elementos que explicam
as motivações cooperativas dos Estados e demais atores do sistema internacional.
A incapacidade de produzir observações categoricamente holísticas, assim, não
danifica a relevância das teorias como aparato esclarecedor, tampouco desvincula
a importância dos regimes internacionais para a interação entre os atores e como
esses influenciam a existência, criação e manutenção dos princípios, normas,
regras e procedimentos. Nesse sentido, observou-se que as teorias de regimes
baseadas no poder elucidam como os Estados membros atuam perante o OSC,
tendo em vista adquirir maiores ganhos com a abertura de contenciosos. Nota-se
que aqueles com maiores capacidades (PIB, montante de exportação) logram
acessar o órgão mais facilmente, possuindo, desse modo, mais oportunidade de
colocarem suas demandas em evidência.
As teorias que enfatizam o interesse, por sua vez, revelam que questões como
a sombra sobre o futuro, a existência de questões de ligação entre os países e a
experiência normativo-institucional influenciam na decisão de um Estado iniciar
e/ou dar continuidade a um contencioso. Observou-se que os países que possuem
instituições internas mais estáveis e organizadas, evidenciadas pelo índice de
qualidade democrática, acionam o OSC com mais frequência. Outrossim, a ligação
entre os países, destacada por suas relações comerciais, apresenta-se como outra
característica importante na hora do cálculo de ação dos membros diante do OSC.
Por último, as teorias pautadas no conhecimento também auxiliam notoriamente
na compreensão das assimetrias. O conhecimento de como se desencadeiam os
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
168 A participação dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos no Órgão de Solução [...]
processos na instituição apresenta-se como peça fundamental para se obter êxito
nas questões tratadas. Posto isso, percebeu-se que a comunidade epistêmica é
de grande valia. Os membros que possuem instituições de pesquisas mais bem
qualificadas, somadas às suas fortes participações nos periódicos de pesquisa
mundiais (artigos publicados), são proxies que destacam as possibilidades de
acessar um conhecimento técnico e especializado, o que contribui para uma
melhor participação no OSC.
A significância que o OSC possui como atenuador das assimetrias é clara,
pois seu arcabouço de regras e de procedimentos incorpora diversas proposições
com vistas a um tratamento diferenciado dos PED e dos PMD. Por esse ângulo, a
instituição assume a existência de diferenças entre seus membros, as quais devem
ser suprimidas por meio de um mecanismo normatizador capaz de diminuir as
assimetrias e de atribuir maior igualdade de atuação. No entanto, os PED e os
PMD encontram esses gargalos (PIB, qualidade das instituições, comunidade
epistêmica) que os impossibilitam de acessar o órgão e, dessa forma, obter um
tratamento diferenciado que contribuiria para um melhor posicionamento perante
a instituição.
Nesse sentido, para que haja um tratamento eficaz, faz-se necessário haver
uma atenção aos obstáculos que impossibilitam a esses países um acesso igualitário
ao OSC. Caso contrário, o princípio de igualdade, fundamental para a OMC, não
poderá ser um princípio primordial para a existência da instituição, pois um
sistema em que a maioria dos membros não tem acesso ao seu órgão solucionador
de controvérsias não pode ser considerado efetivo (LOPES, 2014).
Ainda que os PMD e os PED encontrem obstáculos em efetivar uma participação
mais expressiva perante o OSC, deve-se atentar aos esforços e ao empenho desses
Estados em lutar por uma instituição mais justa e eficaz, com o intuito de diminuir
as desigualdades e de fomentar caminhos para o desenvolvimento. Essa articulação
entre essas nações deu-se, sobretudo, a partir das últimas rodadas do Gatt, em
que os países mais fracos começaram a expor seus anseios por meio de coalizões
concretas e bem arquitetadas. Ainda que ineficaz em assegurar a igualdade, a
OMC é primordial para que esses atores possuam uma ferramenta que os permita
reivindicar um sistema comercial mais justo. Tampouco é oportuno menosprezar
a tenacidade de atuação dos membros em formular um arcabouço institucional
que preze pela igualdade. As assimetrias existem, cabe aos atores e à instituição
promover meios capazes de minimizá-las.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 147-170
169Andréa Freire de Lucena, Samuel Rufino de Carvalho
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171Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
Infiltração clandestina: a questão da diferença
no pensamento latino-americano
Clandestine infiltration: the question of difference
in latin american thought
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.807
Lara Martim Rodrigues Selis
1
Resumo
Este artigo constitui um esforço de leitura de autores que se engajaram na reativação das
margens como espaço de enunciação intelectual na América Latina. Nesse sentido, desenha-se
uma reflexão cuja curiosidade seminal se direciona sobre o lugar em que o escritor latino-
americano joga com os signos de outro escritor, o europeu. Buscando analisar como algumas
escolas enfrentaram o silenciamento epistemológico da região, o presente trabalho retoma
brevemente a literatura produzida pelas teorias da dependência, pelo grupo modernidade/
colonialidade e pelos intérpretes da antropofagia. A partir de tal base, argumenta-se pelo
espaço de enunciação marginal reativada através de uma epistemologia capaz de estabelecer
a diferença como valor crítico. Através dessas lentes, sugere-se que, em cada uma daquelas
correntes, verificam-se diferentes visões e graus distintos de resistência diante da figura da
Europa ou dos países centrais. Ao fim, configuram-se múltiplas modalidades de infiltração
clandestina, mas que compartilham da preocupação com um lócus de fala periférica.
Palavras-chave: Pensamento Latino-americano; Pós-colonialismo; Teoria das Relações
Internacionais.
Abstract:
This paper expresses a reading effort of the Latin American authors who have been engaged
with the reactivation of the margins as a space of intellectual enunciation. In order to analyze
how some schools faced the epistemological silencing of the region, the present work briefly
1 Possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
(2008) e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2011). Atualmente é doutoranda
em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e Professora Assistente na
Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Artigo submetido em 22/05/2018 e aprovado em 30/08/2018.
172 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
resumes the literature produced by dependency theories, by the modernity/coloniality group
and by the interpreters of anthropophagy. From this base, it is argued that those traditions
have reactivated the marginal enunciation through an epistemological establishment of
‘difference’ as a critical value. Through these lenses, it is suggested that we can find, in each
of those schools of thought, different visions and degrees of resistance against the figure
of “Europe” or of the “central” countries. At the end, multiple modalities of “clandestine
infiltration” are configured, but all sharing the concern with a peripheral speech locus.
Keywords: Latin American Thought; Postcolonialism; International Relations Theory.
Introdução
“O outro existe, logo pensa”, provoca Viveiros de Castro, que continua,
e se esse que existe é outro, então seu pensamento é necessariamente outro que
o meu. Quem sabe até deva concluir que, se penso, então também sou outro”
(2008, p. 117). Nessa sequência lógica, vemos o autor jogar com a dedução
de Descartes, que é então subvertida pela contra ontologia do perspectivismo
ameríndio. Da liberação desse saber, antes subalternizado, Viveiros de Castro retira
um significado distinto para um signo já habitual à imaginação moderna, qual
seja, a alteridade. Assim, se para a cultura moderna, a existência de si implica a
negação do outro, para a filosofia ameríndia acionada, a mesma existência só é
possível pela afirmação da outridade.
Sob escopo ampliado, tais palavras de Viveiros de Castro traduzem um
desafio mais geral apresentado por outros tantos autores que, cada qual à sua
maneira, irrompem contra o solipsismo descartiano, a fim de propor o pensamento
como potência de alteridade. Tal seria, por exemplo, o horizonte de resistência
que perpassou diversas teorias do século XX, as quais, ainda hoje, engajam-se
criticamente contra as estratégias de legitimação da diferença colonial
2
praticadas
pelas estruturas de poder modernas/coloniais. Assim, já na metade do século
XX, é possível identificar ondas de contestações que fluíam de todo o Terceiro
Mundo, colocadas contra os discursos totalizantes renovados por signos como o
“subdesenvolvimento”.
2 Neste trabalho, toma-se o conceito de “diferença colonial” conforme exposto por Mignolo (2007, p. 37), que
explica: trata-se de uma “classificação do planeta no imaginário colonial/moderno praticada pela colonialidade
do poder, uma energia e um maquinário que transformam diferenças em valores”. Ou seja, a diferença colonial
compõe o terreno de onde derivam matrizes de dominação, a exemplo do racismo e do ocidentalismo, que
permeiam o imaginário do sistema mundial moderno, desde os conflitos imperiais até hoje.
173Lara Martim Rodrigues Selis
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Em comum, autores da América Latina, África e Ásia problematizavam a
posição geocultural hegemônica da Europa e de suas categorias analíticas. Por
conseguinte, verifica-se a consolidação de esforços teóricos, cujo olhar, investido
do propósito crítico, torna-se igualmente indissociável do fenômeno histórico da
ciência moderna e de suas contradições. Sob esse horizonte, o presente artigo
almeja mapear algumas das literaturas que buscaram enfrentar tal metafísica
dualista da razão, estabelecendo como objetivo geral o intuito de compreender
algumas das particularidades das respostas latino-americanas. Afinal, é possível
pensar sobre (e contra) o sistema mundo moderno, desde uma posição exterior?
Ou ainda, no contato entre centro e periferia, haveria um espaço para enunciação
crítica, desde as margens?
No trajeto dessa revisão, o artigo se atenta às contribuições realizadas
em diferentes domínios intelectuais do pensamento social latino-americano,
buscando assim abordar três coletivos
3
teóricos que ganham destaque a partir da
segunda metade do século XX: as teorias da dependência; o grupo modernidade/
colonialidade e os intérpretes da antropofagia
4
. Certamente, não advogo o fato
daquelas serem as únicas, ou mesmo as mais representativas correntes do
pensamento social produzidos na América Latina. Tendo em vista a extensão
histórica e teórica da produção intelectual da região, qualquer escolha implicaria
limites que, embora metodologicamente impulsionados, não escapam ao domínio
dos interesses de quem escreve
5
.
3 A escolha pela referência a “grupos” teóricos não se faz sem a ciência dos riscos implicados nesse tipo de
taxonomia. Reconhece-se, portanto, que tais divisões coletivas jamais são inequívocas, e que um tratamento
completo de suas particularidades internas, embora desejável, apresenta-se impraticável ao presente artigo. Por
outro lado, a manutenção de tal recorte justifica-se pelo entendimento de que, ainda que precárias, tais caixas
taxológicas traduzem movimentos históricos e sociais relevantes para a compreensão e localização da produção
intelectual latino-americana. Assim, espera-se que a aplicação dessas identidades sirva ao exercício de uma
espécie de sociologia do conhecimento que, somada à análise teórica, sustente um mapeamento satisfatório da
temática analisada.
4 É importante pontuar que essa terceira referência, vinculada aos intérpretes da antropofagia, não traduz uma
escola ou programa unificado de investigação teórica. Por outro lado, como explica Beatriz Azevedo (2016), as
últimas décadas assistem a um revigoramento de autores que trazem novas luzes à obra oswaldiana, especialmente
através da mobilização do tema da antropofagia como material interpretativo do Brasil e da América Latina.
Nessa tendência, incluem-se nomes como Eduardo Viveiros de Castro, Luiz Costa Lima, Silviano Santigo,
dentre outros.
5 Cabe aqui uma nota de ciência autoral sobre os limites desse recorte. Este que, ao selecionar os três programas
supracitados, acaba por não tocar diretamente perspectivas e autores igualmente importantes — como José
Carlos Mariátegui (Peru), Sergio Bangú (Argentina), Aldo Ferrer (Argentina), Florestan Fernandes (Brasil),
Orlando Fals Borda (Colombia), Silvia Rivera Cusicanqui (Bolívia), René Zavaleta Mercado (Bolivia),
dentre outros.
174 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
Assim, frente à demanda por um olhar pormenorizado, julguei aqueles três
grupos como fontes seminais da produção teórica latino-americana que busca
romper com a subalternização epistemológica promovida no choque entre as
culturas colonizadas e colonizadoras. Mirando o problema da diferença, argumento
pela potencialidade específica do que considero ser os conceitos catalisadores
daquelas propostas, quais sejam, respectivamente: a noção de dependência; os
conceitos de colonialidade do poder e pensamento liminar; e, por fim, a ideia da
antropofagia.
Em cada um desses conceitos, verificam-se rupturas específicas com a
narrativa moderna. Dessa forma, se na primeira perspectiva vemos a concepção
de um contato atravessado pela contradição dialética, inerente e vinculante, na
segunda, a noção de “fronteira” engatilha o potencial da “exterioridade” como
lócus da crítica à modernidade desde a diferença colonial. Alternativamente, outro
caminho é aberto pela antropofagia, que confronta a razão dualista pela suposição
do entre-lugar criado através do desejo antinarcísico pelo Outro. Ao fim, busca-se
destacar como todas as três perspectivas se apropriam e ressignificam a diferença
colonial, a fim de descolonizarem o quadro epistemológico hegemônico e abrirem
espaço para a contribuição teórica das margens.
Em diálogo com o campo das Relações Internacionais, argumenta-se que tais
correntes latino-americanas contribuem com a demanda por uma pluralização
e descentramento científico da área, também anunciada por autores como
Inayatullah e Blaney (2004), Spivak (1999), Tickner (2013), dentre outros. Segundo
tais pensadores, a natureza (neo)imperial da disciplina, derivada de seu vínculo
original com a filosofia europeia, torna imprescindível sua abertura teórica para
a produção intelectual das regiões periféricas. Assim, nos três tópicos seguintes
a essa introdução, apresenta-se um exercício de compreensão que, embora ainda
incipiente, esforça-se para interpretar cada uma das três correntes, localizando-as
no interior das tradições críticas latino-americanas.
Movimento dos contrários: considerações sobre as teorias da
dependência
O desafio de se pensar as ciências sociais a partir da América Latina tem
orientado diversas pesquisas na região, desde o início do século XX. Em grande
medida, a extensão de tal provocação epistêmica deriva do argumento sobre uma
175Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
espécie de dependência intelectual da teoria social latino-americana com relação
aos marcos teóricos dos países centrais. Segundo essa lente, em sua origem, a
produção intelectual na região realizou-se, sobretudo, mediante tentativas de
adaptações das chaves do pensamento europeu para a realidade local, que então
atravessava o período de construção e consolidação dos Estados (ANSALDI, 2015).
Assim, em parte, a correspondência entre a epistemologia moderna e as
categorias analíticas do Estado-nação justificou a imposição daquela sobre os
saberes nativos. No entanto, tal não implicou um vazio de contestações, de modo
que, desde o século XIX, encontramos na literatura da região autores engajados
criticamente com a utilidade dos modelos da tradição europeia frente às demandas
locais por “cambio social” (ANSALDI, 2015, p. 19). Como explicam Bortoluci
e Jansen (2013), o enfrentamento da subjugação cultural pelo Novo Mundo
aparece nas pesquisas da região mesmo antes de um engajamento explícito com
a linguagem do pós-colonialismo.
Embora não empreguem a linguagem explícita do “pós-colonialismo”, muitos
pesquisadores da América Latina desenvolveram análises e perspectivas que
são, em muitos aspectos, compatíveis com aquelas avançadas por teóricos
pós-coloniais [...]. Pensadores como José Martí, José Carlos Mariátegui, Gino
Germani, Florestan Fernandes, Leopoldo Zea, e Edmundo O’Gorman, por
exemplo, dedicaram a maior parte de suas carreiras ao desenvolvimento
de interpretações históricas das sociedades Latino-americanas que se
engajassem, de forma séria, no problema da “diferença colonial”, e que, ao
mesmo tempo, servissem à crítica dos discursos populares e sociológicos sobre
a modernidade frequentemente produzidos a partir da Europa. (BORTOLUCI;
JANSEN, 2013, p. 204-207, tradução nossa)
6
Portanto, como sugere a citação acima, na América Latina, a preocupação
com o problema da diferença colonial antecedeu os processos de descolonização
da segunda metade do século XX — notadamente ocorridos na África e na Índia.
Isso porque, enquanto peça chave da primeira onda de expansão capitalista, a
experiência colonial da América Latina remonta estruturas de dominação datadas
desde o século XVI.
6 No original: “While not employing an explicit language of ‘‘postcolonialism’’ many scholars of Latin America
have developed analyses and perspectives that are in many ways compatible with those advanced by postcolonial
theorists [...]. Thinkers such as José Martí, José Carlos Mariátegui, Gino Germani, Florestan Fernandes, Leopoldo
Zea, and Edmundo O’Gorman, for example, dedicated most of their careers to the development of comprehensive
interpretations of the histories of Latin American societies that took very seriously the problem of ‘‘colonial
difference’’ and that, at the same time, served to critique the popular and sociological discourses of modernity
that had been developed with reference to Europe.”
176 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
Por conseguinte, com a maioria das independências já encerradas nas
primeiras décadas do século XIX, a região latino-americana recebe a segunda
onda de expansão capitalista, de caráter monopolista, de forma distinta do
restante do globo. Assim, enquanto os continentes africano e asiático assistiam
as neocolonizações imperialistas, a América Latina experimentava os primeiros
projetos de modernização e urbanização pós-independência — também sob a
égide das grandes potências. Nesse contexto, as discussões sobre o campo da
economia e da política avançaram para o centro do debate social da região, que
começa a desenhar suas lentes teóricas.
Como explicam Bortoluci e Jansen (2013), reconhecer as particularidades
da história colonial e pós-colonial da região latino-americana é tarefa central
para aqueles interessados em compreender a inserção específica do pensamento
latino-americano no movimento crítico global — sobretudo aquele vinculado ao
debate da dependência. Portanto, importante notar como a popularidade do enfoque
na economia política é acentuada no pós Segunda Guerra, quando o direcionamento
estratégico dos EUA eleva o tema do desenvolvimento econômico à condição de
diretriz taxonômica internacional. No quadro de estruturação da agenda acadêmica,
destaca-se, pois, o impacto das teorias da modernização, prevalentes nas décadas
de 1930 e 1940, bem como da crítica cepalina — desenvolvida por autores como
Raul Prebisch e Celso Furtado nos anos de 1950 e 1960.
Tais vertentes, no entanto, chegam problematizadas nas últimas décadas
do século XX, quando a falência do projeto desenvolvimentista dá margem para
uma renovação da crítica local. Conforme destacam Bortoluci e Jansen (2013,
p. 207, tradução nossa), “nas décadas de 1960 e 1970, essas tradições intelectuais
foram revigoradas por novos movimentos intelectuais, artísticos, e políticos
latino-americanos — e pela era da descolonização em todo mundo — e se
cristalizaram em uma série de importantes inovações teóricas”
7
. Assim, a ascensão
do Terceiro Mundo como signo geopolítico, o vigor das experiências políticas
socialistas do período e os processos de descolonização da África encontram eco
na realidade latino-americana através da chamada “sociologia crítica” (HURTADO
2006 apud ANSALDI, 2015).
Dessa fase, emergem as teorias da dependência e as análises do sistema-
mundo, que configuram duas das respostas mais conhecidas da região aos
7 No original: “in the 1960s and 1970s, these intellectual traditions were reinvigorated by new Latin American
intellectual, artistic, and political movements — and by the era of decolonization around the world — and
crystallized in a series of important theoretical innovations”.
177Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
dilemas da modernidade. Naquelas correntes, a relevância da economia política
no debate social latino-americano é acompanhada pela centralidade da filosofia
(ou teoria da história) fundamentada na noção hegeliana-marxista da dialética.
Como explica Osório (2009), a segunda metade do século XX assistiu a criação
de uma espécie de “tradição latino-americana” orientada epistemologicamente
para a transformação social. Sob essa abordagem, destacou-se o uso comum da
dialética, à qual foram acrescidas categorias como “pobreza, opressão, dignidade,
e a necessidade de libertação”
8
(OSÓRIO, 2009, p. 31, tradução nossa).
Tal direcionamento teórico sustentou a difusão do argumento sobre uma
produção global da dominação e seus conceitos derivativos, como “dependência”,
“subimperialismo” e “colonialismo”. Dessa forma, no mesmo período, enquanto as
teorias inauguradas pelo grupo sul-asiático dos Estudos Subalternos dialogavam,
em maior ou menor grau, com as contribuições pós-estruturais, chamando
atenção para as dimensões discursivas e culturais do imperialismo, as teorias da
dependência, por sua vez, amparavam-se em uma epistemologia estruturalista ou
em leituras dialéticas da tese marxista da acumulação
9
(BORTOLUCI; JANSEN,
2013; KAPOOR, 2002).
Sob esse horizonte, o forte diálogo com a epistemologia marxista realizado por
autores como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra aciona
uma leitura da diferença colonial segundo os termos da contradição dialética. Nela,
o outro (a colônia/periferia) torna-se imagem antitética, ou espelho malgrado do
par dominante, cuja estrutura de opressão é perpetrada por demandas normativas
de superação. Edificadas sobre essa base, as vertentes marxistas da dependência,
em especial, particularizam-se pela análise dos processos de integração capitalista,
reconhecendo sua face política indissociável das dinâmicas produtivas globais.
Em outras palavras, atentam-se para uma estrutura de poder responsável pela
produção global da opressão, a partir da qual a condição de subdesenvolvimento
dos países periféricos é lida como o produto negativo do desenvolvimento das
economias capitalistas centrais (MARINI, 1973).
Dessa estrutura de dominação, consolida-se a noção de dependência
que, importante notar, traduz um termo sinóptico, cujo conteúdo abarca um
conjunto complexo de características (econômicas, sociais e políticas) das
8 No original: “poverty, oppression, dignity, and the need for liberation”.
9 Cabe reconhecer a complexidade da tradição teórica da dependência, em cujo interior encontram-se importantes
variações, tal qual a vertente marxista — formada por Ruy Mauro Marini. Theotônio dos Santos etc. — e a
vertente pluralista ou weberiana — representada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto.
