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Argentina e Brasil na visão dos think tanks
dos Estados Unidos
1
Argentina and Brazil in the view of the
United States’ think tanks
DOI: 10.21530/ci.v13n1.2018.725
Eduardo Munhoz Svartman
2
Resumo
No decorrer dos anos 2000, Argentina e Brasil chamaram atenção dos think tanks dos
Estados Unidos dedicados à América Latina e aos países emergentes, por conta da eleição
de governantes progressistas e do maior protagonismo externo desses países, expresso em
iniciativas como a liderança da MINUSTAH, a criação de novos mecanismos de concertação
regional e na adoção de posições críticas ao sistema liderado pelos EUA, embora não
necessariamente identificadas com o bolivarianismo. Esse papel suscitou considerável
produção de “experts” a respeito dos dois países no sentido de decifrar essa nova realidade
e de orientar a política dos Estados Unidos para a região. O presente estudo analisa como
a produção ideacional dos think tanks dos EUA abordou o ciclo de maior protagonismo
externo da Argentina e do Brasil, as crises domésticas e os novos governos que chegaram ao
poder em 2015 e 2016. São escrutinadas as temáticas dominantes e enfatizados, na análise,
os aspectos securitários e estratégicos considerados pelos think tanks como mais relevantes
para os Estados Unidos, assim como as recomendações políticas feitas por tais organizações.
Palavras-chave: think tanks; relações Brasil-Estados Unidos; relações Argentina Estados
Unidos; países emergentes.
Abstract
In the 2000s, Argentina and Brazil caught the attention of the United States think tanks
devoted to Latin America and emerging countries. The election of center-left rulers that
increased the foreign protagonism of their countries through initiatives such as the leadership
1 Esta pesquisa contou com bolsa CAPES Estágio Sênior, processo número 001583/2015-08.
2 Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e em Estudos Estratégicos Internacionais da
UFRGS. Contato: eduardosvartman@gmail.com
Artigo submetido em 03/11/2017 e aprovado em 19/04/2018.
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of MINUSTAH, the creation of new regional organizations and the criticism to the US-led
international order, although not necessarily identified with Bolivarianism, really changed the
regional landscape. This role has given rise to considerable production of “experts” about the
two countries in order to decipher this new reality and to guide US policy towards the region.
The present study analyzes how the ideational production of US think tanks addressed the
cycle of greater external protagonism in Argentina and Brazil, the domestic crises and the
new governments that came to power in 2015 and 2016. The text depicts the predominant
issues and is focused on the analysis of the strategic and security aspects considered by the
think tanks as most relevant to the United States, as well as the policy recommendations
made by these organizations.
Keywords: think tanks; Brazil-United States relations; Argentina-United States relations;
rising countries.
Introdução
As primeiras décadas do século 21 têm sido marcadas por um duplo processo
de incremento do protagonismo de países intermediários, usualmente classificados
como “emergentes”, e de desgaste da credibilidade dos Estados Unidos e de seu
compromisso com alguns dos fundamentos da ordem internacional que, desde
o fim da Guerra Fria, lideravam quase sem contestação. As mudanças que vêm
reconfigurando o ordenamento do sistema internacional se expressam na retomada
do protagonismo externo da Rússia, na ascensão econômica (e, em menor escala,
militar) da China, na emergência de novos fóruns e articulações internacionais,
como o G-20 e o BRICS, e nas iniciativas de vários países intermediários no
sentido de ampliar suas margens de autonomia, especialmente nos seus entornos
regionais. Como será assinalado adiante, Argentina e Brasil participaram, ainda
que em escalas diferentes, dessa dinâmica.
Embora a distribuição do poder militar não tenha sofrido ainda alterações
muito significativas desde as longas intervenções no Iraque e Afeganistão, em nome
da “guerra global ao terror”, e da crise financeira de 2008, as respostas dos Estados
Unidos a essa ordem em fluxo têm sido objeto de ampla discussão, na qual se
assinala a alternância de opções unilateralistas e protecionistas, que enfraquecem
o componente liberal e sua legitimidade, e de opções de concertação e globalistas,
que buscam reforçar o compromisso de outros países com a governança do
sistema (HURRELL, 2006; KAHLER, 2013). Essa alternância pode ser constatada no
predomínio de políticas unilaterais dos governos George W. Bush e Donald Trump
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e de “engajamento” com os chamados “responsible stakeholders” da administração
Barak Obama. Também expressa um debate teórico em curso nos EUA entre os
advogados da estratégia da contenção dos emergentes (MEARSHEIMER, 2014),
da socialização desses na ordem liberal (IKENBERRY, 2011) e da moderação da
presença dos Estados Unidos nas regiões e temas considerados vitais para sua
hegemonia (POSEN, 2014).
Diferente da Guerra Fria, quando a estratégia da contenção pautou a ação
dos Estados Unidos, no presente, cada governo tem feito ajustes conjunturais e
por vezes contraditórios que buscam atender tanto às demandas externas quanto
ao público interno estadunidense. Nesse ambiente, a definição do que seja o
interesse nacional dos EUA na miríade de regiões, temas e agendas específicas é
objeto de disputa particularmente forte entre os atores governamentais diretamente
envolvidos (Casa Branca, Departamento de Estado, Pentágono, Congresso) e
atores sociais que pretendem influenciar tal processo (grupos de pressão, think
tanks, lobbies). Diante disso, o objetivo central desse artigo é analisar a produção
ideacional de um dos grupos de atores, os think tanks, no que diz respeito ao maior
protagonismo internacional da Argentina e do Brasil, às crises domésticas e aos
novos governos que chegaram ao poder em 2015 e 2016, de modo a apreender o
que, na percepção de um número selecionado de think tanks, tais acontecimentos
implicariam para os Estados Unidos. Num período de crise econômica e contestação
da liderança norte-americana, de ascensão e queda de governos de esquerda e
centro-esquerda na América do Sul, como os dois maiores países da região foram
enquadrados por essas organizações, que têm por objetivo influenciar governos
e a opinião pública do seu país?
