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O pensamento geoestratégico e os documentos
estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
Geostrategic thinking and strategic documents
of the United States in the post-Cold War
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.808
Raphael Padula
1
Resumo
O propósito do artigo é mostrar que há uma conexão entre o pensamento geopolítico clássico
anglo-saxão (Mahan, Mackinder e Spykman), as formulações geoestratégicas de Brzezinski e
Kissinger durante a Guerra Fria e o pós Guerra Fria, e os documentos estratégicos dos Estados
Unidos nesse último período. Essa hipótese é comprovada através da prioridade atribuída
à Eurásia (relações Leste-Oeste, no hemisfério Norte), mudando somente a intensidade de
atuação em suas diferentes áreas em função da conjuntura histórica. Ao mesmo tempo, não
se deixa de atentar para uma geoestratégia permanente de supremacia na América (hemisfério
Ocidental). A pesquisa se apoia em bibliografia original dos autores abordados e na análise
de documentos estratégicos selecionados de todos os governos estadunidenses na era pós
Guerra Fria entre 1991-2016 (Bush a Obama).
Palavras-chave: Estados Unidos; Geopolítica; Geoestratégia; Eurásia; OTAN.
Abstract
The papers’ goal is to show the connection between the classical Anglo-Saxon geopolitical
thought (Mahan, Mackinder and Spykman), the geostrategic formulations of Brzezinski and
Kissinger during the Cold War and the Post Cold War era, and the United States strategic
documents in this latter period. Such hypothesis is proved by the priority given to Eurasia
1 Coordenador e Professor Permanente da Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de
Economia (IE/UFRJ), Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) da área de Economia
Política Internacional, da graduação de Relações Internacionais. Economista pelo IE/UFRJ (2004), Mestre (2005)
e Doutor (2010) em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ. Editor da revista Oikos — Revista de Economia
Política Internacional. Membro do grupo de pesquisa "Poder Global e Geopolítica do Capitalismo".
Artigo submetido em 24/05/2018 e aprovado em 23/08/2018.
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(East-West relations in the Northern Hemisphere), changing only the intensity of action in its
different areas in due to historical conjuncture. At the same time, a permanent geostrategy
of supremacy in America (Western Hemisphere) is also regarded. The research is based on
the original bibliography of the authors and the analysis of selected strategic documents
from all US governments in the Post Cold War between 1991-2016 (Bush to Obama).
Keywords: United States, Geopolitics, Geoestrategy, Eurasia, NATO.
O homem de Estado que conduz a política externa só pode tomar em conta
os valores de justiça, equidade e tolerância na medida em que contribuam
ao objetivo de poder ou enquanto não interfiram nele. Pode utilizá-los como
instrumentos que desde o ponto de vista moral justifiquem a aspiração de
poder, porém deve rechaçá-los no instante em que sua aplicação se traduza em
debilidade. Não se busca o poder para o alcance de valores morais, porém se
utilizam os valores morais para facilitar a aquisição de poder.
(Spykman, 1942, p. 26, tradução nossa)
2
Introdução
O eixo geográfico de orientação para a geoestratégia dos Estados Unidos é
um tema fundamental no seu debate pós Guerra Fria. Quais seriam as relações
fundamentais para os EUA? Norte-Sul, centrada no hemisfério ocidental ou América?
Ou Leste-Oeste, centrada no hemisfério Norte ou nas relações da América do Norte
com a Eurásia (KAPLAN, 2015)? Ao mesmo tempo, a dimensão ética aparece
permanentemente nos debates sobre política externa dos EUA (ANDERSON, 2015).
O argumento central do artigo é de que há uma conexão entre o pensamento
geopolítico clássico anglo-saxão (Mahan, Mackinder e Spykman), as formulações
geoestratégicas de Brzezinski e Kissinger durante a Guerra Fria e o pós Guerra
Fria, e os documentos estratégicos dos EUA nesse último período, até o governo
Barack Obama (1991-2016). A hipótese principal é de que tal conexão se comprova
através da prioridade atribuída à Eurásia (relações Leste-Oeste no hemisfério Norte),
mudando somente a intensidade de atuação em diferentes áreas do continente em
2 “The statesman who conducts foreign policy can concern himself with values of justice, fairness, and tolerance only
in the extent that they contribute to or do not interfere with the power objective. They can be used instrumentally as
moral justification for the power quest, but they must be discarded the moment their application brings weakness.
The search for power is not made for the achievement of moral values; moral values are used to facilitate the
attainment of power”.
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função da conjuntura histórica. Ao mesmo tempo, não se deixa de atentar para
uma geoestratégia permanente de supremacia na América (hemisfério ocidental).
A pesquisa se apoia em bibliografia original dos autores abordados e na análise
de documentos estratégicos selecionados de todos os governos estadunidenses
na era pós Guerra Fria. Kissinger e Brzezinski foram selecionados em razão de
sua influência no debate geoestratégico e nos governos dos partidos Republicano
e Democrata, respectivamente.
Vale ressaltar que, no debate geoestratégico estadunidense, tais posições se
diferenciam de autores que defendem uma menor ou mesmo retirada da participação
dos EUA na Eurásia (e na OTAN), como Mearsheimer e Walt (2016), no primeiro
caso, ou Huntington (2005) e Kaplan (2015), no segundo — que defendem que a
principal ameaça aos EUA viria de suas relações com o hemisfério ocidental, ou
do México, em particular. No entanto, por razões de escopo e espaço, esse debate
não será objeto desse artigo.
Para cumprir seu objetivo, o artigo se divide em 5 seções, além da introdução.
A primeira resume a posição dos autores da geopolítica clássica anglo-saxã.
A segunda sintetiza as visões de Brzezinski e Kissinger sobre a Guerra Fria.
A terceira aborda a visão dos mesmos autores para a era pós Guerra Fria.
A quarta seção apresenta uma análise dos documentos estratégicos selecionados.
A última seção apresenta as considerações finais.
A geopolítica clássica: centralidade da Eurásia e hegemonia
hemisférica
Mesmo antes da formação de um pensamento geopolítico, um dos pais-
fundadores dos EUA, Alexander Hamilton (1787), em um dos seus artigos que
formaram os Federalist Papers, aponta que da união das treze colônias emergiria
um grande sistema capaz de equilibrar as relações de poder no Atlântico Norte e
ditar os termos das relações entre o Velho e o Novo Mundo. A Doutrina Monroe,
anunciada pelo presidente estadunidense ao congresso em 1823, explicitou a
preocupação com a projeção de potências externas no hemisfério ocidental,
e assim o perímetro de segurança dos EUA.
Mais especificamente, o debate da geopolítica clássica, especialmente os autores
da escola anglo-saxã, trouxeram importantes contribuições para a formulação da
geoestratégia estadunidense, assim como para o seu debate atual. Ao estudar a
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evolução do domínio marítimo britânico como a fonte de sua supremacia global, o
almirante estadunidense Mahan (1890) salienta a importância do domínio de ilhas
transoceânicas, de passagens estratégicas e portos continentais para o controle
de rotas marítimas estratégicas. Na verdade, esse é um dos pilares da política
externa britânica, desde que abandonou sua política de tentar se expandir pelo
continente europeu, após a guerra dos Cem Anos (1337-1453) contra a França. Ao
pregar a necessidade do desenvolvimento do poder naval estadunidense, Mahan
prescreveu como imprescindível no curto prazo o domínio do Mar do Caribe e do
Golfo do México, assim como a construção de um canal transoceânico no istmo do
Panamá sob o controle estadunidense, para que suas marinhas de guerra e mercante
auferissem maior capacidade de mobilidade entre os oceanos Atlânticos e Pacífico,
proporcionando maior segurança territorial e maior expansão produtiva-industrial
e comercial. Assim, o autor justificou o imperialismo dos EUA na América Latina
por questões de segurança e de expansão industrial-comercial. Ainda, no médio
prazo, apontou que os EUA deveriam controlar o triângulo Panamá-Havaí-Alaska,
para sua segurança no Pacífico, e emergir como um grande poder no Atlântico
Norte.
