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Política regional e projeção de
interesses privados: problematizando
a América do Sul nos governos Lula
1
Brazilian regional policy and the projection
of private interests: problematizing
South America in Lula’s government
DOI: 10.21530/ci.v14n3.2019
Karen Honório
2
Resumo
O artigo tem como objetivo discutir o papel da América do Sul na política externa dos governos
de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Desenvolve-se ao longo do texto o argumento
de que a América do Sul foi o espaço prioritário de articulação da orientação Sul-Sul da
política externa e da projeção econômica dos interesses de atores privados do capitalismo
brasileiro, sob o modelo neodesenvolvimentista, a partir de uma dupla presença (política e
econômica) do país na região. Nesse sentido, a política externa brasileira para a América do
Sul conciliou em sua estratégia e ação: 1) a projeção de interesses de determinados setores
privados nacionais no subcontinente; 2) o estabelecimento de mecanismos de governança
política regional e, 3) a construção de uma agenda bilateral e multilateral que fortaleceu
áreas e temáticas em consonância com o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo
no período. A discussão apresentada no artigo visa contribuir para os estudos de análise da
política externa dos governos Lula e a compreensão do papel da América do Sul na estratégia
internacional brasileira do período.
Palavras-chave: Política Externa Brasileira; América do Sul; Neodesenvolvimentismo.
1 A autora agradece às/aos pareceristas da Carta Internacional e a Ramon Blanco (Unila) pelos comentários e
sugestões à versão original do artigo.
2 Karen Honório é professora na graduação em Relações Internacionais e Integração e na Pós-graduação Lato
Sensu em Relações Internacionais Contemporâneas na Universidade Federal da Integração Latino-americana
(UNILA). Co-lidera o Núcleo de Pesquisa em Política Externa Latino-americana (NUPELA). Doutora em Relações
Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-Sp).
Artigo submetido em 24/06/2019 e aprovado em 28/11/2019.
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Abstract
The article aims to discuss the role of South America in the foreign policy of the governments
of Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Throughout the text, is developed the argument that
South America was the priority space for the political articulation of the South-South foreign
policy directives and the economic projection of the interests of private actors of Brazilian
capitalism under a neodevelopmentism orientation, through a double presence (political
and economic) of the country in the region. In this sense, the Brazilian foreign policy for
South America reconciled in its strategy and action: 1) the projection of interests of certain
national private sectors; 2) the establishment of mechanisms of regional political governance
and 3) the construction of a bilateral and multilateral agenda that strengthened areas and
themes in line with the development model adopted by the government in the period. The
discussion presented in the article aims to contribute to the analysis of the foreign policy of
the Lula governments and the understanding of the role of South America in the Brazilian
international strategy of the period.
Keywords: Brazilian Foreign Policy; South America; Neodevelopmentism.
Introdução
Conforme avaliação do governo, ao final do segundo mandato de Luiz Inácio
Lula da Silva (daqui em diante Lula), a América do Sul foi o espaço geopolítico
principal na estratégia da política externa brasileira. O subcontinente aparece
como lócus importante da política externa brasileira desde os anos 1990. A criação
do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em 1991, a proposta da Área de Livre
Comércio Sul — Americana (ALCSA) em 1993 e a 1ª Reunião de Presidentes
da América do Sul no ano 2000, foram iniciativas que demonstram o lugar de
destaque da região na política externa brasileira recente. Componente arrojado,
no entanto, foi o ineditismo da escala que a América do Sul ganhou na ação
diplomática durante os governos Lula, tornando-se eixo prioritário da estratégia
internacional do país.
Indicativo da mudança na escala de relevância da região na estratégia
brasileira, a ação governamental do período foi fundamentada no que o chanceler
Celso Amorim definiu como a substituição do “princípio da não intervenção”
pelo “princípio da não indiferença” (AMORIM, 2013). A partir dessa diretriz, o
governo brasileiro impulsionou de forma multilateral e bilateral a dilatação de uma
agenda multitemática com todos os países da região. A intensificação da presença
brasileira na América do Sul, a partir de uma inserção multidimensional, trouxe
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35Karen Honório
complexidade para a interpretação da política regional implementada de 2003
a 2010. Afinal, qual foi o papel da América do Sul na política externa brasileira
durante os governos Lula?
Grande parte dos especialistas em política externa brasileira apontou que o
papel principal da América do Sul foi ter sido plataforma de lançamento do país a
uma projeção global. Nesse sentido, a transformação da região em polo de poder
na geopolítica mundial serviu como estratégia de reposicionamento do Brasil na
hierarquia da política internacional (SPEKTOR, 2010; MALAMUD, 2012; MEDEIROS;
TEIXEIRA JUNIOR; REIS, 2017; LIMA; MILANI; PINHEIRO, 2017). Nessas análises,
o subcontinente foi espaço para o país se credenciar como global player, tendo que
lidar com os desafios e possíveis contradições entre as ações regionais e globais
(HIRST, 2013; SENNES; MENDES, 2009; MEDEIROS; TEIXEIRA JUNIOR; REIS,
2017). A busca de parceiros estratégicos no Sul aumentaria o poder de barganha
do país em negociações internacionais (VIGEVANI e CEPALUNI, 2007). A partir
desse raciocínio, a América do Sul foi entendida como plataforma à estratégia
brasileira na busca por uma posição como ator relevante global.
Inserido nesse debate, o artigo responde à pergunta do papel da região na
política externa dos governos Lula a partir da articulação da política externa com o
modelo de desenvolvimento implementado no período. Desenvolve-se ao longo do
texto o argumento de que a América do Sul foi o espaço prioritário de articulação
da orientação Sul-Sul da política externa e da projeção econômica dos interesses de
atores privados do capitalismo brasileiro, sob orientação neodesenvolvimentista, a
partir de uma dupla presença -política e econômica- do país na região. A hipótese
apresentada sustenta que o subcontinente não serviu apenas como espaço de
credenciamento do Brasil como global player, conforme aponta grande parte dos
analistas, mas, também, foi o espaço privilegiado da projeção externa do programa
de desenvolvimento dos governos Lula e, portanto, expressão dos interesses de
setores políticos e econômicos domésticos na política externa regional.
A articulação entre a orientação Sul-Sul e o neodesenvolvimentismo na
política regional ocorreu a partir de duas projeções complementares do Brasil,
impulsionadas pela ação diplomática na região: 1) a projeção política, que
garantiu espaço de governança regional
3
, no qual o país fortaleceu uma posição de
3 A ideia de governança regional utilizada no artigo baseia-se no conceito de governança de Rosenau (2000).
Segundo o autor, a governança refere-se a um sistema de ordenação dependente de sentidos intersubjetivos
compartilhados a partir de objetivos comuns e também de constituições e estatutos formalmente instituídos.
Nesse sentido, o governo brasileiro primou por meio de sua política regional estabelecer espaços formais e
informais de compartilhamento de objetivos comuns e tomada de decisão na América do Sul durante o período.
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protagonista na América do Sul e 2) a projeção econômica, na qual os interesses
econômicos de atores privados brasileiros encontraram espaço privilegiado
para seu desenvolvimento, subsidiados pela ação diplomática do governo.
Portanto, as dinâmicas governamentais brasileiras na região combinaram a
diretriz Sul-Sul da política externa com a projeção do capitalismo brasileiro sob
o neodesenvolvimentismo. Dessa forma, a região também teve papel de espaço
prioritário de expansão econômica de atores privados brasileiros.