178 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
sociedades periféricas (CAPORASO, 1978). Tais características, vinculadas ao
subdesenvolvimento, constituem os próprios mecanismos da diferença colonial,
produzida e aprofundada pela divisão global do trabalho. Nesse quadro, o termo
desigualdade assume a condição de chave interpretativa daquela condição,
constituindo uma leitura específica da diferença, em que se sobressaem os termos
do desenvolvimento econômico e social.
Segundo Ansaldi (2015), as abordagens da dependência respondem de forma
particular ao paradigma dualista da teoria da modernização, representando,
assim, uma das principais contribuições latino-americanas ao campo da pesquisa
social internacional. Divulgada inicialmente pela CEPAL, na década de 1940, a
perspectiva da modernização experimentou uma posição de destaque entre as
fontes interpretativas dos problemas socioeconômicos da região. Para tal abordagem
teórica, promovida por autores como W. W. Rostow e William Arthur Lewis, o
outro era lido por categorias analíticas dicotômicas, que naturalizava a diferença
colonial, subalternizando sua cultura e conhecimentos.
Dessa forma, as sociedades latino-americanas foram tomadas como internamente
distintas das sociedades avançadas, sendo, portanto, responsáveis pelo próprio
subdesenvolvimento. Ou seja, nessa perspectiva, a diferença entre os Estados
desenvolvidos e subdesenvolvidos refletia um atraso econômico e político dos
últimos, cuja transformação adviria de uma postura mimética com relação às
nações avançadas — que serviriam como modelo para um movimento civilizatório
destinado ao progresso. Nos enunciados de tal teoria, revela-se, pois, o discurso
que mobiliza a metafísica dualista (universal/particular etc.) centralizando suas
“verdades” em detrimento de outras.
Tal binarismo do imaginário moderno desliza sobre uma consideração abstrata
do tempo e espaço, relacionada à definição de um aqui e agora [dentro/hoje];
que se desdobra em uma construção de exterioridade igualmente fluída: um lá e
um então [fora/antes]. Nesse sentido, ao confrontar a razão dualista do discurso
moderno, expondo a produção da diferença como faceta negativa e intrínseca
do projeto modernizador, as teorias da dependência irrompem também contra a
narrativa temporal eurocêntrica. Utilizando a terminologia de Johannes Fabian,
pode-se dizer que os teóricos da dependência auxiliaram no entendimento da
“negação da coetaneidade”, decodificada como instrumento central das políticas
eurocêntricas da alteridade.
Assim, embora os teóricos da dependência não tenham se engajado diretamente
nas discussões sobre a temporalização da diferença, sua crítica ao desenvolvimento
179Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
colocou na agenda os problemas da narrativa civilizatória que sustenta as
intervenções modernizantes nos chamados países subdesenvolvidos. Ademais,
como aponta Mignolo (2003), a teoria da dependência marca um momento de
autodescoberta epistemológica na América Latina, que então se percebe como
parte de um sistema global de produção de conhecimento. Ou seja, ao demonstrar
os limites teóricos e políticos do conhecimento eurocêntrico para o entendimento
da realidade latino-americana, e chamarem atenção para o perigo do colonialismo
interno praticado pelas elites locais, os teóricos da dependência atuam na crítica
à hierarquia axiológica que atravessa a relação binária entre “a Europa e o Resto”.
Seguindo a leitura de Salazar Bondy (1968), a teoria da dependência agrega
seu valor político na medida em que oferece à experiência do “Resto” uma
igualdade epistemológica vis-à-vis as fontes europeias. Assim, para tal autor, o
paradigma dessa escola serve de modelo para ruptura com a postura subserviente
do conhecimento latino-americano com relação às culturas hegemônicas. Todavia,
trata-se de uma intersecção de culturas pensada pela síntese dialética, cujo grau
de sincretismo com as tradições europeias impulsiona muitas das denúncias pós-
coloniais sobre os limites da crítica dependentista à modernidade.
Por outro lado, cabe notar que se trata de uma apropriação do pensamento
central reformulada a partir da diferença colonial no mundo moderno/capitalista.
Portanto, o conceito do subimperialismo de Marini, por exemplo, relata uma
conceitualização inspirada na tese marxista do imperialismo, porém transformada
pela historicidade antitética da experiência periférica. Ademais, ainda em
dissonância com a teoria do imperialismo de Lenin, a visão dependentista não
percebe a produção global da opressão como uma etapa histórica do capitalismo,
mas sim como condição ontológica estrutural do sistema. Tal reformulação advém
do reconhecimento da experiência colonial, que então realoca os dilemas do
capitalismo nos termos do sistema mundial. Ou seja, em diálogo com as próximas
seções, expõe-se aqui uma forma importante, e particular, de ruptura com a
epistemologia moderna realizada pelo retorno às experiências do outro colonizado.
Habitar a fronteira: considerações sobre o grupo
modernidade/colonialidade
Como finalizou a seção anterior, a segunda metade do século XX contextualizou
o direcionamento do pensamento crítico latino-americano para a ideia de um
180 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
“sistema mundial” de opressão, tal qual desenvolvida por teóricos como Marini
e Wallerstein. Os modelos do sistema mundial, fragmentados em periferias,
semiperiferias e centros, experimentam fertilidade teórica nas décadas de 1960 e
1970, quando a força das leituras marxistas sustentava argumentos estruturais sobre
as amarras produzidas, e posteriormente expandidas, pela divisão internacional
do trabalho. Assim, conforme explica Go (2013), na metade do século XX, grande
parte dos cientistas sociais que buscaram problematizar o papel da Europa e
dos EUA em relação aos países periféricos o fizerem através das perspectivas do
imperialismo e seu enfoque nas estruturas de dominação econômica.
Portanto, não raro, o tratamento das dimensões culturais daquela relação foram
frequentemente abafadas através dessas lentes, que abriam pouca ou nenhuma
margem para leituras do poder segundo suas dimensões racial, psicológica, cultural
e de gênero. Alternativamente, já na década de 1970, o debate acadêmico do
chamado Terceiro Mundo assiste à construção da “terceira onda de teorias pós-
coloniais”
10
. Tais abordagens, de forma geral, compartilhavam do diálogo com
a crítica marxista do imperialismo, porém, ao mesmo tempo, buscavam superar
seu vocabulário demasiado economicista e estruturalista. Com isso, miravam,
dentre outras coisas, a ativação da agência como resultado de interações, isto é,
apresentá-la enquanto elemento de relacionalidade, substituindo o debate colocado
nos termos de “agente e estrutura” (GO, 2013).
Dessa forma, tal onda pós-colonial seguiu a base epistemológica voltada para
a ruptura com a sociologia dualista das teorizações modernas. Ou seja, edificou-
se sobre a crítica à bifurcação analítica presente em imagens como: “Europa e o
Resto”, “eu e outro”, “dentro e fora”, “doméstico e internacional”, dentre outras.
Por outro lado, diferentes das leituras dialéticas da exploração capitalista, os autores
do pós-colonialismo chamavam atenção para possíveis armadilhas implicadas na
narrativa marxista, cujas categorias não escapavam ao discurso de uma história
mundial homogênea — em que a heterogeneidade é continuamente negada na
concepção da subjetividade.
Assim, da crítica ao marxismo, desponta o diálogo do pós-colonialismo com
as estratégias teóricas da desconstrução. Embora não constitua uma filiação
generalizante, a proximidade com as categorias oriundas do pós-estruturalismo
europeu, vindos de autores como Foucault, Deleuze, Derrida e Lyotard, constitui
10 Para Darby e Paolini (1994), o pós-colonialismo desenvolveu-se através de 3 movimentos. No último, realizado
na década de 1970, destaca-se o papel dos autores sul-asiáticos que promoviam um distanciamento dos aportes
marxistas e uma aproximação das contribuições pós-estruturais e pós-modernas.
181Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
uma característica marcante da produção intelectual de nomes como Spivak,
Chakrabarty e Charttejee. Sob a liderança de Ranajit Guha, esses últimos autores
compuseram, na década de 1970, o grupo de Estudos Subalternos, cujo objetivo
era analisar criticamente a historiografia colonial da Índia produzida através de
signos eurocêntricos, quer seja pelos ocidentais ou pelos próprios nacionalistas
indianos (GROSFOGUEL, 2006, p. 20).
Na América Latina, o diálogo aberto com tal produção indiana foi relativamente
tardio, ocorrendo apenas na última década do século XX, por meio dos intercâmbios
acadêmicos realizados em ambiente universitário estadunidense. Desse contato,
realizado na década de 1990, nasce o grupo latino-americano de Estudos
Subalternos, que constitui a primeira inserção sistemática da região no debate
teórico pós-colonial (BALLESTRIN, 2013). No entanto, tão logo o grupo latino-
americano começa a se desenvolver, sua sintonia inicial com as propostas sul-
asiáticas dá lugar às primeiras discordâncias.
Em grande medida, tal se deve à resistência dos autores latino-americanos à
filiação com a epistemologia pós-moderna europeia, cuja perspectiva interna da
modernidade produziria, no limite, uma crítica eurocêntrica ao eurocentrismo
(GROSFOGUEL, 2006). Ademais, assumir o imaginário do pós-estruturalismo
francês ou da teoria crítica de Frankfurt, que identificam o século XVIII ou o
Iluminismo como fontes seminais da modernidade, significaria excluir a própria
experiência colonial da América Latina como parte central daquele projeto.
Portanto, desafiar as fronteiras cronológicas da modernidade surgiu como a própria
condição de possibilidade do pensamento pós-colonial latino-americano.
Nesse raciocínio, Mignolo justifica a maior receptividade da crítica pós-
colonial latino-americana à metáfora do sistema-mundo, na medida em que essa
situa o século XVI como data crucial da constituição das estruturas modernas
de colonialidade. Assim, Mignolo (2003) abre o caminho para a separação
entre as perspectivas latino-americanas e sul-asiáticas, argumentando pela
não aplicabilidade das teses de Ranajit Guha, Gayatri Spivak e Homi Bhabha
para a análise dos casos latino-americanos. Com base no reconhecimento das
particularidades históricas da região, as atividades do grupo latino-americano de
Estudos Subalternos são encerradas em 1998, dando fôlego para a inauguração de
um novo movimento, o chamado giro decolonial, organizado em torno do grupo
modernidade/colonialidade.
Segundo Ballestrin (2013, p. 97), a origem de tal coletivo remonta a uma série
de encontros realizados em 1998 na Universidad Central de Venezuela, onde se
182 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
reuniram “Edgardo Lander, Arturo Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal
Quijano e Fernando Coronil”. Em comum, tais autores apresentaram o interesse por
“uma forma distinta de pensamento, um paradigma outro, a possibilidade mesma
de falar sobre ‘mundos e conhecimentos de outra forma”
11
(ESCOBAR, 2003, p. 52,
tradução nossa). Com isso, verifica-se o estabelecimento de uma identidade
coletiva mais fluída, que não sustenta a concepção de uma escola teórica, mas
sim de um “programa de investigação” no seu sentido mais livre.
Entrementes, diz-se que o grupo M/C não reflete uma homogeneidade nas
pesquisas, de modo que a pluralidade de suas fontes torna o próprio desenho de
uma genealogia daquele pensamento um desafio. De todo modo, como explica
Escobar (2003), no emaranhado de inspirações do programa modernidade/
colonialidade certamente pode-se destacar as seguintes influências:
A Teologia da Libertação dos anos sessenta e setenta; os debates na filosofia
e ciência social latino-americana sobre noções como filosofia da libertação
e uma ciência autônoma (por exemplo, Enrique Dussel, Rodolfo Kusch,
Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro); a teoria da
dependência; os debates na América Latina sobre a modernidade e a pós-
modernidade dos anos oitenta, seguidos pelas discussões sobre hibridismo
na antropologia, comunicação e nos estudos culturais dos anos noventa;
e, nos Estados Unidos, o grupo latino-americano de estudos subalternos
12
.
(ESCOBAR, 2003, p. 53, tradução nossa)
Em síntese, o programa apresenta-se como uma colcha em que se costuram
perspectivas distintas intelectual e geopoliticamente — porém unidas pelo desafio
de abordar os dilemas epistemológicos através da diferença colonial. Por isso, a
produção de seus membros se autodeclara habitante das fronteiras do sistema
epistêmico, traduzindo, assim, seu objetivo de constituir “um pensamento outro
e “não um novo paradigma” — como teria sido o caso da teoria da dependência
(ESCOBAR, 2003, p. 54).
11 No original: “una forma distinta de pensamiento, un paradigma otro, la posibilidad misma de hablar sobre
‘mundos y conocimientos de otro modo”.
12 No original: “la Teología de la Liberación desde los sesenta y setenta; los debates en la filosofía y ciencia
social latinoamericana sobre nociones como filosofía de la liberación y una ciencia social autónoma (e.g.,
Enrique Dussel, Rodolfo Kusch, Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro); la teoría de la
dependencia; los debates en Latinoamérica sobre la modernidad y postmodernidad de los ochenta, seguidos
por las discusiones sobre hibridez en antropología, comunicación y en los estudios culturales en los noventa;
y, en los Estados Unidos, el grupo latinoamericano de estudios subalternos”
183Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
Nesse sentido, Dussel, Quijano e Mignolo destacam-se dentre os principais
autores munidos desse esforço. Aos olhos desses, a investigação do sistema
moderno implica um retorno às suas origens espaciais e temporais, o que os leva
a um enfrentamento radical da diferença colonial. Nesse trajeto, os autores citados
comungam pontos chave no tratamento do sistema moderno/colonial, a exemplo
do já mencionado entendimento da “conquista de América” como momento
formativo do eurocentrismo. Através dessa assertiva, tais autores chamam atenção
para a correlação entre colonialismo e capitalismo, que emerge como pilar da
noção de “colonialidade do poder”.
Através desse conceito, desenvolvido por Quijano (2000), entende-se que
os povos colonizados experimentam, mesmo após o período colonial, uma
rede de relações conectadas de dominação (nos níveis de classe, raça, gênero
e conhecimento), as quais foram estruturadas segundo o padrão de poder do
capitalismo global e eurocêntrico. Dessa forma, verifica-se o diálogo com as teorias
sobre o subdesenvolvimento, responsável pela não abstração da economia mundial
como instrumento importante do poder moderno. Por outro lado, o autor soma a
tal perspectiva a noção da subalternização do conhecimento e das culturas não
europeias como mecanismo chave da estrutura de dominação moderno/colonial.
Como explica Mignolo (2003), a noção de “colonialidade do poder” de
Quijano permite a passagem de um mundo moderno para um mundo moderno/
colonial. Com isso, o grupo M/C visa confrontar o entendimento intra-europeu
da modernidade — presente nas obras de autores como Habermas, Giddens,
Lyotard, Kant, Hegel, escola de Frankfurt etc. (ESCOBAR, 2003). Nas palavras
do autor,
Uma vez que a colonialidade do poder tenha sido introduzida na análise, a
‘diferença colonial’ torna-se visível, e as fraturas epistemológicas entre a crítica
eurocêntrica do eurocentrismo distinguem-se da crítica ao eurocentrismo
apoiada na diferença colonial — articulada como pós-colonialismo”
(MIGNOLO, 2003, p. 66).
Assim, o esclarecimento e desnaturalização das diferenças coloniais compõem
o artifício utilizado pelos autores do grupo M/C, a fim de edificar a crítica
subalterna da modernidade. Na edificação desse saber local, os autores do grupo
M/C apresentam enfoques e desenvolvimentos específicos. Como sintetiza Escobar,
algumas dessas diferenças são explicadas, em certa medida, pelos diferentes
enquadramentos, ênfases e objetivos — economia política para Quijano, uma
184 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
filosofia da libertação para Dussel, literatura e epistemologia para Mignolo”
13
(2003, p. 61, tradução nossa). Logo, enquanto Quijano observa de forma atenta o
papel dos elementos raciais nas estruturas de controle de trabalho e de recursos na
modernidade, Dussel, por sua vez, investiga a violência implicada nos processos
de negação da alteridade daquele sistema. Já Mignolo demonstra interesse pelo
âmbito em que a diferença colonial se torna subalternização epistêmica, avançando,
pois, na noção do “pensamento liminar”.
Nesse ponto, chama-se atenção para como cada um dos enfoques sugere
um questionamento normativo em torno do dilema da exterioridade — afinal, é
possível pensar sobre (e contra) o sistema mundo moderno, desde uma posição
exterior? A noção filosófica de exterioridade, bastante utilizada pelo grupo, remonta
às reflexões de Enrique Dussel quando operando sob a filosofia da libertação na
década de 1970. Influenciado pela filosofia de Levinas, e sua noção de alteridade,
Dussel (2008) substituiu o recorte marxista na luta de classe pelo olhar dedicado
ao conceito do Outro. Assim, a ideia de exterioridade traduz tal outridade ainda
não absorvida pelo sistema totalitário vigente. Ou seja, tal conceito implica a
condição de não ser representado, e por isso também ainda não negado pela
estrutura de poder capitalista, sexista ou racista.
Com essa categoria, Dussel (1995) desloca nosso olhar para os lugares
excluídos pelo discurso moderno/colonial; isto é, aqueles esquecidos pelo regime
regulatório. Note-se, no entanto, que, ao contrário do que se possa inferir, a
categoria de externalidade não sugere uma ontologia absolutamente apartada do
moderno, mas sim uma posição desprovida de participação dentro do sistema.
O exterior, nesse caso, traduz a diferença produzida pelo discurso hegemônico.
Por isso, a exterioridade surge como alternativa à ontologia eurocêntrica implicada
no que Dussel (1995) considera ser uma crítica totalizante produzida pelo
pensamento marxista ocidental. Através de tal categoria, o autor propõe uma
noção de “libertação” que não demanda um movimento dialético, mas sim uma
“transcendência interna”. Isto é, um momento positivo (ou analético) que se
realiza fora da negação dialética, na medida em que aponta um lugar que ainda
não foi negado pelo sistema, qual seja, a própria exterioridade.
Mignolo (2003) é um dos expoentes na releitura dessa filosofia de Dussel.
Tomada como alteridade radical, a ideia de exterioridade permitiu a Mignolo
13 No original: “algunas de estas diferencias son explicadas en cierta medida por los diferentes encuadres, énfasis
y metas — economía política para Quijano, una filosofía de la liberación para Dussel, literatura y epistemología
para Mignolo”.
185Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
propor a divisão teórica entre fronteiras internas e fronteiras externas do sistema
moderno/colonial. Tal separação não segue os termos da divisão entre periferia
e semiperiferia, ou seja, não são consideradas “entidades distintas, mas sim
momentos dentro de um continuum de expansão colonial e nas mudanças das
hegemonias imperiais” (MIGNOLO, 2003, p. 66).
Assim, enquanto as fronteiras internas traduzem os conflitos entre impérios
que compartilham uma mesma cosmovisão, as fronteiras externas representam
o choque entre as culturas imperiais e colonizadas, sendo, portanto, o lugar de
viabilização da diferença colonial. Ao olhar para as contradições criadas nesse
último espaço, Mignolo (2003) propõe resistir à própria diferença decodificada
enquanto subalternização pelos impérios coloniais. Para isso, chama atenção
para a subalternidade epistemológica através do já mencionado conceito do
“pensamento liminar”.
Configurando a voz do subalterno, tal conceito aborda um saber construído
a partir de um movimento duplo de absorção e deslocamento do conhecimento
hegemônico. Não se trata, portanto, de um sincretismo, mas de um processo
violento de luta travada contra uma longa estrutura colonial de subalternização
do conhecimento e de legitimação da diferença colonial (MIGNOLO, 2003, p. 35).
Dessa forma, Mignolo (2003) reflete criticamente sobre a hegemonia universalista
da modernidade chamando atenção para uma diversidade de histórias locais
produzidas no contato com o Outro. Tais perspectivas particulares tornam-se
interessantes na medida em que refletem uma “dupla tradução”, isto é:
[Permitem] uma intersecção entre formas de pensamento incomensuráveis
(na perspectiva da modernidade): o marxismo modificado pelas línguas e
pela cosmologia ameríndia e a epistemologia ameríndia modificada pela
linguagem da cosmologia marxista, num diálogo trans-epistemológico que
está reescrevendo e encenando uma história de quinhentos anos de opressão
(como no movimento “zapatista”). O que todas essas palavras chave têm em
comum é seu rompimento de dicotomias, pelo fato de elas próprias consti-
tuírem uma dicotomia. Esta, em outras palavras, é a configuração-chave do
pensamento liminar: pensar a partir de conceitos dicotômicos ao invés de
organizar o mundo em dicotomias. (MIGNOLO, 2003, p. 126)
Portanto, ao operar um movimento de incorporação e reformulação, o
pensamento liminar traduziria uma dupla crítica (ou dupla consciência), que se
coloca na intersecção do “bárbaro” e do “civilizado”. A crítica a ambas as posições
186 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
constituiria, nesses termos, condição sine qua non para a edificação de “um outro
pensamento”, que “não é mais concebível na dialética de Hegel, mas localizado na
fronteira da colonialidade de poder no sistema mundial moderno” (MIGNOLO, 2003,
p. 103). Verifica-se, assim, uma proposta epistemológica vinculada a uma espécie
de releitura da transcendência interna de Dussel, visto que constitui uma ruptura
produzida desde as margens externas do sistema mundial moderno. Em outras
palavras, segundo essa abordagem, o espaço de enunciação crítica da América
Latina parece surgir de um movimento positivo de afirmação da exterioridade
apresentada como fonte do processo libertário.
