Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
111Natali Hoff; Ramon Blanco
Do Estado Falido à Cidade Falida:
análise sobre a noção de falência como
suporte à governamentalidade global
From the failed state to the failed city:
analysis of the notion of failure as a
support for global governmentality
DOI: 10.21530/ci.v15n2.2020.981
Natali Hoff
1
Ramon Blanco
2
Resumo
Este artigo analisa criticamente como o conceito de cidade falida pode dar sustentação à
operacionalização de uma governamentalidade global no âmbito das cidades, por meio da
consolidação de quadros epistêmicos que entendem as cidades como espaço de intervenção
por parte de agentes internacionais. Por conseguinte, o artigo investiga como as noções
de fragilidade e falência, quando aplicadas às análises sobre as cidades, acabam por dar
sustentação à práticas internacionais que busquem moldar o comportamento das cidades e
1 Natali Hoff, Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é Professora de Relações
Internacionais e de Ciência Política no Centro Universitário Internacional (Uninter, Brasil), e atualmente é
Doutoranda em Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do
Paraná (PPGCP-UFPR). É integrante do Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) da Unila e do Núcleo de Pesquisa
em Relações Internacionais (NEPRI) da UFPR. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9387995873589341;
Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2017-4940; email: natali.hoff@gmail.com.
2 Ramon Blanco, Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra, é Professor Adjunto no curso
de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Na
UNILA, coordena o Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) e a Cátedra de Estudos para a Paz (CEPAZ). É, também,
Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da mesma Universidade
(PPGRI-UNILA) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná
(PPGCP-UFPR). O autor agradece o auxílio financeiro proporcionado às suas pesquisas pela Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA sob os seguintes instrumentos financeiros: PRPPG No 109/2017, PRPPG
No 58/2018, PRPPG No 110/2018, PRPPG No 149/2018, PRPPG No 154/2018, PRPPG No 25/2019 e PRPPG
No 80/2019. É autor de Peace as Government: The Will to Normalize Timor-Leste. London: Lexington Books,
2020. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9387995873589341; ORCID: orcid.org/0000-0003-0330-6235.
E-mail: ramon.blanco@unila.edu.br.
Artigo submetido em 02/08/2019 e aprovado em 30/03/2020.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
112 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
de suas populações. Para isso os conceitos de “fracasso” e “fragilidade” são problematizados
e sujeitos a reinterpretações, de modo que as relações entre a produção do conhecimento e o
exercício do poder possam ser visualizadas. Com o objetivo de realizar essa análise, o artigo
está dividido em duas seções. A primeira apresenta a noção de governamentalidade global e
a sua importância para a compreensão da política internacional. A segunda seção, por sua
vez, analisa a ascensão da conceitualização de cidades falidas na segurança internacional,
observando como essa conceitualização pode possibilitar que as cidades se tornem espaços
de ingerência da governamentalidade global, por meio do governo como conduta da conduta.
Palavras-Chave: Cidades Falidas; Estados Falidos; Governamentalidade Global.
Abstract
This article critically analyzes how the concept of a failed city can support the operationalization
of global governmentality within cities, through the consolidation of epistemic frameworks
that understand cities as a space for intervention by international agents. Therefore, the
article investigates how the notions of fragility and failure, when applied to analyze cities,
end up supporting international practices that seek to shape the behavior of cities and their
populations. For that, the concepts of “failure” and “fragility” are problematized and subject
to reinterpretations, so that the relationships between the production of knowledge and the
exercise of power can be visualized. To carry out this analysis, the article is divided into two
sections. The first presents the notion of global governmentality and its importance for the
understanding of international politics. The second section, in turn, analyzes the rise of the
conceptualization of failed cities in international security, observing how this concept can
enable cities to become spaces of interference by global governmentality, through government
as the conduct of conduct.
Keywords: Failed Cities; Failed States; Global Governmentality.
Introdução
O fenômeno social da violência no âmbito das cidades constitui-se, atualmente,
em uma preocupação que não está limitada às reflexões sobre as interações
e dinâmicas internas dos Estados. Pelo contrário, cada vez mais a violência
nas cidades vem sendo encarada como um fenômeno de caráter internacional
(Norton, 2003; Koonings e Krujit, 2007; Savage e Mugaah, 2012; Graham 2016;
Nogueira, 2017). Elementos como o ritmo acelerado e, muitas vezes, desregulado
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
113Natali Hoff; Ramon Blanco
do crescimento das cidades ao redor do globo
3
, e sua frequente associação com
o aumento da desigualdade econômica e da violência nesses espaços
4
, são cada
vez mais compreendidos como questões que não se encerram nas fronteiras
nacionais dos Estados e que, portanto, devem ser analisadas desde perspectivas
que considerem a segurança e estabilidade internacionais. Essa tendência analítica
é fortalecida pela consolidação da percepção de que existem cidades que podem
ser classificadas como cronicamente violentas — tais como Abidjan, Baghdad,
Rio de Janeiro, Guatemala, Mogadishu, Grozny (Savage; Muggat, 2012). Sob este
entendimento, essas cidades supostamente afetam as instituições domésticas dos
Estados nos quais estão inseridas e, em consequência, terminam por exportar
insegurança e ameaças à comunidade internacional. Para esse tipo de interpretação,
a violência nas cidades está, frequentemente, relacionada a uma “nova forma de
conflito”, que se desenvolve no perímetro urbano e envolve a disputa pelo poder
entre autoridades do Estado e atores violentos não-estatais (Graham, 2009, 12).
Nesse contexto analítico sobre as cidades e os seus impactos para a segurança
internacional, o conceito de cidade falida emerge como nova categoria social,
que buscaria unir as temáticas voltados ao desenvolvimento das cidades com a
preocupação com a segurança no espaço urbano. Por conseguinte, tal conceito
acaba por produzir um novo quadro epistêmico de sustentação às técnicas de
governo das cidades. De modo geral, pode-se afirmar, que esse conceito se destina
a explicar as cidades, nas quais a dificuldade das autoridades em manter o
monopólio do uso legítimo da força leva ao rompimento do contrato social entre
Estado e população e, em casos extremos, conduz ao colapso total dos sistemas
de governança e dos aparatos de segurança municipais (Muggah, 2012). Esse
enquadramento, inevitavelmente, acaba por possibilitar a ascensão de novas formas
de ingerência política sobre as cidades e sobre suas populações, direcionadas a
gerenciar, controlar e modificar os processos sociais inerentes a elas.
3 De acordo com o Relatório “World Urbanization Prospects”, publicado em 2018 pelo Departamento dos
Assuntos Econômicos e Sociais (DESA), a população urbana mundial tem crescido rapidamente, passando de
aproximadamente 750 milhões em 1950 — 30% da população mundial — para 4,22 bilhões em 2018 — 55,3%
da população mundial. O relatório ainda traz uma projeção na qual aponta que a população urbana no mundo
deve chegar à 6,8 bilhões em 2050, isto é, a 60% da população mundial (DESA, 2019).