A compreensão da política externa e sua relação com o modelo de
desenvolvimento adotado no período, conforme abordada no artigo, coloca em
tela a necessidade de ampliar o entendimento do papel da América do Sul na
estratégia internacional brasileira dos governos Lula para além de sua importância
como plataforma de projeção global, e nesse sentido, a interpretação das dinâmicas
governamentais bilaterais e multilaterais do período, a partir de sua conexão com
a projeção externa do neodesenvolvimentismo, posicionando a subregião como
espaço propício para esses dinâmicas.
Com vistas a desenvolver a análise apresentada nesta introdução, o texto está
organizado em três partes: a primeira aborda o conceito de neodesenvolvimentismo,
sua relação com a política externa e, a partir daí, os significados da diretriz Sul-
Sul da política externa dos governos Lula; a segunda e a terceira partes tratam,
respectivamente, das características das projeções política e econômica do Brasil
na América do Sul de 2003 a 2010. Ao final retoma-se o argumento central do
texto à guisa das conclusões.
Neodesenvolvimentismo e política externa:
problematizando o Sul-Sul na política externa brasileira
O cenário político e econômico sul-americano no início do século XXI pode
ser caracterizado pelo esgotamento no campo político-ideológico dos modelos
neoliberais implementados nos países da região na década de 1990. Tal esgotamento
contribuiu para que a agenda pró-desenvolvimento emergisse como prioritária nos
programas políticos e econômicos dos governos do campo popular-progressista, que
chegam ao poder nos países da região em meados da década de 2000. O retorno
de diretrizes desenvolvimentistas em versões adaptadas às novas especificidades
econômicas e sociais de cada país em suas estratégias de desenvolvimento, pode
ser identificado como um amplo movimento político sul-americano no período.
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37Karen Honório
Nesse contexto, declarando-se oposição ao modelo neoliberal da década de
1990, sem, no entanto, se contrapor a ele estruturalmente na área macroeconô-
mica, o modelo de desenvolvimento dos governos Lula resgatou e atualizou as
con dicio nantes contemporâneas do capitalismo brasileiro às ideias da participação
do Estado na condução da economia nacional, oriundas do modelo nacional-desen-
vol vimentista vigente no Brasil a partir dos anos 1950 (BRESSER– PEREIRA, 2010).
A relação entre a política externa e o modelo de desenvolvimento adotado por
determinado governo pode ser entendida por meio da imagem de que a primeira
seria a projeção externa da concepção de país elaborada no plano interno (LIMA,
2018). Tal concepção é definida pelo modelo de desenvolvimento ou pela estratégia
nacional de desenvolvimento estabelecida em cada governo em dada conjuntura
histórica. Conforme Bresser-Pereira (2010), a estratégia nacional “[...] abrange
informalmente o conjunto da sociedade, ilumina para todos um caminho a ser
trilhado e estabelece certas diretrizes bem gerais a serem observadas; e embora não
pressuponha uma sociedade sem conflitos, exige um razoável consenso quando
se trata de competir internacionalmente [...]” (BRESSER-PEREIRA, 2010. p. 4-5).
A liderança do plano nacional de desenvolvimento cabe ao governo e aos elementos
mais ativos da sociedade civil. Seu instrumento fundamental é o próprio Estado:
suas normas, políticas e organização (BRESSER-PEREIRA, 2010).
Para Lima (2018), a política externa possui uma dupla face: é política
pública
4
gerada no interior do Estado e insumo posterior da política internacional
(condicionantes domésticos), mas também é moldada pela ordem assimétrica na
qual o Estado está inserido, combinando o funcionamento do sistema de Estados e
do capitalismo global (condicionantes sistêmicas). Dessa forma, a política externa
pode ser entendida a partir da projeção extrafronteiras da estratégia nacional de
desenvolvimento de um país, condicionada pelos constrangimentos e oportunidades
no cenário internacional em dado momento histórico. Adotando tal entendimento
neste artigo, ao deslocar a análise da política externa brasileira para o nível
doméstico, o neodesenvolvimentismo
5
, enquanto modelo de desenvolvimento
adotado nos governos Lula, condicionou, portanto, a formulação das políticas
públicas brasileiras no campo internacional.
4 Acerca do debate da política externa como política pública ver Milani e Pinheiro (2013).
5 Nesse artigo adota-se o conceito de neodesenvolvimentismo de Boito e Berringer (2013) pelo destaque que os
autores dão aos atores sociais e à política em sua análise.A retomada de diretrizes desenvolvimentistas nos
modelos de desenvolvimento e nas políticas econômicas nos países sul-americanos no começo do século XXI
impulsionou amplo debate a respeito de suas potencialidades e limitações no campo econômico, político e
social. Sobre o neodesenvolvimentismo ver Katz (2017), Carcanholo (2019), Castelo (2010) e Gudynas (2013).
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38 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
Conforme Boito e Berringer (2013, pág. 32), o neodesenvolvimentismo foi
a política de desenvolvimento possível dentro dos limites dados pelo modelo
capitalista neoliberal”. Ele buscou expandir o crescimento econômico do capitalismo
brasileiro sem romper com os limites do modelo neoliberal e atendendo aos
interesses do novo bloco no poder. Para os autores citados, os governos do
Partido dos Trabalhadores (PT) incorporaram em seus programas de crescimento,
políticas econômicas e sociais baseadas em: 1) recuperação do salário mínimo
e de transferência de renda às camadas mais pobres, aumentando seu poder de
consumo; 2) aumento de dotação orçamentária do BNDES da taxa subsidiada
para financiamento das grandes empresas nacionais; 3) política externa de apoio
à internacionalização das grandes empresas nacionais e 4) política econômica
anticíclica (BOITO; BERRINGER, 2013, p.32).
As principais diferenças entre o velho e o neodesenvolvimentismo são
elencadas da seguinte forma pelos autores: 1) o crescimento econômico no
neodesenvolvimentismo, embora seja maior do que o observado na década
de 1990, é mais modesto do que no velho desenvolvimentismo; 2) o mercado
interno possui menor importância; 3) atribui-se menor importância à política
de desenvolvimento de um parque industrial nacional; 4) há uma reativação da
função primário-exportadora do capitalismo brasileiro; 5) a capacidade distributiva
de renda é menor e 6) o novo desenvolvimentismo é dirigido por uma fração
burguesa que perdeu toda veleidade de agir como força anti-imperialista (BOITO;
BERRINGER, 2013).
Em termos sociais, Boito e Berringer (2013), a partir de uma análise poulantziana
do bloco no poder e das classes e frações de classes que o compuseram, entendem
que, durante os governos do PT, formou-se uma frente política ampla, heterogênea
e permeada por interesses contraditórios, denominada pelos autores de “frente
neodesenvolvimentista”. Fizeram parte dela: 1) a grande burguesia interna brasileira,
força dirigente da frente, formada pelos setores do agronegócio, da mineração, da
construção pesada e da indústria. O ponto comum entre esses setores da economia
foi a necessidade de políticas de proteção por parte do Estado na concorrência
com o capital estrangeiro. 2) A baixa classe média e o operariado urbano, base
social, mas não mais dirigente, do PT. 3) O campesinato e os movimentos por
moradia e 4) a “massa marginal”, formada por desempregados e subempregados,
politicamente desorganizada e beneficiada por políticas de transferência de renda
como o Programa Bolsa Família (BOITO; BERRINGER, 2013).