Já o geógrafo britânico Mackinder (1904), ao formular sua teoria da supremacia
do poder terrestre, apontou a Eurásia como o continente basilar para o equilíbrio
ou disputa de poder global, por razões materiais: massa territorial, população,
recursos econômicos e industriais e poder militar. Na sua visão, o Estado (ou
aliança) que dominasse a Eurásia controlaria os rumos da política mundial. Na
verdade, olhando para um autêntico domínio terrestre exercido pela Rússia na área
central da Eurásia, e ainda vislumbrando a possibilidade de domínio ou aliança
com a Alemanha na área central da Europa, o autor colocou em evidência um dos
pilares da política externa britânica, praticados desde a contenção da expansão
do Império Habsburgo nos séculos XV-XVI: estabelecer um poder dividido e
equilibrado na Eurásia, sem deixar que nenhuma potência ou aliança alcance a
supremacia. Ou ainda, o princípio da política de contenção nas bordas da Eurásia,
para evitar que o poder terrestre se torne anfíbio.
Mas foi Spykman (1942) que sintetizou a geoestratégia estadunidense, partindo
de sua posição geográfica. O autor a um só tempo justifica o intervencionismo
(e a preocupação com o equilíbrio de poder) na Eurásia e a hegemonia no
hemisfério ocidental. Spykman observa um paralelismo geográfico entre a América
do Norte e a Eurásia, por terem a mesma vizinhança (Atlântico, Pacífico e Mar
Ártico) e, portanto, se cercarem mutuamente, estando próximas e interligadas por
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ilhas transoceânicas — ainda mais com o avanço do poder aéreo e das tecnologias
que proporcionam maior raio de alcance para a agressão militar. Assim, os EUA
seriam uma ilha transoceânica cercada pelas extremidades da Eurásia e deveria
atuar permanentemente nessa área geográfica para promover seu equilíbrio de
poder, além de dominar as ilhas transatlânticas e transpacíficas. Não interessaria
uma federação da Europa formando um único ator com supremacia na região.
Na América, hemisfério ocidental, a supremacia estadunidense não poderia ser
ameaçada, dentro do seu objetivo mais amplo de segurança; não só na “América
Mediterrânea” (Mar do Caribe e Golfo do México, incluindo Venezuela e Colômbia),
mas também na “zona equidistante meridional” ao sul do Amazonas, para utilizar
as referências espaciais de Spykman. Por haver um desequilíbrio de poder tão
grande e revelado, e também pela proximidade e continuidade geográfica, a política
estadunidense deveria ser de hegemonia, promovendo a permanente dependência
política de seus Estados, e afastando a projeção e alianças de potências externas.
Sobretudo, seria necessário dispor de seus recursos e territórios estratégicos por
razões de segurança, formando um sistema autárquico, caso alguma potência ou
aliança viesse a dominar a Eurásia.
Brzezinski e Kissinger: a geoestratégia na Guerra Fria
A Geopolítica de Contenção à expansão e à influência da União Soviética
praticada pelos EUA durante a Guerra Fria, formulada por George Kennan em seu
“longo telegrama” e colocada em ação inicialmente pela Doutrina Truman, seguiram
a ideia de que a Eurásia seria o continente basilar na disputa de poder global, ainda
que o presidente tenha se apoiado no discurso da luta do bem contra o mal. Do
ponto de vista da segurança, isso se cristalizou na formação da Organização do
Tratado da Aliança do Atlântico Norte (OTAN) em 1949. Na extremidade oriental
da Eurásia, foram estabelecidos acordos de segurança bilaterais, após a Revolução
Comunista na China em 1949 e a Guerra na Península da Coreia iniciada em 1950.
Brzezinski e Kissinger formularam visões geoestratégicas e guias de ação para os
EUA nesse sentido, mantendo o foco geopolítico na Eurásia.
Brzezinski (1986), em Game Plan, apontou a Eurásia como o continente
basilar na confrontação entre EUA e URSS. Ainda, atribuiu uma razão geográfica
para o conflito e seus possíveis desdobramentos, ao afirmar que se tratava de
uma colisão entre uma potência marítima transoceânica, que passou a identificar
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as bordas da Eurásia como seu perímetro de segurança e área de atuação,
e um poder terrestre transcontinental, que tinha como imperativo geoestratégico
a expansão para essa mesma área da Eurásia em busca de uma saída para os
“mares quentes”. A primeira tentava conter a segunda e confiná-la no interior da
Eurásia, enquanto a segunda buscava expulsar a primeira da Eurásia e isolá-la
no continente americano.
Para o autor, tal rivalidade pela Eurásia se desenvolveu em três frentes
estratégicas, originadas em diferentes momentos, a saber: na extremidade ocidental
da Eurásia, entre 1947-1949, com a tentativa de ascensão comunista na Grécia
e na Turquia e a Crise de Berlim; na extremidade oriental da Eurásia, originada
com a Revolução Comunista na China em 1949 e a Guerra da Coreia em 1950;
a frente do Sudoeste Asiático, envolvendo o Oriente Médio, impulsionada em
1979 pela invasão soviética ao Afeganistão e pela Revolução Islâmica no Irã.
O controle dessa última área seria crucial para o poder de barganha e influência
dos EUA sobre as demais em razão de sua importância para o abastecimento
de petróleo, não só dos EUA, mas para os aliados. Seu controle possibilita aos
EUA a capacidade de atuar como uma espécie de garantidor do acesso aos bens
energéticos — ou do funcionamento do “mercado”, além de negar acesso a rivais
revelados ou potenciais. Isso se cristalizou na chamada Doutrina Carter formulada
por Brzezinski como seu assessor de segurança, sintetizada pelo presidente no
seu discurso ao congresso em 1980 (KLARE, 2005).
Embora não desenvolva suas reflexões fundamentadas em fatores geográficos,
mas em termos de balança de poder, Kissinger (1994), em Diplomacia, destaca a
importância da estratégia estadunidense para a Eurásia como um elemento basilar
para sua supremacia e rivalidade diante da URSS. Na referida obra, destaca que,
a partir da percepção de temor mútuo entre URSS e China, formulou e trabalhou
junto ao presidente Nixon na diplomacia triangular como estratégia geopolítica
dos EUA frente à URSS e à China, aproximando os EUA da última.
Ambos, Brzezinski e Kissinger, encaram a supremacia hemisférica dos EUA
como um fator permanente na sua geoestratégia no âmbito da Guerra Fria. Portanto,
a América Latina é vista como uma área periférica, mas de intervenção contínua
dos EUA. Vale colocar em relevo as formulações de James Burnham (1947), na qual
a visão geopolítica de contenção é ampliada para regiões mais periféricas onde a
penetração do comunismo se caracterizaria pela criação de redes de subversão.
Nessas áreas e países, os EUA deveriam atuar apoiando a contenção da guerra
revolucionária e insurrecional.
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Brzezinski e Kissinger: a geoestratégia dos EUA no pós Guerra Fria
No debate geoestratégico dos EUA no século XXI, Brzezinski e Kissinger seguem
apontando a centralidade das relações Leste-Oeste em suas análises geoestratégicas,
ou seja, entre os países do hemisfério norte. Mais especificamente, o equilíbrio de
poder na Eurásia a ser promovido pelos EUA segue como decisivo. Mas, dependendo
da conjuntura, atribuem foco e intensidade de atuação estratégica estadunidense
diferenciada para as áreas da Eurásia, conjugando tática e estratégia.