4 O relatório “Urban Violence and Humanitarian Challenges”, elaborado conjuntamente pelo Comitê Internacional
da Cruz Vermelha (CICV) e pelo Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (EUISS) apresenta como
causas para a violência urbana a ampla negligência e marginalização, por parte dos Estados, para com as
populações que vivem em assentamentos urbanos ou favelas (Apraxine et al, 2012). De acordo com o relatório,
isso ocorre porque, além desses espaços serem ocupados por grupos economicamente vulneráveis, a ausência
do Estado torna possível a ocorrência diária de violência armada envolvendo confronto entre gangues, facções
criminosas e/ou narcotraficantes com agentes da lei para o controle do território (Idem).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
114 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
Tendo isso em conta, esse artigo analisa criticamente como a consolidação
do conceito de cidades falidas nos estudos de Segurança Internacional —
enquanto uma tentativa de entender e explicar os desafios intrínsecos à crescente
violência observada nas cidades ao redor do globo — pode acabar por permitir a
possibilidade de operacionalização de uma governamentalidade global no âmbito
urbano. A noção de governamentalidade, de modo breve, diz respeito ao conjunto
constituído por instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e táticas
que permitem exercer a atividade do governo (Foucault, 2010, 98-110). Dessa
maneira, o estudo sobre a governamentalidade explora o governo — entendido
em termos foucaultianos não como algo assente nas estruturas institucionais, mas
sim como ‘a conduta da conduta’
5
— para além de seus aspectos institucionais, e
investiga como as dimensões discursivas do poder se manifestam nos imaginários
e nas racionalidades políticas que orientam a práxis social (Zanotti, 2013). Assim,
a governamentalidade permite que se estude como se desenham as conexões
entre os instrumentos de conhecimento e as práticas vigentes, bem como as
consequências não intencionais desses esforços. A noção de governamentalidade
global, assim, possibilita desnaturalizar essas práticas a partir da leitura crítica
sobre os regimes de pensamento que as conformam. Isso é possível porque os
estudos sobre a conformação de uma governamentalidade focam a identificação
das ‘mentalidades’ de governo presentes nas diferentes formas de se governar
(Neumann; Sending, 2010).
Com objetivo de empreender a análise, esse artigo está dividido em duas seções.
A primeira seção delineia o conceito de governamentalidade desenvolvido por
Michel Foucault e as potencialidades da sua aplicação para compreender as práticas
políticas internacionais. A segunda seção, por sua vez, problematiza o conceito
de cidades falidas, evidenciando como ele constitui-se em quadro discursivo e
normativo que informa e sustenta novas formas de intervenção e de governo das
cidades e das suas populações. Desse modo, é possível uma problematização
mais qualificada sobre como a conceitualização sobre as cidades falidas pode
ser entendida como parte de uma episteme de governo direcionada às cidades,
produzindo-as como um novo espaço de intervenção da governamentalidade
global.
5 Foucault compreende o governo como a ‘conduta da conduta’, uma vez que, para ele, o governo envolve a
tentativa de moldar e conduzir os comportamentos dos indivíduos de acordo com um fim específico (Foucault,
[1977-1978] 2008).
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115Natali Hoff; Ramon Blanco
A governamentalidade e as mentalidades políticas internacionais
Mesmo com um desenvolvimento relativamente tardio na obra foucaultiana,
o conceito de governamentalidade ganhou considerável força como ferramenta
analítica para explorar criticamente técnicas de governo dentro e fora do Estado
(Zanotti, 2013). Uma parte significativa do potencial analítico da noção de
governamentalidade, sobretudo quando se trata da análise das relações internacionais,
reside no fato de que a governamentalidade possibilita problematização mais
profunda e alargada do exercício do poder e de sua racionalização para além do
Estado (Miller e Rose, 2011; Zanotti, 2013). Dessa forma, antes de aprofundar a
discussão sobre a governamentalidade global, é necessário que se apresente a
concepção foucaultiana de poder e como essa concepção contribui para se pensar
as relações internacionais.
Foucault compreende o poder a partir de uma leitura positiva e produtiva
do seu exercício, concedendo enfoque às condutas e aos comportamentos
produzidos pelo ele, sobretudo no que toca à construção de subjetividades.
Esta leitura afasta-se das visões convencionais da teoria política, normalmente
negativas e repressivas, que frequentemente associam o poder às ideias de
“posse” e de “força” (Hayward, 2000). Em contrapartida, a análise foucaultiana
do termo entende que “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito
é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato
ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber e produz discurso”
(Foucault, 1979, 8). De forma mais específica, Foucault entende que o poder
deve ser problematizado como um relacionamento no qual se tenta direcionar ou
mesmo determinar os comportamentos uns dos outros (Idem). Tal entendimento
permite uma compreensão mais adequada, e consequentemente mais acurada, da
realidade internacional pois entende o poder, e sua operacionalização na política
internacional, de um modo mais alargado.
A preocupação a respeito de como se dá o exercício do poder leva ao
desenvolvimento da concepção foucaultiana de tecnologia de poder (Foucault,
1980). Para Foucault, as tecnologias de poder conectam diversos tipos de
conhecimentos, capacidades e métodos de julgamento, direcionando-os ao
cumprimento de fins específicos (Foucault, 1980, 122). É importante destacar que as
tecnologias de poder não são social ou politicamente neutras, uma vez que alteram
profundamente o ordenamento das coisas (Kelly, 2009). Essas tecnologias de poder,
então, operam em uma sociedade tendo em vista a produção de modificações
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116 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
no comportamento dos indivíduos e da população e na disposição das coisas no
espaço social. Uma importante tecnologia de poder, central ao pensamento de
Foucault, é o governo.
6
Para Foucault, a ideia de governo, ao contrário de como
normalmente é entendida, não está somente relacionada à gestão formal do
Estado, ou mesmo, à soberania de um corpo territorial que reclama o monopólio
da força (Dean, 2010). Pelo contrário, Foucault compreende o governo como a
conduta da conduta” (Foucault, [1977-1978] 2008, 257). Assim, o entendimento
de governo foucaultiano explora os dois sentidos da palavra conduta. Dentro
dessa concepção, conduta é, por um lado, entendida a partir do significado do
verbo conduzir, indicando a ideia de guiar ou dirigir. Por outro lado, o termo
também é entendido a partir do substantivo conduta, referindo-se às ações e
aos comportamentos humanos (Foucault, [1977-1978] 2008). Por conseguinte, o
governo como “conduta da conduta” implica em qualquer tentativa deliberada de
moldar os comportamentos dos indivíduos de acordo com conjuntos particulares
de normas e para uma variedade de fins” (Dean, 2010, 18). Ele engloba, portanto,
um número significativo de agentes e fatores que vão muito além da esfera formal
do Estado, envolvendo as relações e interações nas famílias, nas empresas, nas
escolas e em outras instituições sociais (Lemke, 2002).
