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56 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
Não-alinhamento, cooperação internacional
e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria:
o caso egípcio (1955-1967)
1
Non-alignment, foreign aid and development in the
Cold War context: the Egyptian case (1955-1967)
DOI: 10.21530/ci.v13n2.2018.792
Pedro Rocha Fleury Curado
2
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir o papel funcional da política externa do não-alinhamento
para as políticas de desenvolvimento econômico e militar de países periféricos durante a
Guerra Fria. Para tanto, propõe-se um estudo de caso sobre a política externa do governo
egípcio de Gamal Abdel Nasser (1954-1970). Ao longo do texto, argumenta-se que a política
externa “não alinhada” aos principais blocos da Guerra Fria representou um poderoso
instrumento de barganha internacional por parte do governo egípcio entre os anos de 1955
e de 1967. Para respaldar essa afirmação, o texto evidencia a relação existente entre, por
um lado, as melhores condições externas para a viabilização dos programas internos de
desenvolvimento e, por outro, as relações ambíguas cultivadas pelo governo Nasser com
Estados Unidos e União Soviética. Tais relações, por sua vez, somente foram possíveis graças
a um permanente jogo de compensações de ordem geopolítica que envolvia a capacidade
do governo egípcio de intervir nos interesses regionais das duas superpotências.
Palavras-chave: Egito; Cooperação Internacional; Não-alinhamento; Desenvolvimento;
Geopolítica.
Abstract
The objective of this article is to discuss the functional role of the non-alignment foreign
policy for economical and military development of Third World countries during the Cold war.
To do so, it presents a case study on the Egyptian Gamal Nasser’s foreign policy (1954-1970).
1 O presente trabalho contou com financiamento da FAPERJ.
2 Professor Adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IRID-UFRJ).
Artigo submetido em 25/04/2018 e aprovado em 30/08/2018.
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57Pedro Rocha Fleury Curado
Along the text, it argues that the “non-aligned” foreign policy in the Cold war represented
a powerful instrument of international bargain by the Egyptian government. To back that
statement, the text evidences the existent relationship among, on one side, the best external
conditions for the foreign aid programs and, for other, the ambiguous relationships cultivated
by the Nasser’s government with United States and Soviet Union.Such relationships were
only possible thanks to a permanent game of geopolitical compensations involving the
regional interests of the two superpowers.
Keywords: Egypt; Foreign Aid; Non-alignment; Development; Geopolitics.
Introdução
O não-alinhamento foi uma estratégia de política externa difundida entre
um grupo de países do então chamado Terceiro Mundo durante a Guerra Fria.
Caracterizava-se pelo gerenciamento autônomo de uma agenda internacional
dissociada das pressões por alinhamento automático a um dos blocos antagônicos
do conflito bipolar. O presente texto objetiva discutir este modelo de posicionamento
político no sistema internacional a partir de seu caráter funcional para a obtenção de
acordos vantajosos no âmbito da cooperação internacional para o desenvolvimento.
Como questão de fundo, busca-se responder a seguinte indagação: diante de uma
conjuntura sistêmica caracterizada pela polarização entre as duas superpotências,
teria a agenda “não-alinhada” representado um instrumento de efetivo suporte
aos programas de desenvolvimento interno dos países não-alinhados?
Como método, adota-se a política externa egípcia sob o governo de Gamal
Abdel Nasser como um estudo de caso. A partir dela, busca-se reler o processo
de implementação dos programas de desenvolvimento egípcio relacionando-os à
projeção geopolítica deste país durante os anos de maior intensidade da política
externa não-alinhada. Mais precisamente, o marco temporal compreende os
anos entre a conferência de Bandung
3
(1955) e a conferência de Cartum
4
(1967),
3 A Conferência de Bandung ocorreu entre os dias 18 e 24 de abril de 1955 e contou com vinte e nove países da
África e da Ásia. Herdeira do movimento Afro-Asiático, a conferência buscou pressionar as potências internacionais
pelo fim do colonialismo e pelo direito dos países presentes de não se vincularem a qualquer um dos blocos da
Guerra Fria. A conferência de Bandung deu origem a uma série de conferências periódicas reunindo líderes de
países em desenvolvimento. A partir da conferência de Belgrado, em 1961, os países participantes passaram a
se declarar membros do “movimento dos não-alinhados”.
4 A Conferência de Cartum foi uma conferência da Liga Árabe ocorrida em setembro de 1967. Com a derrota na
Guerra dos Seis Dias (junho de 1967), o Egito, até então um importante ator no cenário regional, testemunhou
a ocupação de parte de seu território (o Sinai) por Israel. Além disso, as dívidas contraídas com a participação
egípcia na Guerra do Iêmen (1962-1967), somadas à perda material da Guerra dos Seis Dias, fizeram com que
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58 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
essa última realizada poucos meses após a Guerra dos Seis Dias
5
. Enquanto a
conferência de Bandung produziu as condições materiais para o florescimento
do movimento dos não-alinhados, a resolução apresentada pela conferência de
Cartum, organizada pela Liga Árabe, representou o reordenamento da correlação
de forças entre os Estados árabes do Oriente Médio, expondo o Egito a uma
condição de fragilidade e dependência que o tornava incapaz de seguir atuando
externamente com o mesmo protagonismo regional.
Representante particularmente ativo do movimento dos não-alinhados durante
as décadas de 1950 e 1960, o Egito empreendeu ao longo desse mesmo período um
rigoroso programa interno de industrialização acelerada e militarização do Estado,
mantendo, simultaneamente, canais abertos para relações diplomáticas em alto
nível com os Estados Unidos e a União Soviética. Fosse na condição de provedores
de recursos financeiros, armamentos, alimentos e/ou capacitação técnica, ambas
as superpotências contribuíram em alguma medida com os programas estratégicos
apresentados pelo governo egípcio. Ao longo do texto, busca-se destacar a
importância do não-alinhamento como fator condicionante para o papel que o
Egito assumiria nas estratégias regionais de ambas as superpotências. Conforme
o governo egípcio tornou-se capaz de sustentar e incrementar sua inserção no
tabuleiro geopolítico do Oriente Médio, melhor posicionado esteve para celebrar
programas de cooperação internacional, tanto com os Estados Unidos como com
a União Soviética.