Para dar conta dessa proposta, o presente artigo está organizado da seguinte
maneira: esta introdução, uma breve descrição do maior protagonismo observado
nas inserções internacionais da Argentina e do Brasil, seguida do papel exercido
pelos think tanks no cenário político dos Estados Unidos e do recorte analítico
aqui estabelecido. Posteriormente, são apresentadas algumas características
institucionais e ideológicas dos think tanks aqui pesquisados para, em seguida,
analisar sua produção ideacional a respeito das políticas externa e de defesa
da Argentina e do Brasil. Por fim, o artigo encerra com conclusões, onde são
apresentadas as conclusões.
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Protagonismo externo da Argentina e do Brasil e o papel dos
think tanks
Na primeira década do século XXI, a ação externa da Argentina deu-se no
sentido de alavancar a recuperação da profunda crise econômica e política que
abalou o país no início da década de 2000. Para fazer frente à retração da economia
e aos impactos sofridos pela sociedade de seu país, que levaram o governo anterior
a decretar moratória ao pagamento dos credores externos, o presidente Néstor
Kirchner, eleito em 2003, apontou para a recuperação das reservas, reindustrialização
e a geração de emprego como suporte para sua estratégia de desendividamento
e renegociação da dívida externa do país. Crítico das administrações neoliberais
anteriores e dos organismos financeiros internacionais, Kirchner afirmava “pensar
o mundo em argentino” e conferiu maior ênfase à presença da Argentina nos foros
multilaterais, às relações com a América do Sul e à aproximação com a Venezuela
e o Brasil (BUSSO, 2014). Tratava-se, em síntese, de uma inflexão em favor de um
modelo autonomista e desenvolvimentista (SIMONOFF, 2009). Tal inflexão esteve
amparada num período continuado de forte expansão da economia Argentina, com
taxa média de crescimento do PIB superior a 8% ao ano (BANCO MUNDIAL, 2017)
.
No campo da defesa nacional, a Argentina manteve o orçamento de defesa
severamente reduzido, o que prolongou o quadro de crescente obsolescência de
suas Forças Armadas. Entretanto, houve avanços em termos de controle civil
sobre os militares (envolvendo tanto a responsabilização de agentes da ditadura
pelos crimes cometidos, como mudanças substantivas na educação militar) e
do emprego das forças em operações de paz sob o mandato da ONU, o que
reforçava seu compromisso com o multilateralismo e estreitou a aproximação com
o Brasil, Chile e Uruguai, atores relevantes na MINUSTAH. A adesão argentina à
UNASUL e sua atuação em crises como a do acordo de 2009 (no qual a Colômbia
esteve a ponto de ceder bases militares aos EUA em seu território), revelam uma
disposição para fortalecer os mecanismos regionais multilaterais e manter um
padrão autonomista em relação à potência central.
Em 2007, Cristina Fernandez de Kirchner assumiu a presidência da Argentina
com um programa continuísta; todavia, ao longo de seus dois mandatos, os
cenários interno e externo se mostraram cada vez menos favoráveis. Na esteira
do desgaste de 12 anos dos Kirchner à frente da Casa Rosada e da queda do preço
internacional dos produtos exportados pela Argentina, em 2015, Maurício Macri
venceu as eleições nacionais. Crítico do que define como o populismo de seus
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antecessores, Macri tem adotado um perfil de inserção externa neoliberal e alinhado
às potências centrais. Durante sua visita oficial a Washington, em 2017, Macri
participou de um evento no Center for Strategic International Studies (CSIS), um
dos mais influentes think tanks dos EUA, onde falou em inglês, um ato simbólico
relevante a indicar que o governo não mais “pensava em argentino”.
No mesmo período, o Brasil viveu um ciclo, em sua ação externa, que partiu
de uma crítica aos custos do processo de globalização, ainda nos anos finais
do governo Cardoso (SILVA, 2009), para uma maior diversificação e busca por
autonomia na administração Lula, seja através da construção de coalizões em
organizações internacionais, da criação de novos foros regionais – como a UNASUL,
da mobilização de um discurso reformista dos organismos internacionais ou
da projeção econômica e política sobre América do Sul, África e Oriente Médio
(CERVO, 2010). A isso se soma a implantação de projetos de modernização das
suas Forças Armadas a partir da produção doméstica e de iniciativas de integração
da indústria de defesa no âmbito da América do Sul, em cooperação com
parceiros predominantemente europeus (SVARTMAN, 2014). Mais recentemente,
nos governos Dilma Rousseff, tal ciclo se retraiu para níveis mais baixos de
protagonismo (SARAIVA, 2016) e, no governo Michel Temer, sofreu uma inflexão,
abandonando o discurso reformista, distanciando-se da África e assumindo
um discurso voltado à busca de acordos de livre-comércio com a Europa e os
Estados Unidos.
Diante da complexidade das transformações em curso e da dificuldade em
se estabelecer com maior precisão um padrão de conduta dos Estados Unidos em
relação aos países intermediários em geral e a Argentina e Brasil em particular,
tanto no que diz respeito aos temas de política externa quanto aos de defesa,
evidencia-se a necessidade de uma compreensão mais aprofundada dos processos
de formulação dessas políticas. Os think tanks consistem em um espaço social no
qual é possível identificar as opções políticas que estão em circulação e disputa no
ambiente político de Washington, uma vez que são organizações frequentemente
definidas como dedicadas à pesquisa de políticas públicas e ao fornecimento de
análises e assessoria que visam prover os dirigentes políticos de elementos para
a tomada de “decisões informadas” sobre questões específicas (MCGANN, 2011).