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A heterogeneidade das forças e interesses em composição não impediu a
atuação política como uma frente pois, apesar dos conflitos nas questões em
que as demandas dos atores entraram em choque, ela manteve-se unida nos
momentos de crise e ameaça aos governos neodesenvolvimentistas, como no
caso da segunda eleição de Lula em 2005 e da crise do mensalão em 2006,
mostrando pertencer ao mesmo campo político (BOITO; BERRINGER, 2012).
A parte isso, o neodesenvolvimentismo atendeu de forma bastante desigual aos
interesses das forças que compuseram a frente sustentadora do bloco no poder,
com predominância no atendimento aos objetivos da grande burguesia interna
(BOITO; BERRINGER, 2013).
A mudança ocorrida no interior do bloco no poder a partir do programa
neodesenvolvimentista, ou seja, a substituição da burguesia compradora ligada
ao capital internacional dos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC),
pela burguesia interna nos governos Lula fez com que a atuação internacional
do Estado brasileiro se alterasse, orientada pelos interesses dessa fração de classe
(BOITO, BERRINGER, 2013). No campo internacional, o apoio do Estado para a
exportação dos seus produtos e de investimentos diretos através da conquista de
novos mercados foi a principal demanda da burguesia interna. O enfoque nas
relações Sul-Sul, a priorização da América do Sul como espaço geopolítico, o
engajamento do governo brasileiro nas reuniões da Rodada Doha da Organização
Mundial do Comércio (OMC), realizadas no período, e as negociações que
levaram ao arquivamento da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foram
compreendidos por Boito e Berringer (2013) como resultados diretos da projeção
dos interesses da grande burguesia interna na política externa brasileira.
Dessa forma, em linha com Boito e Berringer (2013), o neodesenvolvimentismo,
enquanto orientação geral das políticas públicas do Estado nos governos Lula,
buscou atender, no campo externo, de maneira desigual, os interesses dos
setores econômicos e políticos que tiveram capacidade dirigente na frente
neodesenvolvimentista. O nexo entre o programa neodesenvolvimentista e a
política externa nos governos Lula, tem a América do Sul como eixo prioritário de
projeção justamente pelo subcontinente ser marcado por relevantes assimetrias
econômicas, de desenvolvimento e de capacidades tecnológicas entre o Brasil e
os demais países, que beneficiaram a atuação dos setores privados brasileiros
no desenvolvimento de suas atividades econômicas. Ademais desse aspecto,
a conjuntura de convergência político-ideológica entre grande parte dos governos
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40 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
da América do Sul na década de 2000
6
possibilitou o ativismo diplomático
do governo, orientado para a expansão do capitalismo brasileiro na região e,
portanto, dos interesses dos setores que compuseram a grande burguesia interna
no período.
A construção do espaço de ação para que a projeção neodesenvolvimentista
tomasse forma na política externa brasileira regional, no entanto, deu-se de forma
complexa. A projeção dos interesses econômicos dos atores privados no escopo
da política externa foi articulada a partir de uma projeção política do governo
brasileiro na América do Sul, com ênfase na integração regional, na governança
regional multitemática e na cooperação para o desenvolvimento. O regionalismo
na política externa brasileira, portanto, buscou, de maneira integrada, projetar
politicamente o Estado brasileiro na América do Sul por meio dos arranjos de
governança e incorporar, na lógica integracionista da política regional, os interesses
de setores privados brasileiros, viabilizados, em grande parte, pela via bilateral.
A projeção do neodesenvolvimentismo na política regional brasileira possuiu
imbricação com as diretrizes Sul-Sul da política externa brasileira do período.
Nesse sentido, argumenta-se que a orientação Sul-Sul, principal característica
apontada pelos analistas da política externa de Lula, não deve ser entendida
apenas a partir da busca por maior protagonismo na geopolítica global, mas como
política de viabilização internacional dos interesses de atores privados brasileiros
sob o modelo neodesenvolvimentista.
A orientação Sul-Sul da diplomacia dos governos Lula pode ser classificada
como a diretriz ampla da estratégia global no período. A partir dessa orientação
foram elencados quatro eixos principais da estratégia da política externa brasileira:
1) a América do Sul; 2) a África Ocidental; 3) a Ásia e 4) a Europa e a América
do Norte. A significativa transformação da inserção internacional do Brasil
nos governos Lula foi compreendida por Lima (2018) a partir de uma dupla
internacionalização: a política e a econômica.
O contexto internacional favorável levou o governo brasileiro a fomentar
coalizões com países emergentes e regiões em desenvolvimento que, sem adotar
6 A partir de 2003 os governos dos países da América do Sul vão ser ocupados por presidentes localizados no
campo político-partidário da esquerda ou centro-esquerda, com exceção da Colômbia. Essa virada na região,
também denominada “maré rosa” (PANIZZA, 2006) representou no cenário político sub-regional certo alinhamento
entre esses governos no campo político-ideológico. O ciclo progressista na América do Sul foi caracterizado a
partir da eleição dos seguintes presidentes: Lula no Brasil (2003), Néstor Kirchner na Argentina (2003), Tabaré
Vásquez no Uruguai (2005), Evo Morales na Bolívia (2006), Michele Bachellet no Chile (2006), Alan García no
Peru (2006), Rafael Côrrea no Equador (2007) e Fernando Lugo no Paraguai (2008).
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41Karen Honório
um discurso agressivo, contestou a hegemonia estadunidense e angariou apoio
na defesa do multilateralismo. A orientação para a diversificação de parceiros
no Sul global nas diversas dimensões temáticas da política internacional e o
apoio dos países periféricos justificou-se na estratégia de aumento de barganha
do país, visando a redução das assimetrias de poder nos organismos e regimes
internacionais (TUSSIE; DESIDERA NETO, 2018).
Nesse sentido, as relações Sul-Sul foram o eixo horizontal da atuação externa
do governo brasileiro, representada pelas relações com países emergentes como
China e Rússia, além dos países da América do Sul (PECEQUILO, 2008). Os
benefícios potenciais das ações estabelecidas nesse eixo foram de ordem econômica,
política e estratégica. Na dimensão político-estratégica, a proximidade de objetivos
nas relações estabelecidas entre países do Sul global referiu-se à reivindicação
por reformas de organizações internacionais governamentais (OIGs) como o G8, o
Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Conselho de Segurança
da Organização das Nações Unidas desde o fim da Guerra Fria (PECEQUILO, 2008).
No campo econômico, o eixo horizontal permitiu que o Brasil obtivesse ganhos
em mercados de países do Sul e formasse uma frente com os países emergentes
nas OIGs, aumentando o poder de barganha no comércio, empréstimos, dívida
externa, investimentos diretos e ajuda direta (PECEQUILO, 2008, p.146).
A orientação Sul-Sul serviu de base para a atuação internacional do país e, se
por um lado, as coalizões com os países emergentes buscaram alavancar as ações
globais do governo brasileiro e contrabalancear o poder das potências, por outro a
diplomacia buscou um tipo de liderança internacional de caráter individual; o papel
de global player foi fundamentado nas tradições de universalismo e autonomia
da política externa brasileira (SARAIVA, 2013). Para Saraiva (2013), o Sul-Sul
resgatou as tradições autonomistas do Itamaraty e não implicou compromissos
institucionais profundos nas iniciativas emuladas em âmbito internacional pelo
governo brasileiro.
