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O Brasil no Órgão de Solução de
Controvérsias da OMC: soft balancing?
Brazil in the WTO Dispute Settlement Body:
soft balancing?
DOI: 10.21530/ci.v13n3.2018.762
Daniel castelan
1
Leandro Wolpert dos Santos
2
Resumo
O objetivo do artigo é analisar se a atuação do Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias
da OMC (OSC) reflete uma estratégia de soft balancing por parte do governo brasileiro. Para
atingir o propósito, foram realizadas as seguintes tarefas: (i) identificação de se e quando o
balanceamento do poder estadunidense se tornou um propósito da política externa brasileira,
através da análise de discursos e documentos oficiais; (ii) análise dos números de casos levados
pelo governo brasileiro no período, em comparação com países aliados dos Estados Unidos,
para verificar se há algum viés no uso do OSC que indique o uso político desse mecanismo;
e (iii) análise do contencioso aberto contra os EUA sobre subsídios ao algodão, em 2003. Os
resultados indicam que, embora o conceito seja adequado para interpretar algumas iniciativas
de política externa, há limitações em sua aplicação à atuação do governo brasileiro no OSC,
pois as competências para a abertura de casos não eram exclusivas do Itamaraty e também
porque o número de casos abertos contra os EUA reduziu-se bastante no momento em que,
discursivamente, as críticas à concentração do poder mundial se tornavam mais recorrentes.
Sendo assim, recorrer a tal interpretação desvia o analista de buscar explicações em outros
níveis de análise que podem ter sido determinantes no caso em questão.
Palavras-chave: Soft Balancing; Política Externa Brasileira; Estados Unidos; Órgão de Solução
de Controvérsias; Organização Mundial de Comércio.
1 Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ), é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde
integra o Grupo de Análise de Política Externa (GAPE).
2 Doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (IESP/UERJ), é bolsista CNPq e integrante dos grupos de pesquisa GAPE (Grupo de Análise de
Política Eterna), OPSA (Observatório Político Sul-Americano) e NEAAPE (Núcleo de Estudos Atores e Agendas
de Política Externa).
Artigo submetido em 17/12/2018 e aprovado em 02/10/2018.
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60 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
Abstract
The objective of this paper is to analyze whether Brazil’s role in the WTO Dispute Settlement
Body (DSB) reflects a strategy of soft balancing by the Brazilian government. To accomplish
this purpose, the following tasks were carried out: (i) identification of if and when the
balance of US power became a purpose of Brazilian foreign policy, through the analysis of
speeches and official documents; (ii) analysis of the numbers of cases taken by the Brazilian
government in the period, compared to allied countries of the United States, to verify if
there is any bias in the use of the DSB that indicates the political use of this mechanism;
and (iii) analysis of the litigation opened against US cotton subsidies in 2003. The results
indicate that although the concept is adequate to interpret some foreign policy initiatives,
there are limitations in its application to the Brazilian government’s role in the DSB, because
the powers to open cases were not unique to the Itamaraty, and also because the number
of cases opened against the US was greatly reduced at a time when, discursively, criticisms
of the concentration of world power became more recurrent. Thus, recourse to such an
interpretation diverts the analyst from seeking explanations at other levels of analysis that
may have been decisive in the case in question.
Keywords: Soft balancing; Brazilian Foreign Policy; United States; Dispute Settlement Body;
World Trade Organization.
Introdução
Em novembro 2009, a revista The Economist estampou em sua capa uma foto
do Cristo Redentor decolando, abaixo de um título não menos enfático:”Brazil
takes off”. A imagem bem expressava a expectativa, comum à época, de que o
Brasil crescia e, em decorrência, teria mais espaço na discussão dos grandes
temas da política internacional. O reconhecimento não era inédito. Termos
como “emergentes”, “potências médias”, “global players” e “grandes mercados
emergentes” visitaram as análises sobre política externa com a mesma frequência
com que ciclos econômicos de tempos em tempos renovam suas expectativas de
desenvolvimento. Se, no final dos anos de 1970, estiveram em pauta os Newly
Industrialized Countries (NICs), na primeira década dos anos 2000 os holofotes
se dirigiram para os BRICS.
Nesse período, o debate foi acompanhado por análises sobre as estratégias
de política externa perseguidas por tais países com o fim de expandir seu papel
na política internacional, tanto no relacionamento com a região, como com
grandes potências ou instituições internacionais (HURREL, 2009; DESTRADI, 2010;
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61Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
SCHWELLER; PU, 2011; STEPHEN, 2012; FLEMES, 2013). Parte dessa literatura, de
tradição realista, defendeu a tese de que o Brasil, assim como outros emergentes,
teria adotado uma estratégia de soft balancing (balanceamento brando), com
vistas a conter o poder e a influência das potências estabelecidas, em especial os
Estados Unidos, no processo decisório global, por meio de iniciativas diplomáticas
e institucionais predominantemente não militares, tais como: entendimentos
informais e exercícios cooperativos ad hoc; colaboração através de arranjos
diplomáticos em instituições regionais ou internacionais; reforço da coesão
econômica entre os alinhados, através, por exemplo, da construção de blocos
econômicos regionais, sem a participação dos Estados Unidos; transmissão de
sinais diplomáticos do comprometimento de resistir às ambições do Estado
dominante; entre outros (HURREL, 2009; FLEMES, 2009, 2010; FONSECA JR., 2012;
LOPES, 2017).
O ativismo brasileiro no Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da
Organização Mundial de Comercio (OMC) foi utilizado, pela literatura, como uma
das evidências da estratégia de balanceamento brando na política externa brasileira
(HURREL, 2009; FLEMES, 2009, 2010). Segundo Hurrel (2009), as ações movidas
pelo Brasil contra os EUA no OSC, além de atenderem a interesses comerciais
concretos, teriam visado ao mesmo fim de outras práticas de soft balancing, qual
seja, desconcentrar o poder mundial. Isso porque instituições internacionais como
a OMC permitem que países de menor poder relativo contra-arrastem, ainda
que com limitações, a proeminência das potências dominantes, em particular os
Estados Unidos. Assim, através das instituições internacionais, países como Brasil
e a Índia seriam capazes de
acorrentar Gúliver [em referência aos EUA] de todas as formas possíveis,
independentemente de quão finas as amarras individuais possam ser. Não é
surpreendente, portanto, que o Brasil e a Índia sejam o quarto e o quinto países
que mais ativamente reclamem no mecanismo de solução de controvérsias
da Organização Mundial de Comércio (OMC). (HURREL, 2009, p. 27)
Entretanto, ao defender o argumento de que a política brasileira na OSC
atende à estratégia de soft balancing, Hurrel (2009) não examinou um pressuposto
necessário para sua validade: qual seria a motivação, intenção ou propósito do
governo brasileiro ao abrir os contenciosos na OMC. E, sem avaliá-las, é impossível
qualificar as ações no OSC como estrategicamente voltadas ao soft balancing.
