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Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional
Economia Política Internacional da Saúde,
autonomia estratégica e segurança nacional
Health International Political Economy,
strategic autonomy and national security
DOI: 10.21530/ci.v12n2.2017.641
Raphael Padula
1
Resumo
Partindo do cenário econômico e político internacional da saúde, caracterizado como um
ambiente competitivo e conflituoso, mas também concentrado nas mãos de um grupo de
Estados e empresas transnacionais, o artigo analisa a importância das relações interestatais
e entre Estado e mercado para a autonomia estratégica de Estados periféricos. Em particular,
aborda-se a discussão sobre a ampliação da agenda de segurança dos âmbitos estritamente
militar e nacional, propondo o conceito de segurança de saúde como fundamental para
a segurança nacional, e suas conexões com as seguranças econômica, política, societal e
militar. O argumento central sustenta que, diante do cenário internacional de saúde, Estados
periféricos devem buscar a construção de um complexo industrial de saúde próprio e
conectado ao industrial-militar, para alcançar sua autonomia estratégica e segurança nacional,
diminuindo suas vulnerabilidades externas politicas e econômicas. Tal construção passa pela
internalização da produção material e não material e da propriedade de empresas. Utilizando
o arcabouço da Economia Política Internacional, combinando o estruturalismo econômico
com o realismo da política internacional, o artigo se apoia em revisão bibliográfica de
conceitos, dados e experiências históricas de países selecionados e de conflitos de interesses
no âmbito internacional.
Palavras-chave: saúde; segurança; autonomia estratégica; indústria de defesa
Abstract
Based on the international economic and political scenario of health, characterized as a
competitive and conflictive environment, but also concentrated in the hands of a group
of States and Transnational Corporations, the paper analyzes the importance of interstate
1 Programa de pós-Graduação em Economia Política Internacional do Instituto de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil. E-mail: padula.raphael@gmail.com
Artigo submetido em 16/08/2017 e aprovado em 24/08/2017.
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relations and state-market relations for the strategic autonomy of periphery states. In particular,
the discussion is focused on widening of the security agenda from the strictly military
and national issues, proposing the concept of health security as fundamental to national
security, and its connections with economic, political, societal and military security. Taking
the international health scenario, the central argument holds that peripheral states should
seek the construction of an industrial health complex of their own and connected to the
industrial-military, to achieve their strategic autonomy and national security, reducing their
external political and economic vulnerabilities. Such construction involves the internalization
of material and non-material production and ownership of enterprises. Using the framework
of the International Political Economy, combining economic structuralism with the realism of
international politics, the paper is based on a bibliographical revision of concepts, data and
historical experiences of selected countries and conflicts of interest in the international scope.
Keywords: Health; security; strategic autonomy; military industry
Introdução
Partindo do cenário político e econômico internacional da saúde, caracterizado
como um ambiente conflituoso e concentrado nas mãos de um grupo de Estados e
empresas transnacionais, o artigo analisa a importância das relações interestatais e
entre Estado e mercado para a autonomia de Estados periféricos. Em particular, aborda-
se a discussão sobre a ampliação da agenda de segurança dos âmbitos estritamente
militar e nacional, discutindo também a noção de ameaças e vulnerabilidades diante
desse cenário, propondo o conceito de segurança de saúde e sua conexão com as
seguranças econômica, política, societal e militar. O argumento central sustenta
que, caso queiram alcançar maior autonomia e segurança diante do ambiente
internacional de saúde descrito, Estados periféricos devem buscar a construção
de um complexo industrial de saúde próprio, conectado ao industrial-militar,
internalizando a produção material e não material e a propriedade de empresas.
Para apoiar a argumentação do artigo, é utilizada a perspectiva da Economia
Política Internacional, combinando o estruturalismo econômico com o realismo
da política internacional, através da revisão bibliográfica de conceitos, dados
e experiências históricas de países selecionados e de conflitos de interesses no
âmbito internacional.
Além da introdução e das conclusões, o artigo está dividido em quatro seções.
Primeiro, aborda-se o cenário econômico e político, com seus potenciais conflitos
e vulnerabilidades para os países periféricos. Na seção seguinte, discute-se a
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importância da indústria de saúde no âmbito nacional, atrelado ao conceito realista
de autonomia estratégica, ressaltando também, de forma breve, as interconexões
entre indústrias de saúde e de defesa, utilizando como exemplos Estados Unidos
(EUA) e China. Na terceira seção, colocam-se a questão da ampliação da agenda
de segurança para além do âmbito militar e a discussão entre segurança nacional
versus segurança humana e/ou global, envolvendo o tema da segurança de saúde
como fundamental para a segurança nacional, que deve ser o foco principal do
Estado em um ambiente internacional anárquico e conflituoso.
Saúde: o cenário político e econômico internacional
A indústria de saúde costuma ter peso importante no produto interno bruto
(PIB) dos países. Ainda, é intensiva em tecnologias de ponta (portadoras de
futuro) e que se espalham ou conectam a outros setores (de caráter transversal),
especialmente a indústria militar, considerando a biotecnologia, a nanotecnologia,
o setor nuclear, de materiais, de equipamentos e eletroeletrônicos. Além da
dimensão humana, a oferta/demanda dos bens e serviços de saúde possui caráter
essencial para o funcionamento e o desenvolvimento da economia, e é considerada
estratégica nos Estados fortes e influentes do sistema internacional, ou mesmo
nos projetos nacionais de potências emergentes, como China e Índia.
A indústria de saúde global vem registrando continuidade na sua tendência
à concentração de propriedade, produção de tecnologias de ponta (patentes) e
comércio, nas mãos das grandes empresas farmacêuticas (big pharmas) dos países
centrais. O processo de crescente concentração na indústria farmacêutica não é
uma tendência recente, como aponta Almeida (2013, p. 275):
O mercado global de fármacos é altamente concentrado e polarizado:
a) 10 grandes empresas transnacionais produzem cerca de 50% do total do
mercado e as 20 corporações mais importantes estão localizadas nos EUA,
Reino Unido, Europa e Japão, sendo que cada uma delas tem, em média,
cerca de 100 afiliados em mais de 40 países (dos quais 19 são países em
desenvolvimento); b) EUA, Europa e Japão respondem por cerca de 75% das
vendas e, incluindo-se a América Latina, essa porcentagem sobe para 85%;
c) os países desenvolvidos produzem e exportam medicamentos de alto valor
agregado e protegidos por patentes e os demais países em desenvolvimento
importam esses medicamentos, sendo que alguns produzem genéricos de
baixo valor ou medicamentos alternativos e tradicionais.