Em termos institucionais e legais, os think tanks são organizações da sociedade
civil sem fins lucrativos que, nos Estados Unidos, são mantidos majoritariamente
por doações do setor privado (fundações, empresas ou pessoas) e, em alguns
casos, por doações e contratos governamentais (ABELSON, 2006).
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Embora ainda relativamente pouco investigados na Argentina e no Brasil,
os think tanks integram o universo discursivo em que são construídas, testadas,
debatidas e difundidas as ideias que embasam o processo de modelagem de
distintas políticas públicas em vários países. Em diferentes circunstâncias, os think
tanks desempenharam papel ativo na produção das opções de política externa e
de defesa nos Estados Unidos, no Reino Unido e, mais recentemente, na União
Europeia e em seus membros (STONE; DENHAM, 2004). Tal papel não é linear e
nem sempre pode ser imediatamente traduzido em termos de influência direta e
mensurável no processo de tomada de decisão estatal. Contudo, é particularmente
relevante em ambientes institucionais complexos, no qual vários atores interferem
no processo de formulação e execução de políticas, como nos Estados Unidos, onde,
junto com a Presidência, os departamentos de Estado e de Defesa, o Congresso
e agências como a NSA e a CIA atuam no processo.
Nesses ambientes, os think tanks são aqui pensados como espaços de
construção, reprodução e circulação de ideias vocacionadas para modelar o
debate público e influenciar a formulação de políticas públicas junto aos agentes
governamentais, tendo como princípio de legitimidade a expertise. As noções que
informam as formulações estratégicas, a identificação de oportunidades e ameaças,
aliados e inimigos e, por fim, o desenho das políticas delas decorrentes não são
apenas corolários da estrutura do sistema internacional. Segundo a tradição
construtivista, trata-se de percepções socialmente construídas que definem o que
se entende por interesse nacional. Conforme Jutta Weldes
os interesses nacionais são construções sociais criadas como objetos signifi-
cativos a partir dos significados intersubjetivos e culturalmente estabelecidos
com os quais o mundo, em particular o sistema internacional e o lugar do
Estado nele, é entendido. Mais especificamente, os interesses nacionais
emergem das representações – ou, para empregar terminologia mais usual,
descrições de situações e definições de problemas – através das quais
agentes do Estado e outros atores produzem sentido do mundo ao seu redor.
3
(WELDES, 1996, p. 280)
3 National interests are social constructions created as meaningful objects out of the intersubjective and culturally
established meanings with which the world, particularly the international system and the place of the state in it,
is understood. More specifically, national interests emerge out of the representations – or, to use more customary
terminology, out of situation descriptions and problem definitions – through which state officials and others
make sense of the world around them.
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Nesse sentido, considera-se aqui que os think tanks operam participando do
processo de construção ideacional dos chamados interesses nacionais dos Estados
Unidos. Ou seja, do que e de quem são seus aliados e parceiros e do que esperar de
seus adversários, reais ou potenciais. A produção ideacional dessas organizações
está firmemente engajada na construção de identidades e significados a respeito
do papel das potências e do que significam, no caso dessa pesquisa, Argentina
e Brasil. Deve-se salientar que, apesar da diversidade ideológica, entre os think
tanks aqui investigados predominam variantes da visão liberal, nas quais se tende
a naturalizar a ordem construída e liderada pelos EUA desde 1945 como sendo
um bem coletivo universal
4
. Dessa forma, a questão fundamental que informa
essa produção sobre Argentina e Brasil aplica-se aos demais emergentes: em que
medida tais países pretendem ser acomodados na ordem liberal e em que medida
eles são forças que desafiam a ordem e pretendam modificá-la ou criar outra.
Deve-se, ainda, destacar que os think tanks são relevantes não apenas por
sua disposição para influir no processo decisório, mas também por contribuir para
modelar o debate e a opinião pública em torno de agendas e ideias específicas.
No que diz respeito a países que contam com poucos especialistas entre os atores
em Washington, como Argentina e Brasil, a produção ideacional difundida pelos
think tanks é consumida por quadros da diplomacia estadunidense, das empresas
de consultoria, das agências de classificação de risco, da imprensa e de associações
de negócios. As ideias construídas e propagadas pelos think tanks nesses ambientes,
através de diferentes meios, como relatórios, artigos em jornais, conferências,
mesas redondas e reuniões reservadas, contribuem para a formação de um
consenso (o chamado “common ground”) que informa o desenho de políticas
governamentais, recomendações ao setor privado e decisões de investimento.
Panorama dos think tanks investigados e recorte analítico
Os Estados Unidos é o país que abriga o maior número de think tanks no
mundo, alguns especializados em determinadas agendas e outros que, através de
programas específicos, abarcam ampla variedade de temas. Alguns se colocam
como “bipartidários” e evitam uma identidade programática mais evidente, ao
passo que outros colocam-se claramente na posição de promover, no mercado
4 Para os contornos dessa visão liberal, ver Zahran, 2012.
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de ideias, determinada agenda (ABELSON, 2006). Diante dessa diversidade, para
esta pesquisa, foi feito um primeiro levantamento dos think tanks que, entre
2000 e 2016, mantiveram programas institucionalizados ou especialistas (experts)
que publicaram de forma continuada análises sobre a atuação internacional da
Argentina e do Brasil. Tal recorte permitiu descrever o panorama que se segue.