Vigevani e Cepaluni (2007) utilizaram o conceito de autonomia pela
diversificação para categorizar a estratégia da política externa do período.
A ideia de autonomia pela diversificação consistiu em uma ação diplomática
orientada para atuação/intervenção em questões que se referem a bens públicos
internacionalmente reconhecidos. Conforme os autores, “[...] Diversificação não
significa apenas a busca de alternativas nas relações com outros Estados, mas
também implica capacidade de intervenção em questões que não dizem respeito
a interesses imediatos” (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 303-304).
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42 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
Para Lima (2018), os cortes autonomistas foram atípicos no histórico da
diplomacia brasileira e as principais características destes são: ambição por
protagonismo internacional com intenção de contestação das regras globais
vigentes, orientação mais de rule maker do que rule taker, visão geopolítica
de longo prazo com respeito às relações internacionais e à clivagem Norte-Sul
e perspectiva de solidariedade ativa com países do Sul e de integração com os
vizinhos na região (LIMA, 2018, p.42).
A autonomia, enquanto categoria analítica da política externa brasileira e
não apenas um princípio regente da vocação internacional brasileira a partir de
uma perspectiva a-histórica, mostra-se polissêmica na literatura. Via de regra,
orientações em direção ao Sul global na história da política externa brasileira
foram interpretadas como momentos de sua autonomia, relacionando na literatura
da análise da política externa brasileira os dois conceitos (Sul-Sul e autonomia).
Defende-se que a orientação Sul-Sul, no entanto, coloca em destaque a
ambivalência do conceito de autonomia na política externa brasileira, a saber:
1) autonomia enquanto pragmatismo na busca dos interesses nacionais no
ambiente internacional, portanto, legitimando uma estratégia individual na
arena internacional e; 2) autonomia enquanto opção estratégica no discurso e
ação diplomática ancorada no léxico Sul-Sul das relações internacionais e de
sua definição enquanto posicionamento geopolítico. Nesse segundo sentido, o
conceito de autonomia é agregador de demandas coletivas de países alijados dos
processos decisórios nos organismos internacionais.
A ambivalência do conceito de autonomia na política externa brasileira, a partir
de sua leitura como defesa dos interesses nacionais (domésticos) e de inserção
geopolítica a partir de uma estratégia coletivista (sistêmica), é importante, pois
demonstra que a opção pelo Sul-Sul nos governos Lula implicou a complexidade
em agregar, na ação diplomática brasileira, uma conciliação, em muitos momentos
controversa, entre os interesses individuais e coletivos nas coalizões das quais o
país fez parte. Mello (2011) aponta que se em um primeiro momento a atuação
brasileira foi vista como positiva e propositiva, à medida que o país ia conquistando
projeção nos fóruns globais maior era o choque entre os interesses pragmáticos de
setores da economia brasileira nas negociações e o discurso diplomático mediado
nas coalizações com os países em desenvolvimento.
As iniciativas de cooperação para o desenvolvimento podem ser interpretadas
como tentativas de contrabalancear os interesses individuais brasileiros nas
dinâmicas Sul-Sul (HIRST, 2013; TUSSIE; DESISERA NETO, 2018). Em 2003, o Brasil
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lançou a iniciativa do Foro IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e a coalizão do
G-20 comercial no âmbito das negociações da OMC em Cancun, em articulação
com a Índia. Foram também exemplos de ações enquadradas no eixo Sul-Sul da
política externa: 1) a criação do fórum BRICs, em 2008; 2) a participação brasileira
na criação e condução da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti
(MINUSTAH), em 2004; 3) o engajamento no foro do G-20 financeiro, em 2009 e
4) a articulação com a Turquia de uma solução para o impasse do acordo sobre
o programa nuclear iraniano, Acordo Tripartite, em 2010 (TUSSIE; DESISERA
NETO, 2018).
O impasse entre os resultados obtidos e as expectativas dos públicos externo e
doméstico das ações governamentais do Brasil no âmbito multilateral internacional
foi interpretado por Lima, Pinheiro e Milani (2017) como decorrentes do dilema
da graduação. A graduação, segundo os autores, diz respeito ao movimento na
busca de ascensão na hierarquia internacional de países médios sem poder militar,
por meio da contestação da governança global, demandando maior participação
em seus mecanismos, portanto, sem posições anti-sistêmicas. Nesse sentido, o
Brasil, durante o período dos governos Lula, esteve em um processo de transição
na política internacional de um ator rule taker para rule maker. (LIMA; PINHEIRO;
MILANI, 2017).
A posição do governo brasileiro frente a nacionalização dos hidrocarbonetos na
Bolívia em 2006, a renegociação do Tratado de Itaipu em 2009, os financiamentos
do BNDES para a realização de obras de infraestrutura na América do Sul, o G-20
comercial e o acordo nuclear iraniano foram exemplos do dilema de graduação do
Brasil, segundo os autores. O sucesso ou insucesso decorrentes das ações adotadas
frente aos dilemas colocados foram influenciados pelas capacidades materiais em
cada tema, a vontade política e a coesão entre o governo e as elites estratégicas
domésticas (LIMA; PINHEIRO; MILANI, 2017).
A interpretação do Sul-Sul como opção estratégica e conjuntural, na superação
dos constrangimentos impostos pelas normas e estruturas internacionais ao
reposicionamento do Brasil no sistema internacional durante os governos Lula, ou
seja, a partir de uma interpretação sistêmica, apareceu em grande parte das análises
de política externa brasileira. A existência de contradições ou inconsistências entre
as posições adotadas pelo governo em determinadas áreas da política internacional
foram relacionadas com os dilemas entre o balanceamento das estratégias regional
e global, articuladas com os efeitos distributivos internos dessas decisões e ao
receio do Brasil ser visto como hegemonia pelos parceiros na região. Em suma,
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44 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
a partir dessas visões, a orientação Sul-Sul estaria imbricada, necessariamente,
com as projeções geopolíticas do Estado brasileiro na política internacional.
Os condicionantes internos do Sul-Sul nas análises da política externa brasileira
do período usualmente são relacionados: 1) com a linha ideológica defendida
pela corrente do Itamaraty que assumiu os cargos de direção nos governos Lula
— Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães — identificados como grandes
representantes da tradição autonomista no Ministério de Relações Exteriores;
2) com a influência do pensamento internacional do Partido dos Trabalhadores e
3) com o apoio ou oposição de coalizões de setores políticos domésticos às ações do
governo na arena internacional. A orientação Sul-Sul, como elemento de projeção
do modelo de desenvolvimento adotado pelo governo, o neodesenvolvimentismo,
foi pouco presente nas análises.
A orientação Sul-Sul, entendida a partir dos interesses relacionados à ascensão
da frente neodesenvolvimentista como base de apoio dos governos Lula, foi
apontada por Berringer (2014) como principal chave para entender a política
externa no período. Conforme a autora, a contradição dos interesses das forças
que compuseram a base de apoio neodesenvolvimentista garantiu complexidade
à orientação Sul-Sul, pois, ao mesmo tempo em que a burguesia interna exigiu
proteção ao mercado doméstico e a conquista de mercados externos para a exportação
de seus produtos por meio da ação internacional do governo, as demandas por
iniciativas de integração, solidariedade a países pobres, temas humanitários e a
cooperação para o desenvolvimento foram apoiadas, em um primeiro momento,
pelos movimentos sociais e demais forças progressistas domésticas que fizeram
parte da base social e política do governo (BERRINGER, 2014).