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A análise de mercado aponta para uma crescente demanda por produtos
biotecnológicos e da nanotecnologia, de maior valor agregado e intensidade
tecnológica, o que os tornam um meio para as grandes empresas do setor
farmacêutico seguirem sua rota de crescimento e concentração de mercado e
superarem a tendência de redução dos retornos sobre o investimento (inclusive em
P&D – pesquisa e desenvolvimento tecnológico). No século XXI, as big pharmas vêm
cada vez mais se direcionando para os setores de biotecnologia e nanotecnologia
nos seus processos de amplas fusões e aquisições na indústria farmacêutica. Tal
processo vem sendo reforçado pela troca de ativos entre empresas que buscam a
segmentação e especialização de mercados (VARGAS, 2017). Ainda, no período de
2004 a 2011, é registrada uma tendência de crescimento dos depósitos de patentes
na área de biotecnologia em saúde. Ao mesmo tempo, essa apresenta altas barreiras
à entrada, por razões de dificuldades tecnológicas, custo de desenvolvimento e
produção, o que tende a gerar um mercado concentrado com menor número de
empresas de maior porte (VARGAS, 2017).
Segundo Vargas (2017), a partir de estimativas e dados da IMS Health (2013),
entre 2012-2017, cerca de dois terços do crescimento das vendas globais do
mercado farmacêutico deve decorrer do crescimento dos mercados emergentes. E
“boa parte desse aumento nos gastos globais com medicamentos estará associado
com o crescimento do consumo nos mercados emergentes”, com destaque para
a China em primeiro lugar, seguida de Brasil, Rússia e Índia. Essas estimativas
colocam em evidência a importância do BRICS como mercado.
As big pharmas concentram as atividades e os gastos em P&D, aproveitando
escalas de recursos, dominando os mercados de setores de maior valor agregado
e intensidade tecnológica, como biotecnologia e nanotecnologia. No Brasil, por
exemplo, as grandes empresas transnacionais do setor de capital estrangeiro
concentram seus esforços de inovação em seus países de origem (VARGAS,
2017)
2
. A atividade de inovação tem importância fundamental na sustentabilidade
de longo prazo da indústria farmacêutica, principalmente diante do cenário de
2 Para Almeida (2013, p. 277), “Não existem evidências de reversão desse padrão de concentração da indústria
de fármacos ou de sua atuação agressiva, mesmo nos casos de adoção dos direitos de propriedade (TRIPS,
TRIPS-plus e Declaração de Doha) (ex. Tailândia). Como os direitos de propriedade intelectual são harmonizados
globalmente, tampouco se comprova a promessa de maior investimento direto nos países que acordaram o
fortalecimento desses direitos. A escalada dos preços dos medicamentos é objeto de grande preocupação para a
maioria dos países, sobretudo aqueles em desenvolvimento e os mais pobres. Algumas exceções – como Índia,
Brasil e Tailândia – têm maior capacidade de produção, entretanto, no caso da produção de genéricos na Índia,
com preços bem mais baixos, que a posiciona como um dos maiores fornecedores dos países de renda média
e baixa. As compras e fusões de indústrias pelas transnacionais já começou a acontecer”.
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esgotamento e expiração de patentes na indústria farmoquímica, associada a um
aumento da demanda social e mudanças no perfil epidemiológico. Vale ressaltar
que as atividades produtivas e de P&D das big pharmas têm como objetivo gerar
lucros, critério que não atende às chamadas “doenças negligenciadas”, específicas
de países em desenvolvimento.
No entanto, tal processo de crescente concentração não pode ser encarado
como um fenômeno de mercado, ou puramente impulsionado pela força econômica
de grandes empresas. Desde os anos de 1970, o sistema interestatal vem se tornando
cada vez mais competitivo e conflituoso. Tendência reforçada no século XXI
com a expansão de potências emergentes – China e Índia –, a retomada de uma
política expansiva da Rússia, a crescente oscilação política e divisão da Europa, os
surgimentos de Estados, coalizões de Estados e grupos políticos contestadores na
periferia, e a política em busca da manutenção ou prolongamento da atual ordem
hierárquica por parte dos EUA. Nesse sentido, deve-se acelerar a busca por acesso
a mercados e recursos estratégicos na periferia do sistema, incluindo cada vez mais
a América do Sul e a África (FIORI, 2013). O sistema internacional pós Guerra Fria
seguiu sendo caracterizado pela sua estrutura assimétrica de distribuição de poder
e riqueza e pela sua natureza anárquica e competitiva interestatal. Ampliaram-se
as divergências de renda, riqueza e tecnologia (revelada no registro de patentes de
tecnologias de ponta), ao mesmo tempo em que a atividade industrial se concentrou
cada vez mais nos países desenvolvidos e poderosos militarmente (com exceção
dos países do sudeste asiático)
3
, e os conflitos militares não foram eliminados,
só se aceleraram (FIORI; PADULA; VATER, 2013). No mesmo sentido, aumentou
a dependência econômica e tecnológica dos países subdesenvolvidos, inclusive
na área de saúde
4
, e sua diferença de poder militar e político foi se acentuando.
Por conta de suas dimensões, mercados e recursos estratégicos, a América do Sul
e a África estão inevitavelmente inseridas na crescente competição das grandes
potências.
As potências tradicionais e algumas das emergentes vêm promovendo uma
série de acordos bilaterais e regionais, principalmente diante das complicações
persistentes na conclusão da Rodada de Doha da OMC (Organização Mundial do
Comércio). Os acordos regionais que EUA e União Europeia (UE) vêm negociando
3 Ao longo dos anos de 2000, os relatórios anuais da UNCTAD (Trade and Development Report) abordam esse
processo impulsionado pela liberalização dos anos de 1980 e 1990.
4 Ver Volumes 1 e 5 da série A saúde no Brasil em 2030..., organizados por C. Gadelha, J. N. Carvalho, T. R.
Pereira, editados pela Fiocruz; Ipea; Ministério da Saúde; SAE – Rio de Janeiro.