Assim, uma vez que, para Foucault, não seria possível estudar as tecnologias
do poder sem uma análise das mentalidades que as moldam e as sustentam, o
termo governamentalidade busca, mais precisamente, dar visibilidade, por meio
da “ligação semântica entre as palavras governo e mentalidade”, aos modos
de pensamento e racionalidades envolvidas no exercício do governo (Gordon,
1991, 1). Dentro desse enquadramento teórico, o governo é entendido como uma
tentativa de moldar e conduzir os comportamentos dos indivíduos de acordo
com fins específicos. A governamentalidade, por sua vez, diz respeito àquilo
que pode ser conhecido sobre o governo, ou seja, é a partir dela que se pode
estudar a formação das práticas organizadas de pensamento por meio das quais
se governa e se é governado (Dean, 2010). Foucault define, especificamente, a
governamentalidade como:
[...] um conjunto formado por instituições, procedimentos, análises e
reflexões, cálculos e táticas que permitem o exercício desse poder específico,
6 As outras são a disciplina e a biopolítica. Por conta do propósito deste artigo, o mesmo irá focar-se no governo.
Para um delineamento mais aprofundado da disciplina e biopolítica ver (Foucault ([1976] 2003); Foucault,
([1977-1978] 2007; Foucault ([1978-1979] 2008).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
117Natali Hoff; Ramon Blanco
mas complexo, que tem a população como seu alvo, a economia política
como sua forma de conhecimento e o aparato de segurança como seu
instrumento técnico essencial (Foucault, [1977-1978] 2007, 108).
Desse modo, a noção de governamentalidade é empregada como ferramenta
analítica destinada a estudar as transformações que possibilitaram as modalidades
contemporâneas do governo. Isso ocorre porque a governamentalidade indica
quais são as táticas de governo que, mesmo sendo continuadamente definidas e
redefinidas, são possíveis em uma sociedade. É importante atentar-se ao fato de
que a governamentalidade engloba tanto o exercício do poder formal, como os
processos e práticas de socialização do poder por meio das relações cotidianas
entre os indivíduos e as instituições sociais. Em consequência, a observação da
governamentalidade permite desnaturalizar as formas de se entender e de se
fazer as coisas, seja no âmbito público (Estado) ou privado (sociedade civil).
Nesse sentido, Mitchell Dean (2010, 30) entende que, para se compreender a
governamentalidade, é preciso partir de uma analítica
7
do governo que examine,
não apenas o modo pelo qual as coisas são feitas, como também as formas
de raciocínio envolvidas nas práticas políticas e sociais cotidianas. Em função
disso, percebe-se que a analítica de governo examina, essencialmente, o modo
como os regimes de práticas
8
surgem e se consolidam. (Ibidem, 31). Assim,
quando se fala em regimes de práticas, por um lado, refere-se aos modos de se
fazerem as coisas em uma sociedade e, por outro lado, incluem-se as diferentes
mentalidades vinculadas ao exercício dessas práticas, tornando tais regimes
objeto do conhecimento e sujeitando-os a problematizações. Por conseguinte,
para Dean (2010), há dependência entre os regimes de práticas e a consolidação
de conhecimentos e cálculos específicos sobre o governo. Logo, a compreensão de
uma governamentalidade específica demanda observação atenta a esses regimes
e às relações estabelecidas entre as práticas cotidianas de governo e o tipo de
conhecimento que as sustentam.
Nesse contexto, a ascensão da problematização das relações internacionais
sobre a governamentalidade está relacionada à crescente necessidade de se entender
e de se explicar as diversificadas técnicas internacionais de governança e como
7 Uma “analítica” é um tipo de estudo que está preocupado com as condições específicas a partir das quais os
fenômenos surgem, se consolidam e se modificam (Dean, 2010, 33)
8 Os regimes de práticas são definidos como conjuntos mais ou menos organizados, formados por modos de se
fazer as coisas em uma sociedade. Eles envolvem tanto o exercício formal do poder, quanto o seu exercício
cotidiano entre os agentes e as instituições sociais (Dean, 2010, 23).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
118 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
elas incidem sobre Estados e suas populações (Zanotti, 2013). Isso é possível
porque as análises sobre a governamentalidade englobam a observação sobre
a prática de governar e a racionalidade necessária para que o governo — como
conduta da conduta — torne-se atividade possível na esfera internacional. Assim,
a operacionalização da noção de governamentalidade para a análise da política
internacional permite que ela seja estudada como um domínio essencialmente
social, composto por práticas e racionalidades políticas orientadas a objetivos
específicos (Sending e Neumann; 2006, 678). Dessa maneira, a governamentalidade
acrescenta capacidade analítica à pesquisadora ao iluminar os processos por meio
dos quais normas, valores, conhecimentos e expertises vinculados ao governo
são, primeiramente, socializados e, então, naturalizados entre Estados e entre
populações. Consequentemente, uma compreensão mais alargada da política
internacional perpassaria pela observação das mentalidades, das práticas e dos
mecanismos ordenadores que a compõem e incidem sobre os seus atores.
Para compreender como a governamentalidade é operada na política
internacional, é necessário que se delineie detalhadamente os diversos processos,
procedimentos, relações, conhecimentos e normas identificados com o governo,
observando quando e como eles se transformam em práticas estáveis, replicáveis
e até mesmo institucionalizadas (Sending e Neumann, 2006). A partir disso, é
possível problematizar os conjuntos de racionalizações, teorizações e conhecimentos
técnicos ligados aos meios estabelecidos para moldar e reformular as condutas,
as práticas e as instituições presentes na política internacional (Rose, 2004).
Nesse contexto analítico, Wendy Larner e William Walters (2004) enquadram
a ideia de governamentalidade global
9
, não apenas como um fenômeno do
nosso tempo, mas sobretudo, como a denominação do conjunto de estudos
que problematiza a constituição de uma governança dos espaços localizados
acima, através e além do Estado. A governamentalidade global abarca, então, as
contribuições analíticas preocupadas em dar inteligibilidade ao governo de domínios
que possuem caráter internacional. (Dean, 2010). Portanto, a governamentalidade
global consiste em importante ferramenta analítica, que permite compreender as
técnicas utilizadas para moldar e até mesmo constranger a conduta dos atores
no âmbito internacional. A partir da análise das racionalidades políticas pode-se
9 Destaca-se que a governamentalidade global não é sinônimo de governança global. De modo bastante simples,
a ideia de governança se refere às “atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de
responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que
sejam aceitas e vençam resistências” (Rosenau, 2000, 15). Para uma discussão maior sobre governança global,
ver, por exemplo, (Joseph, 2009; Joseph 2010; Larner &Walters, 2004; Sending & Neumann, 2006; Zanotti, 2013).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
119Natali Hoff; Ramon Blanco
compreender os quadros discursivos responsáveis por delimitar o campo de
atuação possível na arena internacional. Dentro desse enquadramento, para Ole
Jacob Sending e Iver B. Neumann (2006), a governamentalidade pode ajudar a um
entendimento mais alargado acerca do funcionamento da política internacional,
ao iluminar como diferentes racionalidades políticas são definidas por certas
regras, práticas e técnicas, e como tais racionalidades geram orientações de ação
e comportamento de atores específicos.