No livro Strategic Vision, assim como no artigo Balancing the East, Upgrading
the West — U.S. Grand Strategy in an Age of Upheaval, Brzezinski (2012a;
2012b) aponta desafios e caminhos para que os EUA mantenham sua posição
de primazia. Quanto às recomendações, o autor começa deixando claro que é
fundamental promover um equilíbrio geopolítico novo e estável na Eurásia, “de
longe, o continente mais importante do mundo” (BRZEZINSKI, 2012a, p.130),
geopoliticamente axial por questões materiais, citando Mackinder. Na sua visão,
os EUA desperdiçaram a oportunidade de avançar no vácuo de poder pós Guerra
Fria, quando emergiu como único superpoder global. Após os ataques de 11 de
setembro de 2001, a “guerra ao terror” de George W. Bush teria transformado os
EUA num “Estado cruzadista”, deixando-o despreparado para encarar os novos
desafios geopolíticos do século XXI e carente de uma visão estratégica de longo
prazo, o que levou a uma deterioração do seu poder relativo. Ao mesmo tempo,
afirma que o presidente Obama não teria promovido as mudanças necessárias
para estabelecer uma visão de longo prazo (BRZEZINSKI, 2012a, p. 122).
A Europa está menos unida e mais fraca (se tornou uma extensão do Ocidente,
sem visão estratégica e dependente militarmente dos EUA), enquanto Turquia e
Rússia ficaram à margem da comunidade ocidental, e no Oriente a China tem
crescido em termos econômicos, políticos e militares, criando rivalidades reais e
potenciais. Assim, para Brzezinski, atualmente a Eurásia apresenta volatilidades
que a colocam como a arena central da geopolítica global, onde: (1) as ameaças
imediatas provém do leste do Canal de Suez, do oeste da província chinesa
de Xinjiang, e da fronteira sul pós soviética (do Cáucaso e da Ásia Central);
(2) o desafio de longo prazo é a contínua mudança do centro de gravidade
(distribuição de poder global) do Ocidente para o Oriente, da Europa para a Ásia,
e possivelmente dos EUA para a China. Essa impõe a necessidade de uma visão
geoestratégica de longo prazo visando a promoção de um equilíbrio de poder
transcontinental na Eurásia (BRZEZINSKI, 2012a, p.123).
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Para isso, Brzezinski propõe que os EUA devem atuar como o promotor e
garantidor de um renovado “Ocidente Ampliado” (Larger West), envolvendo a
Turquia e a Rússia, de forma gradual, por meio de um processo de democratização
e eventualmente aderindo às normas do “Ocidente”. Esse objetivo de longo prazo
poderia ser alcançado no segundo quarto do século XXI. A Turquia se destacaria
por sua influência histórica na área do antigo Império Otomano, por atuar como
uma ponte de acesso da Europa ao Mar Cáspio e à Ásia Central (via aliança com
Geórgia e Azerbaijão), que são áreas disputadas com a Rússia, e por ter sido em
parte já incorporada ao Ocidente através da OTAN. A relevância da Rússia se
deve à sua posição geográfica central e transcontinental na Eurásia, e por ter em
sua orientação geoestratégica a retomada do status de antigo império, que busca
influência sobre a Ásia Central e sobre parte da Europa dividida. Assim, nessa
tarefa, a liderança dos EUA na OTAN seria imprescindível, assim como trabalhar
por uma Europa unida, fomentando a cooperação entre seus atores chave.
Outro tabuleiro seria o “Oriente Complexo”, na região Ásia-Pacífico, onde
os EUA deveriam atuar como um promotor do equilíbrio regional de “um novo
oriente estável e cooperativo”. Para ele, por seu peso econômico e demográfico
frente a uma Europa declinante, essa região é crucial para a estabilidade global.
No entanto, apresenta enorme potencial de eclodir um conflito local que pode
arrastar os EUA e levar a uma guerra maior. Isso se deve às disputas pelo posto
de maior potência regional, combinado com ressentimentos, desconfianças,
contenciosos e conflitos históricos, envolvendo também aliados estratégicos dos
EUA (BRZEZINSKI, 2012a, p.157-158). Para Brzezinski, as ambições chinesas
se tornam cada vez mais claras, assentadas em assertividade nacionalista,
modernização nacional e paciência histórica, que despertam medo e rivalidades
históricas com Japão e Índia, por exemplo. Assim, os EUA deveriam ajudar
os países a evitar uma batalha pelo domínio da região, mediando conflitos e
promovendo o equilíbrio entre rivais. Mas alerta que os EUA não podem mais
impor um equilíbrio de poder à região (BRZEZINSKI, 2012a, p.131, 161). Mas,
para ele, embora seja apontada frequentemente como a sucessora dos EUA, a
China não estaria preparada, disposta ou interessada em assumir o papel global
dos EUA. Pelo contrário, busca maior influência, de forma paciente, cautelosa e
não conflitante, entendendo que um rápido declínio dos EUA levaria a uma crise
global que não a interessaria, já que o país tira proveito da ordem promovida
pelos EUA sem incorrer nos seus custos. Até porque sua geografia possibilita um
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possível cerco por parte dos rivais vizinhos (BRZEZINSKI, 2012a, p.79-89, 119).
Na visão de Brzezinski (2012a), os EUA deveriam se aproximar da China,
e não só diminuir as possibilidades de um conflito EUA-China, mas também
trabalhar para que não haja erros de cálculo e conflitos entre Japão e China, China
e Índia e China e Rússia. Devem buscar estabelecer um triângulo estratégico de
cooperação entre EUA-Japão-China, envolvendo uma duradoura reconciliação
entre China e Japão, e atuar dentro do princípio de que os EUA devem manter
obrigações com Japão e Coreia do Sul, mas, ao mesmo tempo, não permitindo ser
arrastado para uma guerra entre potências asiáticas. Aponta que, nesse quadro
conflitivo potencial, sua estabilidade depende em parte de como os EUA vão lidar
com dois triângulos regionais sobrepostos centrados na China, onde ele pode ser
um ator chave para alterar equilíbrios e resultados (BRZEZINSKI, 2012a, p.162).
Primeiro, o triângulo China-Índia-Paquistão, que envolve a primazia na Ásia entre
os dois primeiros, numa relação inerentemente competitiva e antagônica, tendo o
terceiro como ponto regional de contenção. Nesse caso, o papel dos EUA deve ser
cauteloso e prudente, especialmente na aliança com a Índia, evitando envolvimento
militar, para não despertar ou legitimar uma hostilidade nacionalista chinesa,
que inclusive interessaria à Rússia. A conveniência de tal postura já não ficaria
clara no segundo triângulo, China-Japão-Coreia do Sul, no Sudeste da Ásia, por
envolver a questão da primazia da China frente à posição dos EUA no Pacífico. De
qualquer forma, um Japão fortalecido e ativo traria uma contribuição importante
para a estabilidade global.
Por fim, Brzezinski (2012a, p.181) afirma que, se os EUA forem bem-sucedidos
no Ocidente, formando uma ampla zona de cooperação democrática e estável da
América do Norte à Europa, estendendo-se através da Eurásia (eventualmente
envolvendo Rússia e Turquia) na direção do Japão e da Coreia do Sul, elevaria o
apelo dos princípios centrais do Ocidente frente a outras culturas, encorajando a
emergência de uma cultura política democrática universal.