Flemes (2009; 2010) cometeu o mesmo equívoco ao replicar o argumento de
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62 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
Hurrel (2009) e não fornecer evidências de que os governantes brasileiros foram
motivados por razões de política de poder ao decidirem acionar os Estados Unidos
no OSC. Desse modo, ambos os autores deixaram de levar em conta explicações
alternativas para o ativismo brasileiro no OSC.
O objetivo deste trabalho consiste, pois, em analisar mais criteriosamente se
as ações brasileiras no OSC podem ser qualificadas como soft balancing, como
forma de refletir sobre os rendimentos analíticos desse conceito. Realizamos as
seguintes tarefas com esse fito: depois de apresentar a tese do soft balancing
na seção 1, na seção 2, buscamos evidências gerais de que tal propósito esteve
presente nas diretrizes gerais da política externa brasileira recente, recorrendo a
discursos e documentos oficiais. Em seguida, na seção 3, através do levantamento
de alguns números sobre a atuação do Brasil no OSC e de um estudo de caso
típico, buscamos avaliar o argumento de que o Brasil utilizou tal órgão como uma
estratégia de soft balancing, nos termos definidos pela literatura sobre o assunto.
1 A tese do soft balancing
Com o incremento do unilateralismo na política externa dos Estados Unidos a
partir da “Doutrina Bush” de guerra ao terror e a reação assertiva de países como
Alemanha, França e Rússia contra os planos estadunidenses de invasão militar
do Iraque no início dos anos 2000, parte da literatura ocidental, influenciada
pelos aportes teóricos da corrente realista das relações internacionais, propôs-se
a analisar, teoricamente, a resposta de países de segunda ordem à percepção de
ameaça representada pela potência dominante durante o governo de George W.
Bush. Desses estudos, surgiu a tese do soft balancing, que combinou elementos da
teoria da balança de poder de Waltz (1979) com a teoria da balança de ameaças
de Walt (2002).
De acordo com os proponentes da referida tese, o balanceamento brando,
diferentemente das formas tradicionais de balanceamento, não envolveria tentativas
diretas de confrontar ou constranger as preferências do país dominante por meio
de alianças militares ou mobilização militar, mas sim de estratégias diplomáticas e
institucionais predominantemente não militares, com o propósito de atrasar, frustrar
e minar práticas intervencionistas e políticas unilaterais dos EUA, restringindo a
projeção política de seu poder militar; resistir à pressão econômica, política e até
mesmo militar dos Estados Unidos; aumentar o poder de barganha em negociações
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internacionais, sejam elas relacionadas a questões específicas ou a amplos acordos
de governança global; demonstrar aos EUA as limitações de sua influência, isto
é, que nem sempre os demais países irão aceitar resignadamente a imposição das
preferências da potência hegemônica; e desfrutar maior autonomia em relação
aos Estados Unidos (PAPE, 2005; PAUL, 2005; WALT, 2006).
Segundo a tese do soft balancing, o comportamento externo do país dominante
e sua percepção por parte das lideranças políticas nos países de segunda
ordem são considerados fatores decisivos para o surgimento de estratégias de
balanceamento brando. Quer dizer, não basta o unipolo apresentar uma postura
revisionista em sua política externa, é necessário também que os demais Estados
o percebam como uma ameaça indireta ou potencial (PAUL, 2004; PAPE, 2005;
WALT, 2006). Nada obstante, as percepções e motivações dos líderes políticos
dos países de segunda grandeza têm recebido pouca atenção teórica e empírica
na literatura acadêmica sobre o soft balancing. Com efeito, boa parte dos estudos
tem apresentado um forte viés normativo a favor dos condicionantes sistêmicos
desse tipo de comportamento estatal, especialmente a distribuição mundial de
poder e as atitudes da potência hegemônica. Os Estados de segunda grandeza,
via de regra, são tidos como atores unitários, que respondem aos estímulos
sistêmicos a partir da sua posição relativa na hierarquia mundial de poder, de
modo que as motivações originais dos atores políticos têm sido negligenciadas para
a verificação da ocorrência da estratégia de balanceamento brando (ART, 2006;
HE; FENG, 2008). Reproduz-se, dessa forma, o argumento lógico da teoria
neorrealista de Waltz (1979), segundo o qual o equilíbrio de poder surge como
resultado não necessariamente intencional da ação dos Estados, que, levados
pela anarquia internacional a priorizar a segurança nacional como seu interesse
absoluto, acabam costurando alianças e arregimentando forças que levam a um
resultado sistêmico – a balança de poder – nem sempre pretendido.
A negligência das motivações políticas dos Estados que supostamente estão
engajados na estratégia de balanceamento brando ensejou fortes críticas, dentro
da própria escola realista, à tese de soft balancing. Como argumentam Liber
e Alexander (2005), além de difícil operacionalização empírica, o conceito de
balanceamento brando muitas vezes é confundido com a mera barganha política
ou com fricções diplomáticas corriqueiras da política internacional. No mesmo
diapasão, Brooks e Wolhforth (2005) afirmam que a tese do soft balancing se
torna infalsificável ao não considerar explicações alternativas para os fenômenos
que supostamente constituem evidências de balanceamento brando, tais como:
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64 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
interesses econômicos, preocupações de segurança regional, disputas políticas e
incentivos políticos domésticos. Desse modo, uma forma de falsificar o conceito
seria demonstrar que os Estados que praticam balanceamento brando estariam
dispostos a abdicar de outros interesses para contrariar o país dominante. Em
defesa da tese do soft balancing, Walt (2009) admite que as motivações dos
atores realmente são fundamentais para definir se um comportamento de política
externa constitui um exemplo de balanceamento brando ou não, o que acaba
exigindo maiores esforços daqueles que se propõem a empregar o conceito em
análises empíricas. Para o autor, no entanto, a dificuldade da operacionalização
do balanceamento brando não significa ser ele inútil ou infalsificável.
Nada obstante seu uso inicialmente restrito ao exame das políticas externas de
países de segunda ordem, não demorou muito para que a tese do soft balancing logo
fosse aplicada na análise do comportamento internacional de países emergentes,
especialmente China, Índia, Brasil e África do Sul. Hurrel (2009) certamente foi
um dos pioneiros nesse empreendimento. Para o autor, em um contexto global
de crescente interdependência entre as nações, a relevância e utilidade da teoria
da balança de poder não se restringe aos casos nos quais o Estado dominante
representa uma ameaça militar à segurança dos demais países. Isso porque o
problema do poder não balanceado envolve também a possibilidade de os países
mais poderosos “ditarem as regras do jogo” aos mais frágeis, distorcerem os termos
de cooperação em seu próprio benefício, imporem seus próprios valores e costumes
nas relações internacionais e, desse modo, solaparem as normas essenciais para
a estabilidade do sistema internacional (HURREL, 2009). Nas palavras de Hurrel,
é por esta razão que a percebida necessidade de conter o poder dos Estados
Unidos compõe um elemento muito importante das políticas de Brasil, Rússia,
Índia e China em muitas áreas e muitos assuntos aos quais céticos gostariam de
consignar à área da ‘barganha diplomática normal’“ (2009, p. 36).