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ou firmando buscam aprofundar a regulação em temas já presentes na agenda
da OMC, os chamados “OMC-plus” – regras de origem, salvaguardas, serviços e
propriedade intelectual – e “OMC-extra” – que são novos temas, como concorrência,
compras governamentais, meio ambiente e legislação trabalhista, sem discutir
subsídios agrícolas. Enquanto China e Índia vêm promovendo uma série de acordos,
no entanto, mais focados na liberalização de mercados, acesso a investimentos e
na regulação de subsídios. Assim, embora os países subdesenvolvidos tenham se
articulado e alcançado a Declaração de Doha para flexibilizar o TRIPS em favor
da área de saúde (ALMEIDA, 2013, p. 276)
5
, atualmente, as grandes potências, e
especialmente os EUA, vêm buscando acordos bilaterais e regionais que buscam
estabelecer regras de propriedade intelectual que vão além do TRIPS (conhecidos
como “TRIPS Plus”)
6
.
Embora o governo Donald Trump venha promovendo algum grau de reversão,
que pode ser temporário, os EUA vêm buscando promover acordos de livre-comércio
e arranjos de integração aberta no hemisfério ocidental, na Ásia-Pacífico e no
Atlântico Norte
7
. Nas negociações bilaterais, os EUA exercem um poder de barganha
5 Para Almeida (2013, p. 276): “As implicações do Acordo TRIPS para a saúde pública levou os países em
desenvolvimento a proporem, e obterem, a adoção da Declaração de Doha, cujas flexibilidades seriam “necessárias
à proteção da saúde pública e nutrição”. Isso ocorreu em abril de 2001, quando o governo norueguês sediou
uma reunião que incluiu OMS, UNICEF, Banco Mundial, as grandes indústrias farmacêuticas transnacionais
e poucas ONGs, para discutir estratégias que possibilitassem melhoria de acesso dos países pobres a drogas
e medicamentos de alto custo. Embora a questão de licença compulsória tenha sido considerada, a reunião
terminou por aprovar a proposta de ‘preços diferenciais’ para países de baixa renda, que continuou a favorecer
a indústria farmacêutica. Essa proposta foi endossada sete meses depois, na reunião do Conselho de Ministros
da OMC, em Doha em 2001, que adotou a Declaração de Doha (o Doha Statement on TRIPS and Public Health),
que reafirmou as flexibilidades previstas no TRIPS para apoiar problemas relacionados à saúde e reiterou os
direitos dos países de usarem a licença compulsória para a produção e melhora do acesso aos medicamentos
genéricos. O princípio subjacente a essa Declaração é que a saúde pública teria prioridade sobre as regras do
comércio internacional e, para tal, afirma a legitimidade da licença compulsória assim como certas flexibilidades
no Acordo TRIPS para países que não dispõem de desenvolvimento industrial. A reunião de Doha comissionou
um processo de elaboração de regulamentos para essas situações”.
6 A resposta dos EUA e da Europa foi desconsiderar esse acordo negociado na OMC e começar a negociar acordos
livres bilaterais e regionais, o que envolve a aceitação de concessões dos países em desenvolvimento, parceiros
desses acordos (...) A questão da propriedade intelectual nesses acordos bilaterais e regionais (chamados ‘TRIPS
plus’) proporciona muito mais proteção para as grandes indústrias farmacêuticas do que os TRIPS originais da
OMC (...) Desde 2001, qualquer acordo comercial norte-americano inclui aspectos relativos à proteção do direito
de propriedade intelectual dos fármacos por período mais longo que os 20 anos previstos no TRIPS. Esse padrão
‘TRIP-plus’ erodiu de forma importante as flexibilidades previstas na Declaração de Doha” (ALMEIDA, 2013).
7 O EUA liderou a criação do NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte) em 1994. Em relação aos
países da América do Sul, após o fracasso do seu projeto da ALCA – entravado sob a liderança de Argentina,
Brasil e Venezuela na Cúpula de Mar Del Plata de 2005 –, o EUA vêm estabelecendo Tratados de Livre Comércio
(TLC) bilaterais, especialmente com as pequenas economias exportadoras de commodities da costa do Pacífico
– Chile e Peru – e com seu aliado estratégico na região – a Colômbia.
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mais direto e assimétrico, alcançando maiores vantagens que em negociações
multilaterais – como acesso a compras governamentais, investimentos e serviços
financeiros, direitos de propriedade intelectual e mesmo acordos militares. Com
abrangência geográfica mais ampla, os EUA vinham liderando as negociações da
Trans-Pacific Parnership (TPP) e da Transatlantic Trade and Investiment Partnership
(TTIP)
8
que, somadas, buscariam isolar o BRICS
9
.
No âmbito do TPP, foi negociado um amplo e ambicioso acordo de
liberalização, através de amplos pacotes envolvendo: livre circulação de bens,
serviços (especialmente financeiros) e investimentos; acesso recíproco a compras
governamentais; regras comuns de origem; eliminação de obstáculos ao comércio e
ao investimento dentro das fronteiras dos países (com apoio técnico e financeiro dos
países do TPP); respeito aos direitos de propriedade; acordos relativos à propriedade
intelectual (inclusive em farmacêuticos), visando reforçar e desenvolver o Acordo
da OMC sobre os TRIPS.
Entre as várias posições contrárias à TPP, os congressistas estadunidenses
10
vinham mostrando preocupação de que essa se concentrasse em proteger
a propriedade intelectual em detrimento dos esforços para proporcionar o
acesso a medicamentos a preços acessíveis nos países em desenvolvimento.
Outro temor também era de que a TPP não seria suficientemente flexível para
8 As negociações do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, sigla em inglês), entre
os Estados Unidos e a União Europeia (UE), vêm registrando progressos nas três áreas principais de negociação:
(i) acesso a mercados, incluindo como avançar para o intercâmbio de ofertas sobre contratação pública e
comércio de serviços; (ii) regulamentação, coerência e compatibilidade regulatória, barreiras técnicas ao comércio
e medidas sanitárias e fitossanitárias; (iii) regras sobre desenvolvimento sustentável, padrões trabalhistas e
ambientais, comércio de energia e matérias-primas, e facilitação do comércio e procedimentos alfandegários.