Como resultado desse processo, é importante destacar que a própria
autorrepresentação de uma política externa construída em torno da recusa em
aderir a um dos dois blocos da Guerra Fria legitimava-se indiretamente pela
implementação interna de uma política “nacional-desenvolvimentista” de caráter
híbrido, que incluísse alusões aos programas de desenvolvimento para o Terceiro
Mundo propagados pela propaganda política de ambas as superpotências. Tal
fenômeno era verificado tanto na referência ao modelo de industrialização
acelerada soviético como na busca por uma melhor inserção na economia
capitalista global e pela criação interna de uma sociedade de consumo de massa
inspirada no modelo americano (CARRÉ, 1993; FARAH, 2009). Em suma, o
o governo Nasser se visse constrangido a contrair empréstimos internacionais. A ajuda financeira saudita
representou, naquele momento, uma reconfiguração na correlação de forças entre aqueles dois países no contexto
de uma disputa regional pela liderança dos países árabes. Sobre esse episódio, ver Oren (2002) e Halliday (2005).
5 A Guerra dos Seis Dias ocorreu em junho de 1967 e teve início com um ataque aéreo preventivo de Israel contra
a Força Aérea egípcia estacionada no Sinai. Em resposta, Egito, Jordânia e Síria uniram-se para contra-atacar,
mas foram derrotados. Após seis dias, Israel havia ocupado o Sinai, as Colinas de Golã e a Cisjordânia.
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59Pedro Rocha Fleury Curado
não-alinhamento será aqui entendido tanto pelas relações internacionalmente
construídas a partir desse posicionamento como por seus impactos domésticos.
Os grandes projetos do nacional-desenvolvimentismo egípcio foram diretamente
impactados pelas flutuações e instabilidades do ambiente externo, do mesmo modo
que a ação internacional do governo egípcio esteve, por diversas vezes, pautada
por necessidades imediatas de ordem prática relacionadas aos financiamentos,
cooperação técnica, consolidação de compradores externos para commodities
produzidas internamente e, em particular, provimento de armas.
O texto está dividido em quatro partes. Na primeira, destacaremos a
particularidade do não-alinhamento egípcio no contexto da Guerra Fria, assim
como a especificidade de seu posicionamento geopolítico para os interesses
das superpotências. Na segunda, propomos analisar os acordos de cooperação
estabelecidos entre o Egito e os Estados Unidos. Na terceira parte, faremos o
mesmo em relação ao Egito e à União Soviética. Por fim, apresentaremos algumas
considerações finais.
O não-alinhamento egípcio e a Guerra Fria
O movimento dos países não-alinhados adquiriu forma em meio à dinâmica de
transposição da Guerra Fria para os novos Estados emergentes da descolonização
(KENNEDY, 1989; HOBSBAWN, 1994; GADDIS, 2005). Herdeira das reivindicações
políticas do movimento Afro-Asiático, a conferência de Bandung (Indonésia)
de 1955 serviu como marco político para um conjunto de emergentes países
reivindicarem o status “não-alinhado” diante do conflito entre os blocos da Guerra
Fria. Para muitos dos países presentes, recém-saídos de variados e complexos
processos de emancipação do jugo colonial, a adesão a qualquer um dos blocos era
percebida como uma nova forma de subjugação nacional aos interesses externos
(JANSEN, 1966). Os principais líderes que melhor expressavam o movimento dos
não-alinhados nas relações internacionais eram Gamal Nasser (Egito), Jawaharlal
Nerhu (Índia), Josip Broz Tito (Iugoslávia) e Sukarno (Indonésia). Posteriormente,
juntar-se-iam outros líderes “terceiro-mundistas”, como o argelino Ben Bella e
o ganês Kwame Nkrumah. As conferências internacionais dos não-alinhados
ocorreram periodicamente durante os anos de Guerra Fria e reuniram formalmente
representantes de grande parte dos novos países criados ao longo do processo de
descolonização da Ásia e da África.
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60 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
O surgimento do não-alinhamento como um posicionamento internacional,
respaldado por um movimento composto majoritariamente por novos Estados
independentes, impactou nas relações construídas entre Estados Unidos e União
Soviética com o Terceiro Mundo. A força política e publicitária do não-alinhamento,
assim como sua amplitude e crescente número de países participantes em cada
reunião, terminou por pressionar os policy makers de ambas as superpotências a
redefinir suas respectivas estratégias voltadas para a criação de zonas de influência.
Ao longo desse processo, os programas de cooperação para o desenvolvimento
tornaram-se um forte instrumento de barganha política para países que não
fossem abertamente alinhados a um bloco ou outro. Da perspectiva dos governos
terceiro-mundistas, uma política externa orientada pelo não-alinhamento permitia
reivindicar neutralidade diante do conflito bipolar e, como resultado, ter aberto
o diálogo e a possibilidade de negociar programas de “ajuda” sem a necessidade
de respondê-los com fidelidade política à agenda internacional do país provedor.
Entretanto, um governo não-alinhado poderia ser mais ou menos importante
para o jogo da Guerra Fria conforme pudesse oferecer vantagens ou representar
empecilhos de ordem geopolítica. Tal relevância podia ser medida a partir
das seguintes características: 1) a detenção de um posicionamento geográfico
estratégico para a segurança de rotas comerciais marítimas ou terrestres, assim
como a importância do acesso aos seus portos para a estratégia naval das
superpotências; 2) um posicionamento geográfico interessante para a contenção
da projeção de poder político ou territorial do bloco antagônico, 3) a posse de
recursos energéticos e matérias-primas; 4) as características econômicas, o potencial
militar e a representação político-ideológica assumida pelo governo; 5) o combate
doméstico às organizações políticas simpáticas ou filiadas ao bloco antagônico.