De forma geral, a América Latina é uma região de baixa prioridade para os
governos estadunidenses, o que torna o tema igualmente restrito no espaço dos
think tanks desse país. Em termos de visibilidade, Argentina e Brasil acabam
eclipsados por México, Cuba e Colômbia, países mais próximos e que mobilizam
agendas políticas e securitárias profundamente entranhadas no cenário político
dos Estados Unidos. Em Washington, identificou-se apenas três organizações
dedicadas integralmente à região. O Washington Office on Latin America (WOLA)
foi fundado em 1974 por organizações religiosas preocupadas com as violações
promovidas pelas ditaduras militares latino-americanas apoiadas pelo governo
dos EUA. Desde então, o WOLA tem uma agenda fortemente dedicada aos direitos
humanos. Atualmente, sua produção está voltada para temas como violência
policial, narcotráfico e migrações (para os EUA) e pouco tem publicado a respeito da
Argentina e do Brasil. Também fundado nos anos de 1970, o Council on Hemispheric
Affairs é um dos poucos think tanks dos EUA que pode ser classificado como de
esquerda. De estrutura e orçamento bastante modestos, o COHA conta com um
número considerável de voluntários em seu staff, que alimentam uma produção
continuada sobre os países da região e as relações com os Estados Unidos. Contudo,
seu impacto nos meios decisores de Washington, pouco receptivos a visões de
esquerda, é modesto.
Dentre os três, o mais influente é o Interamerican Dialogue, mais conhecido
como The Dialogue. Fundado em 1982, declara o objetivo de promover governança
democrática, equidade social e prosperidade através das Américas. O embaixador
Sol Linowitz (ex-dirigente da Xerox e negociador do governo Carter para os
acordos envolvendo a soberania do canal do Panamá) foi um dos fundadores dessa
organização que, além de publicar artigos e op-eds assinados por seus quadros,
opera como uma membership organization. Entre seus aproximadamente 100
membros, encontram-se os ex-presidentes Ernesto Zedillo, Fernando Henrique
Cardoso e Michelle Bachelet, os presidentes Juan Manuel Santos, legisladores
de vários países da região e dirigentes do setor privado dos EUA e da América
Latina. Possui, ainda, um programa de membros corporativos, do qual fazem
parte empresas do setor industrial como BMW e Mitsubishi e do setor financeiro
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como Liberty Mutual. Entre seus maiores doadores de recursos, estão a Fundação
Ford, Fundação Avina, Chevron e organizações financeiras multilaterais, como o
Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Corporação Andina de Fomento
(THE DIALOGUE, 2015).
Há também think tanks maiores com programas dedicados à América Latina
ou a países específicos. O Woodrow Wilson International Center for Scholars,
um dos maiores think tanks dos Estados Unidos, abriga 15 centros regionais,
três deles dedicados aos países da região: o Mexico Institute, o Brazil Institute e
o Latin America Program, que cobre todos os demais países do subcontinente.
Criado em 2006, o Brazil Institute é desdobramento de um programa implantado
no ano 2000 pelo embaixador do Brasil, que pretendia promover a “presença”
do Brasil em Washington. Atualmente, o programa não recebe apoio do governo
brasileiro, os doadores que aportam mais recursos são a Interfarma, uma associação
de empresas do setor farmacêutico estabelecidas no Brasil, e empresas como
Coca-Cola, Gerdau, Chevron, Coteminas e Ayres (WILSON CENTER, 2016). O Latin
America Program, embora abarque um grande número de países, tem mantido
uma produção continuada a respeito da Argentina. O foco do programa está em
governança democrática, inclusão e segurança cidadã, além, é claro, das relações
entre os Estados Unidos e a América Latina.
A Brookings Institution é considerada um dos mais influentes, senão o mais
influente, think tank do mundo (MGGANN, 2015). Fundada em 1916, possui
orçamento multimilionário e um quadro de centenas de pesquisadores em tempo
integral e parcial. Possui cinco programas principais (Estudos Econômicos,
Política Externa, Economia Global e Desenvolvimento, Estudos de Governança e
Política Metropolitana) e vários projetos dedicados a regiões ou temas específicos.
Argentina e Brasil são contemplados por dois programas, um bastante modesto,
dedicado à América Latina, e outro, mais amplo e com mais recursos, dedicado
a, em suas palavras, “analisar as principais dinâmicas em curso no século XXI
e apresentar ideias e estratégias que orientem países e lideranças no sentido
de preservar e renovar a ordem internacional estabelecida”. Trata-se do projeto
Order from Chaos” (BROOKINGS, 2015). Embora divulgue suas ideias através de
mídias digitais, artigos em jornais de grande circulação e programas em canais de
notícias, a Brookings também publica trabalhos de maior fôlego de seus “experts
em livros impressos, que seguem regras semelhantes às do meio universitário,
o que a aproxima mais do campo acadêmico (MEDVETZ, 2012).
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Outro think tank relevante que dedicou atenção aos dois países em questão
foi o Council on Foreign Relations (CFR), também uma organização fundada no
início do século XX. Sua disposição para influência política pode ser avaliada
desde cedo: no entreguerras, o CFR desempenhou um papel importante, junto
com seu congênere britânico, a Chatham House, no sentido de difundir ideias
ligadas ao maior protagonismo externo dos Estados Unidos e em favor da aliança
com o Reino Unido (LEGRO, 2000; PARMAR, 2004) e, mais tarde, na produção do
consenso em favor dos acordos de Bretton Woods (SMITH, 1991). Desde 1922,
o Council on Foreign Relations publica a conhecida revista Foreign Affairs e abriga
um grande número de programas dedicados a diferentes temas e regiões, um deles
dedicado à América Latina.
Os think tanks que se posicionam no campo conservador do espectro político
dos Estados Unidos, como a Heritage Foundation e o American Enterprise Institute,
não possuem programas dedicados aos países aqui abordados ou mesmo à região
como um todo. No entanto, seus quadros há décadas dedicam atenção à Cuba
e, desde o início do século XXI, ao que definem como a volta do populismo na
América Latina. Por conta disso, ambos os think tanks têm publicado textos sobre
assuntos domésticos e externos da Argentina e do Brasil desde a eleição de Néstor
Kirchner e Lula da Silva.