Digerir o Outro: considerações em torno da antropofagia
A ideia da antropofagia se inscreveu no cenário crítico latino-americano por
meio da obra do brasileiro Oswald de Andrade, datada dos anos de 1920. Através
das linhas do Manifesto Antropofágico, Oswald desenha tal chave interpretativa
com intuito de superar os impasses experimentados pelos estudos culturais no
Brasil. Acreditava-se, à época, que o apego da narrativa brasileira aos polos idealista
(vinculada ao purismo nacionalista) e pessimista (contaminado pelo etnocentrismo
europeu) teria gestado leituras equivocadas sobre a relação da cultura local vis-
à-vis a tradição europeia. Assim, da incapacidade daquelas posições em lerem as
contradições e co-constituições da relação entre o Velho e Novo Mundo, emerge
a motriz para a fórmula oswaldiana e seus intérpretes, que buscaram superá-la
pelo reconhecimento do híbrido.
Como nos fala Viveiros de Castro, o anticolonialismo em voga na academia
latino-americano contemporânea deve muito ao Manifesto Antropofágico que, a seu
ver, “é decolonial muito avant la lettre” (2016, 14). Ainda sobre o anticolonialismo,
tal autor pontua:
Tudo isso veio evidentemente da antropofagia oswaldiana, a reflexão meta-
cultural mais original produzida na América Latina até hoje. A antropofagia
foi a única contribuição realmente anti-colonialista que geramos, contribuição
que anacronizou completa e antecipadamente o célebre clichê uspiano-
marxista sobre as “idéias fora do lugar”. Ela jogava os índios para o futuro
e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes,
do indianismo. Era e é uma teoria realmente revolucionária. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2006-2008, p. 168)
187Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
Nesse sentido, nas entre-linhas do modernismo antropofágico, revela-se um
antimodernismo de vanguarda, cujo debate acadêmico a ele contemporâneo não
soube absorver. Em relato de Marília de Andrade, filha de Oswald, os últimos
anos de vida de seu pai, na década de 1950, foram marcados pelo pessimismo
de quem era assombrado pelo temor do esquecimento (AZEVEDO, 2016). Em
parte, a falta de reconhecimento de suas ideias na metade do século deveu-se ao
próprio distanciamento do autor das cadeiras acadêmicas. Ou seja, Oswald de
Andrade, diferente dos intelectuais em voga no período, nunca configurou um
“periférico profissional”, tendo sido rejeitado pelas instituições universitárias,
como a USP.
No entanto, já no final da década de 1960, começa-se a desenhar uma
mudança significativa desse cenário, quando então os círculos de arte cênica e
os movimentos musicais elevam Oswald ao “patamar dos mitos” (AZEVEDO,
2016). Dentre suas ideias mais reeditadas, a antropofagia ganha destaque pela
infiltração que tem realizado em outros domínios intelectuais, como a filosofia,
antropologia e diversos campos da cultura. Segundo Azevedo (2016, p. 22),
para além da digestão crítica realizada por estudiosos como Raul Bopp, Antônio
Cândido e Augusto de Campos, vemos, na virada deste século, o surgimento de
uma nova onda de epígonos.
Nas palavras da autora, “nos últimos anos, uma nova safra de reflexões,
mais pontualmente centradas no tema da antropofagia, será desenvolvida por
intelectuais como Eduardo Viveiros de Castro, Gonzalo Aguilar, Alexandre Nodari,
Suely Rolnik, Eduardo Sterzi, Sérgio de Castro e outros” (AZEVEDO, 2016, p. 22).
Tais autores seriam responsáveis pela nova inserção da antropofagia nos debates
acadêmicos da antropologia, do direito e da narrativa histórica (AZEVEDO, 2016,
p. 22). Ademais, outros domínios se beneficiam desse novo fôlego oswaldiano,
tal qual demonstram as contribuições de Silviano Santiago e Luiz Costa Lima,
relacionados à renovação da antropofagia na crítica literária.
Em todas as releituras, evidencia-se o valor da antropofagia como catalisador
de uma ruptura radical com os papéis do jogo moderno da alteridade, de modo
que, através dela, o inimigo reaparece como positividade transcendental. Trata-se,
portanto, de uma contra ontologia, que inverte e cancela a prioridade do verbo
ser — tipicamente protagonista das encenações teóricas modernas (VIVEIROS DE
CASTRO, 2016). Nesses termos, a antropofagia desfaz o império solipsista do Eu
dando lugar ao desejo antinarcísico pelo Outro.
188 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
Comer o inimigo não como forma de “assimilá-lo”, torná-lo igual a Mim, ou
de “negá-lo” para afirmar a substância identitária de um Eu, mas tampouco
transformar-se nele como em um outro Eu, mimetizá-lo. Transformar-se, justo
ao contrário, por meio dele, transformar-se em um eu Outro, autotransfigurar-
se com a ajuda do “contrário”. Não ver-se no outro, mas ver o outro em si.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2016, p. 15-16).
Ademais, no Manifesto de Oswald de Andrade, o uso alegórico da imagem
antropofágica soma-se à aplicação de estratégias estilísticas, como a paródia e o
absurdo que, juntas, encerram uma provocação profunda contra as hierarquias
da imaginação moderna — tais como lógico e pré-lógico, civilizado e selvagem
(AZEVEDO, 2016, p. 215-216). O conceito do “perspectivismo ameríndio”, proposto
por Viveiros de Castro em conjunto com Tânia Stolze Lima, guarda semelhanças
com o trajeto oswaldiano. Como esse, Viveiros de Castro busca encontrar no
pensamento ameríndio um parceiro para a perturbação intelectual das dicotomias
da modernidade.
A hipótese perspectivista relata que os “regimes ontológicos ameríndios
divergem daqueles mais difundidos no Ocidente precisamente no que concerne
às funções semióticas inversas atribuídas ao corpo e à alma”, subvertendo,
assim, também os binários correlatos, como universal e particular, fato e valor,
animalidade e humanidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 36-37). Dessa forma,
a cosmologia ameríndia opera um escopo ampliado do atributo da “personitude”,
de modo que, a todos agentes humanos e não humanos, atribui-se o potencial
ontológico de se revelarem ou se transformarem em pessoas. Logo, ser humano
não seria uma questão de essência, mas sim de perspectiva, de ocupar um ponto
de vista disponível a todo ser vivente.
Dessa assertiva deriva a suposição de que todo ser vivente pode ser pensado
como sujeito, i.e, como enunciador de uma perspectiva. Nesse caso, a condição
de sujeito não deriva de uma capacidade solipsista de pensamento, mas da
condição de ser pensado por outrem como sujeito. Aqui, revela-se o valor central
imputado à alteridade, que atua como conector entre as perspectivas do eu e do
inimigo (SZTUTMAN, 2008). Portanto, para Viveiros de Castro (2008, p. 118),
seria justamente essa habilidade do pensamento ameríndio em afirmar a “vida do
outro como implicando um outro pensamento” que funda a “identidade profunda
e radical entre antropologia e antropofagia”.
Assim, a diferença, traduzida na multiplicidade de pontos de vista, emerge como
alternativa ao emblema umbilical moderno que, para afirmar o eu, precisa negar o
189Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
outro. Trata-se, portanto, de uma contribuição singular para o campo da tradução
intercultural. Afinal, ao expor as dificuldades de ler o outro pensamento senão
através do próprio sistema cultural, o perspectivismo, assim como a antropofagia,
alerta para a necessidade de um esforço de “pôr os ‘nossos termos’ em relações
perigosas”, ou seja, expô-los a fim de forçar sua imaginação a supor o inaudível,
e caminhar para a indisciplinariedade (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 122).
Na percepção de Viveiros de Castro (2005), as disciplinas acadêmicas atravessam
um processo contemporâneo demarcado pela imaginação indisciplinada de seus
objetos de estudo. Assim, vaticina o autor: o conhecimento deve se transmutar
“não só por que o logos não é mais o que foi, mas porque o anthropos não será
mais o que é”. Com esse termo, não se advoga uma desorganização intelectual,
mas sim uma capacidade epistemológica de observar ordenamentos sociais cuja
dinâmica rompe as fronteiras da imaginação política vigente.
Como se pode identificar até o momento, os dilemas da tradução (e da
interação) intercultural, quando lidos pelas alegorias indígenas, quer seja a
antropofagia, quer seja o perspectivismo, acabam implicando um vocabulário da
resistência. Nas palavras de Lima (1991, p. 27), “a antropofagia, tanto no sentido
literal como no metafórico, não recusa a existência do conflito, senão que implica
a necessidade da luta”. Ou seja, na obra de Oswald de Andrade, a antropofagia
materializa um traço de resistência primitiva que emana dos trópicos contra a
doutrinação do colonizador. Tal seria o já mencionado canibalismo simbólico, cuja
força reside na operação de uma transformação inerente do elemento digerido.
Como explica Lima (1991, p. 31), ao flertar com a psicanálise freudiana,
a antropofagia envolve uma espécie de “transformação do tabu em totem, i.e,
a metamorfose do símbolo excludente em includente”. Por essa abordagem,
sustenta-se o argumento sobre uma internalização não passiva do Outro, em que
os valores estrangeiros são absorvidos, porém reformulados e reanimados através
do corpo nativo. Tais interpretações de Luiz Costa Lima compõem, portanto, outra
importante fonte crítica da antropofagia. Diferente do enfoque antropológico
de Viveiros de Castro, tal autor dedica-se ao campo da crítica literária, na qual,
inclusive, apresenta uma leitura mais cautelosa do potencial contra-hegemônico
da obra de Oswald de Andrade.
De forma geral, Lima (1991) indica uma preocupação com os riscos de
reprodução eurocêntrica implicados no processo de digestão antropofágica. Afinal,
porquanto transforme o Outro, a metamorfose não o faz sem antes preservar o
elemento original. Logo, dos vínculos entre a antropofagia cultural e os valores
190 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
ocidentais derivam os possíveis limites da crítica oswaldiana à modernidade. Ao
apontar a incapacidade da proposta de canibalização realizar um solapamento
radical da razão instrumental, Lima (1991) anuncia, a um só tempo, a importância
e os limites da hipótese oswaldiana sobre a antropofagia cultural.
Por outro lado, ainda no campo dos estudos literários, verificam-se as
discussões de Silviano Santiago (2000), que retomam a antropofagia como artifício
robusto para a investigação do lugar em que o escritor latino-americano joga com
os signos de outro escritor, o europeu. Desse substrato, Santiago (2000) infere a
argumentação contrária a qualquer status de pureza ou de transmissão passiva
entre dois códigos em contato. Com base na metáfora da antropofagia, tal autor
atenta-se para o modo como o movimento de diferença colonial — em parte
demarcado por imposições e assimilações — nos ofereceria outra transformação, a
qual não opera no espaço da ação de um (colonizador) sobre outro (colonizado),
mas sim no espaço de negociação da própria oposição.
Com isso, sugere-se que, naquele entre-lugar onde ocorre a digestão do
outro, reside o espaço crítico a partir da qual podemos ler a produção intelectual
da América Latina. Com tal proposta, Santiago (2000) denuncia a falência do
modelo hermenêutico colonizador, contra o qual propõe um método capaz de
restaurar o pensador latino-americano como parte do processo cognoscente. Em
outras palavras, o autor confronta o que considera ser um modelo de completa
submissão aos modelos culturais europeus, o qual, orientado para o estudo dos
textos a partir de suas fontes ou influências teóricas, acaba por atribuir uma
espécie de passividade neocolonial aos escritores do “Novo Mundo”.
Nessa perspectiva, argumenta-se sobre uma política de leitura que demarque
uma nova postura ética com relação ao Outro, confrontando seu apagamento
sistemático na concepção do sujeito. Nesse movimento, Santiago (2000) parece
pretender abrir espaço para a lógica enquanto propriedade não restrita à
Europa, reconhecendo-a como elemento presente também em outros sistemas
de conhecimento. Defende-se, pois, uma postura mais produtiva, segundo a
qual aquele que lê um texto acaba também por produzi-lo, na medida em que
desloca seu sentido original ao criar uma interpretação própria do mesmo. Ou
seja, o enfoque nas aquisições e corrupções realizadas ao longo do movimento
de assimilação de uma cultura por outra busca trazer o elemento do híbrido para
o centro do debate da alteridade. Tal abordagem, aplicada à análise do contato
entre o pensamento europeu e o latino-americano, sustenta o argumento sobre
as transformações fundamentais que ocorrem no espaço desse encontro.
191Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da
destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois
conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso
esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho
de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais
eficaz. A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental
graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura
os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo
Mundo. (SANTIAGO, 2000, p. 6)
Sob esse horizonte, aponta-se o movimento de mutação do elemento
original (europeu) pela mistura com o elemento teórico autóctone, como lugar
de enunciação através do qual o pensamento latino-americano consegue resistir
à cultura ocidental moderna. Ou seja, assumindo que o contato entre as culturas
impossibilita um retorno à pureza, para ambos os lados, argumenta-se que, no jogo
entre a assimilação e a expressão, os autores latino-americanos dinamizam uma
espécie de infiltração clandestina do pensamento selvagem no substrato europeu.
Desse ritual antropófago do pensamento subalterno, emergem conceituações de
fronteira, as quais inauguram um lócus de fala periférica.
Em diálogo com o tópico anterior, a proposta da antropofagia, assim como a
de Mignolo (2003), aponta para a retomada a pluralidade de cosmovisões como
alternativa ao epistemocídio realizado pelas traduções modernas com relação ao
pensamento do outro. Em ambos os caminhos, verifica-se uma rica base sobre a
qual podemos edificar reflexões sobre a descolonização epistêmica nas RI.
Considerações finais
Este trabalho chamou atenção para como cada uma das três perspectivas
apresentadas representa um esforço teórico particular preocupado em romper
com as narrativas de uma realidade social asséptica, destituída das contradições
e das opressões que atravessam a relação de alteridade. Ademais, em cada uma,
verificamos diferentes visões e graus distintos de resistência diante da figura da
Europa ou dos países centrais. Ao fim, configuram-se múltiplas modalidades de
“infiltração clandestina”, visto que variam as respostas dadas para a relação entre
as culturas centrais e periféricas.
Nas vertentes da dependência, tal ocorre pela exposição dos limites das teorias
da modernização para a realidade local, que se realiza através da revelação da
192 Infiltração clandestina: a questão da diferença no pensamento latino-americano
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
diferença colonial enquanto choque de contradições. Pelas lentes dialéticas, a
noção de contradição implica uma tendência simultânea à unidade e à oposição.
Ou seja, traduz fenômenos que se excluem, mas cuja existência depende da
própria interação. Por isso, a síntese não constitui uma negação absoluta dos
termos, mas uma superação que, embora inaugure novo elemento, conserva em
si parte da contradição anterior. Paralelamente, para os teóricos da dependência,
as condições econômicas criadas pelo capitalismo global contribuíram para que o
potencial de enunciação periférico, bem como a revolução socialista, emergissem
de mesma fonte, qual seja: a síntese dialética.
Já o conceito do pensamento liminar de Mignolo mostra-se crítico a tal proposta
de superação dialética, dado ao vínculo com um movimento histórico linear. Assim,
a noção de “fronteira” confronta o relato retilíneo do universalismo moderno
por meio do reconhecimento de diferentes abordagens da história presentes nos
conhecimentos locais. Nessa perspectiva, a etapa mais radical da globalização
abre a possibilidade de teorizar desde a margem, considerando a liminaridade
realizada pela “dupla crítica” (ou dupla consciência). Através desta, a teorização
sobre e a partir da margem não emerge como oposição ao pensamento central, ou
mesmo sincretismo, mas como “deslocamento e ruptura”(MIGNOLO, 2003, p. 415).
Pelas lentes da antropofagia, outros caminhos são dados ao desafio de
restaurar o outro na posição de sujeito cognoscente. No perspectivismo ameríndio
de Viveiros de Castro, como citado, ou na leitura de Santiago, verifica-se alusão
comum à metáfora antropofágica de Oswald de Andrade, segundo a qual a falsa
obediência de assimilação teórica pelos sujeitos latino-americanos aponta um
espaço de resistência no encontro desses com o pensamento europeu. Ou seja,
através da tradução digressora dos conceitos “civilizados” pelos latino-americanos,
emerge um processo de digestão dos imperativos modernos. Com isso, realiza-se
a infiltração das experiências e falas subalternas na imaginação ocidental.
Ao fim, à luz das leituras mapeadas nessa revisão, podemos problematizar
a capacidade da nossa disciplina em abrir-se para novos loci de enunciação. Nesse
quadro, argumenta-se que o estudo das críticas latino-americanas se destaca pela
capacidade de introduzir na agenda da disciplina o debate sobre a emancipação
social enquanto projeto indissociável da proposição de epistemologias e conceitos
mais compatíveis com a descolonização do pensamento.
193Lara Martim Rodrigues Selis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 171-194
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195Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Paradiplomacia como Política Externa
e Política Pública: modelo de análise aplicado
ao caso da cidade do Rio de Janeiro
Paradiplomacy as
Foreign Policy and Public Policy:
an analysis model applied to the case of the city of
Rio de Janeiro
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.790
Leonardo Mercher
1
Alexsandro Eugenio Pereira
2
Resumo
O presente artigo argumenta que estudos de paradiplomacia devem se aproximar dos estudos
de política externa quando investigada como política pública. Essa seria uma estratégia para
análise das práticas e estratégias das cidades nas relações internacionais. Os rendimentos
analíticos dessa estratégia podem ser observados por meio de um modelo dimensional de
análise de paradiplomacia como política externa e política pública. Esse modelo é proposto
neste artigo e aplicado ao estudo empírico da cidade do Rio de Janeiro, no período de 1993
até 2016. O modelo sugere cinco dimensões explicativas nas análises da paradiplomacia:
gestão política; mercado; institucional; internacional; e epistêmica. A aplicação desse modelo à
cidade do Rio de Janeiro permitiu identificar as dimensões mais relevantes no caso específico
da cidade — as dimensões política e de mercado —, enquanto que a variável partidária,
defendida por outros pesquisadores do campo como de alta capacidade explicativa, pouco
interferiu nos resultados observados durante a pesquisa.
Palavras-chave: Paradiplomacia; Política Externa; Política Pública; Rio de Janeiro.
1 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Relações Internacionais no Centro
Universitário Internacional (UNINTER), Curitiba, Paraná, Brasil.
2 Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor Associado dos Programas de Pós-Graduação
em Ciência Política e em Políticas Públicasda Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.
Artigo submetido em 20/04/2018 e aprovado em 26/07/2018.
196 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Abstract
This paper argues that paradiplomacy studies should approach foreign policy studies when
investigated as public policy. This would be a strategy to analyze the practices and strategies
of cities in international relations. The analytical yields of this strategy can be observed
through a dimensional model of paradiplomacy analysis such as foreign policy and public
policy. This model is proposed in this article and applied to the empirical study of Rio de
Janeiro, from 1993 to 2016. The model suggests five explanatory dimensions in paradiplomacy
analyzes: political management; market; institutional; international; and epistemic. The
application of this model to the City of Rio de Janeiro allowed us to identify the most relevant
dimensions in this specific case — political and market dimensions — while the political
party variable, defended by other researchers in the field as high explanatory capacity, had
less interference in the results observed in this research.
Keywords: Paradiplomacy; Foreign Policy; Public Policy; Rio de Janeiro.
Introdução
Os estudos de paradiplomacia se deparam com limitações decorrentes do uso e
da escolha de métodos de análise. Questionamentos de pesquisadores em diversos
encontros de relações internacionais nos últimos anos, como os da Associação
Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), são recorrentes. As razões pelas quais
estudos sobre cidades não avançarem para além de análises descritivas de suas
práticas nos levaram a investigar o desenvolvimento da interdisciplinaridade entre
os pesquisadores de relações internacionais e, com isso, defender a utilização da
interdisciplinaridade de recursos e métodos de outras ciências, como da própria
ciência política. Para que haja a ampliação das análises descritivas dos agentes
seria então necessário problematizar e identificar variáveis sobre as estratégias,
elaboração de agendas, meios de ação e cooperação e outras práticas e decisões
das cidades.
Ao compreender a paradiplomacia como política externa e, consequentemente,
como política pública, abre-se um leque de possibilidades analíticas e metodológicas
para compreender mais criticamente a ação das cidades. Tanto os estudos de
análise de política externa (APE) como os de análise de políticas públicas (APP)
auxiliam a delimitar o tema e encontrar novos métodos para compreender as
dinâmicas externas e internas à paradiplomacia. Essa percepção, no entanto, não
esteve no horizonte dos primeiros estudos sobre a paradiplomacia, desenvolvidos
197Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
por Panayotis Soldatos (1990) e Ivo Duchacek (1990)
3
. James Rosenau (1990),
Soltados (1990) e Duchacek
(1990) apontavam mais para as razões pelas quais
um governo subnacional poderia ser visto como agente internacional do que para
seus processos internos.
Durante os anos de 1990, a maior parte das publicações, como a de Brian
Hocking (1993), estava mais preocupada com a contextualização das cidades nas
relações internacionais do que em trazer métodos de investigação da formulação
e execução da paradiplomacia. Mas por que olhar para dimensões internas à
paradiplomacia? Muitas perspectivas teóricas das relações internacionais, como
as institucionais, as funcionalistas ou as construtivistas, defendem que o agente
(Estado) não é apenas resultado de estruturas e do cenário internacional, mas
possui dinâmicas internas tão determinantes quanto as demandas externas para
a elaboração de suas agendas (ROSENAU, 1967; WENDT, 1992; MILNER, 1997;
FEARON, 1998; SALOMÓN, 2016).
Dessa forma, no presente artigo, busca-se contribuir com as análises mais
amplas da paradiplomacia, ilustradas pelo caso da cidade do Rio de Janeiro
como um agente governamental que, assim como os Estados nacionais, também
experimenta fluxos e fenômenos internos que interferem em sua ação externa.