Kissinger (2014, p. 374), em Word Order, aponta que os EUA precisam de uma
estratégia e de uma diplomacia à altura para manter sua supremacia diante da
complexidade da(s) ordem(s) internacional(is) atual(is). Ao destacar a importância
geopolítica e histórica da parceria atlântica para os EUA, Kissinger assinala que é
fundamental sua renovação e continuidade, assim como apoiar a União Europeia
e evitar que ela desande para um vácuo político, pois:
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Separados da Europa no plano da política, da economia e da defesa, os
Estados Unidos, em termos geopolíticos, se tornariam uma ilha ao largo da
Eurásia, e a própria Europa poderia ser um prolongamento das extensões da
Ásia e do Oriente Médio (KISSINGER, 2014, p.99-100).
Kissinger aponta que a ordem internacional na Ásia é historicamente
caracterizada pela participação de potências externas, atualmente marcada por
uma “variedade de grupos multilaterais e mecanismos bilaterais” (KISSINGER,
2014, p. 210-211), alguns puramente regionais e alguns com participação inclusive
dos EUA ou da Rússia. Na opinião do autor, a região apresenta uma complexidade
geoestratégica por conta de suas rivalidades regionais e apresenta duas balanças
de poder: uma no Sul e outra no Leste. Embora tenha procurado não tratar da
balança do Sul após sua retirada do Afeganistão, para ele, os EUA não poderão
deixar de atuar na mesma, pois deixariam um vácuo de poder para expansionismos
e rivalidades que levaria à confrontação (KISSINGER, 2014, p.212-213). Já no Leste
da Ásia, aponta que os EUA não são tanto um promotor quanto parte integral
do equilíbrio. Há vários equilíbrios nessa área, inclusive um entre EUA, Japão
e China. Para ele, a atuação dos EUA exigirá moderação, força e legitimidade,
combinando equilíbrio de poder com o conceito de parceria, para evitar uma
confrontação militar ou uma hegemonia chinesa.
Sobre as relações EUA-China, na visão de Kissinger, mesmo que os EUA
declinem, os lideres estatais chineses sabem que preservarão muito do seu
poder. Para ele, nenhum país sozinho tem a capacidade de exercer o papel de
liderança dos EUA. Mas percebe que a China representa um desafio estrutural
na distribuição de poder global. Por isso, é preciso evitar uma tragédia, como as
guerras hegemônicas que ocorreram na Europa no início do século XX. A relação
entre EUA e China deve ser regida pela busca de equilíbrio baseado tanto no poder
quanto na legitimidade. Os EUA não podem deixar de ter um olho na balança de
poder ao buscar normas para estabelecer legitimidade e cooperação, e vice-versa
(KISSINGER, 2014).
Assim, Brzezinski e Kissinger atribuem importância à atuação permanente dos
EUA na Eurásia e na OTAN, embora o primeiro se mostre um legítimo herdeiro da
geopolítica clássica, enquanto o segundo baseie mais sua análise em uma política
de equilíbrio de poder global. A atuação no Oriente Médio também aparece como
importante para ambos: no sentido de garantir o abastecimento dos aliados e negar
acesso a rivais potenciais ou revelados, auferindo maior poder de barganha, não
importando os custos econômicos de tais ações, que são superados pelos ganhos
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estratégicos. Se a China se aproveita da presença militar e estabilidade patrocinada
pelos EUA na região, a partir da visão de Michael Klare (2008), podemos interpretar
que seu controle, especialmente em momentos de crise e conflitos, é fundamental
politicamente. É importante ressaltar que, nas análises geoestratégicas tanto de
Brzezinski quanto de Kissinger, as preocupações centrais (prioridades) são discutir
e delinear objetivos geoestratégicos (de segurança) que não devem ser limitados
por debates economicistas e orçamentários, o que seria inadequado, já que os
EUA é o país emissor da moeda internacional sem lastro. Ainda que Brzezinski
(2012a) vislumbre que o endividamento dos EUA diante de um crescente credor
que é um potencial contestador de sua posição de supremacia, a China, poderia
levar a uma vulnerabilidade e a um questionamento da hegemonia estadunidense
e de sua moeda internacional no longo prazo.
Sobre o continente americano, e a América Latina, ambos autores apontam
como imprescindível a hegemonia estadunidense, e deve ter atenção permanente no
seu cálculo estratégico, embora o foco principal seja a Eurásia. Assim, a projeção
de potências externas deve obter uma atenção e ações cuidadosas por parte dos
EUA, principalmente para não despertar hostilidades por parte dos governos (com
apelo em suas sociedades) dos demais países do continente. Sobre o México,
Brzezinski (2012a) afirma que os EUA deveriam cooperar pelo desenvolvimento
através do NAFTA e pela segurança através do apoio ao combate aos cartéis de
drogas. Mas alerta que um EUA declinante levaria a um nacionalismo protecionista
e anti-imigração estadunidense e a um revanchismo e a reivindicações de territórios
perdidos por parte do México. Nesse contexto, a China desempenharia um papel
mais relevante no hemisfério ocidental.
Vale destacar que Brzezinski e Kissinger divergem em suas visões sobre as
relações EUA-China e EUA-Rússia. Kissinger (2014) destaca as relações triangulares
com China e Japão e com Rússia e China. Ele critica a demonização da Rússia.
Afirma que essa deve ser abordada como uma grande potência na estratégia e
nas negociações diplomáticas pelos EUA, adaptando-se (e não dando um “reset”)
às circunstâncias atuais. Assim, os EUA não podem chegar e impor um “plano
pronto”, tampouco encarar a Rússia como um membro potencial e natural da
OTAN, que aderiria automaticamente às regras do chamado Ocidente (KISSINGER,
2016b). É preciso entender a história e a natureza da insegurança russa, assim
como sua importância geográfica, órbita de influência e natureza expansionista. Só
assim é possível estabelecer relações que busquem reconhecer suas características
especiais, mas também compreender as necessidades dos EUA. Para Kissinger, “O
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42 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
objetivo deve ser encontrar uma diplomacia para integrar a Rússia a uma ordem
mundial que deixe margem para cooperação“ (KISSINGER, 2016a, tradução nossa).
3
Kissinger argumenta sobre a possibilidade de uma geopolítica triangular
EUA-Rússia-China, com os EUA se aproximando do vértice mais fraco (Rússia)
para se contrapor ao mais forte (China), nos moldes da estratégia praticada por
Nixon-Kissinger frente à URSS. Atualmente, o desafio estrutural para os EUA está
na China. Por isso, “Na emergente ordem multipolar, a Rússia deve ser vista como
um elemento essencial de qualquer novo equilíbrio global, não preliminarmente
como uma ameaça aos Estados Unidos” (KISSINGER, 2016c, tradução nossa).
4
Deve-se ter em conta que Kissinger não acredita que China e Rússia possam
estabelecer uma reaproximação duradoura devido às suas naturezas. Na sua
visão, se a Rússia mostra claramente querer isso, é em parte porque os EUA não
lhe deixaram escolha. Finalmente, para Kissinger
... o desafio da China é um problema muito mais sutil que aquele colocado
pela União Soviética. O problema soviético era em grande parte estratégico.
Esta é uma questão cultural: podem duas civilizações que não pensam de
forma igual, pelo menos até agora, chegar a uma fórmula de coexistência que
produza ordem mundial? (KISSINGER, 2015, tradução nossa).
5
Já Brzezinski, a partir da crise de 2008, passou a advogar a formação de
um G2 (group of two) informal entre China e EUA, baseado na interdependência
e interesse comum entre ambos, cooperando em uma espécie de hegemonia
compartilhada, na qual os Estados Unidos reconhecessem a importância econômica
chinesa — e da prática de um keynesiamismo orientado a impulsionar a
economia estadunidense — enquanto os EUA mantêm seu papel de supremacia
político-militar e tecnológica (BRZEZINSKI, 2009). Em sua obra, as possibilidades
de uma parceria e cooperação entre EUA e Rússia aparecem sempre como remotas,
devido aos antagonismos geográficos e consequentes divergências geopolíticas,
explicitados, por exemplo, após a crise da Ucrânia (BRZEZINSKI, 1986; 2012).