Dean (2010, 33) propõem uma estrutura analítica que possibilita a
problematização acerca da governamentalidade. Tal estrutura busca iluminar
quem e como se governa nos regimes de práticas estabelecidos e delineando a
forma como esses regimes são constituídos e transformados ao longo do tempo.
Para Dean, o governo deve ser analisado a partir de quatro dimensões que são,
por um lado, relativamente autônomas e, por outro, condicionantes umas das
outras. Essas dimensões são: i) visibilidades/percepções; ii) técnicas/práticas;
iii) conhecimentos; iv) e processos de identificações (Ibidem, 35). A primeira
dimensão diz respeito aos elementos aos quais são dados visibilidade em um
conjunto específico de práticas. Nesse sentido, problematiza-se, por exemplo,
quais são as práticas e os conhecimentos que acabam sendo obscurecidos por
aquilo que é iluminado (Dean, 2010, 41). Para ser mais preciso, a dimensão da
visibilidade indica a necessidade de analisar como quem e o que estão sendo
governados são tornados visíveis (Blanco, 2020, 14). Isso pode incluir, por
exemplo, desenhos arquitetônicos, fluxogramas, mapas, gráficos e estatísticas.
A segunda dimensão refere-se aos aspectos técnicos do governo utilizados para
realizar a modelagem e o direcionamento das condutas. Essa dimensão, então,
foca nas táticas, mecanismos, procedimentos e vocabulários por meios dos quais
a autoridade é constituída (Dean, 2010, 42). A terceira dimensão constitui-se na
episteme do governo” e está relacionada com as formas de conhecimento que
sustentam e informam a atividade de governar. Ela abrange os meios de cálculo,
as teorias e conceitos que sustentam um dado regime de prática (Ibidem, 44). Por
fim, a quarta e última dimensão alude às identidades, coletivas ou individuais, por
meio das quais o governo opera e a que práticas e programas de governo tentam
formar (Ibidem, 43). Essa dimensão abriga os questionamentos sobre qual o tipo
de conduta que se espera moldar e quais os objetivos com essas modificações.
Ramon Blanco adiciona uma quinta dimensão que deve ser considerada em uma
analítica de governo, sobretudo no que tange as análises sobre os regimes de
práticas internacionais, o papel de especialistas ou peritos (2013, 69). Para Blanco,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
120 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
especialistas ou peritos ocupam posição privilegiada para guiar e orientar as
condutas e, consequentemente, as práticas de governo na política internacional.
No decorrer dessa seção, é possível constatar que a governamentalidade
envolve a observação da socialização do conhecimento sobre o governo e das
práticas que são originadas por ele dentro do, ao longo de e além do Estado.
Consequentemente, o estudo sobre a governamentalidade fortalece análises
preocupadas com as intersecções existentes entre o local e o internacional; entre
os atores domésticos e estrangeiros; entre a produção de expertise técnica interna e
externa. Isso se dá porque a governamentalidade em Foucault estabelece o campo
de ações possíveis dos atores, não se limitando à esfera formal do Estado ou às
suas fronteiras nacionais. Pelo contrário, as mentalidades de governo circulam
dentro e entre sociedades, estabelecendo modos compartilhados de pensar e agir
no campo social e político. Nesse sentido, a próxima seção dedica-se a analisar
como o quadro epistêmico formado pela preocupação com a noção de cidade
falida pode possibilitar o surgimento de práticas internacionais de governo —
como conduta da conduta — direcionadas às cidades.
Do Estado Falido à Cidade Falida:
a formação de uma nova episteme de governo
No decorrer da seção anterior, foi possível observar como a noção de
governamentalidade pode possibilitar uma problematização mais refinada acerca
das práticas e das racionalidades políticas internacionais — desnaturalizando
processos e dinâmicas que são, muitas vezes, percebidos como naturais. Isso
ocorre porque a governamentalidade conduz a pesquisadora a questionar quais
os quadros discursivos e normativos sustentam e orientam as práticas no âmbito
da política internacional. Esses questionamentos são possíveis porque a definição
foucaultiana para o governo como conduta da conduta, abarca a dimensão
ideacional/racional como essencial para a compreensão da sua prática. Portanto,
para que se possa observar e analisar o exercício do governo nesses termos, deve-se
investigar quais são os elementos epistêmicos e conceituais que o sustentam. Isso
é importante porque a governamentalidade opera, orienta e constrói significações
e entendimentos a partir de centros de produção de conhecimento teórico, técnico
e econômico sobre o espaço nacional e internacional.
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121Natali Hoff; Ramon Blanco
No enquadramento desse trabalho, a dimensão de análise da governamentalidade,
preocupada com o estudo sobre a conformação de uma “episteme do governo” no
âmbito das cidades, é possível compreender, por exemplo, as noções de “falência”
e “fragilidade”, aplicadas às cidades, como podendo informar, sustentar e dar
espaço para a criação de dispositivos de governo específicos e direcionados a esses
locais. Dessa forma, o conceito de cidades falidas ou de cidades frágeis compõem
um quadro epistêmico e normativo que colabora com o surgimento de práticas
de governo, direcionadas às cidades e a suas populações. A análise da violência
nas cidades nas Relações Internacionais é possível porque elas constituem-se
em espaços que envolvem dinâmicas que são, concomitantemente, localizadas
e globalizadas. Isso quer dizer que os fenômenos cotidianos das cidades são, ao
mesmo tempo, reflexos das características do local (cidade/país) e produto da
interação desse local com a esfera internacional. Nesse contexto, as fronteiras entre
o interno e o externo — ou entre a cidade e a esfera internacional — tornam-se
cada vez mais flexíveis e mutáveis. Assim, a cidade, por um lado, engloba as
particularidades e as necessidades de um contexto social e político específico
e, por outro lado, está inserida em uma ordem de classificação e organização
sociopolítica global (Magnusson, 2011). Por conseguinte, pensar sobre as cidades
na atualidade demanda análise capaz de compreender as diferentes autoridades
e mentalidades que emanam e repercutem, quase simultaneamente, nas escalas
local e internacional.
A ideia de cidade falida não é um enquadramento exatamente novo nas
relações internacionais, uma vez que esse tipo de leitura está intrinsecamente
relacionado à concepção de Estado Falido (Helman e Ratner, 1992). Dentro de
um entendimento mais dominante acerca da política internacional, os Estados
falidos seriam uma entidade incapaz de exercer o monopólio do uso da força
em seu território e, por esse motivo, passariam a ter a sua legitimidade política
contestada, interna e internacionalmente. Como consequência disso, segundo tal
raciocínio, é precisamente a condição de fragilidade institucional e securitária
que tornaria esses Estados ameaças potenciais para a comunidade internacional,
uma vez que poderiam exportar insegurança e criminalidade para outros Estados
(Fukuyama, 2005).