Ao definir o que seria uma estratégia de soft balancing, Hurrel (2009), assim
como Walt (2009), enfatiza a motivação e o propósito dos Estados de contrabalançar
a potência estadunidense, estabelecendo, assim, um critério de verificação. Para
ele, apenas as ações externas em resposta à concentração de poder dos EUA,
isto é, com motivações de conter a primazia estadunidense, podem, de fato, ser
representativas do comportamento de balanceamento brando. Essa especificação
coloca uma obrigação de pesquisa ao autor: para provar que as ações dos Estados
de fato caracterizaram-se como soft balancing, é preciso aferir a motivação por
trás das diferentes iniciativas, em vez de deduzi-las do modelo teórico. Hurrel
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(2009), entretanto, não examina detalhadamente as intenções dos governantes
brasileiros na abertura dos contenciosos contra os EUA para chegar à conclusão
de que o ativismo do Brasil na OMC é evidência de soft balancing. Outros
autores cometem o mesmo equívoco ao replicar o argumento de Hurrel (2009)
e não fornecer evidências de que os governantes brasileiros foram motivados
por razões de política de poder ao decidirem acionar os Estados Unidos no OSC
(FLEMES, 2009, 2010). Nesse caso, em específico, motivações econômicas e não
políticas podem ter levado o Brasil a abrir os contenciosos contra os Estados Unidos.
Verificar as motivações dos governantes brasileiros, especialmente no âmbito do
Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, é a tarefa que nos propomos nas
seções seguintes.
2 O balanceamento dos Estados Unidos como propósito
da Política Externa Brasileira
As primeiras manifestações, no discurso diplomático brasileiro, do objetivo de
promover a multipolarização da ordem mundial surgiram ao final do segundo governo
de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), sobretudo após o recrudescimento
do unilateralismo na política externa dos Estados Unidos na virada do século XX.
Duas ações importantes dos EUA catalisaram a reação: a aprovação do fast track
no Congresso dos EUA, em junho de 2002, eliminando da mesa de negociações
da ALCA e OMC quase 300 produtos prioritários para o Brasil, e o anúncio da
“Doutrina Bush”, em resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001, claramente
desrespeitando prerrogativas do Conselho de Segurança na manutenção da paz
e ordem internacionais.
À imediata repercussão na mídia mundial, seguiram-se críticas contundentes
por parte da diplomacia brasileira, já no governo Fernando Henrique Cardoso,
expressas a chefes de Estado de países emergentes que assumidamente se
engajavam na construção de um mundo multipolar, como China e Rússia. Em
janeiro de 2002, na esteira dos acontecimentos de 11 de setembro do ano anterior,
o presidente brasileiro afirmou em visita oficial à Rússia:
os acontecimentos de 11 de setembro tornaram ainda mais necessário o
fortalecimento do diálogo político entre o Brasil e a Rússia. Defendemos
uma ordem multipolar, que se oriente segundo a igualdade entre os Estados
e valorize o papel das Nações Unidas (CARDOSO, 2002, p. 36, grifo nosso).
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66 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
A estratégia de multipolarização da ordem global, se foi apenas moderadamente
anunciada por Fernando Henrique Cardoso, tornou-se um dos eixos da diplomacia
de Luiz Inácio Lula da Silva a partir de janeiro de 2003. Tal propósito certamente
pesou na escolha dos dois principais nomes para o Itamaraty durante os governos
Lula – ministro Celso Amorim e secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães –
que há algum tempo expressavam críticas duras à primazia dos EUA na política
internacional do pós Guerra Fria, mesmo antes dos acontecimentos de 11 de
setembro de 2001 (AMORIM, 1998a, 1998b; GUIMARÃES, 2001a, 2001b). De
fato, em entrevista concedida à Gazeta Mercantil em 2002, o embaixador Celso
Amorim, já nomeado chanceler do governo Lula, transmitia o desejo brasileiro
de contribuir para a construção de uma ordem internacional multipolar:
Na realidade global de hoje, todo mundo acentua o grande predomínio
americano, e ele é verdadeiro. Mas há vários outros polos de poder. O Brasil
pode contribuir para a multipolaridade, que é saudável para todos e até
para a grande potência. Podemos contribuir com o diálogo franco com países
europeus, com a China, Rússia, Índia, África. (AMORIM, 2002, p. 327, grifo
nosso)
No mesmo diapasão, Samuel Pinheiro Guimarães, em seu discurso de posse
como Secretário-Geral do Itamaraty, em 2003, colocou a questão nos seguintes
termos:
O mundo multipolar sem hegemonias em que todos os Estados obedeçam
ao Direito Internacional e procurem resolver suas controvérsias de forma
pacífica é o mundo que mais interessa à nação brasileira. Cada dia, cada ato
da Chancelaria, deve procurar contribuir para este objetivo. As organizações
multilaterais, em especial as Nações Unidas e a OEA, devem contribuir para
esses objetivos, e o Brasil nelas atuará de forma ativa. (GUIMARÃES, 2003,
p. 69, grifo nosso)
Certamente, a posição expressa por Amorim e Guimarães fizeram eco à postura
histórica do Partido dos Trabalhadores e de Lula, pois atendiam simultaneamente
a um propósito da política internacional e a uma aspiração das bases do governo,
historicamente críticas dos Estados Unidos (PT, 1994, 1998, 1999). Como relata
Amorim, houve uma imediata identificação entre suas ideias e às do líder de
governo logo na primeira conversa que manteve com Lula. Da mesma forma,
Samuel Pinheiro Guimarães, que havia sido afastado do núcleo decisório da
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67Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
diplomacia de Fernando Henrique Cardoso pela postura crítica em relação à
participação brasileira nas negociações da ALCA, foi reintegrado ao governo como
segundo homem mais importante das Relações Exteriores. Assim, de elemento
retórico a multipolarização tornou-se um importante motor da política externa a
partir de 2003.
Essa orientação de política externa emergiu com força nas discussões da ONU
sobre a intervenção no Iraque, quando ficou evidente que o predomínio da força
militar dos EUA lhe permitiria ignorar as resoluções multilaterais. Nesse momento,
o Brasil compôs a coalizão intitulada “Frente pela Paz”, junto com Alemanha,
França e Rússia para opor resistência à invasão do Iraque. Ao buscar uma frente
contra a guerra, o governo não defendia apenas o princípio clássico da diplomacia
brasileira da solução pacífica de controvérsias, mas buscava agir concretamente
para obstruir a ação unilateral dos EUA, essa secundada pela “Coalizão da Vontade”,
e impedir que os planos de invasão do Iraque se consumassem (AMORIM, 2013).