3 The goal should be to find a diplomacy to integrate Russia into a world order which leaves scope for cooperation”.
4 In the emerging multipolar order, Russia should be perceived as an essential element of any new global
equilibrium, not primarily as a threat to the United States”.
5 “… the challenge of China is a much subtler problem than that of the Soviet Union. The Soviet problem was
largely strategic. This is a cultural issue: Can two civilizations that do not, at least as yet, think alike come to a
coexistence formula that produces world order?
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
43Raphael Padula
A geoestratégia dos EUA: sua continuidade pós Guerra Fria
Esta seção se dedica à geoestratégia estadunidense pós Guerra Fria revelada
em documentos estratégicos de Estado selecionados, com destaque à relação
com a Eurásia e a América Latina, a partir de objetivos, interesses e ameaças
apresentados.
Com o fim da Guerra Fria, da dissolução da URSS e do bloco socialista, os
EUA deixavam de possuir uma ameaça clara a combater que legitimasse seus
altos gastos militares e presença militar global. Assim, seria preciso identificar
novas ameaças que fossem palatáveis dentro e fora das suas fronteiras. Olhando
para a OTAN, a questão se torna ainda mais complexa, visto que foi criada sob
a liderança dos EUA no âmbito da Doutrina Truman com a missão de conter o
avanço socialista-soviético na Europa. Ao mesmo tempo, representa um instrumento
para a presença e controle militar estadunidense na região. Assim, do ângulo da
geoestratégia dos EUA, era preciso dar um novo sentido à organização.
Nesse momento, os EUA começaram a promover a retórica de que o mundo
pós Guerra Fria seria pacífico, livre de disputas e conflitos interestatais globais,
apenas com algumas conturbações regionais. Ao mesmo tempo, elegeram como
novas ameaças à paz e à estabilidade global as de caráter não estatais, como o
narcotráfico, catástrofes ambientais, inimigos do meio ambiente, fluxos migratórios
conturbadores, o terrorismo de grupos islâmicos radicados e espalhados em
diferentes países — que posteriormente configurariam o terrorismo global —, mas
também Estados (ou líderes) violadores de direitos humanos e da democracia,
os Estados “irresponsáveis” que viessem a apoiar grupos terroristas, ou Estados
falidos cuja fraqueza favorecesse o surgimento e manutenção de tais grupos em
seus territórios. Especificamente na América Latina, o discurso sobre o combate
ao narcoterrorismo ganhou maior ênfase por conta da adesão e legitimidade entre
os governos da região dos anos de 1990, na sua maioria alinhados à Washington.
Confeccionado no governo republicano de George H. W. Bush (1989-1993),
o documento National Military Strategy of the United States — NMS, de 1991
(USA,1991), sublinhou a importância de tais ameaças. E, assim, a agenda de
segurança baseada em novas ameaças que os EUA promoveriam através de
organizações multilaterais regionais, como a OTAN e OEA, e na ONU, no âmbito
global. Com otimismo, anuncia o surgimento de uma nova era a partir da derrocada
do socialismo e do sucesso na Guerra do Golfo, através de uma ação militar
extremamente bem-sucedida autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
44 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
orquestrada pelos EUA e mostrando sua superioridade militar e capacidade de
liderança em uma ordem unipolar.
No entanto, uma avaliação mais acurada do NMS-1991 revela que a disputa
interestatal segue tendo papel central nos objetivos militares estadunidenses, mais
especificamente no sentido de minar a possibilidade do surgimento de potências
regionais e desafiantes globais em um cenário global incerto (de transição) pós
Guerra Fria
6
. O objetivo de preservar a confiança na capacidade dos EUA de
prevenir qualquer perigo real de ameaçá-lo ou competir militarmente aparece
como decisivo. Com grande foco na promoção do equilíbrio regional e em disputas
interestatais, revela-se uma preocupação em manter a Europa Ocidental unida, mas,
em termos de forças militares e identidade de segurança, cada vez mais atrelada à
OTAN, sob a tutela dos EUA — e não formando uma força própria independente.
Especificamente sobre a Alemanha, fica claro o objetivo de mantê-la como um
protetorado militar dos EUA, combinado a um protagonismo econômico e político
regional. A Europa, sob a órbita da OTAN, seria importante para aproveitar as
oportunidades do vácuo de poder deixado no Leste Europeu pelo fim da URSS.
Quanto ao Japão e à Ásia-Pacifico, o NMS-1991 aponta como objetivo reforçar
os laços militares bilaterais, reconhecendo o papel de protagonista do país do
ponto de vista econômico, mas, ao mesmo tempo, impedindo sua remilitarização
— nesse momento, a China ainda não mostrava a pujança dos anos 2000.
Sobre a Rússia, herdeira do arsenal nuclear soviético, o documento revela
a crença na persistência de rivalidades e aponta a necessidade de evitar que ela
volte a ser o que era quarenta anos antes, com sua robustez militar competitiva.
Ou seja, seria preciso conter sua remilitarização, ao mesmo tempo buscando
promover sua democracia.
Ainda, o NMS-1991 reafirma a preocupação permanente com o hemisfério
ocidental na direção de uma política de segurança em que as forças militares
na América Latina tenham sua capacidade restringida à autodefesa, combater
o narcotráfico, atuar em assistência a catástrofes e manter a paz internacional
(consistente com os princípios e missões da OEA e da ONU), onde temas como
direitos humanos e florescimento e manutenção de democracias são repetidos por
6 “No Golfo, vimos os Estados Unidos desempenhando o papel sonhado por seus fundadores, sendo a nação
líder do mundo orquestrando e sancionando a ação coletiva contra a agressão. Mas ainda nos mantemos em
um período de transição”. No original, “In the gulf, we saw the United States playing the role dreamed of by its
founders, with the world’s leading nation orchestrating and sanctioning collective action against aggression. But
we still remain in a period of transition” (USA, 1991, p. 5, tradução nossa).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
45Raphael Padula
diversas vezes. A agenda hemisférica dos EUA busca proliferar a noção de que
as ameaças à segurança dos países latino-americanos se originariam de inimigos
internos ou atores transnacionais difusos.
A importância da promoção de uma agenda de livre-comércio e, de forma
mais ampla, de liberalização econômica, é amplamente citada no documento, e
persiste nos documentos dos governos posteriores aqui abordados. Nos países
periféricos, a combinação de uma agenda de liberalização econômica, que levaria
à sua desindustrialização e menor capacidade de gerar tecnologias de ponta,
com uma agenda de segurança voltada a inimigos internos moldando suas forças
armadas, levaria inevitavelmente à dependência e inferioridade no campo bélico
em relação aos EUA.
Do ponto de vista das visões de Brzezinski e Kissinger e da herança geopolítica
clássica anglo-saxã, é importante notar que os documentos abordados do governo
republicano de Bush revelam-se congruentes ao destacar o foco nas disputas
interestatais e na Eurásia, a importância das relações com a Europa sob a tutela
da OTAN e dos EUA, a desconfiança em relação a um possível ressurgimento
da Rússia como rival geopolítico histórico, o controle do Oriente Médio e do
Sudeste da Ásia, tutelando o Japão, e a supremacia hemisférica na América. Toda
retórica sobre novas ameaças aponta para a necessidade de um discurso ético e
legitimador de uma política mais ampla de manutenção da supremacia, de altos
gastos e presença militar global.
Na verdade, a década de 1990 não foi pacífica, mas um período caracterizado
por várias intervenções militares, por exemplo, na antiga Iugoslávia e na Somália
(além da intervenção no Golfo já citada), muitas sob o manto de causas humanitárias,
especialmente durante o governo democrata de Bill Clinton (1993-2001).