10
Esse entendimento ganhou destaque após os Ataques de 11
de Setembro de 2001. Esses Estados, desde então, passaram a ser frequentemente
descritos como espaços não governados e como safe havens para grupos terroristas,
grupos guerrilheiros e para a formação de milícias e organizações criminosas
10 Para mais acerca da discussão sobre Estados falidos, ver (Sorensen, 1999; Rotberg, 2002; Nasser, 2009).
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122 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
(Grimm; Bacon, 2014). Essa perspectiva direciona-se a refletir sobre os Estados
que: i) enfrentavam dificuldade para exercer controle e autoridade em seu próprio
território; ii) tem o monopólio legítimo do uso da força amplamente contestado;
iii) passam por um processo de erosão da sua legitimidade quanto ao processo
de tomada de decisões coletivas; iv) não conseguem prover os serviços públicos
necessários a sua população; v) não possuem reconhecimento pleno nas relações
internacionais, de modo que as suas interações com outros Estados estão limitadas
(Rotberg, 2002). Dessa forma, em última instância, a ideia de falência estatal se
direciona a analisar como os problemas internos dos Estados se configuram em
perturbação à segurança internacional (Helman e Ratner, 1992). Portanto, percebe-
se que a concepção de Estado falido se converte em um quadro discursivo que
produz efeitos práticos, uma vez que delineia os Estados passíveis de intervenções
e influi nas práticas de reconstrução aplicadas a cenários pós-conflito. Dessa
maneira, pode-se falar que o quadro discursivo do Estado falido informa e sustenta
práticas internacionais específicas de governo, direcionadas a moldar e normalizar
o comportamento dos Estados intervindos.
De forma análoga a essa discussão sobre o Estado, a ideia de cidade falida
surge para permitir a compreensão dos efeitos da violência e das contestações
sociopolíticas nas cidades, para a promoção da segurança nas escalas nacional e
internacional (Muggah, 2014). De acordo com Robert Muggah (2012), os centros
urbanos considerados frágeis são aqueles nos quais o contrato social estabelecido
entre as autoridades do Estado e os cidadãos se encontra em crise ou deixou
de existir. Consequentemente, esses lugares são marcados por altos índices de
violência, pelo descumprimento dos direitos humanos em larga escala e pela
crescente desconfiança com as instituições públicas (Idem). De acordo com
Manoela Miklos (2015, 16), a literatura direcionada a apreender a fragilidade
observada em centros urbanos pode ser compreendida a partir de três perspectivas
analíticas distintas sobre a temática. A primeira é marcada pela preocupação com
a fragilidade de centros urbanos em contextos de conflitos e pós-conflitos (Norton,
2003; Liotta e Miskell, 2004; Hoeckel, 2007; Esser, 2009). A segunda perspectiva
analítica, por sua vez, problematiza a fragilidade observada em cidades localizadas
em contextos de paz formal, alargando os estudos para se pensar em contextos
como como o latino-americano (Koonings e Kruijt, 2007; Rodgers, 2008; Kombe,
2010). A terceira tem como principal preocupação a sistematização e a definição do
conceito de cidade falida (Jütersonke, Muggah e Rogers, 2009; Muggah e Savage,
2012; Nogueira, 2017; Miklos e Paoliello, 2017).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
123Natali Hoff; Ramon Blanco
A preocupação com a fragilidade no âmbito das cidades e com seus efeitos para
a segurança internacional surge incialmente com a noção de “feral cities” (Norton,
2003). Para Richard J. Norton (2003, 98), pode ser classificada como “feral citie
qualquer metrópole, composta por mais de um milhão de habitantes, que integra
um governo que, por um lado, perdeu a capacidade de manter a lei e a ordem
no nível local e, por outro lado, ainda continua tendo a capacidade de atuar no
nível internacional. Por consequência, nessas cidades os serviços públicos seriam
virtualmente inexistentes e a vasta maioria da população não teria acesso a bens
públicos básicos (Idem). Em muitos casos, essa situação não se materializaria a
partir do completo caos, uma vez que organizações não-estatais, majoritariamente
criminosas, poderiam passar a prover esses serviços (Ibidem, 99). Esse cenário
levaria a ascensão de um quadro endêmico de corrupção e subversão da ordem
pública e jurídica (Idem). A definição de “feral cities”, então, traz a temática da
fragilidade e da falência urbana para os estudos sobre a segurança internacional
e evidencia a importância da governança local para a estabilização de cenários
pós-conflito. Norton estabelece, por exemplo, alguns indicadores para que se
possa mensurar a estabilidade das cidades, a partir da análise de quatro esferas:
governamental, econômica, securitária e de serviços. Elementos de cada uma
dessas esferas deveriam ser considerados, de modo que as cidades pudessem
ser classificadas em cidades “saudáveis” (verde), cidades marginais (amarelas)
e cidades no limite (vermelhas) (Norton, 2003, 101). Nesse sentido, as cidades
consideradas no limite seriam marcadas com a etiqueta vermelha, sinalizando
que elas, além de se constituírem uma “feral city”, demandariam algum tipo
de intervenção a fim de controlar a situação. O conceito de Norton não apenas
introduz o debate sobre a fragilidade das cidades nos estudos sobre a segurança
internacional, como também apresenta mecanismos teóricos e classificatórios que
podem ser empregados para se mapear e intervir nas cidades ao redor do globo.
No entanto, o termo fragilidade ganha centralidade no debate sobre a
importância das cidades para a segurança internacional em 2006, com a criação do
programa de pesquisa Cities and The Fragile States, da London School of Economics.
Esse foi o primeiro grupo de pesquisa da área de Relações Internacionais voltado,
especificamente, para a questão das cidades frágeis. A criação desse programa
foi importante, uma vez que a partir dele estabeleceram-se os primeiros esforços
para a compreensão do nexo entre as cidades e a fragilidade das instituições
políticas responsáveis por sua administração (Miklos, 2015). Nesse primeiro
momento, a conexão entre cidade e fragilidade institucional era feita por meio da
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
124 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
problematização dos conflitos ocorridos no perímetro urbano e pela associação às
situações de fragilidade do Estado ao qual a cidade pertence (Muggah e Savage,
2012). Portanto, o que estava sendo investigado naquele momento era, sobretudo,
a relação entre a fragilidade estatal e a fragilidade urbana. Dessa maneira, as
pesquisas e as conceitualizações desenvolvidas direcionavam-se a pensar em
políticas e práticas que poderiam ser aplicadas às cidades de Estados considerados
frágeis ou falidos. Isso se dava, principalmente, porque o programa de pesquisa
Cities and The Fragile States era financiado pelo Department for International
Development, do governo britânico, cujo objetivo era a formulação de “conceitos,
categorias e hipóteses para amparar as ações de intervenção humanitária
desenvolvidas e patrocinadas pelo governo britânico” (Miklos, 2015, 69).