Nas palavras do então chanceler brasileiro,
Todos conhecem bem o fato de que o esgotamento da ordem bipolar da
Guerra Fria gerou o que foi chamado por uns de “momento unipolar”, e
por outros de “ilusão unipolar”. No início do século XXI, e especialmente
na esteira dos atentados de 11 de setembro, a unipolaridade conheceu seu
auge. Ao contrário do que pretenderam alguns de seus ideólogos, a primazia
da superpotência remanescente não gerou estabilidade no sistema. Como a
invasão do Iraque em 2003 demonstraria, a extrema concentração de poder
[...] era fonte de instabilidade em nível global. Até porque era um incentivo ao
uso fácil da força. O estímulo aos elementos incipientes da multipolaridade
foi a resposta que o Brasil e outros países procuraram oferecer aos riscos do
desequilíbrio unipolar. A oposição clara à guerra do Iraque e a defesa da
integridade do sistema multilateral das Nações Unidas [...] não deixou de
conter [...] elementos da busca de um melhor equilíbrio do poder mundial.
(AMORIM, 2016, p. 219-220, grifo nosso)
Na rodada Doha da OMC, mesmo quando perseguindo interesses comerciais
concretos, a diplomacia do governo Lula realçou que um dos objetivos ao liderar
a criação do G20 comercial foi justamente “multipolarizar” a estrutura das
negociações comerciais multilaterais, tradicionalmente estribada nos dois polos
capitaneados pelos EUA e pela União Europeia (UE). Conforme Amorim (2011),
até a V Conferência Ministerial de Cancún, a correlação de forças nas negociações
comerciais agrícolas da OMC punha em lados opostos os Estados Unidos, apoiados
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pelo grupo de Cairns, na demanda por maior acesso ao mercado agrícola, e a
União Europeia que,à frente de países em desenvolvimento com agricultura
familiar e de subsistência, a exemplo da Índia, esposava uma posição mais
protecionista e obstrucionista. Além de fragmentar a atuação conjunta dos países
em desenvolvimento e, assim, impedir o avanço das negociações agrícolas, tal
estrutura “bipolar” permitia que, ao final, os EUA e a UE chegassem a um acordo
comum que lhes fosse benéfico em detrimento dos países em desenvolvimento.
Após Cancún, portanto, a estrutura negociadora da OMC teria se modificado,
tornando-se “multipolar”, com a introdução do G20 como mais um polo de poder
frente aos Estados Unidos e à União Europeia (AMORIM, 2011, 2015).
Com a criação oficial do BRIC em 2009, o governo Lula se juntou a outras
potências emergentes na preconização de uma ordem internacional multipolar,
supostamente mais equilibrada e justa, a ser alcançada através da promoção
de reformas nas principais instituições internacionais (e.g. Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial e Conselho de Segurança das Nações Unidas) e
de sorte a conter a primazia das grandes potências estabelecidas, garantindo,
assim, maior participação dos países em desenvolvimento no processo decisório
global (BRIC, 2009, 2010). Nas palavras de Amorim (2008, p. 211), a primeira
reunião ministerial do BRIC ocorrida em Ecaterimburgo, que resultaria na
criação oficial do grupo um ano depois, “diz mais sobre a multipolaridade do
que quaisquer palavras”, porquanto Brasil, Rússia, Índia e China “buscam se
fortalecer politicamente como um bloco que ajude a equilibrar e democratizar a
ordem internacional deste início de século”
Por fim, projetos regionais de integração e cooperação – particularmente o
MERCOSUL e a UNASUL – foram igualmente justificados, em diversos momentos,
como necessários para a “multipolarização” da ordem internacional vigente,
fazendo da América do Sul mais um polo de poder dentro de um mosaico mundial
de contornos cada vez mais multipolares (BRASIL, 2004; SILVA 2009). No que diz
respeito ao primeiro projeto de integração, é emblemática a elaboração, em 2007,
do Convênio do Sistema de Pagamentos em Moeda Local no âmbito do MERCOSUL,
que tornou facultativa aos países membros do bloco a utilização de moedas locais
no comércio exterior intrarregional em substituição ao dólar (VADELL; LAMAS;
RIBEIRO, 2009). No que toca à UNASUL, o anseio pela multipolaridade e equilíbrio
de poder no mundo, a ser logrado por meio do aprofundamento da integração
regional, encontra-se explícito logo no preâmbulo do seu tratado constitutivo,
segundo o qual: “a integração é um passo decisivo para o fortalecimento do
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69Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
multilateralismo e a vigência do direito nas relações internacionais para lograr um
mundo multipolar, equilibrado e justo” (UNASUR, 2018, p. 3, tradução nossa
3
).
Conforme argumentam Cervo e Bueno (2010), a UNASUL, em termos geopolíticos,
criou um polo de poder regional que, embora não se caracterizasse como uma
aliança militar, permitiu que os contenciosos entre os países sul-americanos fossem
resolvidos regionalmente, a partir de suas premissas próprias de segurança e sem
a interferência de forças externas. Assim, foi através da UNASUL, e não da OEA
ou por mediação estadunidense, que se estabilizaram crises políticas na região
como a da Bolívia, em 2008, e entre Colômbia e Venezuela, em 2010. Também
por meio da UNASUL, o governo brasileiro condenou enfaticamente a iniciativa
colombiana de assinar um acordo de cooperação militar com os EUA em 2010, que
previa a instalação de sete bases militares estadunidenses em território colombiano
(VIGEVANI; RAMAZINI JÚNIOR, 2014).
Em suma, na medida em que foram justificadas e efetivamente contribuíram,
ainda que de maneira branda e limitada, para a maior distribuição de poder no
mundo, as iniciativas da política externa brasileira descritas acima evidenciam que,
mais do que um simples jargão retórico, o propósito de promover a multipolarização
da ordem internacional e, consequentemente, balancear o poder dos Estados
Unidos, foi uma das motivações que orientou a diplomacia brasileira sobretudo a
partir do governo Lula (2003-2010). Sendo assim, nesses casos, o conceito de soft
balancing pode ser útil para interpretar a estratégia de política externa do Brasil,
particularmente em relação aos EUA. O problema se coloca com relação a outras
iniciativas de política externa, entre as quais não motivadas explicitamente pelo
desejo de redistribuir o poder mundial, como acontece com a atuação brasileira no
Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Seriam os contenciosos abertos pelo
Brasil contra os Estados Unidos no OSC evidências válidas da tese do balanceamento
brando? Para que assim o seja, respeitando-se as condições de verificação apontadas
pelo próprio intelectual, a atuação brasileira no OSC também deve, no mínimo,
ter apresentado como propósito, entre outros, balancear o poder estadunidense
ou, no discurso diplomático, promover a “multipolarização do mundo”. Na seção
que segue, buscamos verificar se esse propósito realmente se verificou.