A rivalidade competitiva entre as duas superpotências produziu, portanto,
a valorização de certas zonas do Terceiro Mundo como espaços privilegiados do
conflito da Guerra Fria (KENNEDY, 1989; HOBSBAWN, 1994). No caso do Egito,
o não-alinhamento era uma dimensão estruturante de sua política externa, mas
não era a única. Alçado ao papel de liderança pan-arabista, o governo de Gamal
Nasser possuía uma agenda internacional própria e associada ao intervencionismo
político e militar em seu entorno regional
6
. A conquista de uma estatura política
6 A política externa para o Oriente Médio do regime Nasser foi particularmente ativa. Além da participação direta
em três guerras (Guerra de Suez, Guerra do Iêmen, Guerra dos Seis Dias), o Egito também patrocinou com
dinheiro e armas grupos insurrecionais contra seus rivais árabes. Especialmente contando com a simpatia de
grupos nativos pan-arabistas, o governo Nasser armou e financiou movimentos contrários aos governos do Rei
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61Pedro Rocha Fleury Curado
internacional, expressa na condição de um dos líderes do anticolonialismo e da
emancipação do “povo árabe”, serviu, nesse caso, para redimensionar a importância
geopolítica do Egito diante da Guerra Fria. Nesse ponto, destaca-se a relação entre
duas dimensões complementares da política externa. A primeira delas definia-se
pelas vantagens existentes diante da condição de país periférico subordinado ao
jogo da Guerra Fria, isto é, a política externa egípcia posicionava-se no conflito
da Guerra Fria buscando lograr maneiras de explorar a tensão existente entre
Estados Unidos e União Soviética para celebrar vantajosos acordos de cooperação
internacional para o desenvolvimento com ambas as superpotências. A segunda
dimensão dizia respeito à política externa regional, fator esse de grande importância
para reforçar a estatura internacional do Egito como liderança árabe e, como
consequência, aumentar seu poder de barganha nas negociações internacionais.
A maneira como o governo Nasser lograva projetar seu poder sobre os países de
seu entorno geográfico impactava diretamente os interesses regionais das duas
superpotências. O valor geoestratégico atrelado ao Egito no jogo da Guerra Fria
estava, portanto, diretamente associado à sua capacidade de efetivamente exercer
o papel de liderança regional e influenciar o jogo político de seu entorno imediato.
Entretanto, se a formalização dos acordos de cooperação internacional para os
programas de desenvolvimento egípcio ocorriam porque o Egito exercia um papel
potencialmente importante para a configuração dos voláteis cenários geopolíticos
regionais, resta perguntar: seriam tais acordos efetivamente expressivos e
duradouros? Para responder a tal questão, é necessária uma breve contextualização.
As políticas de crescimento econômico dos anos de 1950 e de 1960 foram
fortemente influenciadas pela preponderância das teorias desenvolvimentistas
entre os economistas e os cientistas políticos. Tanto os programas de “ajuda”
estadunidense como soviético eram apresentados, do ponto de vista teórico,
como uma forma de valorização do processo de industrialização da periferia,
sendo a indústria a representação do “progresso” ou da “modernização”.
O desenvolvimentismo egípcio, expresso através de seus principais programas
voltados para a transformação da base produtiva, até então predominantemente
agrícola, não escapava desse paradigma maior de seu tempo: buscava-se viabilizar
um processo de industrialização acelerada capaz de incrementar a renda nacional,
melhorar o nível médio de vida e fortalecer a segurança do Estado diante das
ameaças externas.
Hussein (Jordânia), Rei Faisal (Arábia Saudita), General Kassam (Iraque), entre outros. Sobre a “guerra fria
árabe”, ver Kerr (1965).
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No plano geopolítico, a importância internacional do Egito durante as décadas
de 1950 e de 1960 era devida aos seguintes fatores: 1) natural-geográficos, já que
tratava-se do país no qual localizava-se o delta do rio Nilo e o Canal de Suez, além
de o país compor uma região que divide África e Ásia, o mar Mediterrâneo e o
Vermelho; 2) políticos, por ser o Estado com maior influência política na região,
e até então o único dotado de instituições modernas; 3) econômicos, posto que o
Egito era a primeira economia do mundo árabe; 4) culturais, pois contava com as
principais industrias musicais e cinematográficas de todo o Oriente Médio, assim
como os maiores meios de comunicação e instituições de ensino prestigiosas,
como a Universidade Al-Azhar; e 5) demográficos, posto ser o país mais populoso
de toda a África do norte e Oriente Médio, com cerca de 30 milhões de pessoas
durante as décadas de 1960 e de 1970 (HINNERBUSCH, 2003; LAURENS, 2007).
Diante de uma região com estruturas políticas frágeis ou ainda em formação,
a política externa regional do governo Nasser foi usada para potencializar a
estatura internacional do país. A compra de armas soviéticas pelo Egito em 1955
resultou numa primeira aproximação entre esse país e a União Soviética. Desde
então, a cooperação rapidamente foi estendida para setores não militares. Fora do
Pacto de Varsóvia, o Egito foi o primeiro país do Terceiro Mundo a efetivamente
receber esse tipo de atenção da política externa de Moscou (LAURENS, 2007;
WATERBURY, 1983). Esse, por sua vez, rapidamente multiplicaria suas relações
com a periferia global, ofertando apoio financeiro, técnico, político e militar aos
governos nacionalistas que, em contrapartida, servissem de algum modo aos
interesses geoestratégicos da União Soviética no contexto da Guerra Fria.