A escolha do Rio justifica-se por duas razões principais: 1) por ser a cidade brasileira
pioneira na criação de uma estrutura institucional específica para a atuação
externa: “Desde 1986 — quando pela primeira vez no país um ente subnacional
municipal cria uma estrutura de RI” (RIBEIRO, 2009, p. 96); e 2) pela existência
de um conjunto de análises sobre a paradiplomacia, o planejamento e a relação
da cidade com os grandes acontecimentos internacionais (Planos Estratégicos,
ECO92, Rio+20, Jogos Olímpicos etc.), nos quais o município do Rio se viu
envolvido (VAINER, 2001; SÁNCHEZ, 2001; AGUIAR, MENDES; SPADALE, 2013).
As investigações sobre a paradiplomacia utilizam determinadas variáveis
explicativas como as partidárias, as institucionais e as de mercado (SALOMÓN;
NUNES, 2007; LAISNER, 2007; RIBEIRO, 2009; ONUKI; OLIVEIRA, 2013). Essas
investigações possibilitaram a construção e aplicação do modelo de análise de
paradiplomacia (APD) sobre o Rio, proposto neste artigo. Esse modelo reúne
diversas variáveis (e métodos de análise) em cinco dimensões que permitem
examinar desde os gestores políticos (prefeitos e secretários), passando pelos
3 O conceito paradiplomacia foi formulado por Panayotis Soldatos (1990) e Ivo Duchacek (1990) e significa
inicialmente diplomacia paralela ao governo central. Atualmente a compreensão do conceito é amplo e utilizado
para se referir à ação externa de uma cidade ou outro governo local e subnacional nas relações internacionais.
198 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
agentes do mercado, internacionais e epistêmicos. Para cada variável é preciso
aplicar um método de coleta de dados. Com isso, o presente artigo traz resultados
de diversas análises menores que formarão o todo, como as prosopografias de
gestores políticos, de conselheiros, bem como do conteúdo de grupos epistêmicos
(think tanks) ativos junto à cidade do Rio.
O presente artigo, além desta introdução, conta com duas seções e as
considerações finais. O intuito da próxima seção é sustentar a necessidade de
articulação entre os níveis externos e internos, que possibilita investigar os agentes,
a formulação, a prática e as interferências dos ambientes externos e internos na
paradiplomacia de uma cidade. Na seção posterior, o artigo apresenta o modelo
de análise e o aplica à cidade do Rio de Janeiro no período de 1993 a 2016. Por
fim, o artigo se encerra com as considerações finais, que destacam os possíveis
rendimentos analíticos decorrentes da abordagem da paradiplomacia como política
pública.
Análise de Paradiplomacia como Análises de Política Externa
e de Política Pública
Quando se analisa paradiplomacia nas relações internacionais corre-se o
risco de ignorar os processos internos das cidades e observar apenas suas ações
no âmbito internacional. Por vezes, os estudos de redes de cidades, cooperação
descentralizada ou a criação de políticas públicas advindas de regimes e acordos
internacionais se tornam demasiadamente descritivos. Em um primeiro momento,
é importante descrever os fatos e acontecimentos. Porém, diante do atual cenário
acadêmico, é preciso avançar nas pesquisas críticas e na identificação de variáveis
explicativas e intervenientes às ações paradiplomáticas.
Identificar padrões, exceções e variáveis explicativas do tipo de prática
observada nas cidades possibilita a replicabilidade de métodos e análises
científicos. Evidentemente que os casos apresentam particularidades e exige-
se investigação profunda em cada um deles. Mas é exatamente por isso que é
necessário compartilhar modelos e técnicas que facilitem a comunicação inicial,
como já ocorre na Análise de Política Externa (APE) e na Análise de Política
Pública (APP).
A APE atualmente representa uma concepção metodológica e teórica de
estudos de agendas estatais e política externa que leva em consideração os níveis
199Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
domésticos e as interações entre agentes e instituições no âmbito nacional e
internacional. É importante mencionar que foi durante os anos de 1960 e 1970
que alguns estudos sobre política externa tentaram compreender a ação externa
dos Estados por meio de seus gestores — presidentes, ministros e instituições,
como os de James Rosenau (1967) e Graham Allison (1969).
Nos anos de 1980, a ênfase na análise da política internacional predominou
nas pesquisas de relações internacionais por causa, em parte, da influência do
neorrealismo estrutural de Kenneth Waltz (1979). Porém, nos anos de 1990, algumas
publicações buscaram retomar a abordagem de variáveis domésticas na explicação
do comportamento dos Estados, como os estudos de Helen Milner e Robert
Keohane (1996), que colocaram os interesses, as instituições e as informações
no campo da política doméstica como variáveis explicativas à compreensão das
ações do Estado nas relações internacionais. Nesse sentido, eles seguiram uma
perspectiva estabelecida nos anos de 1950, quando surgiu a subdisciplina de
Análise de Política Externa” e, a partir desse momento, as variáveis domésticas
tornaram-se importantes e entraram nas agendas de pesquisa de diferentes autores
responsáveis pelo desenvolvimento dessa subdisciplina.
Partindo das percepções de interdependência complexa e dos múltiplos
canais que ligam um Estado ao cenário internacional, Milner e Keohane (1996)
identificaram mecanismos internos ao Estado, especialmente no âmbito da
informação e das concepções sobre as ações políticas, que levariam às posições
adotadas pela política externa. Seus estudos possibilitaram analisar a política
interna e o papel dos agentes sociais internos ao Estado. Posteriormente, Valerie
Hudson e Christopher Vore (1996) partiram do princípio segundo o qual os estudos
sobre o comportamento dos Estados deveriam se iniciar pela compreensão de que
o Estado seria composto por sociedades, instituições e dinâmicas que se cruzariam
em diversos níveis de análise. Para tanto, os autores problematizaram cinco
variáveis a serem analisadas: características individuais; percepções; sociedade
e cultura; a política; e o sistema internacional.
Tanto nas análises no nível sistêmico da política internacional, como nas
análises propriamente de APE, existiu o esforço de repensar o Estado em sua
compreensão mais tradicional — de agente racional e coeso, tanto em suas
dinâmicas internas como externas. Em James Fearon (1998) os estudos de APE
deveriam identificar os grupos de interesses domésticos e a burocracia da política
em questão (FEARON, 1998, p. 300) que permitissem traçar a construção de
agendas e processos decisórios e estratégicos dos governos. Já Brian White (1999),
200 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
por sua vez, aplica esses conceitos de agentes e fluxos internos/externos da APE
para a União Europa (UE) como região. Brian White (1999) demonstrou que a
agenda política da UE é consequência das relações de interesses e expectativas
de seus Estados membros, sociedades e instituições. Com isso, White (1999)
possibilita compreender que a política externa não está atrelada apenas ao Estado,
mas a outras esferas de governos (instituições) e sociedade.
No Brasil, Mónica Salomón e Carmem Nunes (2007) propuseram esse olhar
sobre os diversos níveis subnacionais. O olhar para as ideologias partidárias,
instituições e outras variáveis domésticas foi aplicado no estudo paradiplomático
da cidade de Porto Alegre e do estado do Rio Grande do Sul. Mais tarde, Mónica
Salomón e Letícia Pinheiro (2013) problematizaram a APE, defendendo uma análise
de variáveis externas e internas para se compreender as escolhas e ações estatais.
Outros autores brasileiros aplicaram, também, os modelos de APE que levam em
consideração esses multiníveis e variáveis internas e externas à paradiplomacia
(LAISNER, 2007; ONUKI; OLIVEIRA, 2013), tendo contribuído para a compreensão
da paradiplomacia como política externa.
No caso das cidades brasileiras, muito se avançou no processo de
descentralização, sendo Brasil e Argentina os Estados com maior flexibilidade à
ação de seus governos subnacionais no âmbito internacional (CGLU, 2016). Como
atual cenário, diversas cidades e estados brasileiros hoje possuem secretarias ou
coordenadorias de relações internacionais, bem como participam de diversas redes
e organizações de cidades ao redor do mundo. Mas, como os casos empíricos
apresentam particularidades, ao aplicar a APE nos estudos de paradiplomacia é
preciso compreendê-la como política externa que, em sua essência, é, também,
política pública. É por isso que nos estudos de Análise de Paradiplomacia (APD)
por meio da APE é preciso recuperar algumas orientações do campo de Análise
de Políticas Públicas (APP).
O agir externo das cidades pode ser compreendido como política pública
levando em consideração as definições sugeridas por autores como Enrique
Saraiva (2007) e Celina Maria de Souza (2006). A política pública, de modo
geral, é compreendida como uma estratégia de elaboração e execução de ações
que atendam aos interesses dos gestores da política e de quem eles deveriam
representar (a população). Seguindo as indicações dos pesquisadores da APP,
como Enrique Saraiva (2007) e Celina Maria Souza (2006), diversas são as frentes
que buscam explicar o campo de políticas públicas:
201Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Das diversas definições e modelos sobre políticas públicas, podemos extrair
e sintetizar seus elementos principais: I) A política pública permite distinguir
entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz; II) A política
pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja materializada
através dos governos, e não necessariamente se restringe a participantes
formais, já que os informais são também importantes; III) A política pública
é abrangente e não se limita a leis e regras; IV) A política pública é uma ação
intencional, com objetivos a serem alcançados; V) A política pública, embora
tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo prazo; VI) A política
pública envolve processos subsequentes após sua decisão e proposição, ou
seja, implica também implementação, execução e avaliação. (SOUZA, 2006,
p. 36-37)
Por isso, a APP leva em consideração variáveis como: partidos no poder;
dinâmicas econômicas e institucionais; o papel da sociedade civil e dos interesses
privados; e concepções de ação, como modelos de políticas públicas e boas
práticas; dentre outras. Além disso, é importante identificar a natureza do agente
investigado.
Como já é conhecida, a natureza jurídica e política das cidades se diferencia
tradicionalmente dos Estados nacionais (ROSENAU, 1990). Sendo assim, quando
métodos e modelos de análise são retirados da análise de políticas públicas, é
necessário primeiramente traçar a natureza do agente. É necessário combinar, na
análise empírica, elementos como: a natureza do agente (cidade, região, estado
etc.); os cenários domésticos (desafios e oportunidades) e internacional (desafios
e oportunidades); e as capacidades, desafios e demandas do agente. Com essa
combinação de elementos, será possível desenvolver observações mais apuradas
a respeito da ação externa das cidades.
No caso da APD, é preciso compreender a paradiplomacia como fruto da soma
de três camadas tradicionais da APE (cenário internacional; governo; e cenário
doméstico) combinadas com a natureza das cidades como agentes nas relações
internacionais (Figura 1):
202 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Figura 1. Paradiplomacia como interseção de múltiplas camadas de análises
Fonte: elaboração dos autores, 2018.
Da mesma forma que a política externa é considerada como uma política
pública (RATTON SÁNCHEZ et al., 2006), a paradiplomacia é considerada
política externa (SALOMÓN; NUNES, 2007) e pode ser analisada como política
pública. A paradiplomacia possui os mesmos gatilhos e estratégias, como
obtenção de ganhos internacionais à população local (SALOMÓN, 2011). Pode-se
defender, portanto, a APD a partir do esquema traçado na Figura 1, respeitando
as peculiaridades de cada caso empírico analisado.
Talvez uma das mais importantes peculiaridades da APE é seu nível de
análise que mescla o doméstico com o internacional — dotados de dinâmicas,
responsabilidades, públicos e modalidades de interação de poder distintas. Nesse
sentido, a APE e as variáveis a serem analisadas devem sofrer o ajuste de acordo
com a natureza do agente a ser estudado. Geralmente, a APE é aplicada para
compreender a política externa de Estados. No caso da peculiaridade da natureza
das cidades, a realidade subnacional muda de acordo com a nação à qual se
inserem, jurídica e politicamente. Além disso, se a análise da paradiplomacia
ocorrer em relação a regiões e outros entes federados (que não as cidades),
a natureza do agente exige outras adaptações aos modelos de APE e APP.
Estados e cidades possuem diferenças naturais, como nas questões de
soberania ou nas limitações jurídicas nacionais. Cidades são livres de soberania
(ROSENAU, 1990, p. 36), o que lhes confere maior mobilidade de cooperação nas
demais agendas internacionais que não sejam sobre guerra e paz. Por isso, a APE
para Estados possui uma distinção em relação à APE aplicada às cidades. Mas nem
por isso não existirá competição entre cidades (SÁNCHEZ, 2001) ou hierarquias
de recursos de poder, como o financeiro (FRIEDMAN, 1986
; SASSEN, 2010).
203Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Dessa forma, a APD precisa analisar as variáveis da natureza subnacional
do agente em questão (seu funcionamento interno, instituições, situação jurídica
e política no cenário local e infranacional), as variáveis do cenário doméstico
(população local, dinâmicas socioeconômicas, políticas e relação com o governo
nacional etc.) e as variáveis do cenário internacional (fluxos financeiros, redes
e organizações internacionais, demandas de outras cidades, oportunidades,
cooperação e competição por recursos etc.). Assim, ao decidir investigar a
paradiplomacia, deve-se ter em mente que os estudos de APE e de APP estão
interligados aos estudos de APD e trazem métodos e variáveis explicativas
relevantes.
No caso da APP, é importante destacar que ela contribui para a análise sobre os
agentes e variáveis relevantes para serem testadas na explicação dos casos de APD.
Observar que os gestores locais e grupos de interesses se relacionam com outros
agentes formais (como as instituições) e informais (como o mercado) possibilita
uma compreensão maior sobre a construção da agenda de políticas públicas e,
consequentemente, da política externa e da paradiplomacia. Vale ressaltar que
APE e APP não substituiriam as orientações dadas pela literatura especializada
sobre paradiplomacia, mas sim complementam a aplicação de métodos e recortes
menos usuais nas relações internacionais e fortalecem, por consequência, a APD.
Possivelmente, os primeiros estudos de paradiplomacia que se aproximaram
de um olhar mais interno e doméstico nas relações internacionais (aproximando
APD à APP) foram os de David Dyment (1993; 2001), que associou a construção
dos processos políticos históricos de províncias e cidades canadenses com suas
agendas externas desde 1945. Dyment conseguiu, por diversas vezes, demonstrar
que não seria possível compreender o local sem olhar para as esferas nacional
e global, destacando as simetrias dos componentes culturais na política local e
canadense. Suas considerações apontavam para uma compreensão da unidade
de análise local como um agente em reflexo às estruturas nacionais e globais.
As decisões do governo local seriam explicadas pelas dinâmicas políticas e as de
mercado, nos níveis local, regional e internacional.
Do outro lado do Atlântico, nos processos de integração da União Europeia,
estudos sobre governos subnacionais e regionalismo despontaram nos anos de
1990 e início dos anos de 2000. Caterina García Segura (2004) analisou os casos
da Catalunha, País Basco e Galícia na Espanha. Partindo de uma contextualização
histórica, a pesquisadora mostrou como, sob um regime ditatorial e sem democracia,
os governos subnacionais são sufocados e não conseguem levar adiante suas
204 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
demandas. No caso, Segura (2004) tentou mostrar como as cláusulas democráticas
recentes na Espanha possibilitaram a esses três governos subnacionais recorrerem
ao princípio da subsidiariedade e passaram a ter voz sobre os processos que afetam
as suas comunidades locais, como a integração regional, altamente determinante
na ação externa dos três casos.
Caterina Segura (2004) mostra a importância do reconhecimento dos Estados
sobre o diálogo com os governos subnacionais em processos de integração regional,
bem como da democracia. Nesse sentido, suas contribuições apontam para se
prestar atenção sobre a realidade nacional na qual esses agentes se encontram, bem
como para as dinâmicas regionais (internacionais) que podem reforçar e legitimar
a ação externa dos governos subnacionais. Assim como David Dyment (1993;
2001), Caterina Segura (2004) reforça o olhar sobre: (i) o contexto sociopolítico
nacional; (ii) as relações desses agentes com seus governos nacionais (história
política); e (iii) como processos externos ao Estado podem interferir em suas
situações locais, como nos casos da integração regional e dos demais fluxos da
globalização e interdependência.
Mas essa liberdade, contudo, sob as perspectivas de David Crieckmans (2006),
pode levar a outras dinâmicas mais complexas, como no caso de Flandres, na
Bélgica. Para o autor, o seu estudo sobre o caso da região de Flandres, no norte
da Bélgica, expõe a paradiplomacia como um campo de conflitos de interesses
locais e nacionais. Nesse caso, seria possível afirmar que os grupos de pressão
internos e as relações socioculturais e políticas que determinam as instituições, as
políticas públicas e as políticas externas/paradiplomacias dessas regiões seriam
as variáveis com maior capacidade explicativa.
No Brasil, como já mencionado, os estudos de paradiplomacia recorrendo à
APE e à APP iniciaram com o estudo de caso das professoras Mónica Salomón e
Carmem Nunes (2007). Nessa análise, as autoras diferenciaram a natureza dos
agentes “cidade” (Porto Alegre) e “estado federado” (Rio Grande do Sul). Essa
diferenciação é importante, visto que, como as autoras apontam, as cidades
acabam tendo maior liberdade de atuação por não terem, no Brasil, constituições
estaduais que regem questões de segurança e território. As cidades brasileiras
também não possuem forças armadas ou policiais. Em suas análises, as professoras
concluíram que a alternância partidária no poder de um dos governos subnacionais
foi prejudicial para a manutenção da paradiplomacia como política pública,
ou seja, da continuidade de agenda e da secretaria especializada em relações
internacionais. Por outro lado, a manutenção do mesmo partido político no poder
205Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
manteve a coerência de políticas públicas e política externa por meio da secretaria
no outro agente.
Nesse caso, o que se coloca como relevante é a identificação de variáveis —
partidárias e institucionais — que interferiram na APD. Esse recorte de somas
possibilita perceber variáveis que podem interferir nos processos internacionais de
uma cidade que parte da literatura de paradiplomacia nas relações internacionais
vem ignorando. A pesquisa (SALOMÓN; NUNES, 2007; SALOMÓN, 2012a;
SALOMÓN, 2012b) não necessariamente ignora o espaço internacional, mas
inicia-se junto ao cenário local e nacional e, posteriormente, abre espaço para a
compreensão do externo.
Já os estudos sobre a cidade de São Paulo, como os de Janina Onuki e
Amâncio Jorge de Oliveira (2013) ou os liderados por Tullo Vigevani, como a
publicação de Nicole Aguilar Gayard (2006/2007), trazem a coleta de dados da
Secretaria Municipal de Relações Internacionais de São Paulo (ou inicialmente das
assessorias) ao longo de períodos que englobam gestores municipais de partidos
distintos, como Marta Suplicy e José Serra. Os estudos relacionam as agendas
políticas às práticas da secretaria de relações internacionais de São Paulo. Da
mesma forma que Salomón e Nunes (2007), a variável partidária é estabelecida
e o cenário político local e nacional. Olha-se um pouco mais para os processos
internacionais que alcançam a cidade, colocados como derivados da globalização,
e identificam que a própria secretaria gozava de certa autonomia, dado seu corpo
técnico-administrativo.
A autonomia institucional das secretarias especializadas contribuiria para a
formação de estratégias e agendas internacionais para as cidades. Como Janina
Onuki e Amâncio Oliveira (2013) defendem em suas considerações finais:
Esse conjunto de atividades desenvolvidas pela Prefeitura de São Paulo,
durante o período 2001-2004, pode ser considerado resultado das ações
específicas da Secretaria de Relações Internacionais. Embora parte dessas
iniciativas tenha sido gerada pela própria intensificação da interdependência
com outros atores internacionais, e pelo incentivo vindo de governos
estrangeiros, a estruturação de uma agenda mais sistemática de ação, por
parte da Prefeitura, certamente ampliou a capacidade de atender às demandas
externas, e estimulou o desenvolvimento de políticas específicas que viria
beneficiar diretamente a cidade (ONUKI e OLIVEIRA, 2013, p. 17).
O caso da cidade de São Paulo nesses estudos (ONUKI e OLIVEIRA, 2013;
GAYARD; VIGEVANI, 200
4) apontam para a variável institucional, ou seja, olhar
206 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
para a autonomia das secretarias como fontes de origem e gestão das práticas
paradiplomáticas de uma cidade. Contudo, muitos estudos acabam se limitando
a olhar apenas para as secretarias, como em análises mais quantitativas — como
se isso fosse suficiente. Na próxima seção deste artigo, o objetivo é propor e
aplicar um modelo de análise de paradiplomacia capaz de reunir um conjunto de
dimensões analíticas que podem ser úteis aos estudos empíricos.
Modelo APD aplicado à Cidade do Rio de Janeiro
Conforme destacado na introdução, o modelo de Análise de Paradiplomacia
(APD) aqui sugerido (Quadro 1) baseou-se na literatura de paradiplomacia, de
APE e de APP. Essa literatura aponta para cinco dimensões testadas ou conjuntos
de variáveis explicativas, mas fragmentadas em diversos trabalhos: política ou
de gestão (SALOMÓN; NUNES, 2007); mercado (SÁNCHEZ, 2001); institucional
(SALOMÓN; NUNES; LAISNER, 2007; ONUKI; OLIVEIRA, 2013); dinâmicas e
agentes externos ou internacional (SÁNCHEZ, 2001; SASSEN, 2010); e epistêmica
(SÁNCHEZ, 2001).
A primeira — aqui denominada política de gestão — trata dos prefeitos,
secretários, partidos e outros responsáveis por traçarem ou autorizarem as práticas
paradiplomáticas. A segunda dimensão — mercado — analisa variáveis advindas
do mercado, do interesse comercial privado, dos fluxos financeiros e das bases
econômicas da cidade. A terceira dimensão analisa variáveis institucionais,
como o corpo técnico, a autonomia institucional, a especialização e a autoridade
diante da APD. A quarta analisa variáveis internacionais, como interferência de
organizações, governos nacionais estrangeiros e outros que possam orientar ou
determinar as práticas paradiplomáticas. Por fim, a quinta dimensão trata das
fontes epistêmicas, como pesquisadores, universidades e grupos de conhecimento
(think tanks) que possuem relações diretas com as cidades.