Em concordância com a leitura de Berringer (2014), argumenta-se que a
orientação Sul-Sul se apresentou a partir de duas dimensões articuladas, ou
seja, dois objetivos na política externa brasileira: 1) a dimensão geopolítica
global do Sul-Sul, a contestação das normas de governança global a partir de
uma estratégia de formação de coalizões com países emergentes ou regiões
em desenvolvimento, visando o aumento de poder do país na hierarquia
mundial e, em âmbito multilateral, por meio da aliança e do apoio de países
periféricos para a redução das assimetrias nos organismos e regimes internacionais;
2) a dimensão neodesenvolvimentista do Sul-Sul, a orientação Sul-Sul da política
externa brasileira possibilitou a projeção dos negócios, interesses e da expansão
do capital de atores privados brasileiros, principalmente para países da América
do Sul e da África. Nessa perspectiva, o Sul-Sul foi, portanto, o espaço geopolítico
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
45Karen Honório
mais favorável à expansão do capitalismo brasileiro a partir de uma projeção
neodesenvolvimentista da política externa brasileira.
A América do Sul, a partir do nexo entre a orientação Sul-Sul e o neodesen-
volvimentismo, foi o espaço prioritário de ação da política externa. A mobilização
de recursos, acordos, consensos e negociações que beneficiaram a expansão dos
interesses de atores privados econômicos brasileiros se deu por meio de forte
ativismo governamental em âmbito multilateral e bilateral, a partir de duas
projeções do Brasil na região: 1) a projeção política do Estado brasileiro na América
do Sul, com o estabelecimento e promoção de arranjos de governança regional e
2) a projeção econômica, incorporando, a lógica integracionista da política regional,
presente também nas relações bilaterais, os interesses de setores privados brasileiros.
A projeção política:
a América do Sul como espaço de governança regional
O período de 2003 a 2010 foi de forte politização do espaço sub-regional e de
institucionalização da América do Sul na política externa brasileira (PEDROSO,
2014). O período inaugurou uma trajetória de ampliação da capacidade de
atuação e persuasão do Brasil no subcontinente (MARIANO; RAMANZINI 2018).
O ativismo de alto perfil do governo brasileiro foi determinante para os resultados
do regionalismo sul-americano no período, a saber: 1) o fim das negociações
da ALCA na Cúpula de Mar Del Plata em 2005, posição forjada desde 2003
no Consenso de Buenos Aires; 2) a ampliação multidimensional da agenda da
integração regional, com destaque para temas ligados ao desenvolvimento;
3) a virada social e a criação de mecanismos de redução das assimetrias no âmbito
do MERCOSUL e 4) a criação da União Sul-Americana de Nações (UNASUL).
Em linhas gerais, a construção da governança sul-americana através dos
mecanismos multilaterais regionais se baseou na acomodação dos projetos
venezuelano e brasileiro para a região, com predomínio das propostas brasileiras
(BRICENO, 2010; PEDROSO, 2014). Tal acomodamento se deu ao longo dos oito
anos de governo Lula, por meio de cúpulas sub-regionais nos mais diversos
temas, da cooperação bilateral e da criação de espaços de decisão multilaterais
intergovernamentais que possibilitaram a resolução de conflitos entre os países
sul-americanos sem interferência de atores extra regionais, principalmente dos
Estados Unidos.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
46 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
Conforme Lima (2018), o forte componente geograficamente orientado para
a região na política externa brasileira esteve relacionado à interpretação do
governo brasileiro de que a ordem global passava por um momento de transição
a contornos multipolares, e nesse sentido, a América do Sul poderia se configurar
como um novo polo possível. A posse de recursos estratégicos, a inexistência de
conflitos inter-regionais e a relativa estabilidade de suas instituições nacionais,
quando comparadas a outras regiões do Sul global, legitimavam tal interpretação
(LIMA, 2018).
A aproximação política do Brasil com os países sul-americanos ocorreu desde
os momentos iniciais do governo. No primeiro ano de mandato, o presidente e
membros de sua equipe tinham visitado ou recebido a visita de todos os líderes
dos países Sul-Americanos
7
. Nesse sentido, o governo brasileiro intensificou as
relações diplomáticas bilaterais com todos os países da região, foram criados
canais políticos e econômicos que possibilitaram a implementação da agenda
multilateral da integração regional pela via bilateral. O empenho nas relações
bilaterais do país também foi replicado no estímulo à criação de mecanismos
formais e informais de governança regional.
A reativação das relações entre os governos sul-americanos e o governo
brasileiro teve como base material ações no sentido de fomentar o desenvolvimento
de temas como o financiamento brasileiro a obras de infraestrutura, a redução das
assimetrias entre o país e os demais vizinhos e uma ampla agenda temática no
campo da cooperação para o desenvolvimento. A chegada ao poder de governos
populares e de apelo anti-neoliberal, a partir de meados da década de 2000,
significou, em um primeiro momento, espaço favorável para o fortalecimento
político do governo brasileiro na região.
O ativismo brasileiro na busca de coordenação política regional foi importante
para que o governo estabelecesse seus vínculos bilaterais a partir de um atrelamento
de seus objetivos à agenda regional mais ampla, mesmo que, na prática,
determinada dimensão da agenda bilateral não guardasse relação stricto sensu
com a integração regional. Pode-se dizer que o saldo da política regional dos
governos Lula foi a criação de instituições de governança regional e a aceleração
do processo de regionalização, sob orientação neodesenvolvimentista fortemente
imbricada com a projeção dos interesses de atores privados brasileiros.
7 Conforme informações no site do Ministério de Relações Exteriores do Brasil (MRE), no primeiro semestre
de 2003, membros do governo brasileiro visitaram ou receberam visitas oficiais dos governos da Argentina,
Colômbia, Paraguai, Peru, Bolívia, Venezuela, Equador e Uruguai. No segundo semestre de 2003, Suriname,
Guiana e do Chile.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
47Karen Honório
Conforme Saraiva (2013), a vontade política do presidente Lula, que contemplou
as visões de setores do governo como os autonomistas do Itamaraty e de geopolíticos
nacionalistas/desenvolvimentistas que viam o desenvolvimento da infraestrutura
regional como elemento importante para o crescimento econômico e político
brasileiro, traduziu-se em uma ação governamental na América do Sul permeada
por iniciativas de cooperação regional bilateral e mecanismos multilaterais de
baixa institucionalidade.
A criação da UNASUL pode ser avaliada como uma estratégia permanente de
incentivos políticos do governo brasileiro para a consolidação de uma ordem regional
mínima, por meio de uma instituição que estimulasse a formação de consensos
em diferentes áreas de cooperação e na gestão de crises políticas regionais, em
um marco institucional que não prejudicasse o caráter intergovernamental da
governança regional (MEDEIROS; TEIXEIRA JUNIOR; REIS, 2017). A UNASUL,
instituição intergovernamental de alto perfil político mas de baixa institucionalidade,
multidimensional em sua agenda temática e que progressivamente buscou unificar
os comportamentos dos países em temas setoriais, tornou-se o principal canal
de ação multilateral da diplomacia brasileira (SARAIVA, 2013; LIMA; PINHEIRO;
MILANI, 2017).