3 “La integración es un paso decisivo hacia el fortalecimiento del multilateralismo y la vigencia del derecho em
las relaciones internacionales para lograr un mundo multipolar, equilibrado y justo”. (UNASUR, 2018, p. 3,
versão original)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
70 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
3 A participação brasileira no Órgão de Solução de Controvérsias
Para verificar se a atuação brasileira no OSC foi norteada por considerações
de equilíbrio de poder, nesta seção buscamos os seguintes objetivos: (i) analisar
o processo decisório de uma das disputas mais importantes movidas pelo Brasil
contra os EUA, sobre subsídios concedidos à produção de algodão; e (ii) analisar
de forma desagregada e comparativa as disputas iniciadas pelo Brasil no período,
para verificar se o número de disputas contra os EUA cresceu depois de 2001,
especialmente em comparação com países que, por terem se declarado aliados
dos EUA, indiscutivelmente não adotaram a estratégia de soft balancing.
3.1 Os números
Não obstante a reorientação da diplomacia brasileira após 2003, seja adotando
a “multipolarização” ou a defesa mais vigorosa da “autonomia”, as estatísticas
sobre a abertura de disputas na OMC nos últimos 25 anos (1995-2015) evidenciam
alguns paradoxos. Primeiro, o amplo período 1995-2002 concentra grande parte
das consultas levadas pelo governo brasileiro ao OSC, embora com dois padrões
distintos: entre 1995-1999, há maior dispersão dos países contestados pelo Brasil;
enquanto em 2001-2002, os casos voltam-se, sobretudo, para os EUA (Tabela 1).
Tabela 1: Disputas iniciadas pelo Brasil, por país reclamado (1995-2015)
Reclamado 1995-2000 2001-2002 2003-2009 2010-2015 TOTAL
EUA 3 5 2 0 10
União Europeia 4 2 0 1 7
Outros PDs 2 1 0 0 3
América do Sul/México 3 1 0 0 4
Outros PEDs 1 0 0 2 3
TOTAL 13 9 2 3 27
Média anual 2,2 4,5 0,3 0,4 1,3
Fonte: Organização Mundial do Comércio (www.wto.org). Elaboração do autor, ano.
O ano de 2001 é justamente quando toma corpo o propósito de multipolarização
– evidência a favor da tese de soft balancing –, mas é também quando ocorrem
outros eventos importantes no campo comercial: (i) tramitava no Congresso
dos EUA fast track que retirou produtos agrícolas que o governo brasileiro
esperava ver liberalizados via ALCA ou Rodada Doha; (ii) a legislação brasileira
de propriedade intelectual era questionada pelos EUA, acirrando os ânimos nas
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
71Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
questões comerciais; (iii) a Camex estava em reformulação; (iv) estava se criando a
coordenação de contenciosos no MRE, com a simultânea capacitação de diplomatas
em questões econômicas e (v) ganhava força o grupo desenvolvimentista no
governo. Portanto, há indícios para a tese de soft balancing, embora haja tantos
outros que apontem ser os contenciosos sobretudo um meio de abrir mercados
quando outros espaços se fecham.
Por outro lado, paradoxalmente, o número de disputas contra os Estados
Unidos caiu muito depois de 2003, justamente quando Lula assumiu o governo
e pôs em marcha iniciativas que o próprio Amorim disse estarem voltadas
para “desconcentrar poder mundial”. Nos 13 anos de governo do Partido dos
Trabalhadores, foram abertas apenas 2 consultas contra os EUA, frente a 8
consultas nos 8 anos de governos do PSDB. Esses dados sugerem que o discurso
de multipolarização de Lula, embora possa explicar as coalizões formadas nas
negociações multilaterais, como o IBAS, ou a consolidação dos BRICS, não se
manifestou na atuação brasileira no Órgão de Solução de Controvérsias. Welber
Barral (2015), que foi Secretário do Comércio Exterior do MDIC durante alguns
anos, sugere que esse comedimento no período Lula ocorreu porque, entre 2003
e 2008, o governo esperou abrir mercados na Rodada Doha, aguardando seus
resultados antes de avançar litigiosamente os temas comerciais, muito embora
haja depoimentos que indiquem exatamente o contrário, de que o OSC foi usado
de maneira complementar às negociações multilaterais, seja para forçar a inclusão
de certos temas na agenda, seja para angariar poder de barganha
4
. Outra hipótese
é que a Coordenação de Contenciosos do Itamaraty, criada em outubro de 2001
5
,
4 Segundo Cozendey ([s.d.], p. 6),”assim o sistema de solução de controvérsias passa a ser tanto fonte de
iniciativas de negociação, quanto fonte de poder de barganha no contexto das negociações. Passa, ao mesmo
tempo, a entrar nos cálculos do negociador a opção de não acordar uma nova regra e confiar que os resultados
do sistema de solução de controvérsias lhe serão favoráveis”.
5 O Decreto n. 3.959, de 10 de outubro de 2001, criou a Coordenação de Contenciosos no Ministério de Relações
Exteriores, subordinada à Subsecretaria Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior.
Algumas justificativas à época foram dadas pelo Secretário Geral Seixas Corrêa: “A criação da coordenação-geral
para contenciosos deve-se à importância de um acompanhamento específico e com maior grau de especialização
nas questões por assim dizer “judiciais” (os chamados “panels”) em que o país se encontra envolvido não só no
contexto da OMC, mas também no âmbito dos mecanismos de solução de controvérsias do Mercosul.” (Corrêa,
2001, p 342). Celso Lafer, então ministro, também comentou o assunto em entrevista ao Correio Brasiliense em
29 de janeiro de 2001 (“Mobilização para Negociar a ALCA”): “uma ideia que tenho em relação ao Itamaraty
é criar um departamento de contenciosos econômicos que concentre a competência no âmbito do Itamaraty
e possa fazer essa ponte com acadêmicos e empresários(referência?)(…) tomei a decisão de destinar todos
os diplomatas da última turma do Instituto Rio Branco para as divisões econômicas, com vistas a assegurar
pessoal suficiente para enfrentar a considerável carga de trabalho que implicam as diversas negociações em
que estamos envolvidos” (referência?).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
72 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
em vez de facilitar a abertura de processos, na verdade conteve as demandas
injustificadas do setor privado, fazendo uma “triagem legal” antes de iniciar
contenciosos. Como visto no estudo de caso, esse propósito esteve nítido nas
articulações políticas que levaram ao contencioso do algodão. De qualquer forma,
não parece ter sustentação a ideia de que o governo usou a política comercial
como forma de contra-hegemonia, pelo menos não nas disputas da OMC, pois
sua estratégia de enfrentamento dos EUA não foi acompanhada de mais casos.