Na ocasião, tal fenômeno significou o fim do monopólio do bloco Ocidental
como agente único da promoção do desenvolvimento no Terceiro Mundo, tornando
os programas de cooperação internacional de diferentes naturezas, oferecidos
pela União Soviética, um instrumento efetivo de incremento das relações entre
essa e os novos Estados africanos e asiáticos emancipados do jugo colonial.
A competição entre as duas superpotências da Guerra Fria por novas e maiores
zonas de influência permitiu com que um grupo de países não-alinhados a qualquer
um dos dois blocos buscasse suavizar sua dependência externa para a viabilização
dos programas de desenvolvimento domésticos, multiplicando seus provedores
de “ajuda externa”. Dentre os países não-alinhados, o caso do Egito porta a
singularidade de ter inaugurado essa via de desenvolvimento “multidependente”,
a partir da compra de armas soviéticas em 1955.
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63Pedro Rocha Fleury Curado
Até então, os principais parceiros para o fornecimento de material bélico
e de cooperação econômica para o Egito eram a Grã-Bretanha e a França. Os
principais mercados importadores da produção nacional egípcia eram igualmente
esses dois países, mais os Estados Unidos. Esse último, durante os primeiros anos
de governo Nasser, exerceu o papel de provedor de créditos e apoio técnico para
programas chave do planejamento estatal (WATERBURY, 1983). Em função do
forte caráter anticolonialista do movimento dos Oficiais Livres, que levou Nasser
ao poder, as tensões com a França e, principalmente, a Grã-Bretanha tornaram-se
latentes (POMMIER, 2008). O contrário ocorria com os Estados Unidos, já que
esse não portava consigo o peso de um passado colonialista. Além disso, esse
país era dotado de um atrativo adicional: os programas de ajuda anunciados no
Point Four de Harry Truman, aspecto esse simbolicamente representativo para a
incorporação sistemática dos programas de “cooperação para o desenvolvimento”
nas relações dos Estados Unidos com países do Terceiro Mundo no contexto da
Guerra Fria (RIST, 2013).
No caso do Egito, sua importância geoestratégica não foi dada de imediato pela
sua posição no conflito global, mas forçada pelo seu próprio governo ao “convidar”
a União Soviética para cooperar com seus programas de desenvolvimento
econômico e incremento do poderio militar. O desenrolar das relações egípcias
com ambas as superpotências seguiu, a partir daí, um equilíbrio tênue montado
sobre um jogo de compensações estreitamente dependente do modo como se
dava a inserção egípcia na dinâmica das relações interestatais do Oriente Médio.
Sob a agenda do não-alinhamento, o Egito logrou fazer com que Estados Unidos
e União Soviética estivessem envolvidos na viabilização da agenda nacional-
desenvolvimentista implementada na esfera doméstica. A seguir, propõe-se uma
análise sobre a ajuda técnica e econômica americana durante o período de maior
ativismo externo do governo Nasser.
A cooperação estadunidense e o desenvolvimento egípcio
Durante a crise de Suez (1956), uma série de consultores e técnicos americanos
que trabalhavam em projetos de desenvolvimento no Egito (especialmente
associados à renovação das técnicas de cultivo agrícola, como as plantações de
algodão) saíram do país (BURNS, 1985; FERRO, 2006).
Após o conflito, e com
a aproximação entre Egito e União Soviética para níveis de cooperação além da
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64 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
esfera militar, o governo dos Estados Unidos reagiu à perda de influência direta
sobre o governo egípcio, inaugurando a Doutrina Eisenhower (1957)
7
. O objetivo
implícito dessa era conter a expansão do nacionalismo árabe e, consequentemente,
isolar o governo egípcio (YAQUB, 2004). Assim, todos os acordos de cooperação
com o Egito foram temporariamente suspensos, ao mesmo tempo em que os
Estados Unidos aderiam ao bloqueio econômico criado por França e Grã-Bretanha
para retaliar a nacionalização do Canal de Suez e das companhias estrangeiras
britânicas e francesas instaladas no Egito. Com a Doutrina Eisenhower, os Estados
Unidos mantinham uma promessa de apoio militar aos
governos árabes que se
sentissem ameaçados pela retórica expansionista do governo Nasser. Entretanto, a
relação entre Egito e Estados Unidos
retomou a normalidade com o desenrolar dos
acontecimentos tanto na esfera regional como na política doméstica da República
Árabe Unida. Na esfera regional, Nasser rapidamente provou ser útil à política
externa estadunidense ao integrar a Síria e representar, com isso, um impedimento
ao crescimento da influência soviética ancorada na revolução iraquiana do general
Qasim, em 1958. Outro fator relevante aos olhos dos Estados Unidos: no plano
doméstico, o governo Nasser perseguia toda organização política de esquerda
identificada ou não com o comunismo (GORDON, 1992 ; CREMENS, 1963; KERR,
1965). Cabe lembrar que a ascensão de Qasim no Iraque e sua aliança com a
União Soviética haviam inviabilizado a arquitetura do Pacto de Bagdá organizado
pelos britânicos.
Assim, em maio de 1958, os termos da nova relação de cooperação dos
Estados Unidos com o desenvolvimento econômico egípcio passaram a estar
encarnados na Public Law 480 (PL 480), conhecido por Food for peace. Essa relação
foi amplificada com a eleição de John Kennedy para a presidência americana,
em 1960, em sincronia tanto com o lançamento pelo governo egípcio de seu
primeiro Plano Quinquenal como da aprovação e implementação das novas “leis
socialistas”. O governo Kennedy (1961-1963) concedia especial atenção aos não-
alinhados. Com relação ao governo Nasser, a mudança de percepção da cúpula
do governo americano era radical: o nacionalismo árabe, longe de ser um canal
para a entrada do comunismo, passava a ser visto como uma forma de bloquear
o expansionismo do mesmo (BURNS, 1985).