Os documentos A National Security Strategy of Engagement and Enlargement
de 1994 e de 1996 confirmam a mudança retórica quanto às ameaças a serem
combatidas pelos EUA com o fim da Guerra Fria, mas tornando-as mais diversas,
apontando: os conflitos étnicos e os rogue states que colocam ameaças à
estabilidade regional em várias partes do globo, a proliferação de armas nucleares
como um desafio maior, a degradação ambiental e o crescimento demográfico
ameaçando a estabilidade política de vários países e regiões, além de sublinhar a
importância do combate ao narcotráfico, da promoção da democracia e dos direitos
humanos. Embora tenha como pano de fundo um discurso multilateralista, que
prima pelo papel dos organismos internacionais e pela “governança global”, os
documentos revelam como objetivos centrais dos EUA, que se reforçam mutuamente:
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
46 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
a confiança nas suas forças militares, sua revitalização econômica e a promoção
da democracia. Observa as oportunidades sem precedentes apresentadas aos EUA
pela assimetria de poder no sistema internacional pós Guerra Fria. No entanto,
aponta que “Mesmo com o fim da Guerra Fria, nossa nação precisa manter forças
militares suficientes para deter diversas ameaças e, quando necessário, lutar e
vencer nossos adversários” (USA, 1994, p.ii, tradução nossa).
7
Mais adiante, o
documento aponta que a Rússia possui um futuro incerto e que a China mantém
um regime repressivo, mesmo assumindo um papel mais importante em temas
econômicos e políticos internacionais. Isso reforçaria o imperativo estratégico de
atuar na Eurásia, condizente com as visões de Brzezinski e Kissinger herdadas
da geopolítica clássica. Ainda, nesse mesmo sentido, os documentos tratam da
atuação em diferentes áreas da Eurásia, na OTAN e no hemisfério ocidental, com
o objetivo de manter a supremacia estadunidense no pós Guerra Fria.
Com o objetivo de promover a paz e a estabilidade em diferentes partes do
planeta, os documentos observam a importância da parceria transatlântica no
âmbito da OTAN, sob a liderança dos EUA, assim como seu papel na promoção de
tratados de livre-comércio. Destaca que Clinton convocou uma reunião de cúpula
da OTAN, em janeiro de 1994, que aprovou a Partnership For Peace, fundamental
para reforçar os laços transatlânticos e promover a estabilidade da Europa. Ambos
os documentos citados do governo Clinton afirmam que a estabilidade europeia
é vital para a segurança dos EUA. Esse deve ter como elemento mais importante
na sua estratégia na Europa a promoção da segurança através de cooperação e
fortalecimento militares, ajudando a confirmar o papel central da OTAN na Europa,
pois “A Guerra Fria acabou, mas a guerra em sim não acabou” (USA, 1994, p. 21,
tradução nossa).
8
Assinala a oportunidade sem precedentes de contribuir em favor
de uma Europa livre e unida, mas que seja cooperativa com os EUA. O objetivo de
levar a agenda de “novas ameaças” à OTAN já estava claro nas intervenções dos
anos de 1990: “Actualmente, a OTAN desempenha um papel crucial, ajudando a
gerir conflitos étnicos e nacionais na Europa. Com a liderança dos EUA, a OTAN
proveu a força por detrás dos esforços para a consecução de um acordo pacífico
na antiga Jugoslávia” (USA, 1996, p. 32, tradução nossa).
9
Nesse sentido, afirma
7 Even with the Cold War over, our nation must maintain military forces that are sufficient to deter diverse threats
and, when necessary, to fight and win against our adversaries”.
8 The Cold War is over, but war itself is not over”.
9 Today, NATO plays a crucial role helping to manage ethnic and national conflict in Europe. With U.S. leadership,
NATO has provided the muscle behind efforts to bring about a peaceful settlement in the former Yugoslavia”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
47Raphael Padula
o objetivo de ampliar a OTAN e levar a democracia em direção ao leste, para a
área antes influenciada pela URSS.
Ao destacar que o Leste da Ásia é uma região de crescente importância para
a prosperidade e segurança dos EUA, o documento aponta que Clinton busca
uma estratégia integradora de uma “nova comunidade do Pacífico”, “que liga os
requisitos de segurança às realidades econômicas e nossa preocupação com a
democracia e os direitos humanos” (USA, 1994, p. 21, tradução nossa).
10
A pedra
angular dessa política seria o aprofundamento de laços bilaterais com aliados
(como Japão, Coreia do Sul, Austrália, Tailândia e Filipinas), combinado com a
continuidade da presença militar estadunidense.
Quanto à segurança hemisférica, a parte do documento de 1994 chamada
Integrated Regional Approaches: the Western Hemisphere promove o foco nas novas
ameaças e na democracia, assim como a Cúpula das Américas e as Conferências
de Ministros da Defesa seriam os instrumentos de difusão dessa agenda. Ainda,
comemora a criação do NAFTA em 1994.
Voltando ao tema da OTAN, sua “nova doutrina” pós Guerra Fria foi anunciada
durante a comemoração dos seus 50 anos. Um dos itens do capítulo quinto do
documento NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement revelou o novo
conceito estratégico da OTAN:
Desdobrar e sustentar capacidades expedicionárias para operações militares
além da área abrangida pelo tratado quando requerido para impedir um
ataque na área abrangida pelo Tratado ou para proteger os direitos e outros
interesses vitais dos membros da Aliança. (NATO, 2020, tradução nossa)
11
Assim, foram flexibilizadas tanto a área geográfica de atuação quanto as
ameaças a serem combatidas, que passam a ser subjetivas e imprecisas, de acordo
com o que seus membros identificarem ou interpretarem. É nesse quadro que
observamos a expansão da OTAN para o leste (assim como a da União Europeia),
sob o comando dos EUA, incluindo antigos membros do Pacto de Varsóvia, numa
área observada pela Rússia como de interesse estratégico. Tal manobra geopolítica,
mais uma vez, segue os preceitos da geopolítica clássica, presentes nas visões
de Brzezinski e Kissinger ao abordarem a rivalidade geopolítica com a Rússia e
a importância da Eurásia.
10 “…which links security requirements with economic realities and our concern for democracy and human rights”.
11Deploy and sustain expeditionary capabilities for military operations beyond the treaty area when required to
prevent an attack on the treaty area or to protect the legal rights and other vital interests of Alliance members”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
48 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
A preocupação com a dependência energética externa dos EUA aparece no
documento de 1998, A National Security Strategy for a New Century, destacada
na seção “Providing for energy security”:
Os Estados Unidos dependem do petróleo para cerca de 40% de suas
necessidades de energia primária e cerca de metade de nossas necessidades
de petróleo são atendidas com importações. Embora importemos menos de
10% das exportações do Golfo Pérsico, nossos aliados na Europa e no Japão
representam cerca de 85% dessas exportações, ressaltando assim a importância
estratégica contínua da região. (USA, 1998, p.32, tradução nossa)
12
Tal quadro reforça a importância da Eurásia e do Oriente Médio. Na verdade,
reflete uma dinâmica histórica de crescente dependência de importações de
petróleo, assim como a preocupação com o papel de “guardião” do abastecimento
dos aliados como um mecanismo de influência política, realçada na seção anterior.