Por meio da UNASUL, a diplomacia brasileira construiu posições comuns
com os países vizinhos, garantindo estabilidade regional e respostas em bloco
a respeito de temas da política internacional (SARAIVA, 2013). O ativismo do
governo no cenário regional e o estímulo à criação de instituições de governança
trouxeram a percepção de que a coordenação política sul-americana no período
se desenvolveu sob liderança brasileira. O exercício de liderança do Brasil na
América do Sul ponderou as ações governamentais com objetivos que reforçavam
os posicionamentos e aspirações do país nos organismos internacionais (SPEKTOR,
2010; MALAMUD, 2012) e garantiam a expansão dos interesses comerciais e
econômicos brasileiros junto aos vizinhos.
Nesse sentido, a projeção política brasileira pela via multilateral, como, por
exemplo, na UNASUL, viabilizaria o avanço da regionalização da agenda bilateral
brasileira para a América do Sul, criando maior interdependência de agentes
políticos e econômicos em cada dimensão tratada (infraestrutura, financiamentos,
defesa, combate às assimetrias) sob o verniz da convergência política no âmbito
da integração regional. No entanto, a liderança brasileira no cenário político sul-
americano, conforme apontado na seção anterior, foi interpretada por grande
parte dos analistas como elemento de credenciamento do país para atuar como
global player.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
48 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
Burges (2008) define a postura brasileira na América do Sul através do conceito
de hegemonia consensual, na qual o país exercitaria sua liderança por meio do
estabelecimento de consensos regionais. Próximos ao conceito de Burges estão a
ideia de liderança branda (GAIO; PINHEIRO, 2014; SARAIVA, 2010) e de cooperação
para a autonomia (MEDEIROS; TEIXEIRA JUNIOR; REIS, 2017). Tais conceitos
trazem consigo a ideia de que a projeção política brasileira, principalmente através
de instituições multilaterais regionais de baixa institucionalidade e que primavam
pela formação de consensos, foi instrumental à defesa da autonomia do país para
atuar na política internacional.
Foi destacada por Riggirozzi e Tussie (2015) a interpretação dos consensos
construídos coletivamente pela acomodação dos interesses dos países em
instituições com baixo perfil institucional na América do Sul como funcional,
não apenas para a manutenção da autonomia do país como global player mas,
e principalmente, necessário para a própria efetivação dos interesses de setores
privados da política externa brasileira na região. As autoras citadas apontam que
o perfil do país se guiou mais pela busca do seu desenvolvimento econômico do
que por se tornar um hegemon regional ( RIGGIROZZI; TUSSIE, 2015).
Em linha com a interpretação de Riggirozzi e Tussie, aponta-se que a projeção
política do governo brasileiro no subcontinente possibilitou o estabelecimento de
dinâmicas complexas nas quais foi possível articular ativismo diplomático orientado
para o aprofundamento da integração regional multilateral e o impulsionamento
dos interesses de atores privados brasileiros nos países da região. Nesse sentido,
a construção de uma governança regional na qual a importância política do
Brasil era reforçada, assim como seu protagonismo marcado pelo forte ativismo
diplomático e a disposição para contribuir com o desenvolvimento da região, foi
instrumental para a efetivação da expansão do capitalismo brasileiro sob modelo
neodesenvolvimentista.
A projeção política do Brasil na América do Sul, envolvendo a articulação
dos conteúdos e práticas multilaterais e bilaterais conforme frisado, viabilizou a
projeção econômica de atores domésticos brasileiros. Portanto, em concordância
com Lima (2014), há simultaneidade nas dinâmicas políticas e econômicas do
Brasil no subcontinente, ou seja, a importância política do Brasil no período e a
regionalização do capitalismo brasileiro não podem ser dissociados da política
regional brasileira.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
49Karen Honório
A projeção econômica: a América do Sul como espaço
de expansão do capitalismo brasileiro
Conforme dados oficiais do governo, as exportações brasileiras para a
América do Sul durante os mandatos de Lula aumentaram aproximadamente
165%, passando de US$ 10, 1 bilhões em 2003 para US$ 27 bilhões em 2009,
conforme gráfico 1 abaixo. As importações oriundas de países sul-americanos no
mesmo período representaram 15% do total importado pelo país, o superávit do
Brasil com a região passou de US$ 2, 5 bilhões em 2003 para US$ 7, 9 bilhões em
2009, um aumento de 216 %. O saldo comercial do Brasil com a América do Sul
correspondeu a 31% do superávit comercial total do país com o resto do mundo
(POLITICA..., s/d, p.21).
Gráfico 1 – Total de Exportações Brasil – América do Sul (1997-2009)
0
5.000.000.000
10.000.000.000
15.000.000.000
20.000.000.000
25.000.000.000
30.000.000.000
35.000.000.000
40.000.000.000
45.000.000.000
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Valores em US$ Bilhões
Exportaçã
o
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados do Comex Stat (MIDIC) 2019.
Os números expressivos indicam a importância dos países da América do Sul
para a política comercial brasileira no período. Vale destacar que a maior parte
dos produtos brasileiros exportados para a região foi de mercadorias de alto valor
agregado, o que qualifica o tipo de comércio estabelecido entre o Brasil e esses
países como estratégico para a manutenção do desenvolvimento tecnológico de
setores importantes da indústria brasileira. A diversificação da pauta exportadora
na América do Sul no período pode ser analisada como resultado direto dos
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
50 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
esforços de implementação da política externa ancorada na opção Sul-Sul de
inserção internacional do país em sentido amplo.
A articulação das diretrizes políticas do Sul-Sul com a projeção econômica
do Brasil nos regimes econômicos internacionais fez parte de uma estratégia
diplomática que buscava, por meio de uma atuação intensa, conforme termos
oficiais, fortalecer o conjunto das economias do Sul global. O intenso ativismo
diplomático do presidente foi categorizado como exemplo de que: “[...] a ação
dos governantes é essencial para combater “a desordem que se instalou nas
finanças internacionais, com efeitos perversos na vida cotidiana de milhões de
pessoas” (POLITICA..., s/d, p.18). Tal política beneficiou a expansão dos negócios
da burguesia interna em mercados do Sul global. O gráfico 2, abaixo, mostra a
distribuição geográfica das empresas transnacionais brasileiras em 2010, segundo
o relatório ‘Ranking das transnacionais brasileiras 2011’, elaborado pela Fundação
Dom Cabral.
Gráfico 2 – Distribuição geográfica das empresas transnacionais brasileiras, 2010
América do Sul
31%
Oceani
a
2%
Ásia
17%
África
10%
América Central
7%
América do
Norte
12%
Europa
21%
Fonte: BERRINGER, 2014, p. 176.
Conforme os dados apresentados, 31% das empresas transnacionais brasileiras
atuavam na América do Sul, sendo esta a maior porcentagem entre os territórios
analisados.
A projeção econômica na América do Sul se articulou, principalmente, com
os objetivos das iniciativas de integração regional e foi ancorada a partir destes.
A ação governamental utilizou os consensos alcançados politicamente como
instrumento de acesso aos mercados dos vizinhos e como canal de projeção de
empresas brasileiras no subcontinente (SARAIVA, 2016
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
51Karen Honório
A prioridade da América do Sul para a projeção do capitalismo brasileiro pode
ser explicada a partir de dois elementos: 1) o entendimento, por parte do governo,
de que a integração regional é o melhor instrumento para o fortalecimento da
posição política e econômica da região no âmbito internacional, especialmente
para o Estado brasileiro e 2) as vantagens econômicas que a burguesia interna
brasileira poderia obter com a exportação de produtos e capitais para essa região
(BERRINGER, 2014).