Assim, a ascensão da noção de cidade falida, propriamente dita, denota uma
nova configuração semântica, que possibilita que práticas e entendimentos de
intervenção internacionais sejam transferidos e aplicados a uma nova esfera de
atuação: a cidade (Miklos; Paoliello, 2017). A adição da concepção de falência,
geralmente associada ao Estado, ao estudo sobre as cidades possibilita a análise
sobre a possibilidade da operacionalização de uma governamentalidade no nível
local. Essa governamentalidade incidiria sobre as cidades e suas populações, a fim
de moldar os seus comportamentos de acordo com expertise e com racionalidade
política próprias. Desse modo, não gera surpresa observar que os primeiros estudos
de caso sobre as cidades falidas se concentravam em observar cidades localizadas
em Estados com conflitos ativos. Isso porque, em sua maioria, essas análises
pretendiam compreender como a dimensão urbana influenciava a estabilização de
territórios em conflito ou em situação pós-conflito. Portanto, o papel da cidade era
compreendido a partir da existência de uma condição de conflito ou pós-conflito,
buscando refletir sobre a importância da violência urbana para a estabilidade
administrativa dos seus Estados.
Gradualmente essa perspectiva que associa a falência urbana à falência estatal
passa a conviver com uma nova abordagem, preocupada com os cenários de paz
formal. Assim, o crescente número de casos de violência e de violação de Direitos
Humanos, em cidades pertencentes a Estados onde não há conflitos formalmente
reconhecidos, desperta o interesse dos especialistas sobre a temática. Nesse
contexto, os estudos sobre a fragilidade das cidades começam a se direcionar para
casos como: Dar es Salaam, na Tanzânia (Kombe, 2010) e Karachi, no Paquistão
(Budhani et al, 2010). Em ambos os casos o que chama atenção dos pesquisadores
são a violência e a insegurança crônicas em situações de não-guerra (Miklos, 2015).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
125Natali Hoff; Ramon Blanco
É importante destacar que esses estudos ainda reconhecem a fragilidade estatal
como fator determinante para a fragilidade urbana. Todavia, novos fenômenos
passam a ser incorporados como condicionantes para a fragilidade do Estado,
para além da ocorrência de conflito. Isso pode ser evidenciado pela listagem, feita
por Budhani et al (2010), sobre as fontes de fragilidade do Estado do Paquistão.
Nessa listagem são mencionados cinco fenômenos centrais: fragmentação política,
desigualdade econômica, pressões demográficas, erosão da capacidade institucional
do Estado e conflitos internacionais do entorno. Percebe-se que, em nenhum
momento, a existência de um cenário de conflito ou pós-conflito é elencada
como fonte de fragilidade estatal. A guerra, dentro desse enquadramento, perde
a primazia para outros fatores importantes. Isso faz com que as análises sobre a
fragilidade das cidades também incorporem outras variáveis explicativas para a
compreensão do fenômeno, como o rápido crescimento das cidades e dos seus
contingentes populacionais.
O alargamento dos estudos sobre as cidades frágeis, para além das zonas de
ocorrência de conflitos formais, possibilitou que regiões, anteriormente ausentes
ou menos frequentes nessa área de pesquisa, passassem a ser estudadas. Neste
contexto, a América Latina ganha destaque, uma vez que está no centro do
debate atual sobre cidades frágeis — mesmo possuindo em sua maioria cidades
categorizadas como de “médio risco”, de acordo com o Instituto Igarapé
11
. Isso
ocorre porque a região abriga altos índices de violência urbana, mesmo não
havendo conflitos armados ativos. As cidades latino-americanas padecem com
a violência urbana e com a falta de estabilidade securitária. Podem ser citadas
como exemplos que sempre aparecem nas listas de cidades mais violentas do
mundo: Caracas na Venezuela, Rio de Janeiro no Brasil, San Pedro Sula em
Honduras, San Salvador em San Salvador, Cali na Colômbia. Tendo em conta essa
conjuntura, Keer Koonings e Dirk Krujit (2007, 2) cunharam a expressão cidades
fraturadas” para se referir à duradoura “síndrome de pobreza, informalização do
trabalho, desigualdade e exclusão social” observadas nos grandes centros urbanos
latino-americanos. Tal síndrome amplia e reforça as tradicionais clivagens latino-
11 O Instituto Igarapé em conjunto com a Universidade das Nações Unidas, com o Fórum Econômico Mundial e
com a iniciativa “100 Cidades Resilientes” desenvolveram uma plataforma de dados que mapeia a fragilidade
das cidades ao redor do mundo. A plataforma inclui informações a respeito de cerca de 2.100 cidades com
populações de 250.000 ou mais. As cidades foram classificadas a partir de onze variáveis e receberam uma
pontuação entre 1 e 4, sendo 4 o nível concedido às cidades em situação mais críticas. As variáveis variam do
crescimento populacional da cidade, desemprego e desigualdade à poluição, riscos climáticos, homicídios e
exposição ao terrorismo (IGARAPÉ, 2020, s/p)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
126 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
americanas, transformando a pobreza em um fenômeno urbano na região. Essa
dinâmica tem como efeitos a fragmentação social e espacial das cidades latino-
americanas. A pobreza e a violência acabam associadas a bairros ou distritos
específicos. Estes últimos tornam-se estigmatizados como áreas proibidas,
enquanto seus habitantes são, por sua vez, estigmatizados como ‘indesejáveis’
(Koonings e Krujit, 2007, 5). Em consequência, a maioria das aglomerações urbanas
latino-americanas são, por um lado, estruturalmente excluídas dos circuitos de
consumo urbano e, por outro lado, transformadas em alvos rotineiros das forças
policiais.
Pode-se perceber que as cidades latino-americanas ganham centralidade nos
estudos sobre a fragilidade das cidades. Nesse sentido destaca-se a contribuição
de Dennis Rogers sobre a violência e instabilidade presentes em Managua na
Nicarágua. Para Rogers (2004), a violência em Managua é consequência direta
da estrutura política oligárquica do Estado da Nicarágua. Não obstante, essa
constatação não significa que a fragilidade de Managua não contribua para as
desigualdades e estruturas de dominação próprias ao Estado nicaraguense. Muito
pelo contrário, a instabilidade e a violência em Managua são, ao mesmo tempo,
sintoma e doença. Desse modo, por um lado, elas são reflexo das estruturas
de dominação sócio-políticas da Nicarágua, e, por outro lado, contribuem para
a reprodução das desigualdades e dos instrumentos de dominação. Em outro
trabalho, Oliver Jütersonke, Robert Muggah e Dennis Rogers (2009, 3), que se
concentraram em analisar a violência das cidades latino-americanas de forma
sistêmica, identificando quem são os atores responsáveis por sua ocorrência —
os atores violentos. Nesse contexto, os grupos ligados ao crime organizado, as
gangues e, mais recentemente, as milícias passam a ser compreendidos como
“novas urgências urbanas” (Ibidem, 4). Isso ocorre porque, de acordo com esse
enquadramento, os atores violentos, ao atuar nas grandes cidades, constituem-se
em ameaças a nível local, nacional, regional e transnacional. Essa escalada, nos
níveis de percepção da ameaça representada por esses atores, acaba por suscitar
políticas de enfrentamento à violência cada vez mais repressivas. Todavia, essas
táticas repressivas empregadas com o objetivo de combate à criminalidade tendem
a fomentar a sofisticação da atuação dos grupos violentos e, consequentemente,
a aprofundar a fragilidade da cidade.