Outra maneira de tentar capturar o viés político das disputas comerciais é
analisar o número de casos abertos por um país para cada dólar exportado. Partimos
da suposição de que, quanto mais intenso o fluxo comercial, mais recorrente
deverão ser as restrições comerciais enfrentadas e, portanto, as disputas no OSC.
Restringimos a análise a alguns reclamantes: Brasil e Índia, por supostamente
serem praticantes do soft balancing; Canadá e Japão, pela tradicional aliança
com os EUA; e os países da União Europeia. Além disso, são esses os únicos
países que acionaram o Órgão de Solução de Controvérsias mais de 20 vezes entre
1995 e 2015.
Sob esse prisma, alguns aspectos chamam atenção. Primeiro, Brasil e Índia
são muito ativos no OSC em geral (Tabela 2, linha “Mundo”), e não apenas contra
os EUA: nenhum dos países analisados abriu tantas disputas na OMC por valor de
dólar exportado quanto esses emergentes. Se restringimos a análise às disputas
iniciadas contra os EUA, o valor é ainda mais elevado. Isso poderia indicar um
“viés político” de Brasil e Índia, já que alvejam a potência com maior frequência
do que fazem com outros. Mas, como as disputas iniciadas pelo Japão e pela
União Europeia contra os EUA têm as mesmas características, pode-se inferir que
o elevado índice expressa mais o protecionismo americano do que a orientação
política do resto do mundo. Essa afirmação, aliás, se estende ao Brasil: ele frequenta
o banco dos réus no OSC mais recorrentemente do que se poderia esperar pelo
valor de suas importações (Tabela 2).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
73Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
Tabela 2: Índice de disputas*, por reclamante e reclamado
Reclamado
Reclamante
Brasil Índia Canadá Japão União Europeia
EUA 2,7 2,2 0,28 0,35 0,59
União Europeia (28) 1,2 1,5 0,22 0 .
Outros PDs 1,9 0 0,82 0,36 0,22
Brasil . 2,5 3,6 2,8 0,93
Índia 0 4,1 0 1,8
China 0 0 1,9 0,13 0,41
Outros PEDs e Rússia 1,7 0,31 0,72 0,13 0,33
Mundo 1,1 0,8 0,51 0,18 0,12
* [Disputas iniciadas (1995-2015) / Valor exportado(1995-2014)]*10
8
Fonte: Cálculo dos autores, com dados da UNCTAD (comércio) e OMC (disputas).
Por fim, as disputas iniciadas pelo Brasil e Índia, em comparação com as
de Canadá, Japão e União Europeia, sugerem haver certo viés Norte-Sul nas
disputas: Brasil e Índia têm índices mais elevados em disputas contra UE, EUA e
outros países desenvolvidos; enquanto os valores dos casos abertos por Canadá,
Japão e União Europeia são maiores contra Índia, China, Brasil e outros países
em desenvolvimento. Parece, pois, que países desenvolvidos abrem mais casos
contra países em desenvolvimento, em relação ao valor exportado, do que contra
países desenvolvidos, e vice-versa. Essa observação deve ser lida com cautela:
serve mais como evidência de que a tese de soft balancing não explica bem o
padrão de ação dos países no OSC do que como prova definitiva de que há um
viés Norte-Sul nesse órgão – hipótese que exigiria mais provas para sustentar-se.
3.2 Um caso típico: algodão
Uma forma de averiguar se o Itamaraty utilizou o Órgão de Solução de
Controvérsias para redistribuir o poder mundial é analisar o processo decisório
que levou à abertura de disputas contra os EUA. Assim é possível identificar quem
propôs a saída litigiosa, qual a posição adotada pelo Itamaraty e quais setores do
governo se posicionaram a favor ou contra.
A prova é mais contundente se analisamos casos iniciados após 2003, período
em que o governo brasileiro intensificou as críticas à postura unilateral dos
Estados Unidos. Se o propósito de multipolarização desempenhou algum papel
na diplomacia brasileira, terá certamente sido após esse ano. Dentre eles, o mais
significativo foi a disputa do algodão, com pedido de consultas apresentado à
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
74 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
OMC em setembro de 2002 e de painel em março de 2003, pois questionou um dos
pilares da política agrícola estadunidense, a Farm Bill, ainda durante a vigência
da Cláusula da Paz. O resultado, favorável ao Brasil, dá ideia da importância do
caso: pela primeira vez a OMC autorizou, como retaliação, contramedidas em
matéria de propriedade intelectual para uma disputa sobre bens, em montante
até então nunca alcançado, US$ 147 milhões anuais (AZEVÊDO, 2013).
A disputa foi o ápice de anos de queixa, por parte do governo brasileiro,
com relação aos resultados da Rodada Uruguai do GATT (1986-1994). O Acordo
Agrícola incorporado à legislação da OMC ao final da Rodada, resultado de
barganha entre Estados Unidos e Comunidades Europeias no conhecido Blair
House Agreement, de 1992, nunca satisfez plenamente a diplomacia comercial
brasileira. Desde o encerramento das negociações, diplomatas aproveitaram cada
oportunidade pública para criticar o resiliente protecionismo agrícola nos países
desenvolvidos, mantendo viva a pauta de liberalização para o setor até que, em
novembro de 2001, após frustradas tentativas anteriores, na Reunião Ministerial
da OMC, teve início uma nova rodada de negociações com mandato abrangente
sobre o tema: redução, com vistas à eliminação, de subsídios às exportações e
reduções substantivas em subsídios internos com efeito distorcivo
67
.
Meses antes da reunião de Doha, no início de 2001, círculos do governo
brasileiro já buscavam formas mais céleres e eficazes de atacar os subsídios
agrícolas europeus e estadunidenses por meio do Órgão de Solução de Controvérsias.
O núcleo dessa articulação não partiu do Itamaraty, mas do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, particularmente depois que assumiu a
Secretaria de Produção e Comercialização o ex-presidente da Sociedade Rural
Brasileira Pedro Camargo Neto, durante a gestão do ministro Marcus Vinicius
Pratini de Moraes (1999-2003). Partiu dessa secretaria a iniciativa de avaliar a
legalidade dos subsídios agrícolas à luz do Acordo Agrícola da OMC
8
. O Artigo 13
6 No excerto sobre agricultura, previa-se: nos comprometemos com negociações abrangentes destinadas a:
melhorias substanciais no acesso a mercados; reduções, com vista à eliminação gradual, de todas as formas
de subsídios à exportação; e reduções substanciais no apoio interno que distorce o comércio” (OMC, 2001,,
tradução nossa). A crítica brasileira ao protecionismo agrícola nos países centrais pode ser vista nas diversas
intervenções públicas realizadas no período, compiladas na coletânea Resenhas de Política Externa.