7 De acordo com a Doutrina Eisenhower, uma país do Oriente Médio poderia requerer ajuda externa estadunidense
militar ou econômica caso se sentisse ameaçado por algum país aliado ao bloco soviético. No livro Containing
Arab Nationalism, Salim Yaqub (2004) defende que a implementação da Doutrina Eisenhower tinha como
principal objetivo controlar a política regional do governo Nasser.
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65Pedro Rocha Fleury Curado
Assim, através da PL 480, navios norte-americanos carregados de trigo e
alimentos passaram a descarregar em portos egípcios, contribuindo de maneira
significativa para aliviar a dependência de alimentos importados e favorecendo
a manutenção do balanço de pagamentos em ordem. Entre janeiro de 1961 e
fevereiro de 1962, a administração americana assinou três acordos no âmbito
do programa Food for Peace com o governo egípcio, nos quais se comprometia
a prover 170 milhões de dólares em commodities (BURNS, 1985).
Esses acordos
iniciais foram suplementados por uma segunda rodada de acordos em que estava
previsto o incremento da ajuda em 24 milhões de dólares em uma segunda rodada
e 43 milhões em uma terceira. Em 1961, o provimento de trigo americano (no
quadro da PL 480) ao mercado egípcio contabilizava 77% do total de
importações
egípcias dessa commodity. Em 1962, esse montante chegou a atingir
99% das
importações nacionais do mesmo produto (BURNS, 1985).
Fatores externos, como
a morte de Kennedy, a ascensão de Lyndon Johnson à presidência americana e
o engajamento egípcio cada vez mais profundo na guerra do Iêmen (1962-1967),
coincidiram para arrefecer novamente as relações entre Egito e Estados Unidos
em 1965. Em 1966, o programa de ajuda foi novamente retomado, mas dessa vez
em menor escala.
O programa Food for peace representou o principal eixo da cooperação para
o desenvolvimento entre o Egito e os Estados Unidos. Através da PL 480, a
cooperação cobriu o período total entre 1954 e 1966, tendo sido particularmente
relevante entre 1958 e 1964. Durante o período total, cerca de 643 milhões de
dólares foram enviados ao Egito por navio na forma de grãos e alimentos que
serviam em grande medida para o consumo urbano (BURNS, 1985).
Com relação ao comércio propriamente dito entre os dois países, os Estados
Unidos jamais deixaram de ser um parceiro comercial importante para o Egito.
Em 1954, os estadunidenses representavam 11% das importações egípcias e
5% das exportações. Em 1962, em pleno processo de implementação do Plano
Quinquenal egípcio, o governo Nasser importava 25% da soma de todos os seus
produtos dos EUA e exportava 6% a esse parceiro. Já em 1965, a relação era de
36% de importações e 3% das exportações aos EUA (BURNS, 1985).
Cabe ressaltar o impacto direto que a provisão de alimentos e grãos norte-
americanos produzia no orçamento do Estado egípcio. Isso porque a dependência
de alimentos importados para suprir uma população em pleno crescimento
demográfico representava um fardo às contas do Estado que, além disso, ainda
subsidiava equipamentos e matérias-primas necessárias à produção agrícola.
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66 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
A provisão de alimentos e grãos americanos, em um montante significativo
como aquele em que foi negociado, permitia ao governo egípcio redirecionar
parcela expressiva do orçamento estatal, normalmente destinado a comprar tais
commodities, para efetivamente investi-los em programas de modernização da
indústria, infraestrutura e produção agrícola. Isso é
particularmente relevante
quando lembramos que, entre 1960-1965, vigorava o
ambicioso Plano Quinquenal
cujo objetivo anunciado era industrializar massivamente o país em um curto
espaço de tempo. Em outubro de 1962, após uma avaliação positiva do governo
Kennedy sobre as relações desenvolvidas entre os Estados Unidos e o Egito a
partir da PL 480
8
, decide-se pelo incremento da cooperação internacional com o
anúncio do aporte de 431.8 milhões de dólares em alimentos e grãos para o triênio
1963, 1964 e 1965 (BURNS, 1985).
Durante esses últimos três anos, entretanto, o agravamento da guerra do Iêmen
desgastou as relações entre Nasser e Kennedy. A despeito do reconhecimento
da legitimidade da república iemenita feita pelo presidente Kennedy em 1962, o
prolongamento da guerra civil interna e, principalmente, o crescimento das tensões
entre o Egito e a Arábia Saudita fizeram com que os estrategistas estadunidenses
revisassem sua posição original diante do conflito: percebia-se uma crescente
ameaça de o conflito transbordar as fronteiras e impactar sobre a segurança
dos poços de petróleo sauditas. Essa posição foi confirmada pelo sucessor de
Kennedy, Lyndon Johnson, que também temia o engajamento das Forças Armadas
egípcias em território iemenita, posto que isso contribuía para reforçar os laços de
dependência militar do Egito com a União Soviética (KHALIDI, 2009; KERR, 1965).
O governo Johnson, por sua vez, insatisfeito com o desenrolar da participação
egípcia nos eventos da região e sem nutrir pessoal afeição à figura de Nasser, passou
a articular internamente para derrubar os acordos que comprometiam os Estados
Unidos a prover ajuda em alimentos e grãos ao Egito para o triênio 1963-1965.
Burns narra as discussões internas dentro do congresso e o peso da participação
do lobby judeu para interromper os acordos de cooperação (BURNS, 1985).
Como resultado, em 1965, a ajuda externa americana é interrompida. Em
1966, quando se estimava a necessidade de o governo egípcio importar cerca
de 300 milhões de dólares em alimentos e grãos, o governo americano volta a
propor a integração do Egito na PL 480 nos mesmos marcos do período anterior.
8 Embora as relações entre Kennedy e Nasser fossem predominantemente positivas, existiam algumas desavenças,
como ficou patente no caso da Guerra no Congo, no qual cada país apoiava lados antagônicos do conflito.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
67Pedro Rocha Fleury Curado
Entretanto, nessa ocasião, o montante oferecido foi bem inferior aos
anteriores:
55 milhões de dólares ao longo de seis meses (BURNS, 1985).