9 A TPP se origina em 2005, envolvendo Brunei, Chile, Nova Zelândia e Cingapura, posteriormente aderindo
às negociações: Austrália (2008), Canadá (2012), EUA (2008), Japão (2013), Malásia (2010), México (2012),
Peru (2010) e Vietnã (2008). A TPP ganhou maior relevância em 2009, quando o presidente Obama anunciou a
intenção dos EUA de participar das negociações para concluir um ambicioso acordo na Ásia-Pacífico, reforçando
a participação estadunidense nas economias dinâmicas da região.
10 “Letter from 10 Representatives asking for a meeting to discuss IP policies that could “undermine public health
and access to medicines.”. 3 August 2011. Retrieved 30 January 2012. Disponível em: <http://infojustice.org/
wp-content/uploads/2011/08/Ten-Representatives-on-TPP-08022011.pdf>.
“Letter from Senator Sanders to US Trade Representative Ron Kirk”. 1 December 2011. Retrieved 30
January 2012. Disponível em: <http://keionline.org/sites/default/files/Sen_Sanders_letter_to_USTR_TPP_
negotiations_12-1-2011.pdf>.
“Letter from Representatives Levin, Waxman, McDermott and Conyers to US Trade Representative Ron Kirk”. 19
October 2011. Retrieved 30 January 2012. Disponível em: <http://infojustice.org/wp-content/uploads/2011/09/
Four-Democrat-Reps-10192011.pdf>.
“Letter from Reps. Lewis, Stark, Rangel, Blumenauer, and Doggett asking that the May 10th agreement serve
as a “non-negotiable starting point” for access to medicines”. 8 September 2011. Retrieved 30 January 2012.
Disponível em: <http://infojustice.org/wp-content/uploads/2011/09/Five-MOCs-September-8-2011.pdf>.
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acomodar os programas de reembolso de medicamentos não discriminatório e
os diversos sistemas de saúde já existentes dos países membros. Entre diversos
exemplos, podemos citar que os opositores da TPP apontaram que as corporações
estadunidenses teriam acesso a mercados e minariam esforços para proporcionar
o acesso a medicamentos a preços acessíveis no Vietnã, e que estariam esperando
para enfraquecer a capacidade da Pharmac
11
de obter medicamentos genéricos
de baixo custo, forçando a Nova Zelândia a pagar por medicamentos de marca.
Médicos e organizações como Médicos Sem Fronteiras também manifestaram
preocupação. As empresas estadunidenses, principalmente a indústria farmacêutica
que possui lobby fortíssimo, têm enorme interesse em resguardar (ou ampliar) seus
direitos de propriedade intelectual nos moldes do TRIPS e ter acesso às compras
governamentais e mercados dos demais países através de acordos como o TPP,
excluindo a China e os demais BRICS.
As negociações de amplos acordos que envolvem Estados com enormes
assimetrias almejam assegurar vasto mercado e posições privilegiadas com
ganhos extraordinários para as grandes empresas transnacionais estadunidenses,
especialmente as relacionadas à área de saúde. Ao mesmo tempo, minam a
possibilidade de florescimento de indústrias nos países menos desenvolvidos e
o acesso ao mercado e a competitividade de empresas de outros países de fora
do acordo, que poderiam promover suas indústrias ou arranjos cooperativos. Por
isso, do ponto de vista das grandes potências, e especialmente do EUA, é mais
viável negociar e costurar tais acordos vantajosos fora da OMC e das negociações
multilaterais da Rodada de Doha, onde podem enfrentar o posicionamento
organizado e conjunto dos países menos desenvolvidos.
É ilustrativo mencionar alguns dos casos relacionados à área de saúde que
demonstram conflitos e/ou vulnerabilidades, potenciais e reveladas, para países
no sistema internacional. Por exemplo, as disputas de propriedade intelectual e
compras governamentais, que são objetos de impasses nas negociações comerciais
multilaterais, ou o acesso a medicamentos e vacinas em contextos de epidemias
(PADULA et al., 2015).
O conflito em torno da liberdade de trânsito de medicamentos genéricos no
âmbito dos direitos de patentes é um caso ilustrativo. As autoridades europeias
realizaram sistemáticas apreensões de medicamentos genéricos em seus portos,
11 A agência governamental da Nova Zelândia que decide quais os produtos farmacêuticos podem ser financiados
por fundo público na Nova Zelândia.
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restringido a circulação desses bens essenciais à saúde humana, cujas patentes
das grandes empresas multinacionais não encontram direito de proteção nos
países de origem e de destino, mas somente na Europa. Como os medicamentos
se encontravam em trânsito e não se destinavam ao mercado europeu, não caberia
aplicação de direitos de propriedade intelectual das empresas farmacêuticas
titulares de patentes na Europa, e nem é cabível alegar danos a essas – se as
mesmas não registraram as patentes nos países de origem e destino, ou se as
mesmas expiraram, ou se o comércio se dá baseado em princípios de saúde
pública. Além de violar o TRIPS e a Declaração de Doha, tais ações arbitrárias e
unilaterais violam o artigo V do GATT que prevê liberdade de trânsito.
Em 2008, no porto de Roterdã, alegando questões de propriedade intelectual,
as autoridades holandesas apreenderam uma carga do genérico LOSARTAN,
produzido na Índia e destinado ao Brasil. Tal episódio demonstra o grau de
acirramento dessa disputa
12
e como as autoridades europeias colocam a questão
da propriedade intelectual acima da saúde pública de outros povos; ou seus
interesses políticos e econômicos acima dos interesses socioeconômicos de outros
países. Outros registros de carregamentos detidos em portos europeus tinham
como destino Nigéria, Vanuatu, Peru, Colômbia, Equador, México e Venezuela.
Os carregamentos continham medicamentos essenciais para o tratamento de
HIV, doenças coronarianas, esquizofrenia, Alzheimer, colesterol e hipertensão.
Obviamente, os atingidos são as populações dos países menos desenvolvidos ou
subdesenvolvidos.