7 Versão original do texto citado na nota anterior: “we commit ourselves to comprehensive negotiations aimed
at: substantial improvements in market access; reductions of, with a view to phasing out, all forms of export
subsidies; and substantial reductions in trade-distorting domestic support.
8 É o próprio Pedro Camargo Neto (2014) quem afirma, em depoimento anos após o contencioso, ter tido a iniciativa
de recorrer à OMC para combater os subsídios estadunidenses: “no início de 2001 iniciamos internamente no
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA – um estudo sobre os subsídios estadunidenses
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
75Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
desse acordo instava as partes a exercerem “duerestraint” – comedimento – nos
recursos ao OSC durante o período de implementação (final de 2003), desde que
subsídios domésticos não excedessem os níveis de 1992. Em estudo sobre a soja
nos EUA, o Ministério da Agricultura brasileiro constatou contribuições financeiras
muito superiores aos níveis de 1992. Estavam dadas assim as justificativas para
recorrer aos tribunais, mesmo enquanto vigente a Cláusula da Paz. E como a
situação repetia-se em outras culturas, o Ministério da Agricultura, em discussões
com produtores e demais membros do governo, definiu preliminarmente três
setores que poderiam sustentar disputas: soja e algodão, contra os EUA, e açúcar,
contra a União Europeia.
Enquanto o Ministério da Agricultura buscava apoio para iniciar a disputa, já
que a palavra final partiria de uma decisão do Conselho de Ministros da Camex
9
,
o Itamaraty tentava freá-la. Essa era a percepção tanto de Camargo Neto, referido
Secretário de Produção e Comercialização do MAPA fortemente engajado no
processo
10
, quanto do ex-Secretário Executivo da Camex Roberto Giannetti da
Fonseca
11
, homem com fortes vínculos com a indústria exportadora paulista e
envolvido no processo de “reestruturação industrial” encampado por Fernando
Henrique Cardoso para recuperar as reservas cambiais a partir de 1999. Camargo
Neto sentiu as resistências do Itamaraty aumentarem ao longo de 2001, quando
alterações nos cargos de chefia do MRE começaram a dificultar o processo de
para a soja. O maior produto agrícola em renda do Brasil vinha apresentando permanente crescimento em área
plantada e produtividade. Tornávamo-nos o líder de hoje. Simultaneamente, coincidência ou não, os estadunidenses
aumentavam os subsídios fornecidos a seus sojicultores […] É importante lembrar que os contenciosos se
iniciaram dentro do MAPA e não provocados pelos setores prejudicados como é o usual” (referência?) Camargo
Neto (2014, p 32).O importante papel de Camargo Neto tem respaldo também em comentário do advogado
responsável pelo caso, Scott D. Andersen, que, em citação de Oliveira (2007, p. 23), teria o classificado como
“o chefão, o visionário dos casos relativos ao algodão e ao açúcar” (referência?) (Oliveira 2007, p. 23).
9 A Camex foi criada pelo Decreto n. 1.386, de 6 de fevereiro de 1995. Quando da criação, sua composição era:
ministro-chefe da Casa Civil; das Relações Exteriores; da Fazenda, do Planejamento e Orçamento; da Indústria,
do Comércio e do Turismo; da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária. Houve alterações posteriores
(FERNANDES, 2010, 2013).
10 Em depoimento citado por Oliveira (2007, p. 23), Camargo Neto afirmou: “Alguns funcionários do Ministério
das Relações Exteriores não desejavam enfrentar a superpotência mundial no terreno das questões agrícolas.
Eu levei até eles um estudo sobre a contestação dos subsídios e eles disseram, ‘Traga-me outro’. A seguir, eu
levei dois e eles me pediram outros quatro”.
11 Em entrevista a Ivan Fernandes (2010, p. 97), o ex-Secretário Executivo da Camex entre 2000 e 2002 afirmou
que o MRE, cujo ministro era Celso Lafer, e o próprio MDIC, dirigido pelo também diplomata Sérgio Amaral,
eram contra a abertura de painel contra os EUA devido à falta de pessoal qualificado para conduzir o tema e por
receio de enfrentar um adversário tão preparado. Ainda segundo Giannetti, a decisão para iniciar o contencioso
foi tomada na própria Camex, por pressões dele próprio, e do ministro da Agricultura Marcus Vinicius Pratini
de Moraes.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
76 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
aprovação do contencioso” (CAMARGO NETO, 2014, p ?30). O ex-funcionário
do MAPA não explica quais foram tais alterações de cargo, mas provavelmente
referia-se ele à criação da Coordenação-Geral de Contenciosos Comerciais no
MRE em outubro de 2001, para onde foi alocado o diplomata e atual diretor geral
da OMC Roberto Carvalho de Azevêdo, já que não houve outras mudanças nos
cargos econômicos do Itamaraty naquele ano. Segundo depoimento de Gianneti,
também o ministro da Indústria e diplomata de carreira Sérgio Amaral fazia eco
às justificativas do Itamaraty: havia grande risco de perder o contencioso; era
grande a chance de “ganhar mas não levar”; seria politicamente delicado acionar
a OMC durante a vigência da Cláusula da Paz; era prudente aguardar os primeiros
sinais da Rodada Doha, que continha um mandato amplo para agricultura; não
havia servidores qualificados para lidar com a disputa.
A relutância do Itamaraty se manteve ao longo de 2002, embora a aprovação
definitiva da Trade Promotion Authority e da Farm Bill nos EUA, completamente
contrárias ao mandato de Doha, tenham contribuído para convencer membros do
governo brasileiro que o litígio era a única saída para debelar os subsídios agrícolas.
Tais decisões do governo estadunidense foram amplamente cobertas pela mídia
brasileira. Notícias da Folha de S. Paulo de maio de 2002 fizeram menção a estudo
crítico publicado pela embaixada do Brasil em Washington e a nota divulgada pelo
MRE, na qual supostamente informavam que “O Itamaraty poderá acionar a OMC
para tentar eliminar subsídios que distorcem a competitividade internacional no
setor agrícola” (DIANNI, 2002, p ?). Contraditoriamente, a ofensiva verbal não
correspondia à posição oficial do ministério. Um mês após veiculação da notícia
na Folha de S. Paulo, na XVI Reunião da Camex, em 6 de junho, o Itamaraty
apresentou e teve aprovado parecer contrário ao pedido de consultas na OMC,
obstruindo a ofensiva pretendida pelo Ministério da Agricultura.