Os think tanks referidos nesta seção são uma fração diminuta dos
aproximadamente 1800 existentes nos Estados Unidos, contudo são aqueles que
maior atenção dedicaram à Argentina e ao Brasil e cuja atuação, no chamado
“mercado de ideias”, tem tido maior impacto na modelagem do debate público
e na percepção de atores governamentais e privados a respeito dos dois países.
Uma vez definidos e contextualizados os think tanks investigados, empreendeu-se
o levantamento dos livros, relatórios e artigos publicados por especialistas a
eles vinculados entre os anos 2000 e 2016
5
. Nas próximas seções, escrutinam-se
os aspectos estratégicos e securitários relacionados à Argentina e ao Brasil
considerados mais relevantes pelos think tanks mapeados e as recomendações
políticas por eles feitas.
5 Os think tanks promovem eventos (mesas redondas, debates, conferências) e incentivam seus especialistas a
comentar notícias e a participar de programas de televisão. Grande parte desse material está disponível em forma
de vídeos transmitidos online ou nos sites dos próprios think tanks. É importante salientar que nesta pesquisa
empregou-se apenas material impresso, uma vez que o material audiovisual demandaria outras ferramentas
metodológicas.
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Visões sobre a Argentina
Quando Néstor Kirchner assumiu seu cargo na Casa Rosada, a visão dos think
tanks que se manifestaram sobre o assunto foi de uma espécie de expectativa
positiva. Embora assinalassem o emprego da retórica nacionalista e antiamericana
durante a campanha, não associaram o novo presidente argentino ao populismo
ou a uma eventual coalizão de governos de esquerda na região – Hugo Chaves
estava no poder na Venezuela desde 1999 e Lula da Silva no Brasil desde janeiro
de 2003 (HAKIM, 2003; FALCOFF, 2004). Provavelmente devido à percepção da
intensidade da crise argentina, a expectativa era de que Kirchner conseguisse
consolidar-se no poder e encaminhar uma solução para o problema da dívida,
para o qual se recomendava apoio do governo dos EUA, especialmente junto ao
Fundo Monetário Internacional.
Em 2005, o presidente do Inter-American Dialogue, Michael Shifter, publicou
em coautoria um artigo que evitava descrever os novos governos sul-americanos
como de esquerda ou populistas, argumentando que disciplina fiscal e ortodoxia
econômica eram observadas na Argentina e no Brasil, assim como no Uruguai de
Tabaré Vasquez e no Chile de Ricardo Lagos, salientando, ainda, que as prescrições
do FMI para a região produziram resultados decepcionantes. Para os autores,
O rótulo “esquerdista” é agora uma construção artificial que deve ser descartada.
Isso confunde mais do que esclarece. Nas mentes de muitos, o termo ainda
está associado a políticas econômicas irresponsáveis e a recursos populistas,
uma receita de instabilidade política. No entanto, uma avaliação do Chile,
do Brasil e até mesmo da Argentina sugere que tais preocupações podem ser
anacrônicas. Longe de seguir esse caminho, esses países buscam o equilíbrio
certo entre crescimento econômico e atenção séria à agenda social urgente
6
(SHIFTER; JAWAHAR, 2005).
A partir de 2006, contudo, o discurso a respeito da Argentina começou a
mudar. O estreitamento dos laços com a Venezuela foi percebido como nocivo,
uma vez que reforçaria a construção de uma “aliança antiestadunidense na
América do Sul e no Caribe” (SCHIFTER, 2006) e que o governo argentino estaria
6 The "leftist" label is by now an artificial construct that should be jettisoned. It confuses more than it clarifies.
In the minds of many, the term is still associated with irresponsible economic policies and populist appeals,
a recipe for political instability. Yet a review of Chile, Brazil and even Argentina suggests that such concerns may
be anachronistic. Far from pursuing such a path, these countries are seeking the right balance between economic
growth and serious attention to the urgent social agenda.
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utilizando recursos oriundos da Venezuela para reforçar sua base doméstica e sua
capacidade de negociação com o FMI e os credores do Clube de Paris (ROBERTS,
2007). A eleição de Cristina Fernandez de Kirchner não foi recebida com a mesma
benevolência que a de seu predecessor. O Dialogue passou a associar os Kirchners
ao populismo e a explicar o crescimento econômico registrado na Argentina ao
boom das commodities e ao não pagamento da dívida externa (HAKIM, 2007;
LOSER, 2017). Como seria de se esperar, think tanks conservadores como a Heritage
e o American Enterprise Institute subiram o tom e não apenas passaram a enfatizar
vínculos do governo argentino com o venezuelano, mas passaram a promover
eventos, publicar relatórios e artigos severamente críticos e em tom de denúncia,
à semelhança do que já faziam com Venezuela e Cuba. As negociações em torno
da dívida argentina, a reestatização de empresas privatizadas no passado, os
conflitos com o grupo Clarín e com o setor agrário-exportador eram usados para
descrever o governo como sem credibilidade, sem respeito ao Estado de direito
e aliado do “populismo estatista” da Venezuela. Por conta disso, especialistas
conservadores recomendavam:
O Governo e o Congresso devem levar a cabo uma ampla revisão da política
dos EUA em relação ao regime de Kirchner e assumir seriamente a ameaça
representada tanto aos Estados Unidos quanto à América Latina pelas
políticas populistas e estatistas de Kirchner. A Argentina não deve receber
favores políticos do governo dos EUA
7
. (ROBERTS, 2011)
Expoentes do conservadorismo republicano na região, como o ex-embaixador
dos EUA na OEA, Roger Noriega, alimentaram uma longa campanha contra o
governo argentino, classificando-o como “populista”, “autoritário”, “desastroso”
e cunhando expressões como a “dinastia Kirchner” (NORIEGA, 2013; 2015).