A importância dos portos dos países europeus nas rotas comerciais internacionais
– em razão de sua posição geográfica e vigor econômico – aufere a esses países
posições importantes em rotas comerciais de bens estratégicos, o que, por sua
vez, confere-lhes maior poder de veto político à sua circulação. Por outro lado,
gera vulnerabilidade aos países dependentes dessas rotas comerciais e de suas
12 As apreensões de medicamentos em trânsito têm sido objeto de polêmico debate em diversas instâncias
internacionais. O confisco, ocorrido em 4 de dezembro de 2008, de 570 kg de Losartan Potassium, princípio
ativo usado para a produção de medicamentos para o tratamento de hipertensão arterial, recebeu particular
destaque. O produto, avaliado em € 55 mil, havia sido negociado entre a empresa indiana Dr. Reddy`s e a
brasileira EMS e estava a caminho do Brasil, mas não alcançou seu destino final. Apesar de o fármaco não ser
protegido por patente nem na Índia nem no Brasil, a carga foi confiscada na Holanda, país onde a multinacional
MerckSharp&Dohme (MSD) detém sua patente em conjunto com a DuPont. A MSD enviou uma carta à Dr.
Reddy`s por meio de seus advogados em 24 de dezembro de 2008, informando a empresa da retenção e exigindo
a renúncia da carga, sob ameaça de destruição do produto. Segundo nota de esclarecimento da Merck do Brasil,
a carga retornou à Índia por solicitação da Dr. Reddy`s, após permanecer retida por 36 dias no porto de Roterdã”.
(REIS; FARIA, 2010)
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relações exteriores para o abastecimento desses bens, caso não possuam ou não
busquem alternativas.
O caso da influenza A (H1N1) demonstrou que, diante de pandemias, as
soluções predominantes não são de caráter global, mas as grandes potências
buscam garantir seus interesses nacionais, sua estabilidade interna e segurança
nacional. Assim, o caso ilustra a vulnerabilidade que pandemias podem causar a
países que não possuem produção autônoma de medicamentos e vacinas. Diante
do surto, os países centrais garantiram em primeiro lugar o acesso a medicamentos
às suas populações, e o governo brasileiro, por exemplo, encontrou dificuldades
de suprir as necessidades internas do país. No caso de fornecimento de vacinas,
as empresas buscavam priorizar contratos já estabelecidos e, diante do pedido da
OMS de conceder vacina grátis aos países pobres, concederam apenas parcialmente
ou negaram (esse é o caso da Novartis).
No bojo do espírito da globalização e do livre mercado, os países desenvolvidos
vêm promovendo o papel da OMC na regulação do mercado de medicamentos, de
acordo com os interesses de suas grandes empresas, e em detrimento do papel da
OMS (ALMEIDA, 2013). Estados fortes atuam de acordo com os interesses das suas
empresas e da manutenção de assimetrias estruturais no sistema internacional,
promovendo acordos e usando sua influência em organizações internacionais como
forma de legitimar seus interesses, construindo regras e regimes internacionais
que lhes sejam favoráveis
13
. No âmbito global, a busca por acesso facilitado a
mercados na área de saúde coloca em foco os países emergentes, visto que as
previsões são de aumento da participação de seus mercados nas vendas globais de
medicamentos, devido a uma maior incorporação de contingentes populacionais ao
mercado consumidor de produtos de saúde. Assim, esse crescimento tem impacto
em mudanças nas estratégias competitivas e de inovação das grandes empresas
farmacêuticas globais e de seus Estados. Chase-Dunn, Niemeyer; Allison (2005)
aponta a importância da liderança biotecnológica dos EUA na sua estratégia
estatal de prolongamento hegemônico, e como o Estado e suas agências lideraram
iniciativas para o setor desde a década de 1980. Ainda, Reis, Landim e Pieroni (2011)
destacam o processo de catching-up de China, Índia e Israel na rota biotecnológica,
13 Para Krasner (2009, p. 13), “regimes internacionais são definidos como princípios, normas, regras e procedimentos
de tomada de decisão, sobre os quais as expectativas dos atores convergem em uma determinada área temática”.
Princípios são formados por um conjunto coerente de afirmações teóricas sobre como o mundo funciona.
Normas especificam padrões gerais de comportamento. Princípios e normas definem a característica básica de
qualquer regime.
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através de estratégias lideradas pelo Estado, através de incentivos regulatórios,
financiamento e uma política industrial abrangente. Padula (2015) mostra que,
em seus documentos de reuniões e ações, os BRICS vinha articulando em favor
de uma reforma da agenda internacional na área de saúde, envolvendo o papel da
OMS, flexibilização do TRIPS, universalização e maior acesso a medicamentos a
menor custo para os países subdesenvolvidos (e não somente os BRICS), incluindo
seu financiamento para comercialização, produção e acesso tecnológico. Assim,
revelam-se tensões políticas interestatais e o que Krasner (1985) chamou de conflito
estrutural, que abordaremos na próxima seção.
Indústria de saúde e autonomia estratégica
Gadelha e Costa (2013) apontam que a análise do Complexo Econômico-
Industrial da Saúde (CEIS) se debruça sobre a relação sistêmica estabelecida entre
segmentos industriais e o setor de serviços de saúde e, consequentemente, sobre
sua construção sistêmica no âmbito de uma economia nacional. A análise do CEIS
coaduna-se à utilização do arcabouço teórico conceitual da economia política
da saúde, que coloca em relevo as tensões relativas aos interesses sociais diante
dos econômicos envolvidos, politizando o debate e evidenciando a necessidade
de atuação do Estado na construção de seu arcabouço legal-institucional.
Tal perspectiva segue a abordagem estruturalista da economia política “que
privilegia os fatores histórico-estruturais característicos da sociedade brasileira”,
passando pela sua “inserção internacional, assim como sua relação com uma
difusão extremamente assimétrica do progresso técnico e, nos termos atuais, do
conhecimento e do aprendizado, dissociados das necessidades locais” (Gadelha;
Costa, 2013, p. 109)
14
.