Por isso, tanto Brzezinski quanto Kissinger apontam a importância de os EUA
permanecerem e participarem ativamente da política no Oriente Médio. Klare (2005,
p. 13) destaca que, em 1973, as importações de petróleo dos EUA ultrapassaram a
marca de 30% do consumo interno; em 1976, alcançaram 40%; atingindo 45% em
1977. Nesse âmbito, com a invasão soviética ao Afeganistão e a revolução iraniana
em 1979, foi lançada a Doutrina Carter, e o Comando Central dos EUA foi criado
em 1983 para atuar no Oriente Médio. Em 1997, as importações chegaram a 49%
do abastecimento interno e, em 1998, ultrapassam a barreira dos 50%, um marco,
digamos, psicológico, perto da chegada do século XXI. Na interpretação de Klare
(2008), desde a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA atuaram como principal
abastecedor petroleiro das potências aliadas, a Doutrina Carter seguiu e seguirá
guiando a estratégia estadunidense, na qual a segurança energética é vista como
um tema de segurança nacional, e não como um tema econômico — reforçando
que suas máquinas militares são movidas predominantemente a petróleo.
O republicano George W. Bush (2001-2009) chega ao poder comprometido com
as prioridades estabelecidas pelo grupo neoconservador do think tankProject
for the New America Century” (PNAC), que passaram a guiar a geoestratégia
estadunidense: aumentar gastos com defesa, promover a “liberdade política”
em todo o mundo e preservar e estender uma ordem internacional amigável.
12
The United States depends on oil for about 40 percent of its primary energy needs and roughly half of our oil
needs are met with imports. Although we import less than 10% of Persian Gulf exports, our allies in Europe
and Japan account for about 85% of these exports, thus underscoring the continued strategic importance
of the region”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
49Raphael Padula
Sobretudo, ganha destaque o objetivo de aumentar os fluxos de petróleo e gás do
exterior, diante do problema de segurança energética (e da redução de estoques)
dos EUA, cujas importações eram responsáveis por mais da metade do consumo
interno e mais de 30% do déficit comercial. Tais prioridades podem ser buscadas
de forma coadunada e sinérgica, por isso mostram organicidade e, em termos
políticos, ganharam maior legitimidade retórica e viabilidade de perseguição após
os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Em 2002, o documento National Security Strategy explicitou a doutrina de
ataques preventivos”, que deu maior flexibilidade para a atuação militar dos
EUA, desde que identificassem unilateralmente uma ameaça potencial atrelada à
atuação de grupos terroristas, em qualquer parte ou território nacional do globo.
O discurso unilateralista neoconservador, que via o multilateralismo como uma
demonstração de fraqueza, ganha força como um discurso ético de luta contra o
mal, legitimador de uma intervenção global: “Milhares de terroristas treinados
permanecem à solta com células na América do Norte, América do Sul, Europa,
África, Oriente Médio e toda a Ásia.” (USA, 2002, p. 5, tradução nossa).
13
A importância da OTAN como uma espécie de força militar global da ONU, sob
a tutela e incorporando a agenda de segurança dos EUA, é reforçada no governo
Bush, como afirma o documento da estratégia nacional de 2006 (USA, 2006,
p. 35-38). Ao mesmo tempo, deixa pistas de que intervenções militares, com ou
sem o consentimento da ONU, em áreas ricas em petróleo ou rotas estratégicas
podem ser necessárias.
A dependência mundial desses poucos fornecedores não é responsável nem
sustentável a longo prazo. A chave para garantir nossa segurança energética
é diversificar as regiões de onde vêm os recursos energéticos e os tipos de
recursos energéticos de que dependemos. A Administração trabalhará com
países ricos em recursos para aumentar sua abertura, transparência e estado
de direito. Isso promoverá uma governança democrática efetiva e atrairá o
investimento essencial para o desenvolvimento de seus recursos e a expansão
da gama de fornecedores de energia. (USA, 2006, p.37, tradução nossa)
14
13 Thousands of trained terrorists remain at large with cells in North America, South America, Europe, Africa, the
Middle East, and across Asia”.
14 The world’s dependence on these few suppliers is neither responsible nor sustainable over the long term. The
key to ensuring our energy security is diversity in the regions from which energy resources come and in the types
of energy resources on which we rely. The Administration will work with resource-rich countries to increase
their openness, transparency, and rule of law. This will promote effective democratic governance and attract the
investment essential to developing their resources and expanding the range of energy suppliers”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
50 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
Assim como nas recomendações de Brzezinski e Kissinger, os documentos
estratégicos do governo Bush destacam a importância da atuação política e militar
dos EUA na Eurásia, como continente basilar, mas com maior ênfase no Oriente
Médio, devido a questões conjunturais — como a necessidade de controlar o
acesso a fontes energéticas e combater o terrorismo. É interessante ressaltar que,
nesse período, já se destacam mudanças importantes. Uma delas, a clara ascensão
econômica da China e da Índia, com elevadas taxas de crescimento do PIB, em
média 8% e 6% ao ano, respectivamente (enquanto, nos anos de 1990, foram de
6% e 4% ao ano). Ainda, a retomada de uma política externa mais assertiva da
Rússia, especialmente no seu entorno geográfico da antiga URSS. Questões que
tiveram uma dose de “déficit de atenção” nos documentos estratégicos analisados,
e que apoiam a crítica de Brzezinski (2012a) anteriormente mencionada, de que
os EUA teriam se tornado um “Estado cruzadista” sem visão estratégica de longo
prazo diante dos grandes desafios do século XXI.
Quanto à preocupação com a China, apontava para seu regime político
autocrático, sua contínua expansão militar sem transparência e práticas econômicas
protecionistas, incluindo a busca por acesso garantido a recursos energéticos
por meio de acordos políticos e utilizando investimentos/financiamentos como
instrumentos, e até mesmo apoiando países abundantes em recursos naturais com
regimes políticos não democráticos (USA, 2006). No entanto, não há qualquer
menção sobre a distribuição de poder global ou um desafio à superioridade
estadunidense.
Quanto à Rússia, a continuidade da expansão para o leste da OTAN e
interações militares (como venda de armamentos e treinamento), englobando
Estados da antiga URSS e chegando às fronteiras da Rússia, e a proposta de
instalação de um escudo antimísseis no Leste Europeu, tendo como contrapartida
uma postura assertiva russa, marcaram a reativação das tensões e uma postura
não cooperativa nas relações bilaterais por parte dos EUA no governo George W.
Bush, e desembocaram no conflito entre Rússia e Geórgia.
Devido à herança recebida do governo anterior, especialmente seu envolvimento
e foco no Oriente Médio, a política do governo democrata de Barack Obama para a
Ásia se caracterizou inicialmente por uma postura reativa. No entanto, em 2010 é
possível identificar um redirecionamento do foco da política externa e de segurança
para a região da Ásia-Pacífico, no sentido de contrabalançar a ascensão chinesa.
O governo passou a liderar a Trans-Pacific Partnership como a pedra angular de
sua política para a região, com o objetivo de gerar empregos e renda nos EUA.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
51Raphael Padula
O Quadrennial Defense Review — QDR de 2014 e o National Security Strategy —
NSS de 2015 consubstanciam o redirecionamento em direção à Ásia-Pacífico como
prioridade geoestratégica, visando contrabalançar o peso da China, em detrimento
do Oriente Médio, mas sem deixar de participar dos demais tabuleiros da Eurásia.
Ou seja, seguem fundamentais a participação e presença na Eurásia e suas sub-
regiões, assim como na OTAN, num contexto de rivalidade interestatal pela disputa
de poder global, mas mudando a área prioritária em razão de fatores conjunturais
e estruturais, o que revela que os documentos estratégicos do governo Obama
acompanham a visão geopolítica clássica presente em Brzezinski ou Kissinger.