A partir dessas cinco dimensões — gestão política, mercado, institucional,
internacional ou agentes externos e epistêmica —, foi possível organizar as
variáveis, bem como identificar alguns indicadores mais específicos e algumas
técnicas/métodos para coletar os dados. A seguir, explica-se o modelo a ser
testado na presente análise de caso sobre a cidade do Rio de Janeiro, onde as
cinco dimensões são organizadas em suas variáveis, indicadores e métodos de
coleta de dados (Quadro 1).
207Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Quadro 1. Modelo proposto de Análise de Paradiplomacia (APD)
Dimensões Gestão Política Mercado Institucional Agentes Externos Epistêmica
Quais
variáveis
investigar
Relações partidárias
Continuidade
partidária no poder
Gestores
Relações entre gestores
e demais dimensões
Situação política
infranacional
Agenda de política
pública
Participação social
Mercados de Cidades
(empresarial,
imobiliário, consumo,
turismo, boas práticas
e de consultoria e
planejamento)
Setores Econômicos
Participação
empresarial
Demanda internacional
Instituições (responsáveis
pela paradiplomacia)
Autonomia institucional
Corpo técnico
especializado
Relações
interinstitucionais (entre
secretarias e órgãos)
Participação social e
canais democráticos
Redes internacionais
(orientações, tratados
etc.)
Organizações
internacionais
Agendas internacionais
Cenário internacional
Cenário local
transnacional (regiões de
fronteiras)
Comunidades epistêmicas
Origem dos modelos de ação
Grupos de conhecimento
(think tanks) e suas
publicações
Como
investigar
as variáveis
Indicadores:
Espectro político
Continuidade
partidária
Base de apoio político
Demanda e
participação social
Métodos:
Prosopografia e análise
de perfil dos gestores
Redes de relações dos
gestores
Entrevistas em
profundidade
Etnografia
Process-tracing
Indicadores:
Cenário do capital local
Participação
nos processos
políticos (lobby ou
financiamento)
Fins das políticas
públicas
(favorecimento por
meio das ações
políticas)
PPP (parceria público-
privada)
Métodos:
Análise de redes
Análise documental
APP
Análise de discurso
Análise de conteúdo
Indicadores:
Relações burocráticas com
os decisores
Regras formais e informais
Regimes
Relações com outros
agentes e instituições
Formação e
profissionalização do
corpo técnico
Métodos:
Análise documental (atas
e declarações)
Prosopografia do corpo
técnico
Entrevista em
profundidade
Análise de modelos
institucionais
Indicadores:
Modelos de Boas Práticas
Temática dos Debates
envolvidos
Premiações
Vínculos formais
com organismos
internacionais (e a
natureza desses)
Investimentos e
empréstimos
Métodos:
Análise Documental
Traçar o perfil de ação
institucional
Análise de redes
Análise de difusão e
transferência de políticas
públicas
Indicadores:
Identificação dos modelos de
práticas das cidades
Principais conceitos definidos
nas práticas da cidade
Origem desses conceitos na
literatura especializada e suas
comunidades epistêmicas
Parcerias ou avaliações dadas
por grupos de conhecimento
(think tanks)
Métodos:
Rede de indivíduos (gestores
intelectuais)
Análise de conteúdo (da
produção dos grupos e
dos think tanks em suas
publicações)
Process-tracing
Fonte: elaboração dos autores, 2016
208 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Vale ressaltar que cada dimensão é um conjunto de variáveis que, por sua vez,
se sustentam por indicadores que podem variar de acordo com a cidade analisada.
Na primeira dimensão, a política de gestão, é investigada a relação entre os gestores
e a formulação das políticas públicas (política externa e, consequentemente, a
paradiplomacia da cidade), podendo ser utilizada a prosopografia ou estudos
de redes, por exemplo, para detectar o envolvimento desses com determinadas
temáticas em suas vidas pessoais e entre si. Os estudos partidários podem, também,
apontar para rupturas e continuidades. Mas deve-se lembrar que cada variável, em
cada caso analisado, pode ter maior ou menor capacidade explicativa da realidade.
Apesar da literatura apontar para descontinuidades paradiplomáticas na medida
em que os partidos em oposição se alternam no poder municipal (SALOMÓN;
NUNES, 2007; ONUKI; OLIVEIRA, 2013), grupos políticos (elites) podem pertencer
a partidos distintos, mas compartilhar os mesmos valores e interesses sobre os
resultados de políticas públicas. Nas demais dimensões, como a de mercado,
institucional, internacional ou agentes externos e epistêmica, a organização do
modelo segue o mesmo padrão.
No caso da dimensão institucional, por exemplo, que possui grande número
de pesquisas sobre a interação das instituições nos processos decisórios — como
já mencionado —, é possível utilizar modelos, como o da escolha racional, o
process-tracing, a prosopografia do corpo técnico, entrevistas e análise de relações
interinstitucionais para se alcançar os dados. Dessa forma, cada dimensão pode
evocar técnicas de suas literaturas especializadas. O objetivo do modelo é indicar
possíveis variáveis, indicadores e técnicas adequadas para os estudos empíricos
da paradiplomacia.
Na aplicação à cidade do Rio de Janeiro, optou-se pelo recorte de 1993 a 2016.
O limite temporal foi estabelecido a partir da implementação do primeiro Plano
Estratégico da Cidade que inseriu o campo internacional na agenda municipal de
desenvolvimento (1993) até o final do mandado do prefeito Eduardo Paes em 2016.
Vale lembrar, mais uma vez, que a escolha da cidade se justifica pela existência
de uma continuidade de sua paradiplomacia no período. A explicação dessa
continuidade, no entanto, foge do padrão observado nos estudos empíricos que
destacaram as variáveis partidárias e institucionais em suas análises (SALOMÓN;
NUNES, 2007; LAISNER, 2007; ONUKI; OLIVEIRA, 2013). Ou seja, mesmo
verificando-se alternância partidária na prefeitura do Rio, houve a continuidade
das práticas da paradiplomacia (MERCHER, 2016). As variáveis partidárias ou
institucionais, portanto, não são suficientes para explicar a continuidade no caso
209Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
empírico do Rio. Por isso, diversas variáveis foram testadas para explicar esse
caso, usando métodos próprios e conforme o modelo aqui apresentado (Quadro 1).
Propõe-se aqui a APD com cinco dimensões de análise: (I) Gestão Política;
(II) Mercado; (III) Institucional; (IV) Internacional; e (V) Epistêmica. Na dimensão
de gestão política, as agendas políticas do período foram analisadas, os partidos
à frente da Prefeitura do Rio de Janeiro foram identificados e realizou-se uma
prosopografia (Quadro 2) dos prefeitos César Maia (1993-1997 e 2001-2009), Luiz
Paulo Conde (1997-2001) e Eduardo Paes (2009-2017). Na dimensão de mercado,
os agentes empresariais em associações e participações na elaboração das políticas
públicas foram identificados, por meio das agendas, órgãos e iniciativas de capital
público-privado com a prefeitura. Observou-se, também, a base econômica e as
políticas públicas municipais, bem como os conteúdos dos discursos oficiais da
Prefeitura do Rio junto aos agentes do mercado.
Na dimensão institucional, as instituições relacionadas à Prefeitura (Executivo
e Legislativo) para o campo internacional foram identificadas, bem como analisada
a autonomia institucional dessas instituições e o perfil de seus coordenadores. Na
dimensão externa, observou-se a participação de agentes internacionais, como
organizações do Sistema ONU, e de redes de cidades, como a Mercocidades, por
meio de documentos e informativos oficiais. Por fim, na dimensão epistêmica,
foram identificados os modelos incorporados na política da cidade, suas origens na
produção científica e a relação dos principais grupos de conhecimento envolvidos
com a cidade do Rio, como o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI)
e o Grupo Barcelona.
Na Dimensão da Gestão Política (I), investigou-se que partidos ou que gestores
(personalismo) teriam maior ou menor capacidade de explicação das estratégias
paradiplomáticas. Na variável partidária, uma simples consulta documental aos
partidos dos prefeitos e das coligações no legislativo demonstrou que ocorreram
mudanças partidárias, bem como coligações de oposições entre os três prefeitos
(César Maia, Conde e Paes). Dessa forma, olhando para pesquisas anteriores
sobre variáveis partidárias e paradiplomacia (SALOMÓN; NUNES, 2007), essas
variáveis deveriam explicar rupturas e não a continuidade vista no caso do Rio
(Planos Estratégicos Municipais e as práticas semelhantes ao longo dos governos).
Por isso, a variável partidária teve baixa capacidade explicativa.
210 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Quadro 2. Prosopografia dos Prefeitos do Rio de Janeiro, 1993-2016
Prefeitos Origem e Formação Atividades anteriores ao
mandato
Atividades durante o mandato Atividades após o mandato
César Maia Rio de Janeiro
18/06/1945
Classe Média
Economista
Universidade do Chile
Filiação ao PCB. Exílio no
Chile. Administrador na Klabin
Cerâmica. Professor de Economia
na UFF. Secretário da Fazenda do
RJ. Presidente BANERJ e DIVERJ.
Deputado Federal 1986-1992
(PDT/PMDB)
1993-1997 e 2001-2009
Primeiros Planos Estratégicos da Cidade.
Projeto Rio Cidade. Fundação da Rede
de Mercocidades (1995). Sede dos Jogos
Pan-Americanos. Tentativas de construir
o Museu Guggenheim. Candidaturas
à Olimpíada de Verão, Criação da
MultiRio.
Criação da Comissão Especial de
Relações Internacionais (CERI)
no primeiro ano de mandato
como vereador (2013) na Câmara
do Rio. Reeleito vereador para
2017. Inserção do Embaixador
Raul Fernando Leite Ribeiro como
conselheiro na Câmara sobre
assuntos internacionais.
Luiz Paulo
Conde
Rio de Janeiro
06/08/1934
21/07/2015
Classe Média
Arquiteto e Urbanista
Universidade do Brasil
(UFRJ)
Arquiteto e Urbanismo.
Participação no projeto do MAM.
Duas vezes presidente dos
Arquitetos do Brasil. Premiações
nacionais e internacionais em
arquitetura. Secretário Municipal
de Urbanismo (1993-1996)
1997-2001
Presidiu as redes UCCI e UCCLA.
Vice-presidente da SMGM. Conselheiro
Executivo na rede IULA.
Presidente-Conselheiro do Plano
Estratégico de seu mandato.
Representante do Rio para a candidatura
da Olimpíada (2004). Presidente do
CIDEU. Vínculo com a diretoria da
Faculdade de Arquitetura da UFRJ.
Um dos criadores da ONG
Vivercidades sobre urbanismo
e cooperação internacional.
Participação em cargos políticos
no RJ. Participação em eventos
de visibilidade internacional no
Governo Estadual do RJ, como
nas campanhas à sede dos jogos
olímpicos.
Eduardo
Paes
Rio de Janeiro
14/11/1969
Classe Média
Direito
PUC-Rio
Figurante da Rede Globo.
Membro do Juventude Cesar
Maia. Subprefreito da Zona Oeste
(1995). Vereador (PFL) com maior
votação (2002). Candidato ao
Governo do RJ (2006). Secretário
Estadual do Turismo. Filia-se ao
PMDB (2007) e se candidata a
prefeito.
2009-2016
Ampliação da CRI. Sede da Olimpíada.
Sede Rio+20 e Rio+C40. Criação da
PPP Porto Maravilha. Sede da UN-
Habitat (2010). Participação nas redes
de cidades.
Mudou-se para Nova York, EUA.
Fonte: elaboração dos autores, 2016.
211Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Já a análise dos gestores políticos, por meio da prosopografia (coleta de
dados bibliográficos das elites decisórias), demonstrou que, apesar de partidos
distintos em planos de governo, manteve-se o mesmo grupo político no poder.
A prosopografia dos prefeitos (Quadro 2) indicou, também, o engajamento pessoal
com os temas internacionais de cidades, especialmente dos dois primeiros, César
Maia e Luiz Paulo Conde em suas atividades anteriores, ao longo e posteriores
ao exercício do mandato, como na projeção da estética urbana e celebração de
grandes eventos esportivos, artísticos e climáticos à visibilidade internacional.
A formação em arquitetura do prefeito Conde reforçou a participação em redes
internacionais de urbanismo nos moldes estratégicos já implementados por seu
antecessor César Maia: aparelhos arquitetônicos (museus e grandes complexos)
atraem visibilidade e investimentos nacionais e internacionais.
Percebe-se que, nessa dinâmica complexa de agentes, internos e externos à
cidade do Rio, as variáveis políticas de gestão trouxeram respostas consistentes
sobre a ação externa do município. A permanência de um único grupo político
no poder, desde 1993 até 2016, revela que os gestores (prefeitos) são os agentes
decisores no processo de política externa da cidade. Mas, apesar de determinarem
o comportamento da cidade, não criaram os modelos — os absorveram de outros
agentes, como do Grupo Barcelona e do CEBRI. Os prefeitos não criam, também, as
demandas e grupos de pressões sobre a elaboração de políticas públicas, exigindo
uma melhor análise nas demais dimensões do modelo.
Para analisar a Dimensão de Mercado (II), primeiramente identificou-se a
base econômica e financeira da cidade, percebendo um predomínio em serviços
sobre a indústria. O PIB da capital fluminense é originário da seguinte proporção
(IBGE, 2016
): 65,52% em serviços; 23,38% em impostos; 11,06% em indústria;
e 0,3% em agronegócio. Na pesquisa, foi possível observar que importantes
representações comerciais e de interesse privado, como a Associação Comercial
do Rio de Janeiro (ACRJ) e a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN),
estiveram no Conselho da Cidade e participaram diretamente na definição dos
Planos Estratégicos desde 1993, tanto na coordenação como na elaboração dos
textos e seus objetivos de desenvolvimento (VAINER, 2001). Os conselheiros
também demonstraram vínculos com o mercado de cidades
4
.
4 Fernanda Sánchez (2001) aponta que, no cenário internacional, as cidades competem entre si por recursos e seis
interesses econômicos: mercado de empresas localizadas; mercado imobiliário; mercado de consumo; mercado
do turismo; mercado das boas práticas; e mercado de consultoria e planejamento.
212 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Quadro 3. Lista dos Conselheiros da Cidade do Rio de Janeiro, 2016
Fonte: elaboração dos autores, 2016.
213Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Os documentos do Conselho da Cidade demonstraram que 47 de seus 217
conselheiros pertenciam às principais empresas vinculadas aos mercados de
cidades, como Roberta Medina e Carlos Alberto Veiga Sicupira (Quadro 3). Isso
representa uma porcentagem de aproximadamente 22% dos conselheiros. Mas
essa porcentagem não engloba todos, visto que, além desses grandes empresários,
existem, ainda, os advogados sócios em firmas de advocacia e empresários de
médio e pequeno porte, como designers e lojistas.
Os grandes empresários formam a maior e mais homogênea parte do grupo do
Conselho da Cidade, representando grandes empresas nacionais e internacionais.
Esse grupo é seguido pelos urbanistas, economistas, advogados e pequenos e
médios empresários. Depois desses estão acadêmicos, esportistas, profissionais da
saúde, artistas e políticos — as “personalidades da Cidade”. Os dados do Conselho
da Cidade materializam de forma clara a relação entre o mercado e os Planos
Estratégicos da Cidade, ainda mais que a FIRJAN e ACRJ. Essas duas instituições,
além de redigir e coordenar o processo de criação dos Planos Estratégicos do
Rio no Conselho da Cidade, estariam duplamente representadas, uma vez que
muitos de seus membros estão ali como conselheiros. Não por acaso, as práticas
de sediar grandes eventos que atraiam turistas, desenvolvam o comércio e
aqueçam o mercado imobiliário sempre se mantiveram nos objetivos e práticas
paradiplomáticas da cidade do Rio de Janeiro no período analisado.
Contudo, não foi o mercado quem criou o modelo. No máximo, financiou,
demandou ou apoiou a sua criação e implementação pelos gestores políticos. Por
isso, a análise das dimensões Institucional (III), Internacional (IV) e Epistêmica
(V) foram realizadas. Na Institucional, os órgãos municipais responsáveis pela
paradiplomacia (Coordenadoria de Relações Internacionais da Cidade do Rio de
Janeiro — CRI e a Comissão Especial de Relações Internacionais da Câmara dos
Vereadores do Rio de Janeiro — CERI) e suas práticas foram investigadas por
meio de análise documental e da prosopografia de seus dirigentes (Quadro 4).
214 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Quadro 4. Prosopografia dos Coordenadores da CRI, 1993-2016
Coordenador da CRI Origem e Formação Atividades anteriores à CRI Atividades durante a coordenação da CRI
Claudio García de
Souza
Rio de Janeiro
01/06/1927
Direito (USP) e Instituto
Rio Branco
Embaixador: 1956 em Montevidéu; 1959 no
CERNAI; 1971-1975 em La Paz; 1976-1978 em
Buenos Aires; 1979-1984 em Estocolmo; 1984-
1987 em Belgrado; e 1987-1990 em Berna.
1993-2000
Participou da elaboração dos primeiros Planos
Estratégicos da Cidade. Reforma da CRI que
assume o PE na paradiplomacia. Fundação
das Mercocidades. Primeiras candidaturas aos
grandes eventos internacionais. Vitória na
candidatura ao Pan-Americano. Envolvimento
com a Rede URB-AL e outras.
Raul Fernando Belford
Roxo Leite Ribeiro
Buenos Aires
31/10/1932
Economia (London School)
e Instituto rio Branco
Embaixador: 1957-1959 no GATT (Rio); nos
anos seguintes esteve na ALALC, BID e Banco
Mundial até1983; 1987 em Argel; 1992 em
Lima; 1994 em Los Angeles; 1997 aposentou-
se; 1997 consultor da Odebrecht e Geotec.
Engenharia, 2000.
2005-2008
Manteve a Cidade atuante nas redes.
Realização e candidatura de grandes eventos
internacionais. Cidade da Música (atualmente
Cidade das Artes).
Stelio Marcos
Amarante
Rio de Janeiro
03/01/1942
Direito (UFRJ) e Instituto
Rio Branco
Diplomata nas Feiras e Exposições do MRE nos
anos 1960; 1983 participou da Comissão da
Baleia; 1985-1986 representante comercial com
as repúblicas da URSS; 1998 embaixador na
Bolívia; 2003 embaixador em Dublin.
2009-2012
Relação pessoal com o PT no Governo Federal.
Auxiliou nas campanhas dos grandes eventos
internacionais. Realizou o VI Fórum Mundial de
Habitação. Empréstimo com o Banco Mundial
para desenvolvimento social e urbano.
Laudemar Gonçalves
de Aguiar Neto
Niterói
26/06/1960
(sem dados confirmados
de graduação) e Instituto
Rio Branco
Trabalhou na Embaixada em Moscou e outras
representações como diplomata; tornou-se
embaixador em 2015.
2013-2016
Realização de eventos como Rio+20, Rio+C40
e Olimpíada. Publicações com o CEBRI
sobre paradiplomacia e suas estratégias de
desenvolvimento
Fonte: elaboração dos autores, 2016.
215Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Os resultados da análise Institucional (III) apontaram para alta capacidade
técnica (funcional), mas baixa autonomia em relação aos gestores (prefeitos).
Por exemplo, os cargos de chefia da Coordenadoria de Relações Internacionais
da Cidade do Rio de Janeiro (CRI) sempre foram ocupados por diplomatas de
carreira no período analisado, mas com alternâncias de acordo com os mandatos
dos prefeitos. Com exceção do embaixador Claudio Garcia de Souza, o cargo de
coordenador da CRI sempre teve rotatividade para cada novo mandato de prefeito.
É possível observar, também, baixa autonomia institucional por causa do vínculo
da CRI com o Gabinete do Prefeito no Palácio da Cidade (orçamento, indicações,
agenda direta do prefeito etc.). Portanto, a CRI se coloca como o principal órgão
de convênios e ações paradiplomáticas da cidade, mas se submete diretamente
ao prefeito e aos Planos Estratégicos da Cidade — que advêm do Conselho da
Cidade (mercado e sociedade).
Já no Poder Legislativo municipal as tentativas de César Maia de criar
uma Comissão de Relações Internacionais nos últimos anos não demonstraram
fôlego para orientar as práticas paradiplomáticas da Cidade, mantendo, ainda, a
centralização paradiplomática na CRI (Gabinete do Prefeito). Mas a criação da
Comissão Especial da Câmara dos Vereadores por César Maia (primeiro ato após
eleito como vereador depois de concluir seu mandato na prefeitura) ilustra que
a agenda internacional da cidade em seus mandatos à frente do Executivo não
era apenas um tema secundário, mas de atenção pessoal, demonstrada nos seus
discursos e posicionamentos sobre as relações internacionais do Rio.
Sobre a dimensão dos agentes externos e interferências internacionais (IV),
observou-se demanda de redes de cidades (Mercocidades, CGLU etc.) e organismos
internacionais em cooperar e firmar parcerias com o Rio de Janeiro, como no
empréstimo adquirido, em 2009, do Banco Mundial. Identificar os agentes e as
dinâmicas foi o primeiro passo, seguido da análise documental e de seu cruzamento
com apontamentos teóricos da literatura especializada. Mas, de todas as dimensões,
essa demonstrou ser a mais dependente dos interesses pré-definidos na agenda
internacional da cidade pela Prefeitura. Empréstimos e participações do Rio no
âmbito internacional só ocorreram na medida em que os gestores entendiam ou
percebiam vantagens.