Como observou Mabro (1975), o grande sucesso da política externa do governo
Nasser em relação à Guerra Fria foi assegurar a ajuda americana em períodos
chave de grande investimento, ao mesmo tempo em que ampliava com a União
Soviética o comprometimento dessa com os programas para a industrialização
egípcia. Isso explica, em parte, a alta taxa de crescimento econômico egípcio entre
1957 e 1964. Tal crescimento contínuo foi enormemente financiado por acordos
de cooperação internacional proclamados com os dois blocos. Os Estados Unidos
mantinham a cooperação, comprometendo-se a comprar parte da produção egípcia,
principalmente entre 1959 e 1962.
Vejamos, a seguir, o papel desempenhado pelos
acordos de cooperação soviética durante o mesmo período.
O papel da cooperação soviética para a industrialização do Egito
No caso da relação egipto-soviética, ocorreu uma maior diversificação entre
os setores mobilizados. Na esfera militar, por exemplo, a cooperação soviética
teve início após a venda de armas militares repassadas ao Egito através da
Checoslováquia em 1955 e estava inscrita na nova estratégia do governo de Nikita
Khrushchev, orientada para disputar zonas de influência com o bloco ocidental
no Terceiro Mundo.
O Egito tornou-se um elemento importante para a nova estratégia internacional
soviética e, do lado russo, o eventual sucesso da relação entre os governos
Nasser e Khrushchev passou a ser percebido como um ativo portador de
diferentes vantagens: 1) tratava-se de uma forma de adentrar zonas de influência
tradicionalmente ocidentais (como o Oriente Médio); 2) reduzia a capacidade de
ingerência dos Estado Unidos sobre uma região próxima à fronteira sudoeste do
território russo, rompendo localmente com a estratégia estadunidense de contenção
do expansionismo russo; 3) facilitava a saída da frota soviética pelos mares quentes
do Mediterrâneo através do potencial acesso aos portos de Estados mediterrâneos
amigos”, como era o caso do Egito; 4) o possível sucesso da ajuda soviética na
transformação do Egito em uma potência militar e industrial tornaria esse país
uma imensa plataforma de divulgação do modelo de desenvolvimento russo. Tal
fenômeno melhoraria a imagem da União Soviética diante do Terceiro Mundo e
poderia proporcionar alianças com outros governos nacionalistas não-alinhados.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
68 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
A percepção dos estrategistas soviéticos dessas
potencialidades significou,
na prática, uma atenção especial, assim como certa tolerância com eventuais
divergências entre Moscou e o Cairo.
A transformação das Forças Armadas egípcias em uma potência militar
regional era um objetivo declarado dos Oficiais Livres desde sua ascensão ao
poder. Assim, o mercado de armas soviético serviu, a partir de 1955, aos propósitos
imediatos voltados para o incremento do potencial militar do país. De fato, o Egito
tornou-se o principal comprador de material militar russo fora do bloco soviético,
o que exprime algo sobre a importância dada ao Egito pela política soviética para
o Terceiro Mundo (ver Tabelas 1 e 2). Segundo Henry Laurens (2007), somente
a Índia possuía números comparáveis aos do Egito em termos de ajuda militar
soviética.
Tabela 1. A venda de armamentos da União Soviética para o Terceiro Mundo,
Oriente Médio e Egito entre 1954 e 1966 (em milhões de dólares)
1955-1959 1960-1966
Total de armas exportadas pela URSS para o Terceiro Mundo 777 3.115
Para o Oriente Médio 546 987
Para o Egito 223 536
Total do valor em armas importadas pelo Egito 3.185 556
Fonte: Dawisha, 1979.
Tabela 2. Valor gasto pelo Egito na compra de armamentos junto
a todo o bloco socialista (ano/valor em milhões de dólares)
1955 336
1956-57 170
1963 500
1965 310
No que diz respeito à ajuda econômica soviética (e do bloco socialista), essa
teve início em 1958 após a assinatura de entre os dois países em 1957. Na ocasião,
a União Soviética havia oferecido 700 milhões de rublos em empréstimos com
baixos juros para financiar o primeiro plano trienal de industrialização egípcia
(1957-1960). Os créditos seriam usados para importar equipamentos e contratar
técnicos soviéticos (MABRO, 1975).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
69Pedro Rocha Fleury Curado
Os termos dos acordos de cooperação econômica propostos pela União
Soviética datam de 1958 e eram uniformes de maneira geral. Créditos eram cobertos
em rublos a fim de serem pagos com 2.5% de juros em um período de dez a vinte
anos. A União Soviética ainda se comprometia a comprar 50% da produção de
algodão a
preços acima do mercado, como forma de pagamento (MABRO, 1975).
O segundo acordo
ocorreu em dezembro 1958 e estava relacionado ao financiamento
da primeira etapa de construção da barragem de Assuã (cerca de 400 milhões
de rublos). Em agosto de 1960, um novo empréstimo para o financiamento da
segunda etapa de construção da barragem foi acordado, dessa vez no valor de
900 milhões de rublos. Os valores dos empréstimos nos anos seguintes foram
enquadrados no primeiro e segundo Planos Quinquenais (1960-1965 e 1965-1970)
e expressavam o progressivo engajamento soviético no financiamento dos
programas de industrialização egípcios (ver Tabela 3).
Tabela 3. Ajuda econômica soviética ao Egito (em milhões de dólares)
Ano
Estimativa de montante cumulativo da ajuda
soviética desde 1954 até o ano em questão
Acréscimo anual
1961 681 -
1962 711 30
1963 765 54
1964 1.282 517
1965 1.408 126
1966 1.415 7
1967 1.535 120
Fonte: Mabro, 1975.