Os NSS de 2010 e 2014 reafirmam a importância de preservar a superioridade
militar dos EUA e sua capacidade de enfrentar múltiplas ameaças de nações, atores
não estatais e Estados falidos, mas trazendo de volta a questão do multilateralismo,
através de um “engajamento abrangente” sob a liderança estadunidense, e
da importância do poder do ponto de vista moral (ou de um discurso ético
legitimamente aceito), que teria sido deteriorado pelo unilateralismo do governo
Bush. Os documentos deixam claro o comprometimento com o envolvimento
na Eurásia, com a OTAN e os aliados na Ásia-Pacífico. Afirmam que as relações
com os aliados europeus, especialmente da OTAN, devem ser fortalecidas e são
importantes no campo econômico e da segurança, para deter “ameaças vitais” (USA,
2010a, p. 41). Sobre a Ásia, aponta que seu crescimento econômico significativo,
assim como de seus centros emergentes, tem conectado seu futuro à prosperidade
dos EUA, o que o leva a buscar um profundo engajamento na região, inclusive
buscando um papel maior em arranjos multilaterais, como a ASEAN, APEC e
TPP. Destaca as alianças bilaterais com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Filipinas
e Tailândia, sendo suas revitalizações estratégicas para a segurança e prosperidade
na Ásia-Pacífico, levando em conta as tendências e desafios do século XXI. Nesse
ponto, Japão e Coreia são destacados como países líderes e parceiros fundamentais
para presença militar, integração regional, difusão da agenda de segurança e dos
valores estadunidenses na região (USA, 2010a).
Os documentos QDR e NSS do governo Obama (USA, 2014; USA 2015) mostram
uma preocupação central com a distribuição de poder global, especialmente diante
da ascensão da China, mas fazendo referência também a Rússia, Índia, Brasil e
África do Sul. O NSS observa a ascensão e maior participação internacional da
China e da Índia, os países mais populosos do mundo, e também faz referência a
centros de influência emergentes” como o Brasil e a África do Sul. Mas observa
a Rússia “emergindo” recentemente, e a necessidade de estabelecer uma relação
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 31-55
52 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
cooperativa, especialmente por conta de seu arsenal nuclear e de sua relação com
vizinhos. O NSS de 2010 observa que todos esses países, juntos, estão construindo
maior influência e voz internacional. Tais preocupações refletem uma preocupação
com o fortalecimento e as articulações no âmbito do BRICS. O QDR 2010 cita o
desenvolvimento e os investimentos militares chineses como potenciais ameaças,
o que fariam aumentar o número de interrogações quanto a suas intenções de
longo prazo. Por fim, o documento aponta um conjunto de ações geoestratégicas
dos EUA, em termos militares, para contrabalançar possíveis movimentos daqueles
que identifica como potenciais contestadores de sua supremacia, nomeadamente,
China e Rússia (USA, 2010b). Já no NSS de 2014, no contexto da crise política gerada
na disputa pela Ucrânia e consequente invasão à Crimeia por parte da Rússia,
aponta essa como uma ameaça à Europa, preocupando-se com a dependência
energética europeia e ucraniana, e a necessidade de manter sanções e conter as
agressões e violações à soberania. Sobre a questão energética, aparece nos NSSs
a preocupação em buscar novas tecnologias para reduzir a dependência externa
de petróleo. O discurso do governo Obama sempre esteve voltado para fontes
alternativas e renoveis, para diminuir o déficit comercial e a dependência
energética estadunidenses. No entanto, aborda também a questão do Oriente
Médio, e sua relação com o acesso assegurado a energias fósseis para os EUA e
seus aliados, como um tema de segurança energética (USA, 2010a).
Sobre a América, o documento Western Hemisphere Defense Policy Statement,
do Departamento de Defesa, de 2012, refere-se às novas ameaças como “desafios
complexos do século 21” no campo da segurança e à necessidade de proliferar essa
agenda por meio de ações bilaterais, organizações multilaterais (especialmente
regionais), think tanks e pesquisas. Reforça também que as forças armadas dos
países latino-americanos devem se dedicar ao combate às chamadas novas ameaças.
Considerações finais
Os documentos estratégicos analisados revelam uma continuidade na
geoestratégia estadunidense pós Guerra Fria: uma presença permanente e de
protagonismo na OTAN, com objetivo de manter o controle militar sobre a Europa
Ocidental, avançar em direção à Rússia e à Ásia Central, especialmente buscando
conter seu possível avanço e influência. Ainda, revela uma estratégia de promoção
do equilíbrio de poder na Eurásia, em suas diferentes áreas, primeiro com maior
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ênfase no Oriente Médio e recentemente na Ásia-Pacífico, para contrabalançar
a ascensão chinesa. A presença militar estadunidense no Oriente Médio mostra
também um caráter permanente, por razões estratégicas, que lhe auferem poder
de barganha frente aos aliados e capacidade de negar acesso aos rivais em
momentos de crise política — no sentido da Doutrina Carter. Ao mesmo tempo,
mantêm uma política de supremacia hemisférica. Ainda, a retórica sobre “novas
ameaças” e a legitimidade interna e externa parecem importantes do ponto de vista
de manter uma presença e capacidade de intervenção militar global, assim como
altos gastos militares para o seu complexo industrial-militar, todos fundamentais
para a liderança militar e tecnológica global e para a estratégica de manutenção
da supremacia global dos EUA.
Assim as ações de Estado dos EUA e sua continuidade são influenciadas
pelas concepções de Kissinger e de Brzezinski, que seguem a geopolítica clássica
no sentido de apontar a Eurásia como o continente basilar para o equilíbrio e os
rumos da política de poder global; e colocando os objetivos estratégicos acima
de qualquer discussão sobre custos econômicos ou limites orçamentários. Para
Brzezinski e Kissinger, a presença militar na OTAN, no Oriente Médio e no Sudeste
da Ásia são irrevogáveis, visto que os EUA devem se preocupar com o equilíbrio de
poder global, sendo esse o continente mais relevante. Vale ressaltar que qualquer
discussão sobre limite orçamentário perderia relevância se fosse observado que os
EUA emitem a moeda internacional sem lastro, não enfrentando limites nos seus
gastos e endividamento, sustentados também em seu poder militar e tecnológico.
Embora a hegemonia hemisférica apareça como um consenso para todos os
autores aqui abordados, as relações fundamentais para a geoestratégia dos EUA
estão no eixo Leste-Oeste, entre os países do hemisfério norte.
É importante observar que, qualquer que tenha sido o partido na Presidência dos
EUA no período analisado, com suas diferenças táticas, os objetivos geoestratégicos
que prevaleceram, mostrando continuidade, foram os apontados por Kissinger
ou Brzezinski, influenciados pela geopolítica clássica. E qualquer presidente que
tente mudar isso enfrentará resistências e restrições dentro do próprio Estado.
No pós Guerra Fria, a atuação militar dos EUA na América Latina vem
sendo mantida por meio de diversos instrumentos
15
, sob a retórica de prevenir e
promover a capacidade de combate às novas ameaças (PADULA, 2015). Enquanto
15 Estabelecimento de bases operacionais (inclusive na Colômbia, próximas à Amazônia), ajuda econômica e
militar (como o Andean Trade Promotion and Drug Eradication Act), staff talks, exercícios militares conjuntos,
ações cívico-sociais, a reativação recente da sua IV Frota para o Atlântico Sul e comércio seletivo de armas.
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54 O pensamento geoestratégico e os documentos estratégicos dos Estados Unidos no pós Guerra Fria
a atuação dos EUA, no “grande jogo” da Eurásia, segue as orientações dos seus
documentos estratégicos, diante de um quadro de significativa complexidade,
com a utilização de meios militares, geopolíticos e geoeconômicos, e midiáticos.
Revela-se uma grande disputa entre EUA e seus aliados na OTAN, de um lado, e
China e Rússia e seus aliados, do outro, que deve ter impacto determinante no
futuro geopolítico global; sendo importante que sejam desenvolvidas pesquisas
sobre os seus desdobramentos, incluindo destaque para a Organização da
Cooperação de Xangai.
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