Apesar da retórica dos conservadores, a Argentina não foi percebida pelos think
tanks dos EUA como um ator securitário importante (ou seja, como ameaça
existencial), o que pode ser explicado pelos baixos orçamentos de defesa e pela
distância em relação às regiões prioritárias para os Estados Unidos. No entanto,
houve um processo de securitização da ação externa argentina pelos atores aqui
investigados no que diz respeito às relações com o Irã. O aumento do comércio
entre Argentina e Irã não foi percebido como decorrência da diversificação geral
7 The Administration and Congress must undertake comprehensive review of U.S. policy toward the Kirchner regime
and take the threat posed on both the U.S. and Latin America by the Kirchner’s populist and statist policies
seriously. Argentina should receive no political favors from the U.S. government.
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139Eduardo Munhoz Svartman
do comércio platino, mas de uma eventual aliança que se estaria estabelecendo
entre os dois países; apesar da desproporção, o tema era enquadrado de forma
semelhante às aquisições de armamentos russos pela Venezuela. Em várias
ocasiões, textos publicados por especialistas do American Enterprise Institute
procuraram estabelecer uma conexão clandestina entre Buenos Aires, Caracas e
Teerã. A reabertura, em 2013, das investigações do atentado que, em 1994, matou
86 pessoas em Buenos Aires e a morte do promotor encarregado, um dia antes
de se pronunciar perante o Congresso em 2015, foram igualmente utilizados para
apresentar a Argentina vinculada a “governos párias” (NORIEGA, 2015; 2016).
A eleição de Maurício Macri, em 2015, foi recebida com grande entusiasmo
pelos think tanks dos EUA. Antes mesmo de sua posse, dada sua conhecida
atuação como oposicionista dos Kirchners e sua orientação neoliberal, alguns
especialistas passaram a descrever a Argentina como o novo “grande aliado dos
Estados Unidos” e o protagonista de mudanças na balança de poder da região
(NORIEGA, 2015). Argumentava-se que, ao reorientar sua política externa,
o novo governo argentino viabilizaria uma “oportunidade única” para fomentar
políticas de livre-mercado na América Latina. Think tanks conservadores, como
o American Enterprise Institute, passaram a falar em “liderança construtiva” de
Buenos Aires, o que seria importante para reverter os interesses de Moscou e Teerã
na América Latina e para fornecer aos EUA um parceiro regional para lidar com
a Venezuela. A visita oficial de Barak Obama, em março de 2016, foi igualmente
festejada como o “recomeço” das relações entre Argentina e Estados Unidos e
as posições do governo argentino contra o governo venezuelano e em favor da
oposição desse país foram saudadas como compromisso com a democracia e os
direitos humanos (WAYNE; GUTIERREZ, 2016).
A eleição de Donald Trump, em novembro de 2016, e a implantação de sua
agenda protecionista, atingindo inclusive exportações argentinas, abalaram a
convicção de uma ampla convergência entre os dois países. Embora a visão dos
think tanks seja claramente favorável à agenda de Macri, especialistas, como
Cynthia Arnson, do Wilson Center, argumentam que
A antipatia do “America First” de Trump a comércio livre, mercados abertos e
globalização é a antítese direta dos esforços da Macri para atrair o investimento
estrangeiro e aprofundar a integração da Argentina na região e no mundo
8
.
(ARNSON, 2017)
8 Trump’s “America First” antipathy to free trade, open markets, and globalization is the direct antithesis of Macri’s
efforts to attract foreign investment and deepen Argentina’s integration in the region and with the world.
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140 Argentina e Brasil na visão dos think tanks dos Estados Unidos
Nesse sentido, quando da visita de Macri a Washington, os think tanks
recomendaram que ambos os governos evitassem as diferenças comerciais e
buscassem consolidar os pontos em comum em questões como cooperação no
combate ao narcotráfico, cooperação científica e na “questão” da Venezuela.
Além do que é objeto de interesse dos think tanks, convém assinalar também o
que é silenciado. Ao contrário do que se verificou em relação ao Brasil, temas como
a criação da UNASUL e, especialmente, o Conselho de Defesa Sul-Americano, não
aparecem associados à Argentina. Tampouco repercutiu nesse meio a contribuição
argentina à MINUSTAH. As políticas externa e de defesa foram temas periféricos
na produção ideacional dos think tanks a respeito da Argentina, a menos que
envolvessem países como Venezuela ou Irã. Por outro lado, predominaram os
assuntos de âmbito doméstico que envolviam interesses internacionais, como o
endividamento e a reestatização de empresas com controle acionista estrangeiro.
Visões sobre o Brasil
Ao longo do período estudado, a produção ideacional dos think tanks dos EUA
a respeito do Brasil percorreu um ciclo partindo do entusiasmo, que enfatizou os
traços comuns e convergências entre os dois países, passando pela identificação
de dissensos a respeito do funcionamento do sistema internacional, o que gerou
uma série de dúvidas quanto às posições assumidas e às capacidades efetivas do
Brasil e, por fim, com a retração e agravamento das crises econômicas e política,
desaguou na decepção quanto ao país e suas instituições domésticas.
As abordagens do maior ativismo externo do Brasil na primeira década do
século XXI estiveram associadas a uma descrição, inicialmente otimista, de uma
série de “ativos” (assets) conquistados pelo país nos últimos anos. Tais ativos
seriam o controle da inflação, o que revertia uma visão arraigada desde os anos
de 1980 de um país economicamente instável; a consolidação da democracia, com
a eleição de governos “à esquerda do centro” que, não obstante, mantinham as
regras do jogo político e o cumprimento dos contratos econômicos; um período
relativamente longo de crescimento econômico em ambiente de economia de
mercado e a adoção de programas de redução da pobreza bem-sucedidos.