Não havia oferta de cooperação do lado ocidental que se aproximasse dos
termos vantajosos oferecidos pelos soviéticos. O Banco Mundial, por exemplo,
era na maior parte do tempo reticente em realizar empréstimos ao setor público
dos países “subdesenvolvidos” (WATERBURY, 1983; HANSEN, 1991). Nos termos
dos acordos para créditos oferecidos pelos soviéticos, esses se comprometiam a
avaliar o custo dos projetos, a expedição de equipamentos, os salários dos técnicos
soviéticos e as despesas com suas viagens. O Egito era obrigado a cobrir todos
os gastos dos técnicos soviéticos enquanto esses estivessem operando em solo
egípcio, assim como estava comprometido em prover a eles materiais e adequadas
condições de trabalho. A União Soviética também permitia a opção de estabelecer
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
70 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
subcontratos para projetos de desenvolvimento econômico com outros países do
Leste Europeu (DAWISHA, 1979).
Pela perspectiva soviética, era mais vantajoso apoiar os programas de
desenvolvimento domésticos do Terceiro Mundo com financiamentos em projetos
específicos do que adotar amplos programas de ajuda, existindo para tanto três
razões centrais: 1) projetos específicos eram funcionais para fins de propaganda;
2) eram práticos para fins logísticos e organizacionais, dado ser mais fácil estimar
os fundos necessários quando esses obedecem a projetos específicos, o mesmo
valendo para o planejamento do número de técnicos a serem empregados; 3) o
apoio a projetos específicos estimulava o desenvolvimento do setor estatal no país
receptor, o que era em si um objetivo dos soviéticos (DAWISHA, 1979).
É importante ressaltar o papel dos programas de cooperação soviética na
cobertura dos gastos empreendidos durante o esforço de industrialização egípcia.
Entre 1955 e 1967, a
União Soviética contribuiu com cerca de 826 milhões de
dólares em ajuda não militar.
Já os demais países do bloco soviético contribuíram
com mais 709 milhões de dólares no mesmo período (MABRO, 1974, 1975; FERRIS,
2011). Mais da metade da ajuda soviética não militar foi direcionada às duas fases
de construção da barragem de Assuã (ver Tabela 4).
Tabela 4. Créditos soviéticos ao Egito, 1955-1964
Data
Valor
(em milhões
de dólares)
Razão
Taxa de
juros
Prazo para
o pagamento
Janeiro de 1958 175 Plano trienal (1958-1960) 2.5% 12 anos
Dezembro de 1958 100 Primeira fase de Assuã 2.5% 12 anos
Agosto de 1960 225 Segunda fase de Assuã 2.5% 12 anos
Junho de 1963 44 Plano quinquenal 2.5% 12 anos
Maio de 1964 282 Plano quinquenal 2.5% 12 anos
Fonte: Ferris, 2011 .
A barragem de Assuã foi o principal projeto isolado do qual participaram
os soviéticos. Em 1958, isto é, dois anos após o abandono da participação
estadunidense das negociações para a viabilização da construção da represa de
Assuã, os soviéticos lograram fechar um acordo com as autoridades egípcias para
participarem da execução do projeto. Durante o processo de implementação,
mais de 300 fábricas soviéticas participaram da manufatura de cerca de 500.000
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
71Pedro Rocha Fleury Curado
toneladas de equipamentos utilizados durante a construção da represa (DAWISHA,
1979). Assim, os soviéticos proviam a expertise técnica e os equipamentos, mas
não apenas isso: o projeto teria 27,8% do seu custo total pago pela União Soviética
(ver Tabela 5).
Em 1964, durante o período em que Khrushchev realizou uma visita de
dezesseis dias ao Egito para a inauguração da barragem de Assuã, a política
soviética para o Egito era percebida por Moscou de maneira indubitavelmente
satisfatória: a antes total influência ocidental sobre o Oriente Médio havia sido
neutralizada e a política soviética havia progredido por etapas sucessivas. Isso
contribuiu para que Khrushchev julgasse também de maneira positiva sua ampla
política de apoio aos governos nacionalistas do Terceiro Mundo.
Tabela 5. Contribuição financeira soviética para a construção da barragem de Assuã
(em milhões de dólares)
Custo total Parcela soviética Porcentagem soviética
Primeira etapa 614 100 16.2
Segunda etapa 515 225 40.8
Total 1.165 325 27.8
Fonte: Dawisha, 1979.
Em função do Egito pós-1957 e da união Soviética serem economias planificadas,
tornou-se possível negociar o preço e o volume dos produtos a serem trocados
sem maiores dificuldades. Existia entre os dois a prática de favorecer o Egito nos
acordos comerciais, posto que o preço das mercadorias por esse exportadas eram
fixadas a um valor acima do mercado (MABRO, 1975).
Em particular, destacava-
se o preço do arroz e do algodão egípcios exportados para a União Soviética. Tais
produtos serviam como forma de pagamento aos empréstimos acordados entre
os dois países e eram não raramente fixados a um preço acima do mercado em
40% e 20%, respectivamente (DAWISHA, 1979).
Para além da vantajosa relação comercial e financeira, os soviéticos estabeleceram
também significativos acordos de cooperação na esfera educacional, com especial
ênfase em formação técnica, visando a ocupação de funções administrativas
específicas. Como observa Dawisha,
A construção de centros técnicos produziu impacto imediato no sistema
educacional egípcio. Entre 1956 e 1975, a União Soviética contribuiu para a
construção e equipamento de 43 centros de formação técnica, responsáveis
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
72 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
pela graduação de 85.000 egípcios. A ênfase nos centros técnicos orientava-
se para a provisão de técnicas vocacionais básicas, mas também tinham
relação com o crescimento do nível médio de alfabetização e com o ensino
de habilidades gerenciais. (DAWISHA, 1979, p. 195. Tradução nossa)
9
.