A autonomia de decisão em relação aos agentes internacionais se mostrou
mais elevada do que, por exemplo, diante dos grupos de pressão comerciais
locais. Entretanto, sem as variáveis internacionais e agentes externos, pouco se
216 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
compreenderia sobre o fortalecimento da estratégia paradiplomática adotada.
Por exemplo, a busca por sediar grandes eventos e conseguir empréstimos e
financiamentos de organizações internacionais pode ser compreendida como
mecanismos estratégicos de competição internacional em relação a outras
cidades. Mas as cidades competem se os gestores (e seus grupos de pressão)
perceberem vantagens e assim decidirem. Dessa forma, os mercados de cidades
apontados por Fernanda Sánchez (2001), como o mercado de boas práticas
5
,
e as dinâmicas dos fluxos de capitais na globalização, identificados por Saskia
Sassen (2010), ajudam a entender que o cenário internacional se coloca como
uma variável interveniente, que induz a concorrência entre governos locais, mas
não necessariamente determinaria as ações do Rio — e, possivelmente, as ações
de muitas outras cidades.
Referente aos resultados da análise da Dimensão Epistêmica (V), observou-se
o conteúdo dos Planos Estratégicos e das ações da cidade para identificar
ideologias, valores e ideias compartilhadas pelos gestores e grupos sociais
de pressão. Pesquisadores como Fernanda Sánchez (2001) e Claudio Vainer
(2001) já haviam mencionado que os modelos de desenvolvimento municipal
do Rio e, consequentemente, a sua paradiplomacia, vieram de experiências
anteriores e de boas práticas da cidade de Barcelona, intermediadas pelo político
e professor catalão Jordi Borja (TUBSA S.A. ou Grupo Barcelona). Desde 1993,
Borja inseriu o modelo que deu origem aos Planos Estratégicos e ao conselho
da cidade, tal qual se desenvolveu nesses 23 anos, como, por exemplo, tendo as
representações comerciais — ACRJ e FIRJAN — espaço de coordenação e liderança
(VAINER, 2001).
Além disso, durante as investigações institucionais, foi possível perceber
que grupos de conhecimento (think tanks), como o Centro Brasileiro de Relações
Internacionais (CEBRI), demonstraram vínculo institucional direto com a CRI,
onde suas publicações apontam modelos de paradiplomacia, bem como existem
publicações do próprio corpo técnico da Prefeitura em relações internacionais.
O artigo do Coordenador da CRI, o Diplomata Laudemar Aguiar (2013), durante
o governo de Eduardo Paes, reafirmava as ideias estratégicas de desenvolvimento
5 Segundo Fernanda Sánchez (2001), o Banco Mundial premia boas práticas em políticas públicas, o que aquece
o mercado da consultoria e impulsiona, também, outras cidades a pegarem empréstimos para aplicarem nos
modelos premiados pelo Banco Mundial — muitas vezes, o mesmo que oferta o empréstimo. Essa situação
pode criar um ciclo de conceitos de desenvolvimento, comércio de modelos e endividamento das cidades.
217Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
dos Planos Estratégicos, do Grupo Barcelona e de outros pesquisadores no CEBRI.
Além disso, pesquisadores em contraponto (críticos ou opositores intelectuais)
aos modelos adotados pela cidade nesse período, como Carlos Vainer (UFRJ)
e Fernanda Sánchez (UFF), tiveram pouca repercussão na gestão estratégica e
paradiplomática do Rio de Janeiro.
Nas concepções críticas da academia local, as dimensões de gestão política,
mercado e institucional demonstraram o alinhamento com uma vertente conceitual
neoliberal (SÁNCHEZ, 2001; VAINER, 2001), que compreende a paradiplomacia
como ferramenta de captação de recursos e desenvolvimento financeiro e
comercial de uma cidade. A reforma urbana e o investimento em aparelhos
arquitetônicos e grandes eventos que deram visibilidade internacional trariam
investimentos de capital que, posteriormente, poderiam ser convertidos em
financiamento de políticas sociais ou ambientais. Essa perspectiva, contudo, não
está abertamente presente no conteúdo das publicações do CEBRI. Mas, o conteúdo
do CEBRI (na forma de artigos publicados) reproduz o da CRI e vice-versa sobre
paradiplomacia como ferramenta do desenvolvimento por meio da visibilidade
e da atração de capital internacional. Não é de se estranhar que as relações
entre CRI (Prefeitura do Rio) e o CEBRI vão além de publicações, onde o próprio
CEBRI reconhecia (até 2016) a Prefeitura do Rio como uma de suas mantenedoras
institucionais, juntamente com outras empresas — presentes indiretamente no
Conselho da Cidade.
De fato, a existência de uma instituição epistêmica na cidade (CEBRI)
contribui para a organização e continuidade da ação paradiplomática da forma
que foi implementada desde 1993 pelo Grupo Barcelona. Mas não necessariamente
determina sua implementação pelos gestores. A escolha dos gestores no Rio
(prefeitos e coordenadores da CRI) de adotarem essas ideias de grupos de
conhecimento poderia ser explicada pelas variáveis já apresentadas anteriormente:
formação profissional dos gestores; e grupos de pressão sobre a elaboração de
políticas públicas. Assim, no caso do Rio — e talvez de muitas outras cidades —,
as variáveis determinantes da estratégia paradiplomática sejam as vinculadas aos
gestores e aos agentes econômicos presentes em suas regiões
. Por isso, os estudos
de APP e APE podem facilitar as investigações em APD.
218 Paradiplomacia como Política Externa e Política Pública: modelo de análise aplicado ao caso [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
Considerações finais
Com o intuito de facilitar a compreensão do processo de pesquisa em
paradiplomacia, apresentou-se aqui o modelo de Análise de Paradiplomacia (APD)
que reúne elementos de Análise de Políticas Públicas (APP) e Análise de Política
Externa (APE). Baseado no modelo de APE de Mónica Salomón e Letícia Pinheiro
(2013) e nos modelos de APP de Celina Souza (2006) e Enrique Saraiva (2007),
cinco dimensões de análise foram reunidas e destacadas como as variáveis mais
relevantes apontadas pela literatura especializada, bem como foram apresentados
alguns métodos de coleta de dados. Para ilustrar sua aplicação, o caso da cidade
do Rio de Janeiro foi apresentado, onde as dimensões política de gestão e de
mercado tiveram grande poder explicativo.
Para cada uma das cinco dimensões propostas — gestão política, mercado,
institucional, internacional e epistêmica —, diversas variáveis foram testadas,
apontando para resultados diferentes de outros trabalhos já apresentados na
disciplina. Enquanto que a variável partidária e institucional conseguiu explicar
casos de continuidade estratégica de cidades brasileiras (SALOMÓN; NUNES, 2007;
LAISNER, 2007; ONUKI; OLIVEIRA, 2013), o caso do Rio demonstrou que variáveis
como profissionalização e carreira dos gestores, grupo político e agentes comerciais
conseguem explicar a continuidade observada na prática paradiplomática do Rio
de Janeiro durante o período de 1993 a 2016.
Nesse sentido, o modelo apresentado (Quadro 1) busca reunir e flexibilizar as
variáveis e os métodos de coleta e análise de dados tendo em mente que as cidades,
apesar de terem em comum a natureza governamental, possuem peculiaridades
próprias que desafiam perspectivas mais limitadas em uma ou duas dimensões.
Seguindo as premissas de que a APE e a APP são mais do que métodos — mas
um conjunto de valores sobre como compreender a realidade de forma plural e
com diversos níveis de análise —, foi elaborada a APD que incentiva a análise
somada dos cenários doméstico, internacional e da natureza do agente diante
das relações internacionais.
A relação dos estudos de APE e APP com os de APD, portanto, exige um olhar
para dentro das cidades em suas diversas dimensões. A concepção adotada, de que
a paradiplomacia é em si política externa e que esta, por sua vez, é uma política
pública, ampliou o número de variáveis a serem investigadas. Dos gestores aos
empresários e à demanda dos mercados, passando pela autonomia institucional,
219Leonardo Mercher, Alexsandro Eugenio Pereira
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 195-222
pelo corpo técnico e pela interferência de agentes nacionais e internacionais,
as variáveis foram organizadas no modelo em suas cinco dimensões, mas que
não devem ser vistas como rígidas. Dessa forma, a APD e a APP, assim como
já ocorre com a APE, devem ser vistas como recursos analíticos relevantes para
a compreensão da multiplicidade de agentes e suas formas de participação nas
relações internacionais contemporâneas.
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1
Ideology explains everything? The clash in the
brazilian legislative branch on foreign policy matters
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.764
Rodrigo Santiago
2
Resumo
De acordo com a literatura especializada, a unidade entre os partidos políticos aumenta a
credibilidade da política externa, na medida em que o presidente não fica dependente de
ciclos majoritários dentro do parlamento. Essa seria uma estratégia utilizada para afastar o
perigo de um oponente estrangeiro explorar as disputas partidárias da arena doméstica em
negociações internacionais em situações de crise. No entanto, em algumas circunstâncias,
percebe-se momentos de embates que podem ser lidos, majoritariamente, como disputas
ideológicas, mas também, a partir da clivagem governo versus oposição e dos interesses
federativos dos congressistas. Este trabalho foca nas discussões em plenário e nos pareceres
contrários — momentos de conflito — no Congresso Nacional brasileiro entre os anos
de 1988 e 2014. Utilizou-se o método da análise de conteúdo e da técnica da análise de
correspondência para explicar esse cenário.
Palavras-chave: Política Externa; Legislativo; Ideologia; Governo versus Oposição; Interesses
Federativos.
Abstract
According to the specialized literature, the unity among the political parties increases the
credibility of foreign policy, since the President is not dependent on majority cycles within
the Parliament. That would be a strategy used to ward off the danger of a foreign opponent
1 Este artigo é parte integrante da minha tese de doutorado, a qual teve o auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Fica registrado, também, os meus agradecimentos aos pareceristas
anônimos da Revista Carta Internacional que contribuíram para o aprimoramento deste paper.
2 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Contato: rodrigosantiago_18@hotmail.com.
Artigo submetido em 17/02/2018 e aprovado em 25/06/2018.
224 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
explore the partisan disputes in the domestic arena in international negotiations in crisis
situations. However, in some circumstances, moments of clashes that can be read, mostly,
as ideological disputes, but also from the government versus opposition divide and federal
interests of congressmans. This work focuses on discussions in the plenary and in the
contrary opinions — moments of conflict — the Brazilian National Congress between the
years of 1988 and 2014. Used the method of content analysis and correspondence analysis
technique to explain this scenario.
Keywords: Foreign Policy; Legislative Branch; Ideology; Government versus Opposition;
Federative Interests.
Introdução
A maneira como os poderes legislativos funcionam é um fenômeno de
grande interesse dos politólogos, visto que ela ajuda a entender as democracias
representativas. No caso específico das democracias localizadas na América
Latina, há uma grande quantidade de estudos empíricos que tentam explicar as
consequências e os determinantes do comportamento legislativo na formulação
das políticas públicas em geral. Entretanto, ainda são poucos os esforços para se
compreender a atuação dos parlamentares latino-americanos em política externa,
em particular.
Dos diversos tipos de matérias que tramitam nos parlamentos, especifica-
mente, no brasileiro, as de política externa possuem características que tornam
as interpretações sobre a sua formulação e implementação díspares. A diferença
fulcral entre a política interna e a internacional está no paradigma clássico
(realismo) das relações internacionais em que, para o primeiro caso, há um Estado-
nação soberano capaz de legislar e garantir a ordem dentro das suas fronteiras,
no segundo, temos a ausência de uma entidade supranacional, sendo o sistema
internacional anárquico. Logo, a unidade partidária em temas de política externa
pode ser percebida como uma estratégia de segurança nacional, importante em
tempos de ameaças e incertezas no ambiente externo. A unidade entre os partidos
políticos aumenta a credibilidade da política externa, de acordo com a literatura da
área, na medida em que o presidente não fica dependente de ciclos majoritários
dentro do Legislativo. Além disso, a coesão entre os partidos torna mais difícil
um oponente estrangeiro explorar as disputas partidárias da arena doméstica em
negociações internacionais em momentos de crise ou conflito.
225Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Entretanto, para o Congresso Nacional — entre os anos de 1988 e 2014 —,
há indícios de embates ideológicos nas discussões em plenário e nos pareceres
contrários elaborados. Não está se afirmando que os parlamentares brasileiros
sejam altamente combativos nesse tipo de matéria, mas que há alguns temas e
momentos que chamam mais a atenção de tais parlamentares e da sociedade,
fazendo com que haja uma maior participação dos mesmos. Por meio do método
da análise de conteúdo e da técnica da análise de correspondência, busca-se
encontrar indícios que corroborem ou não esse quadro. Além dessa introdução,
o artigo é composto de mais quatro seções: (1) uma visão geral sobre o papel dos
partidos políticos e suas ideologias; (2) o debate acerca da ideologia partidária
no Brasil; (3) uma discussão sobre o papel da ideologia, da clivagem governo
versus oposição e interesses federativos na análise de política externa; (4) uma
parte empírica em que são mostrados os achados da pesquisa; e, por fim, estão
as considerações finais.
Partidos e ideologias: uma visão geral
O conceito direita-esquerda é histórico, ele remonta à Revolução Francesa,
na reunião dos Estados Gerais, no século XVIII. Aqueles identificados com ideias
igualitárias e reformas sociais sentavam-se à esquerda do monarca; por outro
lado, os que tinham vínculos com a aristocracia e defendiam ideias conservadoras
estavam à direita dele. Já no século XIX, no continente europeu, a diferenciação
entre direita e esquerda passa a ser vista como sinônimo para conservadorismo
e liberalismo, respectivamente (TAROUCO; MADEIRA, 2013).
Com o desenvolvimento do movimento operário e a expansão do pensamento
de Karl Marx, o conteúdo proposto pela esquerda passou a incluir a defesa dos
interesses da classe operária. Com as discussões sobre a social-democracia, no final
do século XIX, e a Revolução Russa, de 1917, a defesa do capitalismo põe a burguesia
na direita (PRZEWORSKI, 1988). Por último, o surgimento do keynesianismo,
na década de 1930, e dos Estados de bem-estar social, com políticas de cunho
redistributivo, reacendem a dicotomia entre o livre-mercado e o Estado provedor,
colocando, também, o liberalismo para a direita (TAROUCO; MADEIRA, 2013).
Apesar das mutações de significado que os termos direita e esquerda tomaram
nos últimos dois séculos, a afinidade da defesa da igualdade social, herdeira dos
princípios socialistas, com a esquerda e da defesa do livre-comércio capitalista
226 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
com a direita parece ser uma questão viva e contemporânea. Gabriela Tarouco e
Rafael Madeira pontuam que:
O debate acerca da pertinência do uso contemporâneo das classificações
ideológicas é bem familiar a quem estuda partidos políticos. Trata-se de saber
se as categorias esquerda e direita ainda ajudam a explicar a política no mundo
pós-guerra fria. Além disso, em países nos quais o welfare state atendeu
minimamente as disputas distributivas, emergem as chamadas questões
pós-materialistas, que não correspondem à dimensão Estado-mercado. Ao
mesmo tempo, a direita ressurge em vários países europeus com vitórias
eleitorais sobre os tradicionais partidos social-democratas, sugerindo que a
diferenciação ainda faz algum sentido (TAROUCO; MADEIRA, 2013, p. 149).
Desse modo, as diferenças ideológicas continuam sendo usadas como variável
explicativa para analisar desde a lógica das coligações partidárias até as políticas
públicas executadas pelos governos. Da mesma forma que a diferenciação
ideológica permanece como elemento para classificar as percepções dos eleitores
e o seu nível de identificação política.
A identificação de perfis partidários, no debate atual da ciência política, pela
sua localização unidimensional tem origem em Anthony Downs (1999). Segundo o
autor, as agremiações partidárias se movem ao longo de um continuum ideológico
formulando propostas de políticas com o objetivo de obter votos. Essa perspectiva
pressupõe que os atores políticos em contextos democráticos se orientam de
maneira racional, de forma similar a agentes econômicos no mercado. Assim,
para alcançar os seus objetivos, partidos procuram maximizar votos e se eleger;
governos, maximizar apoio político e se reeleger; e os eleitores, escolher um
governo em que as políticas ampliem seus benefícios. Dessa maneira, os partidos
formulariam políticas no intuito de ganhar eleições e não o inverso, isto é, não
disputam eleições com a meta de implementar políticas (DOWNS, 1999).
Os partidos têm a possibilidade restrita de encaminhar seu apelo eleitoral
a um número pequeno de grupos sociais, por isso, cada agremiação formularia
sua ideologia de maneira a agradar aquele conjunto específico de grupos. Eles
usariam o desenvolvimento de ideologias como um método para angariar votos e
ficariam obrigados a alguma honestidade e coerência na consecução de políticas ao
longo do tempo. No entanto, cada partido quer agradar a tantos eleitores quanto
possível. A consequência lógica disso é que, no final das contas, nenhum partido
se prende a uma ideologia de modo rígido demais. A limitação a uma ideologia
perante novas situações seria uma ação irracional (DOWNS, 1999).
227Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Para Downs (1999), a posição de cada grupo partidário variaria a partir da
expectativa de preferência do eleitor mediano, cujo voto os partidos desejam.
Assim, eles se movem racionalmente na escala direita-esquerda para ganhar votos.
Como outra via possível de interpretação das escolhas ideológicas dos partidos
surge a saliency theory, desenvolvida por David Robertson (1976). Para ele, os
partidos competem fazendo uso da proeminência de diferentes temas, mais do
que pela tomada de várias posições a respeito das mesmas questões.
A partir disso, neste artigo, a noção de identidade partidária será operacionalizada
por meio das preferências expressas na atividade parlamentar naqueles temas
que geraram algum tipo de intervenção na tramitação dos atos internacionais.
Esse enfoque está baseado na teoria das ênfases programáticas de maneira
adaptada, pois, não se analisa nem os programas de governo (BUDGE et al., 2001;
KLINGEMANN; HOFFERBERT; BUDGE, 1994), nem os manifestos dos partidos
políticos (LAVER; BUDGE, 1992; KLINGEMANN et al., 2006; TAROUCO, 2007),
mas sim os pronunciamentos dos parlamentares em plenário, as emendas e os
pareceres elaborados por eles. Com isso, pretende-se verificar se os partidos se
diferenciam pelas ênfases que dão às várias questões que se colocam.
Visões distintas apresentadas, nesta seção, mostraram que os partidos políticos
podem se manifestar como agremiações utilitárias — como a defendida por Downs
(1999) — ou como defensores de visões de mundo — de acordo com Robertson
(1976). Este paper não pretende excluir nenhuma das explicações, pois acredita-
se que elas são complementares, apesar de bem diferentes. Diante desse quadro,
assume-se que os partidos importam. Entretanto, é necessário precisar como
eles se tornam relevantes para o debate e para o artigo, em particular. A seguir,
situaremos o Brasil na discussão proposta, mostrando suas especificidades diante
do contexto apresentado nas democracias europeias, por exemplo.
Ideologia e partidos políticos no brasil
No Quadro 1, vê-se os temas que caracterizariam posicionamentos típicos de
partidos de direita e de esquerda extraídos dos estudos que focam nesse contínuo
de preferências políticas. E que servirá como categorias analíticas na seção
empírica.
228 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Quadro 1. Os temas que seriam típicos na comparação direita-esquerda
Direita Esquerda
Forças Armadas: positivo Anti-Imperialismo
Liberdade Direitos Humanos
Constitucionalismo: positivo Paz
Autoridade Política Internacionalismo: positivo
Livre-iniciativa Democracia
Incentivos Regulação do Mercado
Protecionismo: negativo Protecionismo: positivo
Ortodoxia Econômica Economia Controlada
Limitação de Gastos Nacionalização
Nacionalismo: positivo Expansão de Gastos
Lei e Ordem Classe Trabalhadora: positivo
Fonte: adaptado de Klingemann et al., 2006 e Tarouco; Madeira, 2013.
Nessa perspectiva, saber como os congressistas se posicionam em um ou
mais temas do Quadro 1 pode ajudar a categorizá-los e, consequentemente, ao
seu partido como sendo de direita ou de esquerda. É preciso, porém, estar atento
para uma correção realizada por Tarouco e Madeira, e adotada por esta pesquisa:
A escala definida pelo Manifestos Research Group (MRG) [...], por exemplo,
inclui, entre os elementos constitutivos da posição política de esquerda, a
defesa do internacionalismo e a busca da paz entre países, e, entre elementos
constitutivos da posição política de direita, entre outras coisas, a defesa do
constitucionalismo e de liberdades e direitos humanos. Tais critérios fazem
pouco sentido na política de países ex-colônias, que não passaram pelos
mesmos processos históricos revolucionários que moldaram as visões de
política nos países europeus (TAROUCO; MADEIRA, 2013, p. 157).
De acordo com André Singer (2002), no Brasil, não é o tema da igualdade que
diferencia a esquerda da direita, como em outros países. Aqui, o que provoca a
clivagem são os meios empregados para alcançá-la. A direita tenderia a reforçar
a autoridade do Estado, no intuito de que a busca da igualdade não implique em
perda da ordem. Por outro lado, a esquerda criticaria tal autoridade, principalmente
quando ela reprime os movimentos sociais/igualitários. Nesse sentido, o espectro
direita-esquerda tem que considerar as contradições inerentes ao papel do Estado
na sociedade.
229Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Ainda sobre esse aspecto, Tarouco e Madeira (2013) explicam que a escala
apresentada pelo Manifesto Research Group (MRG)
inclui categorias que não
fazem sentido na realidade brasileira. Por exemplo, por conta da experiência
ditatorial, iniciada na década de 1960, e da transição democrática dos anos de
1980, a esquerda brasileira incorpora bandeiras que o MRG identifica como sendo
de direita: liberdade, direitos humanos e constitucionalismo. Pela mesma razão,
a defesa da democracia, que é apontada como comum à esquerda, no Brasil,
aparece no discurso de todos os partidos que surgiram no período da reabertura
política, o que não impede, por parte da direita, a defesa das Forças Armadas.