A resistência só foi vencida em setembro de 2002, quando a Camex aprovou
o pedido de consultas à OMC sobre os subsídios ao algodão nos EUA. Segundo
Camargo Neto, pesou na votação a posição do ministro da Fazenda Pedro Malan
(1995-2002), homem forte dentro do governo que apoiou as consultas, além do
ministro da Agricultura Pratini de Moraes, de onde havia partido a demanda pelo
contencioso. A essa altura, o pleito já contava com o respaldo das principais
associações de classe produtoras de algodão no país, e também de ONGs
preocupadas com o impacto dos subsídios sobre pequenos produtores de algodão
em países pobres.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
77Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
Iniciadas as consultas, coube ao Itamaraty formular parecer à Camex detalhando
o programa estadunidense e sugerindo providências. O resultado foi apresentado
na XXII Reunião da Camex, em 6 de fevereiro de 2003, quando o representante
do MRE sugeriu que fosse feita “pronta solicitação do estabelecimento do painel,
se possível na próxima reunião do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC,
que será realizada no dia 18 de fevereiro de 2003”(CAMEX, 2017).
A enfática defesa da abertura do painel pelo Itamaraty na Camex, embora
na contramão da posição até então defendida pelo mesmo ministério, não
surpreende. Àquela altura, era outra a composição das forças políticas no governo.
Com a posse de Lula em janeiro de 2003, fortaleceram-se as políticas ativas de
desenvolvimento econômico, assim como ganharam espaço no Itamaraty as teses
mais “autonomistas” em política externa, herdeiras de uma tradição diplomática
cultivada desde os anos de 1960, muito presente para os ministros Celso Amorim
e o secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães, e também fortemente respaldada
por círculos do Partido dos Trabalhadores incorporados ao governo, como Marco
Aurélio Garcia, que se tornou assessor especial da Presidência da República para
Assuntos Internacionais. Assim como essa recomposição de forças políticas no
Estado implicou negociações mais firmes na ALCA e na OMC, também levou
ao questionamento de práticas ilegais de comércio via Órgão de Solução de
Controvérsias.
Deve-se frisar, contudo, que o contencioso não foi aberto por iniciativa do
Itamaraty, mas de uma pasta mais diretamente envolvida com os produtores rurais
– o Ministério da Agricultura – que, àquela altura, era comandado por Roberto
Rodrigues, figura política de peso junto ao agronegócio, que emprestava apoio
ao governo. A posição inicial do Itamaraty, contrária à demanda, paulatinamente
perdeu apelo ao longo de 2002, com a ampla divulgação midiática do protecionismo
estadunidense manifesto na Farm Bill e na Trade Promotion Authority, e alterou-se
completamente com a ascensão do novo governo brasileiro em janeiro de 2003.
Considerações finais
Em períodos recentes, na medida em que os EUA mostraram que, além de
fortes, não se conformariam às regras internacionais – seja no campo da segurança,
seja no comércio – progressivamente o governo brasileiro, escudado por um
processo de crescimento econômico intensivo que nutria expectativas de grandeza,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
78 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
articulou diversas iniciativas que explicitamente buscavam construir um mundo
multipolar. Obviamente, como em qualquer articulação política, motivações de
poder mesclaram-se com interesses os mais diversos para consolidar uma base
de apoio que sustentasse tais iniciativas. Não nos dedicamos a um estudo mais
pormenorizado dessas motivações, salvo no caso do algodão aberto pelo Brasil no
Órgão de Solução de Controvérsias, onde constatamos a confluência de interesses
diversos que compunham o governo Lula.
Em síntese, houve um grande número de disputas iniciadas pelo Brasil
contra os Estados Unidos, particularmente no ano de 2001, quando o propósito
de “multipolarização do mundo” foi introduzido na agenda da política externa
brasileira. Entretanto, quando desagregamos as disputas por ano, os números
mostram que a eleição de Lula foi acompanhada pela redução das disputas contra
os EUA – lido por certos analistas como uma opção por aguardar as negociações
em Doha – o que nos desautoriza a imputar a ação no OSC exclusivamente ao
acirramento da diretriz multipolar brasileira, que de fato ocorreu no período.
Em segundo lugar, o Itamaraty não tinha competência exclusiva de iniciar os
contenciosos, que era dividida com ministérios, como a Indústria e a Agricultura,
eivados que estavam pelos interesses que representavam. Pelo forte vínculo
mantido com o setor privado, foi deles a iniciativa de questionar juridicamente os
subsídios estadunidenses, e não do MRE. O Itamaraty, ao contrário, inicialmente
tentou contê-la. A proposta ganhou força por uma reorientação político-ideológica
do governo, iniciada em 1999 e com auge em 2003, quando a restauração das
contas externas tomou o centro da política econômica e ganharam espaço grupos
“desenvolvimentistas” no interior do governo, bastante próximos de uma tradição
mais autônoma de política externa que também ascendeu no Ministério. Em meio
a tais mudanças, e com a aprovação do fast track em junho de 2002, ficou cada
vez mais claro que pouco se conseguiria com as negociações, e que alternativas
litigiosas deveriam ser buscadas.
Diante da miríade de interesses confluentes que resultaram na abertura do
contencioso, deve-se refletir: qual a utilidade de resgatar o conceito soft balancing
para interpretá-lo? Para subsidiar essa reflexão, convém retomar a pergunta inicial:
o contencioso foi aberto pelo governo brasileiro com o propósito de oferecer
resistência às políticas estadunidenses? Por um lado, sim. A tradição autonomista
de política externa respaldada por Lula continha elementos de anti-imperialismo,
caros à esquerda, e também a nacionalismos de diferentes estirpes, que muito
bem podem ter mobilizado a Camex, já em 2003, para fazer resistência à expansão
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
79Daniel castelan; Leandro Wolpert dos Santos
da hegemonia estadunidense. No entanto, notando que o governo brasileiro
abriu um painel no OSC contra os EUA, nos deparamos com a necessidade de
interpretar uma ação política, imputando-lhe um sentido, na clássica noção de
sentido weberiano. E, para tanto, é necessário refletir acerca de certas premissas:
quão desejável é, analiticamente, pressupor que a política externa expressa um
“motivo” ou “intenção” do governo, e não resulta de diferentes motivos, pretensões
e intenções em disputa no Estado?
A nosso ver, considerar, na interpretação, as forças políticas internas ao Estado,
em vez de deduzir o comportamento de modelos teóricos que pressupõem um
Estado unitário, faz diferença. Não tivesse o governo Lula aberto espaço à tradição
autonomista da diplomacia externa brasileira, preservada em círculos importantes
do Itamaraty, e não tivesse ele formado uma coalizão desenvolvimentista que incluía
defensores aguerridos da liberalização agrícola, a composição da Camex teria sido
outra. Falar em soft balancing, nessas circunstâncias, é limitar demasiadamente
a explicação para o contencioso comercial em busca de “parcimônia”.
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Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 3, 2018, p. 59-82
80 O Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC: soft balancing?
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