Tal abordagem enfatiza questões fundamentais como a relação entre o
complexo industrial de saúde e a universalização do acesso à saúde do ponto
de vista econômico e social, e ressalta potenciais conflitos políticos decorrentes
dessa lógica, na dimensão política interna – principalmente entre empresas e
14 A análise estruturalista latino-americana originou-se com Raúl Prebisch e aprofundou-se com Celso Furtado,
que agregou a dimensão histórico-estrutural à análise da relação centro-periferia, e especificamente dos países
periféricos. Para um panorama amplo desta tradição, verOctavio Rodriguez, “O estruturalismo latino-americano”,
São Paulo: Civilização Brasileira, 2005. Para conferir a visão de Furtado, ver: Celso Furtado, “Teoria e Política
do Desenvolvimento”, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1967.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 12, n. 2, 2017, p. 174-196
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Raphael Padula
Estado – e na arena internacional – do ponto de vista da atuação das empresas
transnacionais ou das relações econômicas (comerciais, financeiras e acerca
de direitos de propriedade intelectual) entre Estados. Ampliando essa visão,
deve-se introduzir maior enfoque nas relações interestatais, na qual os conflitos
não resultam somente de interesses econômicos, mas também de interesses
eminentemente político-estratégicos presentes nas relações de poder interestatais
em um sistema anárquico onde os Estados buscam cumprir suas funções básicas
de prover segurança e desenvolvimento para suas sociedades, na busca pelo
acúmulo relativo de poder e riqueza frente a outros Estados. O acúmulo de poder
e de riqueza atuam de forma coadunada e sinérgica. Mas um Estado rico e sem
poder pode ser encarado como débil e vulnerável frente aos interesses e ações
de potências externas.
O cenário internacional político e econômico da saúde apresentado na seção
anterior indica que a análise sobre um complexo industrial da saúde nacional deve
levar em conta o conceito de autonomia estratégica e encará-lo como objetivo
político de um Estado frente ao sistema internacional anárquico. A concepção de
autonomia estratégica tem um caráter político e vai além da concepção jurídica
internacional de soberania. Partindo das visões de Hélio Jaguaribe e Juan Carlos
Puig (apud GRANATO, 2014)
15
, a autonomia estratégica refere-se ao grau de
liberdade política de um Estado para tomar decisões, tanto no âmbito da política
interna quanto externa, objetivando a construção de regras favoráveis ao seu
desenvolvimento socioeconômico e à sua segurança, frente aos interesses e ações
de atores externos no sistema internacional – que muitas vezes se articulam com
interesses de grupos políticos internos com interesses específicos. Nesse sentido,
a autonomia estratégica remete também à busca pela autossuficiência econômica
como um modelo ideal, mesmo que não alcançável, mas no sentido de se tornar
menos dependente (ou vulnerável) nas suas relações exteriores no que diz respeito
à produção e abastecimento de bens estratégicos – seu comércio, suas tecnologias
e seu financiamento.
15 Sobre Jaguaribe, ver JAGUARIBE (1979). “Autonomía periférica y hegemonía céntrica”. Estudios Internacionales,
n. 49, pp. 91-130, abr.-jun. 1979. Santiago de Chile. JAGUARIBE (1973). “Dependencia y autonomía en América
Latina”. In: JAGUARIBE, H.; FERRER, A.; WIONCZEK, M. S.; SANTOS, T. dos. La dependencia político-económica
de América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 1973, pp. 1-85.
Sobre Puig, conferir: PUIG, Juan Carlos (1986). “Integración y autonomía de América Latina en las postrimerías
del siglo XX”. Integración Latinoamericana, Buenos Aires, ano 11, n. 109, pp. 40-62, jan.-fev. 1986. PUIG, Juan
Carlos (1980). “Doctrinas internacionales y autonomía latino-americana”. Caracas: Instituto de Altos Estudios
de América Latina de la Universidad Simón Bolívar.
186
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Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional
A busca pela autonomia estratégica e sua relação com a industrialização,
como política de Estado, estiveram presentes em autores de economia política
como Alexander Hamilton (estadunidense) e Friedrich List (alemão). Mais
propriamente, esses autores viam o processo de industrialização não só como
o motor da diversificação e do progresso econômicos, mas como uma forma de
buscar internalizar a produção dos bens estratégicos como meio para alcançar
maior independência (liberdade) política no sistema internacional, ou reduzir
as vulnerabilidades externas nos campos econômico e político num processo de
superação de Estados rivais.
Segundo Gilpin (2001, p. 80-81), a busca pela autonomia nacional envolve a
inevitável colisão entre a lógica do mercado e a lógica do Estado
16
. Do ponto de
vista aqui defendido, envolve também conflitos de interesses interestatais. Assim,
da distribuição de poder assimétrica do sistema interestatal emergem conflitos
estruturais, como aponta Krasner (1985), pois, caso queiram alterar sua condição de
vulnerabilidade e dependência, os Estados subdesenvolvidos não podem deixar de
desafiar (reformar) princípios, normas e regras que são de interesse das potências
do hemisfério norte e de suas grandes corporações. Assim, a formação de um
complexo industrial de saúde aparece como peça fundamental para um Estado que
almeje buscar sua autonomia estratégica. Mas esse não pode fazer tal coisa sem
desafiar regras e regimes que são de interesse dos Estados mais poderosos e de
suas empresas transnacionais – como revelam as tensões citadas na seção anterior.
Vale destacar também a potencial relação sinérgica entre indústria de
defesa e indústria de saúde. O complexo industrial-militar estadunidense possui
relações intrínsecas com o setor de saúde, um modelo que vem sendo copiado
pelo complexo industrial-militar chinês (MEDEIROS, 2004; MEDEIROS; TREBAT,
2013). O setor de saúde sempre foi encarado como um setor estratégico pelas
grandes potências, tanto internamente quanto para sua projeção externa (o que
transparece em sua postura de buscar acordos internacionais relativos a comércio,
serviços, investimentos, propriedade e compras governamentais), e vem sendo
16 “Um dos temas dominantes no estudo da economia política internacional (EPI) é o persistente conflito entre
a crescente interdependência da economia internacional e o desejo de Estados individuais de manter sua
independência econômica e autonomia política. Ao mesmo tempo em que os Estados querem os benefícios da
liberalização do comércio, investimento estrangeiro e equivalentes, eles também desejam proteger sua autonomia
política, valores culturais, e estruturas sociais (...) Enquanto a lógica do mercado é alocar atividades econômicas
onde elas forem mais eficientes e lucrativas, a lógica do Estado é capturar e controlar o processo de crescimento
econômico e acumulação de capital com o objetivo de aumentar o poder e o bem-estar econômico da nação
(...)” (GILPIN, 2001, p. 80-81).
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Raphael Padula
encarado desta forma pelas potências emergentes. Se observarmos as empresas
líderes globais na produção e nas inovações, vamos encontrar predominantemente
empresas estadunidenses, europeias e japonesas, e, num processo de catching-up,
empresas chinesas, indianas e israelenses. Por questões de espaço, serão apontados
aqui brevemente os casos dos EUA e da China.