O exemplo mais importante dessa narrativa positiva que enfatiza aspectos
em comum e sugere maior aproximação e coordenação entre os Estados Unidos
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141Eduardo Munhoz Svartman
e o Brasil é o extenso relatório publicado pelo Council on Foreign Relations, em
2011, intitulado Global Brazil and U.S.-Brazil Relations (BODMAN, WOLFENSOHN,
SWEIG, 2011). O documento de 110 páginas, resultado do trabalho de uma força-
tarefa, afirma que os Estados Unidos e o Brasil são ambas “jovens democracias
multiétnicas que defendem valores comuns em relação ao livre mercado, Estado
de direito, direitos individuais, liberdade religiosa e diversidade e igualdade”
9
(2011, p. 4). O relatório enfatiza não apenas o papel do Brasil no plano regional,
mas sua relevância global em questões ligadas à economia, meio ambiente,
energia e diplomacia, sendo apresentado como um dos poucos países destinados
a modelar o século XXI (p. x). Por conta disso, em várias passagens, o documento
recomenda que os Estados Unidos adaptem sua política a esse “novo” ator mais
assertivo e independente”, de modo a incrementar as relações bilaterais e, em
especial, a assegurar seus próprios interesses numa ordem internacional mais
multipolar e menos previsível através da interação direta entre as lideranças e
corpos diplomáticos, o que, ainda segundo o documento, configuraria uma “relação
madura” entre os dois países. Em função disso, o relatório recomendou que, entre
outras iniciativas, o governo Obama apoiasse o pleito brasileiro por um assento
permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (p. x, 47s).
Perpassa, nessa narrativa de valores compartilhados, um esforço para enfatizar
os pontos de convergência entre os dois países e definir um papel “construtivo”
do Brasil para a legitimação, gestão e preservação da ordem internacional liderada
pelos Estados Unidos. Num cenário regional de atritos com os países da ALBA,
liderados pela Venezuela, e de instabilidade econômica, o Brasil foi descrito como
um ator comprometido com democracia, estabilidade e economia de mercado.
No plano global, com a ascensão da China e a retomada da Rússia (normalmente
descritas como potências autoritárias e desafiadoras da ordem internacional e
da liderança dos EUA), o Brasil foi descrito, apesar do incômodo com o BRICS,
como ator comprometido com democracia, direitos humanos e com a manutenção,
moderadamente reformada, da ordem internacional.
É nesse sentido que se deve compreender a recepção majoritariamente
positiva dos programas de modernização das Forças Armadas brasileiras. Havia
a expectativa de que, contando com maiores capacidades, as Forças Armadas
9 Multiethnic, young democracies that uphold common values with respect to free markets, rule of law, individual
rights, religious freedom, and diversity and equality.
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142 Argentina e Brasil na visão dos think tanks dos Estados Unidos
brasileiras poderiam cooperar com os Estados Unidos em questões de segurança
marítima e missões de paz ou, ainda, contribuir para a estabilidade em regiões
em que a presença dos EUA teria maior custo político. Havia ainda o interesse
econômico da indústria de defesa, importante financiadora de vários think tanks,
em ser fornecedora dos programas militares do Brasil.
Ao longo do período estudado, o Brasil e os Estados Unidos se posicionaram
de forma oposta em uma série de questões na arena internacional. Algumas
divergências são históricas, como a adesão brasileira aos princípios de autonomia,
soberania e não intervenção, e foram atualizadas em uma série de crises como
as do Iraque, da Líbia e da Síria. Certamente o ponto mais delicado, contudo,
foi a intermediação, junto com a Turquia, do acordo sobre o enriquecimento de
combustível nuclear iraniano em 2010. Desde então, se difundiu a percepção de
que as iniciativas brasileiras junto ao BRICS, ao “Sul Global” e nos organismos
multilaterais visam restringir a ação dos EUA:
O Brasil busca revisões e reformas que sejam efetivamente capazes de limitar
o comportamento unilateral dos EUA (...) [O Brasil] procurou rever as normas
vigentes para favorecer mais explicitamente países em desenvolvimento,
tais como o reforço do princípio da igualdade de soberania ou demandando
que as grandes potências sigam as regras. Estes aspectos revisionistas da
política externa do Brasil têm colocado desafios às preferências das potências
estabelecidas
10
. (MARES; TRINKUNAS, 2016).
A crise na Ucrânia e a incorporação da Criméia pela Rússia em 2014 trouxeram
à tona de novo os esquemas de análise da Guerra Fria em Washington. A posição
brasileira, contrária a uma sanção na ONU como foi articulada pelos EUA, foi
criticada pelos think tanks dos EUA e começou a alimentar dúvidas quanto ao
compromisso, moderadamente reformista, do Brasil com a ordem internacional
liberal. Especialistas como Ted Piccone, da Brookings, continuavam a enfatizar
o compromisso do Brasil com a democracia e os direitos humanos e a sustentar
que o Brasil detém “potencial” para se tornar uma liderança global, porém sua
vinculação às “potências autoritárias” do BRICS (Rússia e China) levanta dúvidas
10 Brazil seeks revisions and reforms that would make [it] effective in fully constraining US unilateral behavior
(…) [Brazil] has tried to revise current norms to favor developing states more explicitly, such as reinforcing the
norm of sovereign equality or making demands that great power follow the rules. These revisionist aspects of
Brazil’s foreign policy therefore have posed challenges to incumbent great power preferences.
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143Eduardo Munhoz Svartman
a respeito de como o Brasil se comportaria uma vez alcançadas posições de maior
poder (PICCONE, 2016). Essas dúvidas se acentuaram quando a crise econômica e
a instabilidade política interna começaram a minar a capacidade de ação externa
do Brasil. Especialistas em diferentes think tanks começaram a publicar textos
questionando a capacidade brasileira de manter as iniciativas do país na América
do Sul, na África, junto aos fóruns multilaterais e de ser capaz de “entregar” bens
comuns que pudessem sustentar uma posição de liderança.