O comércio de mercadorias, serviços e a internacionalização das grandes
empresas brasileiras foram as principais áreas da projeção econômica do Brasil na
América do Sul (BUGIATO, 2016). A disputa por uma “nova geografia comercial” no
âmbito dos regimes comerciais internacionais, como parte da estratégia brasileira
nessa dimensão da política internacional, incluiu o avanço em direção a formações
sociais de desenvolvimento capitalista mais frágeis, como os países da América
do Sul (BUGIATO, 2016).
As oportunidades geradas a partir da política regional brasileira possibilitaram
às empresas brasileiras atuar cada vez mais no subcontinente e adquirir escala e
competência para, posteriormente, seguir para outros mercados (SCHUTTE, 2012).
O papel do BNDES como instrumento importante para a internacionalização das
empresas brasileiras na região aparece com destaque nas análises sobre a projeção
econômica do Brasil no período.
As linhas de crédito, criadas especialmente para a exportação de serviços e
mercadorias de empresas brasileiras para os países da América do Sul, a partir
de 2004, evidenciou a convergência da política econômica com a política externa
em torno do programa neodesenvolvimentista. Nesse sentido, a política externa
Sul-Sul priorizou os mercados em que a burguesia interna pudesse obter ganhos
e vantagens. “[...] A atuação internacional de empresas nacionais [...] revela
por trás da bandeira da cooperação, desenvolvimento e crítica ao ordenamento
mundial um mercado lucrativo [...] com exportação de produtos industrializados,
serviços de engenharia e investimento externo direto” (BUGIATO, 2016, pág.
XX). Na tabela 1, apresentam-se as trinta maiores empresas transnacionais
brasileiras e os respectivos ramos de atuação em 2010. Os dados também indicam
aquelas que contaram com o apoio do BNDES para suas operações realizadas
no exterior.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
52 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
Quadro 1 – Maiores Empresas Transnacionais Brasileiras, 2010.
Posição Empresa Ramo
Operações com
sistema BNDES
1 JBS Friboi Alimentos Sim
2 Gerdau Siderurgia e metalurgia Sim
3 Ibope Pesquisa de mercado Não
4 Metalfrio Máquinas e materiais elétricos Não
5 Odebrecht Obras de infraestrutura Sim
6 Marfrig Alimentos Sim
7 Vale Mineração Sim
8 Sabó Autopeças Não
9 Tigre Material de construção Não
10 Suzano Papel e celulose Sim
11 Artecola Químico Não
12 Lupatech Máquinas e materiais elétricos Sim
13 Camargo Côrrea Obras de infraestrutura Sim
14 Ci&T Tecnologia da Informação Não
15 Marcopolo Veículos automotores e carrocerias Sim
16 WEG Máquinas e materiais elétricos Sim
17 Stefanini IT Solutions Tecnologia da Informação Sim
18 Votorantim Produtos Minerais Sim
19 ALL Transporte Terrestre Sim
20 TAM Transporte Aéreo Não
21 Embraer Equipamentos de transporte Sim
22 Natura Cosméticos Sim
23 Petrobrás Petróleo e gás natural Sim
24 Bematech Máquinas e materiais elétricos Sim
25 Alusa Energia elétrica Sim
26 Spoleto Alimentos Não
27 Andrade Gutiérrez Obras de infraestrutura Sim
28 Itaú S/A Instituição financeira Sim
29 Totvs Tecnologia da informação Sim
30 DHB Máquinas e materiais elétricos Não
Fonte: BUGIATO, 2016, p.230.
Dentre as atividades econômicas brasileiras na América do Sul impulsionadas
a partir da política externa, as obras de infraestrutura realizadas por empresas
brasileiras ganharam destaque pelos altos montantes envolvidos e por uma
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
53Karen Honório
dinâmica complexa de financiamento que envolveu a triangulação e negociação
entre governos e empresas (HONORIO, 2019). O governo brasileiro, ao longo dos
oito anos, transformou a infraestrutura no eixo estratégico de sua agenda bilateral
com os países da região. A articulação da temática com a integração regional
em âmbito multilateral no subcontinente foi expressada em inúmeros discursos
em cúpulas regionais e encontros bilaterais do presidente Lula e sua equipe, os
quaisdeclaravam que a integração física era a integração “real” da América do
Sul (HONORIO, 2019).
A projeção dos negócios das construtoras brasileiras na região por meio
da ação diplomática do governo se ancorou, portanto, na consolidação de uma
arquitetura política multilateral e bilateral em torno da convergência sobre a
importância da infraestrutura. Outra faceta dessa projeção esteve articulada à
disponibilização de políticas, recursos e mecanismos de incentivo domésticos
que impulsionaram a ação das construtoras no subcontinente, oportunizadas no
campo político multi e bilateral.
Nesse sentido, conforme dados do BNDES (2019), os desembolsos do Banco
para o financiamento de exportações de serviços de engenharia realizados por
empresas brasileiras em países da América do Sul, de 2003 a 2010, chegaram a 2,
4 bilhões de dólares. Ressalta-se que o mencionado montante dos financiamentos
às exportações dos serviços das empresas brasileiras na região se refere apenas
àqueles que foram executados via BNDES. Há outras fontes de financiamento
às empresas brasileiras na região, como o Programa de Exportação do Banco do
Brasil (PROEX-BB) e a Corporação Andina de Fomento (CAF).
O Balanço de Política Externa Brasileira 2003-2010, elaborado pelo governo
brasileiro, indica, no item Infraestrutura e Transporte, que, de 2003 a 2010,
aproximadamente US$ 10 bilhões foram aprovados em financiamentos para
exportação de serviços de empresas de construção civil brasileiras destinadas
à realização de obras em países da América do Sul. No entanto, torna-se difícil
sistematizar os desembolsos que levariam a essa soma, posto que os dados da
CAF e do PROEX-BB não são de fácil acesso (HONORIO, 2019). O crescimento
da atuação desse setor na América do Sul no período pode ser observado em
comparação aos dados de financiamento do BNDES às empresas de construção
civil com o governo anterior
8
.
8 O BNDES disponibiliza em seu sítio web dados sobre os financiamentos das exportações pós-embarque,
modalidade utilizada no setor dos serviços de infraestrutura, a partir de 1998. Não foi possível, portanto, obter
dados referente ao primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
54 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
Tabela 2 – Desembolsos do BNDES para obras de infraestrutura
na América do Sul (1998-2010) em US$
País 1998-2002 2003-2010
Argentina 1.216.873.008
Equador 484.922.276
Paraguai 76.998.393
Peru 58.134.556
Uruguai 21.325.803 18.937.037
Venezuela 107.500.000 1.159.268.258
690.746.472 2.453.212.859
Fonte: Elaboração da autora a partir de dados do BNDES (2019).
Conforme os dados acima, houve crescimento de aproximadamente 3, 5
vezes do montante referente aos financiamentos para infraestrutura na América
do Sul entre os períodos analisados. No período analisado, os principais destinos
dos financiamentos das exportações dos serviços e bens de infraestrutura, em
valores, foram Venezuela, Argentina, Peru e Uruguai. A tabela 3 aponta, em ordem
decrescente, as principais empresas beneficiadas via BNDES, considerando os
valores destinados à exportação de seus serviços, nos governos Lula.