Ao longo de sua história e principalmente após a Segunda Guerra Mundial, no
período da Guerra Fria, os EUA desenvolveram um arranjo institucional complexo
e eficiente envolvendo empresas, universidades e agências governamentais, o
chamado complexo industrial-acadêmico-militar, que teve nesse período e tem
até hoje papel fundamental na sua liderança científica e tecnológica – desde a
ciência básica até tecnologias de ponta. São inovações que transbordam do setor
militar para o setor civil (MEDEIROS, 2004, p. 9). O DARPA teve importante papel
nesse processo.
17
Diversos projetos e escritórios dentro do DARPA buscam o
desenvolvimento e a liderança científica e tecnológica, incluindo vários campos que
impactam a indústria de saúde, como química, novos materiais, microeletrônica,
ciência da computação, robótica, automação, biotecnologia, nanotecnologia,
tecnologia nuclear, neurociências, entre outros. Entre eles, destacamos o Defense
Sciences Office (DSO), o Microsystems Technology Office (MTO) e o Biological
Technologies Office (BTO) – esse criado em abril de 2014.
Medeiros e Trebat (2013, p.7) destacam que a China seguiu a mesma linha e,
no sentido do DARPA, “criou o ‘Programa de pesquisa em alta tecnologia 863’ em
1986, com foco em automação, biotecnologia, energia, tecnologia da informação
(TI), lasers, novos materiais e espaço”.
Para Chase-Dunn, Niemeyer; Allison (2005), a liderança tecnológica em setores
estratégicos é um dos elementos centrais para que um Estado consiga alcançar e
manter uma posição hegemônica no sistema interestatal, tanto pelo seu impacto
vantajoso na produção física quanto no poder militar; ou para que, pelo menos,
figure no andar superior da hierarquia econômica e político-militar do sistema.
17 “O Advanced Research Projects Agency (DARPA), subordinado ao DOD [Departamento de Defesa], teve especial
liderança na criação de novas tecnologias. Para este esforço, o fator limitante não era a disponibilidade de
recursos financeiros. Depois da guerra, os militares obtiveram amplo apoio financeiro e as políticas de compra
do DOD criaram uma vigorosa demanda protegida para as principais indústrias fornecedoras de armamentos.
O fator limitante era o estoque de conhecimento e a estrutura operacional do sistema de inovações. Deste
modo, a tarefa não se circunscrevia à provisão de incentivos para P&D nas indústrias ou nas universidades,
mas na montagem de um extenso e dinâmico sistema de inovação. O desafio era reduzir o período de tempo
entre as invenções e inovações acelerando o progresso técnico e dirigindo-o para a produção de “armamentos
radicalmente novos”. Este desafio foi assumido pelo DOD” (MEDEIROS, 2004, p. 9). Ver também: Merritt Roe
Smith (editor) (1985). Military Enterprise and Technological Change Cambridge. MA: MIT Press.
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Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional
Chase-Dunn, Niemeyer; Allison (2005) chamam de “novas indústrias líderes”
aquelas que transbordam tecnologias para outros setores, possuem capacidade
de gerar “rendas tecnológicas” (monopolísticas) por um período, influenciando
inclusive a indústria militar. Assim, o domínio de tecnologias líderes ou estratégicas
tem implicações geopolíticas sobre a distribuição de poder econômico e militar,
e suas rivalidades. Olhando especificamente para a hipótese de declínio da
hegemonia dos EUA, afirmam:
Depois que uma maior competição internacional surgiu, os EUA continuaram
a angariar rendas tecnológicas por inventar, produzir e exportar novos
produtos, incluindo equipamentos de energia nuclear, tecnologia militar e
tecnologia da informação. Agora, muitos acreditam que as vantagens dos
EUA no campo da biotecnologia poderão contribuir substancialmente para
uma nova rodada de hegemonia econômica dos EUA nas próximas duas
décadas. (Chase-Dunn, Niemeyer; Allison, p. 5, tradução livre).
Assim, apontam as indústrias de biotecnologia, de alimentos e medicina, na
posição futura dos EUA nos próximos dois séculos, fazendo uma associação entre
ciclos de liderança tecnológica e ciclos hegemônicos.
As experiências históricas de grandes potências e das potências emergentes
apontam que o Estado tem o papel de liderar o processo de construção da
indústria de saúde, com adequadas regulações, mobilização de recursos e arranjos
institucionais envolvendo setores estatais, acadêmicos e empresariais. Como
mostram os casos dos EUA e China, a percepção estratégica de interconexão entre
indústria de defesa e saúde costuma vir das estratégias de formação da indústria
de defesa, ao envolver a área de saúde. Como já afirmado, os segmentos que
formam o complexo industrial de saúde são constituídos por indústrias portadoras
de tecnologias de futuro, com caráter estratégico, que se espalham por outros
setores da economia e são fundamentais para o desenvolvimento e a segurança
nacional, características similares à da indústria de defesa.
Saúde e Segurança Nacional
No período pós Guerra Fria, a evolução dos estudos estratégicos, e
especificamente da segurança internacional, ampliou a agenda de segurança para
além da questão militar, buscando incorporar a noção de “ameaças” que partem
de outras áreas e atores, e não somente da agressão militar de um Estado contra
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Raphael Padula
outro. Barry Buzan (1991) foi um autor seminal e influente nesse sentido, ao
apontar que, no século XXI, a agenda de segurança deveria se ampliar para além
da segurança militar para temas como seguranças: política, econômica, societária
e ambiental – temas de segurança (security issues) que teriam interconexões
entre si
18
.
Segundo Buzan (1991), a segurança militar compreende as capacidades
ofensiva, defensiva e dissuasória das Forças Armadas; assim como as percepções
do Estado sobre as intenções de outros atores e seus poderes, e vice-versa.
A segurança política abrange a estabilidade organizacional dos Estados, dos
sistemas de governo e das ideologias que os legitimam. A segurança econômica
trata do acesso a recursos, financiamento e mercados necessários à sustentação
de níveis aceitáveis de bem-estar social e poder estatal. Esses são os temas de
segurança abordados em Buzan (1991) que mais interessam neste artigo, e que
têm uma interconexão forte com o que podemos chamar de segurança de saúde,
compondo a agenda de segurança nacional.