A progressiva crise doméstica que se seguiu às eleições de 2014, cujo
desfecho ainda não se pode vislumbrar, alimentou a decepção dos think tanks
dos EUA quanto a um Brasil global, estável e promotor do desenvolvimento e do
reformismo moderado da ordem internacional. Um Brasil “responsible stakeholder
com o qual os EUA poderiam estabelecer uma relação “construtiva” nos setores
de interesse mútuo (apesar das discordâncias em vários temas) já não fazia
parte da produção ideacional dos think tanks. Desde o impeachment de Dilma
Rousseff, os think tanks que se ocuparam do Brasil priorizaram temas domésticos
como corrupção, crise política, recessão e tentaram decifrar o novo governo de
Michel Temer. Embora houvesse expectativas de reformas liberalizantes e de
um incremento das relações comerciais com os Estados Unidos e a Argentina
(O’NIELL, 2016), a apreciação dominante tem sido bem menos otimista. Para
Peter Hakim (2016), do The Dialogue, a economia deprimida e o caos no
Congresso causado pelos escândalos de corrupção são motivos suficientes para
que os EUA tenham cautela em se relacionar com o Brasil. Em 2016, havia ainda
o questionamento em relação à legitimidade do processo de impeachment,
considerando o teor das acusações e a credibilidade dos parlamentares que
julgaram a presidente, vários deles acusados de corrupção.
Especialistas de think tanks conservadores, como o American Enterprise
Institute, apesar de concordar com medidas de restrição orçamentária e reformas
do setor trabalhista e de pensões propostas pelo governo Temer, têm se mostrado
bastante céticos quanto à capacidade desse governo e do Congresso, de fato,
levarem adiante essa agenda que, no seu entender, recuperaria o país da presente
crise. Embora o Brasil ainda seja descrito como uma das maiores economias
mundiais, a possibilidade de o país ter que recorrer novamente a empréstimos do
FMI vem sendo ponderada. Por conta disso, o AEI recomenda que o governo dos
Estados Unidos não reduza sua participação e seu papel nessa organização, uma
vez que ela poderá ter que atuar no seu próprio “quintal” (LACHMAN, 2017).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 1, 2018, p. 127-147
144 Argentina e Brasil na visão dos think tanks dos Estados Unidos
Conclusões
A atuação internacional da Argentina e do Brasil despertaram maior atenção
dos think tanks dos Estados Unidos no início do século XXI do que em períodos
anteriores, quando raramente esses países eram abordados individualmente
e permaneciam diluídos no termo “Latin America. A redistribuição do poder
mundial, o fenômeno dos emergentes, a eleição de governos de esquerda e o
caráter mais proativo das políticas externas da Argentina e do Brasil, tanto em
espaços tradicionais como em novos, tais como o G-20 e a UNASUL, fizeram com
que os think tanks dos Estados Unidos empreendessem um esforço de produção
ideacional a respeito desses “novos” atores.
A eleição de Néstor Kirchner foi recebida pelos think tanks com uma atitude
de “esperar e ver” (wait and see), na qual se relevava o que era identificado
como a retórica nacionalista e antiamericana do presidente – porém, contava
a seu favor a expectativa de superação da crise pela qual a Argentina passava.
Os termos utilizados para descrever as políticas externa e doméstica dos dois
mandatos de Cristina Kirchner foram bem menos benevolentes. Ainda que os
fatores domésticos tenham dominado a agenda temática, as relações da Argentina
com a Venezuela e com o Irã alimentaram uma produção ideacional fortemente
negativa e ideologizada a respeito do país. A eleição de Mauricio Macri, por sua
vez, foi celebrada com a mesma intensidade, assim como sua posição de crítica
aberta ao governo venezuelano e de alinhamento com os Estados Unidos.
Com relação ao Brasil, os think tanks investigados alimentaram inicialmente
uma expectativa bastante positiva, na qual se esperava que o Brasil contribuísse com
a “divisão do fardo” da manutenção política e securitária da ordem internacional.
O Brasil era descrito como uma liderança responsável, que exportava um modelo
de desenvolvimento democrático, inclusivo e de livre-mercado. Por conta disso,
alguns think tanks desenhavam o Brasil em oposição à Venezuela. Os ambiciosos
programas de modernização das Forças Armadas brasileiras não foram securitizados
e, sim, descritos como oportunidade para a indústria de defesa estadunidense e
para a consolidação do Brasil como ator internacional estabilizador capaz de atuar
em regiões que os Estados Unidos não estariam dispostos. Essas expectativas,
em grande medida, não se verificaram. O acumulo de divergências entre os
dois países e a retração internacional do Brasil alimentaram uma produção que
salientou dúvidas e decepção quanto ao “Consenso de Brasília”. A crise doméstica
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 13, n. 1, 2018, p. 127-147
145Eduardo Munhoz Svartman
e o governo Michel Temer acentuaram essa visão. O processo de impeachment
foi classificado como “legal porém maculado” pelo Dialogue e, para especialistas
da Brookings, a trajetória brasileira de ascensão foi interrompida por conta da
fragilidade das instituições domésticas brasileiras (MARES; TRINKUNAS, 2016).
O novo governo de Donald Trump, claramente protecionista e crítico dos
acordos de livre-comércio anteriormente negociados, tem sido descrito como um
desafio às atuais políticas externas da Argentina e do Brasil. Nesse novo cenário,
em que os Estados Unidos voltam-se para uma estratégia de moderação de sua
presença nas regiões e em temas percebidos como menos relevantes ou urgentes
– e a América do Sul é uma delas –, o alinhamento argentino e brasileiro, até o
momento, não reverteu a perda de relevância dos dois países diante de Washington.
Por fim, e a título de motivação para novas pesquisas, é importante notar que,
para os think tanks aqui investigados, o novo governo dos Estados Unidos também
representa um desafio, uma vez que põe em questão alguns consensos partilhados
por essas organizações em torno da chamada ordem liberal internacional.
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