Tabela 3 – Empresas de construção civil beneficiadas com financiamentos
do BNDES (2003-2010) em US$
Empresa Valor
Odebrecht S/A 1.960.006.275
Andrade Gutiérrez S/A 448.678.598
Confab Industrial S/A 25.591.950
OAS S/A 7.000.000
Schahin Engenharia S/A 2.595.818
2.443.872.641
Fonte: Elaboração da autora a partir de dados do BNDES (2019).
A tabela 4 detalha os projetos mais relevantes em termos de valores realizados
na América do Sul com financiamentos do BNDES por essas empresas.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
55Karen Honório
Tabela 4 – 5 obras com maiores valores de financiamentos do BNDES
na América do Sul (2003-2010) em US$.
Empresa Obra
País
destino
Data da
Contratação
Valor
Odebrecht S/A Linha II Metrô de Los Teques Venezuela 2009 492.975.887
Andrade Gutiérrez S/A
Usina Siderúrgica Nacional
no estado de Bolívar
Venezuela 2010 390.544.042
Odebrecht S/A Linha V do Metrô de Caracas Venezuela 2010 197.749.330
Odebrecht S/A Linha III do Metrô de Caracas Venezuela 2004 78.000.000
Andrade Gutiérrez S/A
Construção da Planta de
dessalinização de Água —
Projeto Bayovar
Peru 2010 58.134.556
Fonte Elaboração da autora a partir de dados do BNDES (2019).
Observação importante a ser pontuada, uma vez que não é possível chegar
a ela a partir da simples análise dos números, é o fato de que o BNDES utiliza
as datas das assinaturas dos contratos entre as empresas brasileiras e os entes
públicos ou privados contratantes das obras nos países como referência em suas
planilhas. No entanto, conforme Honório (2019), nem sempre essas datas indicam
corretamente quando o financiamento do BNDES foi efetivamente liberado/
operacionalizado.
Um exemplo nesse sentido foi o financiamento da Usina Hidrelétrica de San
Francisco, no Equador. Dos US$ 484 milhões indicados na tabela 2, US$ 242
milhões se referem a essa obra, porém o contrato do consórcio responsável pelo
projeto, do qual a Odebrecht fazia parte, com o governo equatoriano foi firmado
no ano 2000. Apesar disso, só em 2003, após negociação direta entre Lula e o
presidente Lucío Guttiérrez, quando da visita deste último ao Brasil para tratar do
tema, o governo equatoriano ratificou as condições necessárias para a concessão
do financiamento (HONORIO, 2019).
A atuação política do governo brasileiro foi decisiva, nesse caso, para a
operacionalização do contrato. No comunicado resultante da visita em 02 de
outubro de 2003, intitulado Comunicado à imprensa sobre obras de infraestrutura
na América do Sul, o governo brasileiro destacou o desfecho exitoso do acordo
com o Equador como importante conquista para o setor exportador brasileiro e
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 33-60
56 Política regional e projeção de interesses privados: problematizando a América do Sul nos governos Lula
apontou, ainda, que a decisão equatoriana “[...] abria caminho para transformar
em realidade uma nova dimensão da política brasileira na América do Sul: a de
dar prioridade a iniciativas efetivas de integração física com nossos parceiros na
região” (RESENHA..., 2003, p. 318).
A ampliação do número de obras de infraestrutura em realização nos países da
América do Sul por empresas brasileiras, com financiamentos públicos do governo
brasileiro durante os anos Lula, pode ser utilizada como exemplo da projeção de
interesses de setores privados na expansão econômica do país na região, conforme
se defende neste artigo. O ativismo governamental no tema dos financiamentos à
infraestrutura, tanto pela via multilateral quanto bilateral, foi determinante para
os acordos políticos que viabilizaram os financiamentos brasileiros para obras e
projetos de infraestrutura em países sul-americanos. Nesse sentido, uma vez que
as liberações dos financiamentos são condicionadas à contratação de serviços ou
empresas brasileiras, os acordos bilaterais negociados nesse âmbito garantiram a
projeção dos interesses das construtoras brasileiras.
A mobilização, por parte do governo, de recursos diplomáticos e domésticos
para que as obras fossem negociadas com financiamentos do governo brasileiro e,
portanto, executadas por empresas brasileiras, esteve diretamente relacionada com
a agenda bilateral de mais alto nível político do governo brasileiro na negociação
dos projetos com os países da região. Pontua-se que a projeção da expansão
desse setor brasileiro na América do Sul não se explica apenas como resultado
do fortalecimento/criação de políticas domésticas que impulsionaram o processo
de internacionalização dessas empresas na região. O estímulo proporcionado
pelo novo perfil do BNDES e suas novas linhas de financiamento se ancorou,
em termos políticos, no ativismo diplomático governamental, que possibilitou a
projeção desse setor da burguesia interna por meio da negociação política das
obras bilateralmente.
Sustenta-se assim, que a expansão do capitalismo brasileiro na América do
Sul, nos marcos do neodesenvolvimentismo, deu-se, necessariamente, por meio
da articulação das projeções política e econômica do Brasil na região. O ativismo
político por parte do governo brasileiro foi determinante para que as possibilidades
de atuação e presença de atores econômicos privados brasileiros fossem ampliadas
através da política regional.
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Conclusões
O artigo analisou o papel da América do Sul na política externa dos governos
Lula, a partir da articulação da política externa com o modelo de desenvolvimento
implementado pelo governo no período, o neodesenvolvimentismo. Desenvolveu-
se, ao longo do texto, o argumento de que a América do Sul foi o espaço prioritário
de articulação da orientação Sul-Sul da política externa e da projeção econômica
dos interesses de atores privados do capitalismo brasileiro, a partir da dupla
presença, política e econômica, do país na região. A expansão de setores do
capitalismo brasileiro, por meio das ações da política regional, traz ao centro do
debate a articulação de interesses de atores privados nas diretrizes Sul-Sul da
política externa brasileira. O subcontinente deve ser entendido não apenas como
plataforma de projeção global do Estado brasileiro, mas também como o lócus
possível à expansão de setores do capitalismo brasileiro.
O ativismo do governo em prol da construção de mecanismos que viabilizassem
a projeção política e econômica do Brasil por meios multilaterais e bilaterais foi
fundamental para a criação de consensos, mobilização de acordos e negociações
que beneficiaram atores privados brasileiros, como as empresas de construção
civil. Em suma, a política para o subcontinente buscou, de maneira articulada,
1) projetar politicamente o Estado brasileiro na América do Sul por meio dos
arranjos de governança regional e 2) projetá-lo economicamente, incorporando
na lógica integracionista da política regional, manifestada também nas relações
bilaterais, os interesses de setores econômicos privados brasileiros.
A conciliação das diretrizes solidárias da orientação Sul-Sul e dos interesses
privados de setores nacionais sob o neodesenvolvimentismo na política regional,
foi balanceada na ação brasileira por meio de iniciativas de integração regional e
de cooperação para o desenvolvimento em diversas temáticas. A compreensão da
política regional no período, a partir de relações indissociáveis entre a orientação
da política externa e os interesses de atores privados, lança luz à complexidade
da interpretação da presença brasileira na América do Sul no início do século
XXI. A relação apresentada no artigo entre a orientação Sul-Sul e a projeção
neodesenvolvimentista na política regional, pontuando que não é possível definir
qual das duas foi mais determinante para a ação do governo, contribui para que
a agenda de pesquisa sobre a política externa brasileira regional no período e
suas interpretações sejam ampliadas, trazendo novas questões sobre o papel do
Brasil na América do Sul.
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