As cidades, consideradas falidas são compreendidas cada vez mais como áreas
“ingovernáveis” e dominadas por atores violentos. Esse tipo de mentalidade está
muito presente nos meios de comunicação e na ampla visibilidade concedida aos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
127Natali Hoff; Ramon Blanco
efeitos da violência nos grandes centros urbanos. A representação delas nos meios
de comunicação reforça a percepção dessas cidades falidas como preocupação
compartilhada da sociedade e como necessidade urgente. Entende-se que a ação dos
atores violentos não é pautada pela mesma racionalidade dos agentes públicos e
que, segundo a abordagem, tende a utilizar mecanismos insurgentes ou criminosos
para estabelecer o seu domínio (Muggah, 2013). Essa forma de atuação faz com
que essas cidades sejam percebidas não mais apenas como ameaças locais ou
problemas internos dos Estados, mas sim como ameaças em potencial para o
meio internacional. Dessa forma, o interesse da comunidade internacional acaba
sendo fortalecido. Esse enquadramento, então, abre espaço para que a cidade
seja vista como uma “nova fronteira de ação internacional” (Nogueira, 2017, 2).
Logo, a noção de fragilidade associada às cidades estabelece um novo campo para
a incidência de práticas que objetivam diminuir e/ou reverter esses cenários de
instabilidade (Muggah, 2014), por meio, principalmente, de práticas de governo
direcionadas às instituições e à população.
Um exemplo muito claro da possibilidade de incidência de práticas de
governos advindas do espaço internacional é a frequente intervenção humanitária
internacional nas cidades consideradas frágeis (Nogueira, 2017; Miklos, 2017).
Esse ponto pode ser evidenciado pela crescente atuação, de caráter humanitário,
de agentes internacionais em centros urbanos diagnosticados como frágeis
(Miklos, 2015, 123). Pode ser citada, como exemplo, a atuação do grupo Urgence,
Réhabilitation, Développment (URD), explicitada no relatório “Humanitarian aid
in urban settings: Current practice, future challenges. Nesse documento o grupo
parte da conceitualização de cidades frágeis e busca identificar as oportunidades
de atuação dos organismos humanitários, agências estatais e da sociedade civil
nesses contextos (Grünewald et al, 2011). Aqui é possível observar que o conceito
de cidade falida é incorporado por grupos organizados com o objetivo de delimitar
os atores passíveis de intervenção (cidade e população), identificar o espaço a ser
modificado e fixar parâmetros de identificação quanto às formas de intervenção.
Nesse seguimento, tal conceito tem uma aplicação prática e converte-se em fonte de
conhecimento e informação para o governo, como conduta da conduta. Além disso,
a crescente associação do conceito às práticas dos atores internacionais possibilita
que ele seja incorporado por racionalidades de governo internacionais — como as
práticas e técnicas de intervenção em Estados pós-conflito. A concepção de cidade
falida provoca, assim, uma modificação nos quadros discursivos internacionais
que compõem o governo, como conduta da conduta, e, a partir disso, fomenta a
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128 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
criação de novas práticas ou desloca a esfera de atuação das práticas governativas
já existentes.
Todavia, a partir da ótica da governamentalidade, a intervenção humanitária
não é o único regime de práticas que se embasa em uma episteme sobre a
fragilidade das cidades. Uma das consequências desse tipo de enquadramento
a respeito das cidades, a partir da ideia da falência e da fragilização das suas
instituições políticas e administrativas, é a crescente modificação no governo da
segurança urbana no mundo, de acordo com o “novo urbanismo militar” (Graham,
2016, 26). Por conseguinte, é possível, cada vez mais, observar uma transição no
modo como se dá o uso militar e civil da tecnologia, que passa cada vez mais a
atuar “entre a vigilância e o controle da vida cotidiana nas cidades ocidentais, e
as agressivas guerras de colonização” (Idem). Assim, as cidades cada vez mais
são incorporadas às doutrinas militares como o centro de um amplo espectro de
insurgências transnacionais que atuam sobre redes sociais, culturais, políticas e
financeiras, convertendo-se em risco ao modo de vida das sociedades ocidentais
(Graham, 2016, 73). Nesse contexto, os conceitos domésticos e internacionais de
cidade tendem a convergir — entendendo as cidades como comunidades fechadas
que devem ser asseguradas e protegidas do “outro” ameaçador (Chow, 2006, 42).
Esses quadros normativos compõem a ideia de guerra como um exercício
permanente, colocando operações militares e de alta tecnologia como resposta
mais adequada aos atores não estatais, contestadores da ordem política e social
(Graham, 2016, 80).
O “novo urbanismo militar”, portanto, dá origem a práticas especificas de
governo — como conduta da conduta — das cidades em escala global, caracterizadas
pela crescente militarização da vida no espaço urbano. Tal militarização da vida faz
com que a diferenciação entre quem é “combatente” e quem é “alvo” da violência
se torne nebulosa e, muitas vezes, irrealizável. O resultado, frequentemente,
é a instauração de políticas de repressão e de segregação social do espaço
urbano. O caso do Programa de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro é bastante
ilustrativo quanto a isso. Desde a década de 1990, essa cidade tem sido cada vez
mais percebida como um ambiente altamente violento, sobretudo em razão dos
constantes confrontos entre organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas
e as forças policiais cariocas (Machado da Silva e Leite, 2007). Por conseguinte,
não é surpresa que a ideia do Rio de Janeiro como uma “cidade partida” (Ventura,
1994) tornou-se frequente para explicar os impactos das contradições sociais para
a precarização da situação securitária da cidade.
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129Natali Hoff; Ramon Blanco
A concepção do Rio de Janeiro como uma cidade partida retrata a suposta
divisão entre a área nobre da cidade e as áreas pobres — as favelas (Ventura,
1994, 02). Percebe-se que essa ideia estabelece uma separação entre a população
do asfalto e a população da favela, de modo a alocar o foco da violência nas favelas
cariocas (Moraes; Mariano; Franco, 2015). Nesse sentido, as populações do “asfalto”
são frequentemente apontadas como as vítimas da violência e da insegurança,
enquanto as populações dos morros são tidas como responsáveis pela reprodução
dessa violência. A noção de cidade partida constrói uma lógica de conflito entre as
áreas do asfalto e das favelas, legitimando processos de intervenção nos espaços
compreendidos como polos de violência. Por conseguinte, passa a ser possível a
inclusão da cidade em uma lógica de “Estado Penal”, que se utiliza do discurso da
insegurança social como discurso legitimador de políticas de repressão e controle
dos pobres (Franco, 2014, 13). A pobreza e a criminalidade passam, então, a
serem vistas como “anomalias” sociais, de modo que são imprescindíveis ações
dos poderes públicos e da sociedade civil para modificar esses fenômenos. Logo,
as intervenções aplicadas constituem-se, por um lado, por um caráter repressivo
e disciplinador e, por outro lado, uma essência normalizadora, buscando adequar
as condutas às normas sociais vigentes.