Um fator externo contribuiu ainda para que a União Soviética ampliasse seu
engajamento na promoção do desenvolvimento no Terceiro Mundo. No início da
década de 1960, os soviéticos foram constrangidos a fazer avançar rapidamente
seu programa de ajuda externa a governos não-alinhados, por acreditar existir
uma concorrência “entre comunistas” advinda da China popular. Essa, após a
ruptura das relações com a União Soviética
10
, passou a acusá-la abertamente de
ser um Estado tão imperialista como seriam os Estados Unidos e de fazer uso de
teses revisionistas para legitimar internamente uma política externa apoiada na
coexistência pacífica” com o bloco ocidental (KAMISKY; KRUK, 1988). No lado
soviético, o efeito produzido pela competição “entre comunistas” foi
a impulsão
de uma política de demarcação de suas zonas de influência no Terceiro
Mundo,
ampliando o volume de ofertas para manutenção de relações privilegiadas com
certos Estados chave para sua estratégia de projeção geopolítica.
O Egito, diante desse novo contexto no qual as opções de barganha se
estendiam também dentro da própria fricção do bloco comunista
11
,
fortaleceu sua
condição de objeto prioritário da política assistencialista soviética. A despeito das
tensões existentes por conta de posicionamentos divergentes no tabuleiro regional,
Egito e União Soviética mantiveram relações estreitas e significativamente mais
estáveis que as relações entre egípcios e norte-americanos durante o período aqui
analisado. Com a derrota na Guerra dos Seis Dias (1967), o Egito perdeu parte
importante de sua frota aérea e, mais grave, passou a ter parte de seu território
— o Sinai — ocupado. Em outras palavras, a guerra reduziu consideravelmente
a capacidade de o governo Nasser continuar a agir como um ator decisivo no
9 The construction of technical centers had the most immediate effect on the educational system in Egypt. Between
1956 and 1975, the Soviet Union helped to build and equip 43 such centers from which over 85.000 Egyptians
have graduated. Emphasis in the centers has been on providing basic vocational skills but has also dealt with
raising standards of literacy and with providing management skills.
10 Após anos de crescentes tensões diplomáticas, a ruptura das relações entre Egito e Estados Unidos ocorreu
formalmente em 1963.
11 Embora Nasser tenha obtido certo volume em ajuda alimentar da China, especialmente após a suspensão da
PL 480 pelos Estados Unidos em 1965, o fato é que, como bem aponta Dawisha (1979), o governo de Mao
não possuía meios nem econômicos nem militares de fazer concorrência com a União Soviética por zonas de
influência comunistas no Terceiro Mundo.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
73Pedro Rocha Fleury Curado
Oriente Médio, seja na condição de liderança árabe, seja na função de agente
dinamizador das tensões da Guerra Fria que envolviam a região (LAURENS, 1991;
OREN, 2002). O resultado foi a impossibilidade de manutenção de uma política
externa capaz de instrumentar o peso geopolítico do país para negociar apoios
com os dois lados da Guerra Fria. Efetivamente, a partir de então e durante os
anos seguintes, o Egito reduziria enormemente o caráter autônomo de sua política
externa para se tornar mais vulnerável e dependente do suporte exclusivo do
bloco soviético. Segundo o próprio Gamal Nasser, as circunstâncias haviam feito
do não-alinhamento uma impossibilidade factual (HEIKAL, 1972, 1986; FERRIS,
2013; DAWISHA, 1976).
Considerações finais
Ao compararmos a cooperação internacional entre Egito, Estados Unidos e
União Soviética, foi preciso considerar representado pelo governo Nasser para
cada uma das superpotências em termos regionais e globais, dado o contexto da
Guerra Fria. Assim, a maior propensão do lado soviético em arcar com os custos
de programas de ajuda externa vantajosos ao Egito ocorria justamente em função
desse país possuir elevada importância na estratégia soviética de projeção de
seu poder estatal no globo. Tal percepção da importância egípcia não ocorria, ao
menos na mesma escala, do lado das prioridades definidas pelos Estados Unidos.
No caso, após um período de inicial desinteresse em atender as demandas do
governo dos Oficiais Livres, os EUA acabaram pressionados a redefinir e valorizar
uma janela de negociação aberta com o Egito. Tal revisão somente foi possível
após o Egito “convidar” a União Soviética para contribuir com seus programas
de obtenção de armamentos e desenvolvimento econômico. Do ponto de vista
norte-americano, embora o Egito mantivesse um papel central na elaboração
da estratégia estadunidense para o Oriente Médio durante o período 1955-1967,
seu peso era contrabalançado pela existência de outros aliados regionais, como
a Arábia Saudita e, num momento posterior, Israel.
No caso soviético, o
apoio
regional existente para além do governo Nasser, como o ocorrido temporariamente
na Síria e no Iraque, era mais fluido e instável.
Na política soviética, a condescendência com o elevado grau de autonomia dos
movimentos nacionalistas não-alinhados, tal como expresso na relação especial
desenvolvida com o Egito, representava algo mais profundo, como uma revisão
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 2, 2018, p. 56-75
74 Não-alinhamento, cooperação internacional e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria [...]
das próprias teorias que até então orientavam a política externa daquele país.
Buscando usar o exemplo de sua relação com o Egito para projetar sua influência
sobre novos governos, os instrumentos de propaganda soviética reforçaram a
percepção de ser o Egito de Gamal Nasser um modelo de sucesso para os países
do Terceiro Mundo, garantido graças aos financiamentos e à expertise técnica
soviética. A Guerra dos Seis Dias em 1967 e a subsequente reordenação da
correlação de forças entre os Estados árabes esvaziaram a capacidade egípcia de
agir regionalmente para manter-se em equilíbrio em relação ao jogo de forças
dos interesses regionais de Estados Unidos e União Soviética. O resultado dessa
transformação no tabuleiro geopolítico da região foi o fim das condições materiais
que permitiram ao Egito utilizar o não-alinhamento como instrumento eficaz
para viabilizar financiamentos, peças e técnicos para seus principais programa
internos de desenvolvimento.
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