Alguns pesquisadores utilizam os resultados das votações em plenário
para concluir sobre a posição ideológica das bancadas dos partidos políticos.
Entretanto, esquecem que essa relação não pode ser direta. Não se pode excluir
dessas decisões o caráter estratégico da sobrevivência política ou a relação entre
coalizão governista e oposição (MADEIRA; TAROUCO, 2011).
Em pesquisa comparativa, André Marenco e Miguel Serna entendem que o
eixo direita-esquerda é uma relevante dimensão na organização do regime e dos
partidos políticos dos três sistemas multipartidários analisados (Brasil, Chile e
Uruguai). Os autores consideram que, de fato, existem partidos de esquerda e de
direita e com representação nos sistemas partidários escolhidos. Mas, sobre as
dificuldades de conceituar tal clivagem entre as agremiações, eles enfatizam que:
As decisões que dizem respeito à delimitação da esquerda e da direita não estão
isentas de dificuldades. Desde sua definição originária na Europa, passando
por múltiplas transformações históricas posteriores — principalmente depois
de 1989 —, os termos “esquerda” e “direita” têm significado polissêmico,
apresentando pelo menos duas dimensões diferentes, muitas vezes
superpostas em seu sentido histórico. A primeira é espacial-situacional,
uma vez que a polarização esquerda-direita definiu em forma dicotômica as
posições relativas de cada ator dentro de um sistema político historicamente
determinado — com clivagens sociais e políticas diversas. A segunda é
de ordem ideológica, que concerne aos valores e às crenças de doutrinas
políticas, podendo ser dividida entre correntes favoráveis ao igualitarismo e
à mudança social (por exemplo, socialistas, comunistas, social-democratas
etc.) e os partidários da liberdade individual e da ordem social (como liberais,
conservadores, entre outros) (MARENCO; SERNA, 2007, p. 94-95).
Apesar das dificuldades apontadas pelos trabalhos que tratam da ideologia
como elemento explicativo para a execução de políticas, todos enfatizam a
230 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
importância de tal variável. Desse debate, formula-se o objetivo e a hipótese de
trabalho. A meta é analisar a atuação parlamentar, focando na clivagem governo
versus oposição, partidos políticos (ideologia) e interesses federativos das bases
eleitorais e seus impactos na tramitação dos atos internacionais. Nesse sentido,
tem-se como hipótese que: a ideologia de fato divide os partidos políticos em
clusters, mas é preciso estar atento à relação governo x oposição e aos interesses
federativos para poder explicar a tramitação dos atos internacionais.
Análise de política externa e ideologia política: entre a clivagem
governo versus oposição e os interesses federativos
Nos subitens a seguir, será feito um levantamento de como as três variáveis
de interesse do estudo — ideologia política, clivagem governo x oposição e
interesses federativos — podem interferir na dinâmica legislativa em política
externa. Pesquisas têm mostrado o elevado peso da orientação partidária no
comportamento legislativo em política externa. Os resultados também mostraram
que o federalismo, em algumas circunstâncias e para certos casos, complementa
a explicação. Esses achados aproximam a dinâmica legislativa em política externa
da dinâmica da política doméstica. Durante algum tempo, os autores brasileiros
estiveram presos ao argumento da omissão ou abdicação dos parlamentares frente
ao Executivo — no tocante à política externa
3
. Entretanto, estudos iniciados no
final dos anos 2000 mostraram que, se o intuito era entender e explicar a atuação
congressual na dimensão dos atos internacionais, se fazia necessário incorporar
novos conceitos e teorias que fossem além da área das relações internacionais.
Diante desse quadro, surgem teorias que ora focam no ator político como um
maximizador das suas chances de reeleição e ora dão ênfase aos conteúdos
programáticos a partir da proeminência de alguns temas. A verdade é que as
análises podem ser frutíferas caso aliadas, desde a perspectiva ideológica até a
pragmática das coalizões governistas e dos interesses federativos.
Ideologia partidária e clivagem governo versus oposição
A ideologia dos partidos políticos é uma variável explicativa para o
comportamento dos legisladores em grande parte dos estudos que focam nas
3 Para detalhes sobre o assunto, ler Rodrigo Santiago (2016).
231Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
políticas públicas em geral (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999, 2007; POOLE;
ROSENTHAL, 1997; LEONI, 2000). O argumento central dessas pesquisas é que
existe uma correlação entre a posição dos partidos políticos dentro do espectro
ideológico direita-esquerda e o voto dos congressistas. Um elemento fundamental
que sustenta esse raciocínio é a coesão partidária, ou seja, a identificação de
uma clara influência das escolhas dos partidos políticos no voto individual dos
parlamentares (HAGER; TALBERT, 2000).
Pesquisa realizada por Jean-Philipe Thérien e Alain Noel (2000) exemplifica
bem como os partidos políticos podem influenciar na tomada de decisão
governamental. Ao comparar 16 países membros da OCDE (Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o estudo tentou entender se
parlamentos formados por partidos de diversos matizes (socialistas, social-
democratas, liberais, religiosos, dentre outros) têm maior afinidade a empenhar
uma boa parcela do PIB nacional em ajudas humanitárias externas. Com base
nesse problema, os autores concluíram que os Estados em que os governos são
formados por partidos de origem social-democrata investem mais em ajuda externa
do que os governos liberais. Claramente, a ideologia partidária seria uma proxy para
explicar as políticas públicas domésticas, mas também, a política internacional.
Nessa mesma linha de raciocínio, Gary Marks et al. (2006) investigam a
competição partidária no processo de integração regional europeu. Os pesquisadores
localizam os partidos nas duas dimensões clássicas do espectro ideológico (direita-
esquerda) e as dimensões (liberalismo-ambientalismo) versus (tradicionalismo-
nacionalismo). Como achado principal, encontram relação entre o posicionamento
dos partidos quanto a apoiar a integração regional nos seis aspectos citados. Além
disso, notaram que as associações se invertem a depender se os partidos são do
Leste ou Oeste da Europa.
Por outro lado, os trabalhos sobre política comercial que analisam a atuação
dos grupos de pressão indicam que é irrelevante a ideologia partidária com relação
à temática (RAY, 1981). O argumento é: se a política comercial é consequência
das preferências e influências dos grupos de interesses, a ideologia dos partidos
políticos é pouco importante, pois cada partido tende a representar vários grupos
sociais com diferentes preferências. Na mesma linha, Gene Grossman e Elhanan
Helpman (1994) afirmam que setores econômicos organizados em lobbies dominam
a política comercial, fazendo com que os partidos tenham diminuta relevância.
Pesquisas mais recentes examinaram o posicionamento dos partidos políticos sobre
tais questões em 25 países desenvolvidos, grande parte deles membros da OCDE,
232 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
no período compreendido entre 1945 e 1998. O principal achado foi a existência
de um forte impacto dos partidos políticos, principalmente, no que tange à lógica
direita-esquerda (MILNER; JUDKINS, 2004).
Na América do Sul, Pedro Feliú Ribeiro, Manoel Pereira Neto e Amâncio
Oliveira (2007) encontraram que a ideologia partidária, no caso do Chile, tem
o poder preditivo para a formação das preferências dos deputados em temas de
política comercial, mesmo se controlada por interesses locais. Outros achados
de Pedro Feliú Ribeiro (2012) são que, na comparação entre os seis países do
estudo (Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai e Peru), existe uma baixa
diferenciação do comportamento legislativo em assuntos internos e externos.
E a disposição ideológica dos partidos políticos relaciona-se com o binômio
governo-oposição enquanto elementos explicativos dos votos dos parlamentares
da região, independentemente da temática. Ele ressalta que algo parecido ao
bipartisanship
4
norte-americano parece não fazer sentido nos casos selecionados.
Ribeiro (2012) argumenta que os partidos políticos têm posições diferentes a
respeito da implementação e execução da política externa. Portanto, a formação
das preferências internacionais não pode ser entendida como suprapartidária.
Comparativamente ao termo bipartisanship baseado na experiência estadunidense,
o autor afirma que nos países latino-americanos não há a ocorrência de um
multipartisanship, ou seja, legislaturas multipartidárias em que maiorias partidárias
votam fechado nas políticas de cunho internacional.
Por outro ângulo de análise, Simon Hix e Abdul Noury (2011) enfatizam que
a primeira característica a ser levada em consideração para a análise dos votos
dos parlamentares em distintos contextos institucionais é a batalha entre os
legisladores pertencentes ao governo ou à oposição, independentemente da opção
(preferência) política em si. Os integrantes da oposição tendem a se colocar de
maneira contrária ao governo, muito mais para sinalizar a sua postura de oposição
do que para demonstrar descontentamento com alguma proposta legislativa em
particular.
Na maioria dos países latino-americanos, o presidente tem forte controle
sobre a distribuição de recursos e cargos e, por isso, sobre a agenda política,
4 No caso dos Estados Unidos é caracterizado por: 1) Unidade em assuntos externos, ou seja, apoio político dos
dois principais partidos do país; e 2) Práticas e procedimentos tomados com o objetivo de atingir a almejada
unidade. Dessa forma, o grau de polarização entre os democratas e republicanos se mostraria diferente quando
comparada as votações de questões domésticas e internacionais, estando o primeiro caso sujeito às forças
centrífugas da polarização, e o segundo, guiado pelas forças centrípetas do bipartisanship (MCCORMICK;
WITTKOPF, 1990; KEGLEY; WITTKOPF, 1995).
233Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
sendo capaz de atrair o apoio dos congressistas ao redor das suas propostas
legislativas. Hix e Noury (2011) enfatizam que a dimensão governo-oposição,
em muitos casos, pode estar ligada à divisão ideológica do tipo direita-esquerda.
No caso do sistema latino-americano, é comum os estudos argumentarem sobre
a relevância do continuum direita-esquerda enquanto organizador da política,
facilitando a transmissão de informação aos eleitores no momento da competição
política. Desse modo, a ideologia dos partidos políticos também está presente
enquanto variável explicativa para entender a participação parlamentar no debate
sobre política externa.
Esse debate não é consensual, por exemplo, para César Zucco Jr. (2009),
esquerda e direita ainda tem a ver com maior ou menor intervenção do Estado
na economia, entretanto, houve uma considerável retração dos posicionamentos
mais à esquerda. Na verdade, o autor levanta a tese de que a ideologia jamais
tenha sido uma proxy forte de comportamento. Segundo ele, a questão continua
em aberto por problemas de ordem empírica para os anos dos mandatos do
ex-presidente Lula, quando as coalizões de governo foram ideologicamente
incoerentes, podendo assim se distinguir ideologia de pragmatismo político.
No caso da 53ª legislatura estudada, Zucco Jr. (2009) afirma que a principal
clivagem é mesmo entre oposição e governo, e não direita e esquerda. Esse achado
corrobora a ideia de que, quando há disputas entre as preferências ideológicas dos
congressistas, os incentivos gerados pelo Executivo tendem a ser preponderantes.
Criticamente, Tarouco e Madeira (2015) apontam que um certo grupo de
pesquisadores enfatizam a alta fragmentação do sistema partidário brasileiro,
a heterogeneidade das coligações e o personalismo na escolha eleitoral como
alguns dos fatores que indicam que os partidos políticos no país não possuem
ideologia definida. Entretanto, ironicamente, existe uma grande quantidade
de classificações na literatura da ciência política (KINZO, 1993; MELO, 1999;
MAINWARING, MENEGUELLO e POWER, 2000; AMORIN NETO, 2000; MARENCO,
2001; RODRIGUES, 2002; ZUCCO JR., 2009; 2011) que distinguem as agremiações
em direita, centro ou esquerda. Os trabalhos que enfatizam essa volatilidade
ou inconsistência ideológica baseiam suas conclusões no comportamento
dos parlamentares nas votações nominais em plenário. Porém, como salienta
Peter Mair (2001), ideologia não se confunde com posições defendidas em
relação a políticas específicas, logo, resultados pautados em votações nominais
podem ser apenas preferências — de sobrevivência política — imediatas e não
ideológicas.
234 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Desse mesmo ponto de vista, Eduardo Leoni (2002) afirma que não é difícil
ver políticos, jornalistas, acadêmicos e cidadãos usarem conceitos espaciais para
identificar as posições dos atores políticos. A teoria espacial dos votos é uma
tentativa de sistematização desse pensamento. Ela tem como fundamento a ideia
de que as preferências individuais e as políticas podem ser indicadas como pontos
em um espaço. A lógica é que os atores dão mais valor/preferem as políticas mais
próximas, em detrimento daquelas que se encontram mais distantes dos seus
pontos ideais. Para o caso norte-americano, podemos dizer que:
Um liberal dos dias de hoje [...] provavelmente apóia um aumento no
salário mínimo; [...] é contra o uso de força no estrangeiro; apóia programas
compulsórios de ação afirmativa; e apóia o financiamento federal de programas
seguro-saúde e creches. De fato, saber se um político se opõe a um aumento
do salário mínimo é suficiente para predizer, com razoável confiabilidade,
a opinião do político em muitas questões aparentemente desconexas
(POOLE; ROSENTHAL, 1997, p. 11 apud LEONI, 2002, p. 372).
O entendimento da política externa enquanto matéria sujeita a disputas
político-ideológicas evidencia a importância da inclusão das preferências partidárias
nas pesquisas sobre formulação da política externa na América Latina (OLIVEIRA;
ONUKI, 2010). Dada a relevância das variáveis ideologia do partido político
e pertencimento à coalizão de governo, pode-se concluir que, a depender da
configuração partidária, presidentes podem ter dificuldade para levar a cabo suas
agendas internacionais. Em ambientes de governo dividido e alta polarização
ideológica, é esperado que os legislativos sul-americanos ajam como importantes
veto players da política externa presidencial. Nesse sentido, parece sensato supor
a antecipação, por parte do presidente, das preferências do legislador mediano
na formulação da política externa. Por isso, neste trabalho, utiliza-se a ideologia
e a clivagem governo versus oposição como complementares e não como visões
antagônicas.
Interesses federativos
Há ainda um terceiro elemento que se junta à ideologia partidária e à clivagem
governo x oposição: são os interesses federativos. Cheryl Schonhardt-Bailey (2006)
procurou compreender a razão de uma parcela do Partido Conservador britânico
235Rodrigo Santiago
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ter optado por desafiar o partido e gerar, em 1846, a remoção da legislação que
protegia os produtores de trigo. Ainda mais que grande parte do apoio partidário
era oriundo exatamente dos agricultores sensíveis, portanto, à livre-concorrência
de importados. Estudando as bases distritais dos parlamentares dissidentes, a
autora concluiu que a gênese da alteração de posição está ligada a uma mudança
nas próprias constituencys. Além dos bens agrícolas, os distritos passaram a
produzir bens manufaturados. Essa mudança na cadeia econômica promoveu uma
heterogeneização na base de suporte do Partido Conservador, que também passou
a lutar pela abertura econômica e pela internacionalização.
Logo, os interesses
econômicos da base eleitoral de uma parcela do partido teriam prevalecido sobre
a sua ideologia primária. Em outras palavras, os fatores determinantes da
indisciplina partidária seriam de ordem local, bem como econômica (os lobbies),
elementos que passaram a ser mais importantes para a sobrevivência dos
parlamentares envolvidos do que a ideologia partidária.
Os acadêmicos que relacionam o federalismo à política externa afirmam
que os parlamentares de diferentes regiões possuem interesses distintos não só
em questões internas, mas também em temas internacionais. Assim, cada ente
federativo teria suas particularidades a partir dos seus vínculos com o exterior.
Porém, há os que afirmam que, independentemente dos interesses locais, os
congressistas seguiriam fiéis aos seus princípios político-partidários. Oliveira
chama atenção para o seguinte:
As especificidades sub-regionais podem ser, do ponto de vista substantivo,
determinadas por qualquer arena das relações internacionais, tais como
comércio, defesa, segurança, meio-ambiente e assim sucessivamente. A título
de exemplo, os estados podem ter interesses distintos na área tributária,
a depender se são estados exportadores ou não, em uma legislação como a
Lei Kandir sobre isenção de impostos para os exportadores. No campo da
segurança sub-regional, as realidades dos estados amazônicos e do Centro-
Oeste tendem a ser distintas das dos demais por conta de questões de
fronteira (migração, tráfico de ilícitos, segurança pública e etc). No campo do
comércio internacional pode-se dizer que os estados do norte do país tendem
a ter vínculos comerciais distintos das demais unidades da federação com
os países da região andina, por razões locacionais e logísticas. Do mesmo
modo, os estados do Sul podem manter vínculos comerciais mais intensos
com os países do cone sul, pelas mesmas razões supra-citadas. Além das
questões locacionais e logísticas, os estados diferenciam-se em relação a suas
matrizes produtivas o que reforçaria comportamentos diferenciados dos seus
legisladores (OLIVEIRA, 2013, p. 36).
236 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Das várias contribuições do trabalho de Amâncio Oliveira (2013), duas
merecem destaque. A primeira é o fato de ter mostrado o elevado peso da orientação
partidária no comportamento legislativo em política externa. E, segunda, os
resultados também mostraram que o federalismo, em algumas circunstâncias e
para certos casos, complementa a explicação baseada na disciplina partidária.
Esses achados aproximam a dinâmica legislativa em política externa da política
doméstica, como também incorpora novos conceitos e teorias para além da área
das relações internacionais para ajudar a entendê-la.
Dados qualitativos
O método da análise de conteúdo consiste no tratamento quantitativo para
dados qualitativos. A partir da classificação de uma quantidade considerável
de unidades textuais (palavras, expressões, frases), compartimentamo-las em
categorias de acordo com o seu significado (BARDIN, 2006). Posteriormente, as
relações são quantificadas, e, a partir disso, são produzidas inferências válidas para
o texto inicial. A ideia é que a medida da presença de uma determinada categoria
espelhe a relevância conferida a ela no texto em geral. A seguir, é explicada a
amostra e as categorias analíticas, como também, discute-se preliminarmente os
resultados das análises de correspondência.
Corpus da pesquisa, categorias e análise descritiva dos dados
A pesquisa contou com a utilização do software QDA Miner versão 4.1.23
para a elaboração do corpus da pesquisa. Esse corpus contém 112 discursos que
foram extraídos da matriz construída no SPSS para a Câmara dos Deputados e
para o Senado Federal durante os anos de 1988 e 2014. Foram analisados os textos
produzidos pelos parlamentares nos momentos em que eles atuaram durante
a tramitação dos atos internacionais dentro do universo amostral. Desse total
de 112 discursos, emendas, pareceres contrários, 81 (72,3%) foram proferidos
por deputados federais e 31 (27,7%) por senadores. O objetivo dessa análise é
entender a razão das intervenções, os pontos de vista e as diferenças ideológicas
que possam surgir, também, no debate da política externa.
237Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Com isso, não se está falando sobre um ativismo parlamentar na matéria,
mas se quer explicar por que houve divergências entre os membros do Congresso
Nacional brasileiro. O intuito dessa subseção da pesquisa é averiguar o impacto da
variável ideologia, como também o impacto da dicotomia governo versus oposição
e dos interesses federativos. Não à toa, foi realizada uma discussão teórica prévia
sobre esses elementos. Com o auxílio da saliency theory, elaborou-se um quadro
com os domínios que foram utilizados para a análise dos textos coletados. Assim,
tem-se 8 domínios que são: 1) Relações Exteriores
5
; 2) Liberdade e Democracia;
3) Sistema Político; 4) Economia; 5) Bem-Estar e Qualidade de Vida; 6) Estrutura
da Sociedade; 7) Questão Indígena e Segurança Amazônica; e 8) Tramitação dos
Atos Internacionais e Fiscalização do Congresso.
Vários partidos, durante os 26 anos que a pesquisa cobre, se posicionaram
sobre os temas da política externa, nos discursos em plenário, através de emendas
e pareceres contrários. Entretanto, vale o destaque para os considerados pela
literatura especializada como os quatro grandes partidos e que mais participaram
dos debates: PT (25%), PSDB (17%), PMDB (11,6%) e PFL-DEM (11,6%). Além
disso, essa participação de 65,2% dos partidos supracitados pode ser explicada pelo
fato de eles terem feito parte diretamente dos governos eleitos para o Executivo
federal no período que abrange a análise e, como já discutido, a variável governo
x oposição é fundamental para que os membros das bancadas no parlamento se
posicionem a favor ou contrários às políticas.
Esse também é o momento para esclarecer alguns aspectos metodológicos.
Na mesma amostra (112 casos), que pode ser vista no Gráfico 1 em porcentagens:
1) há casos de missing (sem informação — 5,4%), isto é, se teve acesso ao material
textual, mas não foi possível identificar o seu autor e, portanto, o partido/ideologia
do deputado/senador; e 2) há o material dos parlamentares “sem partido”, que
são três — os deputados Fernando Gabeira
6
, Babá
7
e Luciana Genro
8
.
5 Essa dimensão subdivide-se em: 1) imagem do país no cenário internacional; 2) integração latino-americana;
3) Estados Unidos; 4) Paraguai; 5) África; 6) Cuba; e 7) Oriente Médio.
6 Que em discordância com o governo Lula, pede a sua saída do PT em outubro de 2003, e fica temporariamente
sem partido.