Essa preocupação se acentuou com a inserção da cidade no circuito internacional
dos megaeventos esportivos, no início dos anos 2000 (Jogos Panamericanos,
2007; Copa do Mundo, 2014; Jogos Olímpicos, 2016). Dentre as inúmeras ações
desenvolvidas com o objetivo de redução da violência e da insegurança destaca-se
a elaboração do Programa de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), implantado
no Rio de Janeiro em 2008. As UPPs são uma estratégia de ocupação das favelas
por parte do Estado, para promover o combate ao domínio do tráfico de drogas
nesses espaços e à violência endêmica observada. De acordo com dados do
Instituto de Segurança Pública, até 2015 havia 38 UPPs instaladas, das quais 37
estavam localizadas na capital, “em 196 comunidades que reúnem cerca de 700
mil habitantes” (ISP, 2016, 3). Tais áreas contavam com um efetivo policial de
aproximadamente nove mil Policiais Militares, correspondente a 19% do efetivo
total da Polícia Militar do estado (Idem). Por um lado, os dados e os relatórios
oficiais apontam para a diminuição no número de vítimas de letalidade violenta
nas áreas de UPP após o início da Política de Pacificação (Idem). Todavia, por
outro lado, análises mais críticas sobre os objetivos e os impactos das políticas
de pacificação destacam questões como: i) o enquadramento (neo)liberal da
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130 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
implantação das UPPs e a sua relação com os Jogos Olímpicos de 2016 (Guimarães,
2015; Miranda e Fortunato, 2016; Santos Junior e Novaes, 2018); ii) a crescente
militarização da vida na cidade, sobretudo nas favelas cariocas (Leite, 2014;
Rocha, 2018; Barros, 2018); iii) a produção das favelas como novos espaços de
intervenção e normalização por meio da ideia de dispositivo de governo (Menezes,
2018; Freire, 2018; Leite e Farias, 2018). Dessa maneira, a operacionalização da
política de pacificação no Rio de Janeiro concebe o Rio de Janeiro, ou pelo menos
as favelas cariocas, como uma cidade falida. Esse entendimento fomentou a
utilização do aparato militar como forma de responder à violência na cidade por
meio de uma profunda intervenção, que não visava apenas a criminalidade na
cidade, mas, sobretudo, o exercício do governo, como a conduta da conduta, e a
normalização da cidade e dos indivíduos.
Dessa forma, tendo os exemplos acima como referência, pode-se observar
que a conceitualização feita para as cidades falidas acabou por possibilitar novas
práticas de intervenção internacional no âmbito das cidades. Assim, os conceitos
de “fracasso” e “fragilidade” são problematizados nesse artigo e sujeitos a
reinterpretações, de modo que as relações entre a produção do conhecimento e o
exercício do poder possam ser visualizados. Entende-se que esse enquadramento,
ao adicionar a concepção de fragilidade e falência geralmente associadas ao
Estado, ao estudo sobre as cidades acaba por possibilitar a operacionalização
de uma governamentalidade advinda do meio internacional no nível local. Essa
governamentalidade incide sobre as cidades e suas populações, a fim de moldar
os seus comportamentos. Essas práticas não são, necessariamente, inéditas.
Muito pelo contrário, assim como o conceito de cidade falida dialoga com a noção
de Estado falido, as práticas e instrumentos utilizados para responder a esses
problemas passam a apresentar similaridades.
Conclusão
Tendo em conta a discussão apresentada nesse artigo, percebe-se que a
problematização da política internacional a partir da noção de governamentalidade
permite uma reflexão mais refinada acerca das dinâmicas políticas e ideacionais
internacionais, uma vez que possibilita a visualização da operacionalização do
poder por meios menos visíveis e mais indiretos, apesar desses meios não serem
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2020, p. 111-136
131Natali Hoff; Ramon Blanco
menos invasivos e profundos. Assim, pode-se afirmar que a governamentalidade
global possibilita o estudo de como o governo, como conduta da conduta,
trabalha à distância, empregando novas técnicas de observação, de cálculos e
de administração para regular a esfera internacional. Tal noção é fundamental
para melhor compreender as práticas e racionalidades exercidas pelos agentes
internacionais com o fim de moldar o campo de atuação de Estados e populações.
A noção de governamentalidade, ao vincular as mentalidades com as práticas
políticas, desnaturaliza a frequente associação entre as formas de governo
existentes no espaço internacional e a conformação de uma racionalidade política
dominante. Por conseguinte, os estudos sobre a governamentalidade possibilitam
que se problematizem os modos como os regimes e as técnicas de governança
atuais surgiram, se consolidaram e passaram a normatizar condutas dentro da
política internacional.
No decorrer desse artigo, observou-se que o conceito de cidade falida constitui-se
um quadro epistêmico que pode informar e dar origem a práticas de governo —
como conduta da conduta — direcionadas às cidades e suas populações. Isso é
possível porque a aplicação das noções de falência e de fragilidade ao estudo
sobre a violência e a instabilidade securitária das cidades permite que elas sejam
enquadradas como zonas instáveis, ou até mesmo ingovernáveis, por parte dos
agentes públicos ou internacionais. Em decorrência desse fato, a ideia de cidade
falida abre margem para a ingerência no espaço urbano, por meio do governo
como conduta da conduta. Esse governo pode ser exemplificado, por um lado,
pela crescente atuação humanitária de organismos internacionais em cidades
consideradas frágeis e, por outro lado, pela ascensão de um “novo urbanismo
militar”, destinado a conter atores violentos e disciplinar a população de zonas
urbanas periféricas. Portanto, o referencial da falência das cidades não se restringe
apenas ao campo ideacional, mas, acaba por construir a noção de que a cidade —
categorizada como falida ou frágil — é uma necessidade urgente, dando origem
a regimes de práticas criados especificamente para lidar com essa necessidade.
A investigação sobre a episteme de governo, nesse sentido, permite que as formas
de conhecimento que embasam e fornecem informações à atividade de governar
sejam analisadas em profundidade. Por conseguinte, esse tipo de análise possibilita
que as teorias, os conceitos e a expertise sejam vinculados ao modus operandi do
governo enquanto conduta da conduta.
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132 Do Estado Falido à Cidade Falida: análise sobre a noção de falência como suporte à governamentalidade global
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