7 Que foi expulso do PT em 2003 e é um dos fundadores do PSOL.
8 Também expulsa do PT em 2003 e, também, uma das fundadoras do PSOL.
238 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 1. Porcentagem dos partidos que se manifestaram na discussão
na Câmara dos Deputados e no Senado Federal
25,00%
17,00%
11,60%
11,60%
7,10%
5,40%
5,40%
2,70%
2,70%
2,70%
1,80%
1,80%
0,90%
0,90%
0,90%
0,90%
0,90%
0,90%
0,00%5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00%
PT
PSDB
PMDB
PFL/DEM
PSB
SEM INFORMAÇÃO
PPS
PSOL
SEM PARTIDO
PPR
PDT
PTB
PPB
PCdoB
PSC
PV
PHS
PDC
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Outra nota metodológica diz respeito à categorização dos partidos quanto
ao seu pertencimento ideológico. Sabe-se das críticas em alocar as agremiações
partidárias dentro do espectro ideológico, entretanto, seguindo Yan Carreirão,
classifica-se os partidos da seguinte maneira:
Com base [...] nas classificações formuladas nos estudos de Kinzo (1990),
Novaes (1994), Figueiredo e Limongi (1999), Fernandes (1995) e Rodrigues
(2002), tomo como definição operacional inicial a seguinte classificação dos
partidos no Brasil, no eixo direita-esquerda:
Direita: PP (PPB; PPR; PDS); PFL; PRN; PDC; PL; PTB; PSC; PSP; PRP; PSL;
PSD e PRONA. Centro: PMDB e PSDB. Esquerda: PT; PDT; PPS; PCdoB; PSB;
PV; PSTU; PCO e PMN (CARREIRÃO, 2006, p. 143).
Porém, como visto no Gráfico 1, algumas legendas aparecem no banco de dados,
mas não na classificação de Carreirão (2006), são elas: o DEM — sucessor do PFL
e, por isso, o classificamos como de direita; o PSOL e o PHS, a respeito dos quais
usamos na classificação as suas próprias autodefinições encontradas nos seus sites
institucionais — assim, o PSOL está no grupo da esquerda, e o PHS no de centro.
No Gráfico 2, vê-se a porcentagem dos textos já classificados a partir do espectro
ideológico dos parlamentares. Excetuando os casos em que não tivemos orientação
239Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
sobre o seu autor (6), quase metade dos textos são de partidos de esquerda (46,2%),
seguidos do centro (31,2%), direita (19,8%) e os sem partido (2,8%).
Gráfico 2. Porcentagem de textos caracterizados pelo espectro
ideológico dos parlamentares
46,20%
31,20%
19,80%
2,80%
ESQUERDA CENTRO DIREITASEM PARTIDO
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Análise de correspondência: achados
Nesta seção, tem-se como propósito básico analisar a atuação parlamentar
focando na ideologia, no governo versus oposição e nos interesses federativos das
bases eleitorais. Discute-se os resultados das análises de correspondência
9
executadas
a partir dos domínios definidos pela saliency theory e sua relação com a ideologia
dos partidos políticos. Espera-se que as agremiações localizadas em posições
dististas no continuum esquerda-direita possuam, também, posicionamentos
diferentes quanto aos temas abordados no seus discursos. Isto é, que privilegiem
algumas questões/pontos de vista em detrimento de outros.
Para ler os gráficos a seguir, o leitor deverá prestar atenção, inicialmente, nas
categorias: direita, centro, esquerda e sem partido. Após isso, o leitor pode identificar
em qual quadrante os assuntos se localizam. E, posteriormente, a proximidade dos
assuntos tratados com as categorias. Categorias e temas em um mesmo quadrante
indicam que o tema faz parte do discurso das categorias verificadas. O objetivo da
análise de correspondência é medir o grau de associacão de variáveis dispostas de
9 Segundo Luiz Augusto Campos (2014, p. 389), “A Análise de Correspondências Simples (ACS) é um recurso
para expor em um mapa bidimensional as coocorrências relativas entre as classes de duas variáveis categóricas.
A partir de uma tabela de contingência simples, em que duas variáveis são cruzadas, a ACS produz uma ilustração
cartográfica das relações existentes entre todas as categorias incluídas. As categorias que mais coocorrem em
termos relativos tendem a ser representadas mais próximas e, analogamente, as categorias com menor grau de
coocorrência são representadas com uma distância maior entre si. Para definir a magnitude dessas distâncias
relativas, a ACS considera as distâncias existentes entre os marginais observados na métrica do qui-quadrado”.
240 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
modo gráfico. Assim, quanto mais um tema estiver próximo dos pontos relativos
à esqueda, centro, direita ou sem partido, mais eles estarão relacionados.
O Gráfico 3 demonstra o resultado da análise de correspondência para o
domínio das relações exteriores, especialmente no tocante à imagem do país
internacionalmente. O embate nesse tema girou em torno do envio de tropas
brasileiras para uma missão de paz no Haiti. Os parlamentares da direita, centro
e sem partido eram contrários ao envio, por isso, estão mais próximos dos temas
ligados às Forças Armadas, ao Conselho de Segurança da ONU (CSNU) e às
menções negativas sobre a missão de paz. Por outro lado, os partidos de esquerda,
encabeçados pelo governo, eram a favor do envio e argumentavam que participar
da missão de paz (menção positiva) possibilitaria ganhar capital político e maior
liderança internacional frente à ONU. Além disso, os parlamentares de esquerda
são mais propensos a focarem suas posições contra a subserviência brasileira
frente aos interesses estrangeiros e ao imperialismo.
Gráfico 3. Domínio das Relações Exteriores (Imagem do país no cenário internacional)
10
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas elaborado em 2015.
10 A análise de correspondência é uma técnica exploratória criada para examinar tabelas de contingência de
dupla e múltipla entradas, por meio de algumas medidas de correspondência entre linhas e colunas. Os outputs
fornecidos possibilitam entender a estrutura de relações entre as variáveis categóricas das tabelas. As tabelas mais
comuns são as de frequências de dupla entrada, onde se tem um caso de análise de correspondência simples.
Numa análise de correspondência simples, a tabela de frequências é padronizada (BOUROCHE; SAPORTA, 1982;
PEREIRA, 2004), por isso os eixos x e y passam simplesmente a serem denominados de eixo 1 e eixo 2. Por isso,
nesse artigo, omitiu-se os nomes das coordenadas x e y. Lembrando também que, em alguns casos, a relação
é unidimensional, como na análise da dimensão “Relações Exteriores — Paraguai”.
241Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
No domínio das Relações Exteriores — Integração Latino-Americana —
Gráfico 4, é possível apreender que: os membros da direita interessam-se pelo
Mercosul, principalmente no que tange aos seus interesses liberalizantes; os do
centro, no ato da ratificação da entrada da Venezuela no Mercosul, temiam que o
presidente Hugo Chavéz inviabilizasse a união aduaneira do bloco, daí a menção
negativa a ele; e os de esquerda, mais uma vez liderados pelo governo do PT,
enfatizavam que os critérios utilizados pela oposição eram ideológicos, pois Hugo
Chavéz não era a Venezuela e que o ângulo de observação deveria ser o do país
como um parceiro estratégico. Além disso, eles também reforçavam a ideia de
independência latino-americana com o aprofundamento do processo regional.
Gráfico 4. Domínios das Relações Exteriores (Integração Latino-Americana)
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
No Gráfico 5, avalia-se o posicionamento dos parlamentares aos temas ligados
aos Estados Unidos da América. Enquanto os partidos de esquerda, centro e direita
fazem menções positivas ao país, aqueles que estavam sem partido focam nos
temas da intervenção norte-americana na América Latina, bem como na pressão
que os negociadores americanos exercem sobre os tomadores de decisão do Brasil.
Essa constatação pode ser explicada, pois, como já foi dito, esses indivíduos que
fazem parte dos “sem partido” foram aqueles que saíram ou foram expulsos do
242 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Partido dos Trabalhadores em 2003, e que se encontravam mais à esquerda do
que a própria agremiação petista.
Gráfico 5. Domínio Relações Exteriores — Estados Unidos da América
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
No caso dos Gráficos 6 e 7, fica visível que a política externa também serve
de caminho para a oposição se manifestar. Como só havia dois partidos —
ambos categorizados neste trabalho como centro — resolvemos desagrupá-los da
categoria ideologia e mostrá-los separadamente. No Gráfico 6, vê-se o caso que
envolve a mudança da tarifa cobrada pela Usina de Itaipu. O PSDB — partido de
oposição ao governo do PT — e uma ala do PMDB que, apesar de ser governista,
era composto por parlamentares que faziam oposição sistemática, focam no fato
de o governo ceder aos interesses paraguaios por razões ideológicas, deixando,
portanto, que a tarifa cobrada por Itaipu beneficiasse o governo de Fernando Lugo
em detrimento do povo brasileiro, como se vê nos discursos. Já no Gráfico 7, os
mesmos partidos (PSDB e PMDB) discutem sobre a possibilidade de validação
automática dos diplomas de medicina conseguidos por estudantes brasileiros em
Cuba. O PSDB foca no fato de os currículos entre os cursos no Brasil e em Cuba
serem diferentes e, o PMDB, na questão da indicação política dos discentes, o
que resultaria em perda de qualidade dos alunos selecionados.
243Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 6. Domínio Relações Exteriores — Paraguai
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Gráfico 7. Domínio das Relações Exteriores — Cuba
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
244 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
No Gráfico 8, observa-se como o posicionamento ideológico interfere sobre
o que é dito pelos parlamentares. Nele, estão os resultados para a África e o
Oriente Médio. No caso da direita, os parlamentares focam na relação Brasil-
África, no que tange aos ganhos comerciais desse vínculo; o centro, na figura do
deputado Gilberto Mestrinho do PMDB/AM, diz que os negros não precisam da
nossa cultura e, por isso, que a África é, claramente, atrasada; por fim, os partido
de esquerda, em relação à África, apontam para os problemas enfrentados pela
África do Sul durante o apartheid, exaltam a cultura africana, a partir da bancada
dos deputados negros, especificamente a do PT. Já no caso do Oriente Médio,
o parlamentar, que é do PCdoB, condena o expansionismo israelense na região
e propõe uma tentativa de conciliação — postura esperada, pois a crítica a Israel,
por tal sigla, é bastante conhecida.
Gráfico 8. Domínio dzas Relações Exteriores — África e Oriente Médio
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
No segundo domínio, o da Globalização (Gráfico 9), a direita mostra-se
contrária à imigração, enquanto que os partidos de esquerda, além de se mostrarem
contrários a essa postura específica da direita, também possuem um leque maior de
questões em seu discurso. Para eles, a globalização é a causa dos conflitos regionais,
das assimetrias econômicas no mundo e dos crimes, tal como o terrorismo. Além
245Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
disso, acreditam que esse cenário pode ser alterado ao se incorporar na agenda
a reforma dos organismos multilaterais, tornado-os, assim, mais democráticos.
Gráfico 9. Domínio da Globalização
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
No terceiro domínio, foca-se nos aspectos da Liberdade e Democracia
(Gráfico 10). Tanto a direita, como o centro, quanto a esquerda atentam para os
aspectos constitucionais dos atos internacionais, no intuito de saber se eles terão
o respaldo da Carta Magna. Porém, há algumas diferenças importantes: a direita
privilegia as questões jurídicas, tais como, os princípios da incerteza jurídica e da
inconstitucionalidade; a esquerda, a busca por mais democracia e direitos humanos
no sistema internacional; e, os sem partido, baseiam seus discursos focando nas
iniquidades, restrições e supressões dos direitos humanos e da democracia em
outras nações.
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Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 10. Domínio da Liberdade e Democracia
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
No Gráfico 11, estão os resultados para a análise de correspondência para
aquilo que é caracterizado como Sistema Político. Nele, fica clara a dimensão
governo versus oposição. Os membros da direita fazem oposição aberta ao governo
do petista Lula; os centristas, repercutem os desequilíbrios entre os poderes
Executivo e Legislativo em política externa, além de fazerem menções negativas
ao governo da presidente Dilma; a esquerda, por sua vez, faz oposição ao governo
do ex-presidente Fernado Henrique Cardoso, referindo-se, principalmente, às
privatizações ocorridas durante o seu mandato, e repercutem, positivamente, o
governo do presidente Lula; por fim, os sem partido, recém saídos do PT, passam
também a fazer oposição ao governo Lula.
247Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 11. Domínio do Sistema Político
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Na dimensão Economia, como pode ser visto no Gráfico 12, os princípios
ideológicos voltam a ser evidentes. A direita procura demarcar território buscando
investimentos para os empresários nacionais, bem como se posicionando a favor
das negociações da OMC na Rodada Doha, criticando a criação de novos cargos
administrativos e buscando o contingenciamento das despesas públicas. Os
congressistas de centro assemelham-se aos de direita, mas enfatizam, ainda com
menções positivas, a economia de mercado e a livre-concorrência, e criticam o
sobrecarregamento das despesas públicas. Já a agenda das esquerdas é outra.
Fala-se em esquerdas porque a parlamentar sem partido, nesse caso, é Luciana
Genro, que posteriormente ajudaria a fundar o PSOL. No caso dela, o discurso vai
no sentido de criticar o neoliberalismo, apontando para as suas contradições. Já a
outra parte da esquerda, além de tratar da livre circulação de capitais como uma
condição contemporânea, não deixa de criticar o livre-comércio, principalmente
aquele realizado por alguns países desenvolvidos que criam barreiras comerciais
internas. Além de fazer menções negativas à especulação monetária e positivas
à exportação de bens.
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Gráfico 12. Domínio da Economia
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Outro domínio é o do Bem-Estar e Qualidade de Vida, como pode ser
visualizado no Gráfico 13. Nele, há uma disputa entre a direita e a esquerda.
No material analisado, a direita passa a associar de forma negativa a pobreza
a alguns espaços, como as periferias e as favelas; ao passo que a esquerda está
preocupada com questões como a discriminação, o empoderamento feminino e
a degradação ambiental.
249Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 13. Domínio do Bem-Estar e Qualidade de Vida
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Inicialmente, no Gráfico 14, percebe-se uma preocupação comum entre direita,
centro e esquerda no tema das ambivalências entre as normas geradas no plano
internacional e aquelas domésticas. Posteriormente, há ainda uma similaridade
entre a direita e o centro no que se refere à preocupação com a segurança pública,
evocando a possibilidade de utilização das Forças Armadas; já a esquerda mostra-
se inclinada a debater a soberania nacional entendida como, por exemplo, o
não alinhamento com os Estados Unidos ou o desenvolvimento autônomo de
tecnologias; já o congressista sem partido (Fernando Gabeira) refere-se ao interesse
nacional como a preocupação com o deslocamento de tropas brasileiras, sem a
permissão do Congresso Nacional, episódio que aconteceu durante os debates do
envio de contingentes para a missão de paz no Haiti.
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Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 14. Domínio da Estrutura da Sociedade
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
A penúltima dimensão, essa não sendo original da saliency theory, é a da
Questão Indígena e Segurança Amazônica. No Gráfico 15, a esquerda aproxima-se
do debate sobre a Amazônia e sua segurança, o que significa soberania nacional
e uma política para os povos indígenas (Estatuto do Índio e a demarcação de
terras), respectivamente; o centro utiliza no seu discurso palavras negativas a
se referir ao tema indígena, por exemplo, o senador Lúdio Coelho do PSDB/MS
— agropecuarista/interesse federativo/Região Centro-Oeste — usa as seguintes
frases: 1) “O índio está sendo tratado como um ser superior, ninguém mexe com
índio”; e 2) “Estamos querendo criar nações indígenas para, amanhã ou depois,
queiram intervir em nosso País em defesa de nações”; por outro lado, impressiona
que a direita, que normalmente não luta pela defesa das minorias, curiosamente,
faz uma série de menções positivas ao papel do índio na sociedade brasileira,
como: os índios são brasileiros, respeito aos direitos indígenas, reformulação da
FUNAI, demarcação de terras e que, fortalecendo as comunidades indígenas, as
chances de intervenção estrangeira via Amazônia são menores. No entanto, o
que explicaria esse posicionamento dos membros da direita?
251Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 15. Domínio da Questão Indígena e Segurança Amazônica
pela Ideologia Partidária
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
A resposta para a pergunta acima encontra-se no Gráfico 16. Nele, trabalha-
se com as variáveis ideologia e região geográfica de forma conjunta. O resultado
é que os membros da direita que se colocaram a favor da minoria indígena são
oriundos dos estados da federação da região Norte, como é o caso do senador
Romero Jucá, na época do PFL/RR. Ou seja, como discutido nos capítulos teóricos,
o pertencimento local ou as relações com as bases de apoio nos estados também
ajudam a explicar os comportamentos dos parlamentares.
252 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 16. Domínio da Questão Indígena e Segurança Amazônica
pela Ideologia Partidária Cruzada com a Região do Parlamentar
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Por último, tem-se a dimensão da Tramitação dos Atos Internacionais e
Fiscalização do Congresso, também não presente na saliency theory. No Gráfico
17, frisa-se a preocupação de todos os parlamentares, independentemente da
coloração partidária (ideológica) com as questões regimentais e a fiscalização
do Congresso nos projetos relacionados à política externa. Isto é, o cuidado dos
congressistas em manter suas prerrogativas constitucionais de analisar matérias
dessa ordem.
253Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Gráfico 17. Domínio da Tramitação dos Atos Internacionais
e Fiscalização do Congresso
Fonte: banco de dados próprio a partir dos discursos e pareceres dos congressistas, elaborado em 2015.
Considerações finais
A partir dos achados do paper, não se pretende fazer generalizações, até porque
o arsenal metodológico empregado não nos permite. O objetivo foi decifrar, por
meio dos casos em que houve atuação de parlamentares, aquilo que os moviam.
Para além de ser assertivo ao dizer a uma dada arena que a explicação se baseia
em uma das três variáveis aqui tratadas, pleiteia-se, na verdade, a importância
delas de forma geral no estudo de análise de política externa no Legislativo.
Assim, por meio das análises de correspondência, fica claro que partidos
de origens ideológicas distintas adotam discursos diferentes. Ou seja, há um
embate ideológico travado em matérias de política externa, resultado esperado,
haja vista que foram matérias alvo de ação congressual, seja via discussão
em plenário ou através da elaboração de pareceres contrários à aprovação dos
projetos legislativos (ato internacional). Porém, apenas a variável ideologia não
explica toda a complexidade do trabalho legislativo (como é possível perceber no
254 Ideologia explica tudo? O embate no legislativo brasileiro em matérias de política externa
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
Quadro 2) em política externa. Apesar de grande parte do embate ficar em torno
dessa dimensão (esquerda-direita), a clivagem governo versus oposição e os
interesses federativos acabam complementando a explanação. Com exceção do
tema da fiscalização congressual dos atos internacionais, que é uma preocupação
que transcende qualquer uma das questões anteriores.
Quadro 2. Síntese do debate por domínio
Domínio Ideologia
Governo versus
Oposição
Interesses
Federativos
Relações Exteriores — Imagem do país X X
Relações Exteriores — Integração Latino-Americana X X
Relações Exteriores — Estados Unidos X
Relações Exteriores — Paraguai X X
Relações Exteriores — Cuba X X
Relações Exteriores — África e Oriente Médio X
Globalização X
Liberdade e Democracia X
Sistema Político X
Economia X
Bem-Estar e Qualidade de Vida X
Estrutura da Sociedade X
Questão Indígena e Segurança Amazônica X X
Tramitação dos Atos Internacionais
Fonte: elaboração do autor.
No caso da disputa governo versus oposição, conclui-se que os membros da
oposição tendem a se colocar contra o governo mais para sinalizar a sua postura
contrária a ele, e, por isso, votam contra uma proposta legislativa em particular.
Sempre aparecem as menções contrárias a uma política específica ou a algum
mandatário do Executivo (como fica bastante evidente no Gráfico 11). E, como os
casos analisados são extremos, visto que provocaram tensão dentro do Parlamento,
é previsível a associação entre a variável governo versus oposição e ideologia
(como, por exemplo, no Gráfico 3).
Em relação à ideologia partidária, vê-se que ela é responsável por produzir
demandas ético-morais a respeito da ação humana. Ou, como informa o neo-
institucionalismo sociológico, nem sempre o comportamento é guiado por cálculos
estratégicos utilitários; em algumas situações, há modelos morais, cognitivos,
255Rodrigo Santiago
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 223-258
identidades e protocolos prévios que são utilizados. Logo, os congressistas
demonstram o position taking, isto é, o comportamento mais ideológico, na medida
em que indicam seu posicionamento perante temas específicos. Nesse ponto, as
discordâncias giram em torno de ideias, e não de uma proposta, matéria ou chefe
do Executivo (vide o Gráfico 12, por exemplo).
Por fim, os interesses federativos também podem modificar as crenças prévias
dos legisladores, bem como deixar a relação governo x oposição e a ideologia
em segundo plano (Gráficos 15 e 16). Assim, a hipótese de que essas variáveis
ajudam a explicar o trâmite dos atos internacionais se comprova. É claro que cada
caso é singular e, logo, o peso de cada um dos elementos irá variar — por isso,
o pesquisador precisa estar atento as especificidades de cada tema abordado no
parlamento.
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Instruções editoriais para os autores 259
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IBRI, 2003.
Instruções editoriais para os autores 261
10.3 Para capítulos de livros:
Elementos: AUTOR(es) do capítulo. Título do capítulo. In: AUTOR(es) da obra
(Org., Ed., Coord.)Título da obra. Edição (a partir da 2ª edição). Cidade:
Editora, ano de publicação. Capítulo consultado e paginação da parte.
SNI DAL, Duncan. The politics scope: endogenous actors, heterogeneity and
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domains. London: Sage Publication, 1995. Cap. 2, p. 47-70.
10.4 Trabalhos apresentados em Eventos
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numeração do evento (se houver), ano e local (cidade) de realização, título
do documento (anais, atas, tópico temático), local, editora, data de publicação
e página inicial e final da parte referenciada.
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ISSN 1413-0904
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