Na perspectiva de um suposto mundo pacífico e livre de disputas interestatais,
e/ou caracterizado pela interdependência econômica e pelo livre mercado,
o pensamento liberal propõe que a paz e a segurança deveriam ser tratadas
de forma cooperativa pelos Estados, como um tema global e transfronteiriço,
confiando em organizações internacionais (como a ONU e a OTAN) e na atuação
benevolente dos Estados mais ricos e poderosos, tirando a nação do centro do
debate
19
. Nessa linha, surge a argumentação de que, num mundo globalizado e
com significativo fluxo de pessoas entre países, epidemias deveriam ser tratadas
predominantemente de forma coletiva. Ou de que o tema da segurança humana
em países subdesenvolvidos deveria ser tratado através de uma perspectiva
focada no individuo ou cosmopolita (MCINNES, 2008). Podemos apontar como
resultado dessa agenda de negociações de acordos liberalizantes baseados na
ideologia da globalização: o GATT e o GATS (respectivamente, sobre comércio de
bens e serviços), o TRIPS (relativo a propriedade intelectual), o TRIMS (relativo
a investimentos), e mesmo o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNPN).
18 Ressaltamos que não concordamos com todas as especulações e visões de Buzan, especialmente sobre o cenário
pós Guerra Fria. No entanto, o autor tem contribuição fundamental para os estudos de segurança ao ampliar a
agenda para outros temas e, para os fins desse estudo, não é relevante discorrer sobre divergências em relação
ao autor.
19 No campo da Economia Política Internacional, por exemplo, Robert Keohane, em After Hegemony, defende
que os EUA utilizariam seu excedente de poder, surgindo como única superpotência no pós Guerra Fria, para
construção de regimes, instituições e organizações internacionais, que levariam maior cooperação e estabilidade
ao sistema internacional.
190
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Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional
Colin McInnes (2008) aponta que a agenda de segurança de saúde trata de
epidemias que, num mundo globalizado com significativo fluxo de pessoas entre
países, deveriam ser tratadas predominantemente de forma coletiva ou focada no
indivíduo, o que não justificaria sua inclusão no campo da segurança nacional.
Simon Dalby (2008) destaca que a abordagem da segurança humana traz uma
mudança da centralização no Estado e território para as pessoas. A segurança
humana significa a segurança frente a ameaças crônicas como fome, doença e
repressão – que pode se relacionar com miséria e falta de acesso a condições
mínimas de alimentação e salubridade em países subdesenvolvidos. Caroline
Thomas (2008) reforça tal mudança ao afirmar que (i) a questão da segurança se
volta para seres humanos individuais e a proteção e cumprimento de seus direitos
humanos; (ii) a busca de outros níveis de seguridade – global, regional ou nacional
– tem relevância e legitimidade na medida em que apoia a segurança humana;
(iii) a segurança humana não pode ser definida ou constrangida dentro de limites
territoriais de uma unidade política exclusiva; (iv) a busca de segurança nacional
por um Estado não deve comprometer a segurança humana de seus cidadãos ou
ainda de pessoas vivendo além de seus limites territoriais.
McInnes (2008) aponta que há três temas principais tratados na agenda de
segurança sobre saúde: (1) a propagação de doenças infecciosas (tuberculose,
gripe aviária, AIDS, SARS, ebola) para o “Ocidente” (como elemento exógeno);
(2) pandemia de AIDS/HIV (que pode ser inserido no anterior); (3) guerra biológica:
em função da difusão e uso de armas biológicas por grupos radicais (bioterrorismo).
Nesses temas, a saúde estaria diretamente ligada à questão da segurança, através
de potenciais efeitos desestabilizadores. Para o autor, as epidemias podem provocar,
num espaço curto de tempo, um nível elevado de absenteísmo ou mesmo mortes,
prejudicando o funcionamento do Estado e da economia, além de gerar um ônus
significativo nos gastos públicos. Há também a possibilidade de revolta política,
especialmente caso a população não acredite que está sendo atendida de forma
adequada, ou que apenas segmentos mais privilegiados da população estão tendo
acesso à assistência médica adequada. McInnes (2008) destaca que relatório da
CIA, de 1999, argumenta que, com a globalização e os crescentes movimentos de
pessoas e mercadorias, emerge o risco vindo de doenças infecciosas que podem
se espalhar globalmente e atingir os cidadãos estadunidenses, podendo afetar o
crescimento econômico e a estabilidade internacional e, consequentemente, tornar-
se um problema de segurança nacional. Ele aponta que, em 2000, o Conselho de
Segurança apontou a ameaça da pandemia de AIDS à segurança proveniente de
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três efeitos: (i) coloca em risco o funcionamento e a estabilidade do Estado – nos
campos econômico, social e político; (ii) as forças de segurança (militares) e de
paz como potenciais difusores, pelo seu deslocamento; (iii) e que a propagação da
AIDS é exacerbada em condições de violência. Levando em conta especificamente a
hipótese de mobilidade de tropas em conflitos como vetor transmissor de doenças,
de forma crítica, McInnes (2008) argumenta que a relação entre epidemia de HIV
e segurança não é muito conclusiva, visto que conflitos podem tanto impulsionar
quanto restringir o deslocamento de tropas e civis e, portanto, a disseminação
de HIV. Além disso, programas de prevenção podem e efetivamente reduzem a
propagação do HIV entre as tropas.
Do nosso ponto de vista, o tema das guerras biológicas e sua relação com a
segurança de saúde em um país periférico, especialmente os de tradição pacífica,
devem considerar se esse almeja obter uma projeção de ator global e influenciar o
sistema internacional. Nesse caso, deve estar preparado para possíveis ações hostis
originadas a partir de divergências de interesses com outros Estados militarmente
fortes e/ou que dominam tecnologias de armas biológicas. Ainda, na abordagem
desses temas, se encontra o dilema entre cooperação coletiva e uma abordagem
nacional para prevenção ou solução. Por outro lado, no discurso das grandes
potências, os países periféricos (especialmente os caracterizados por estados
“irresponsáveis” ou “falidos”) podem ser identificados como abrigos (voluntários
ou não) de grupos radicais ou como focos de epidemias, justificando práticas de
ajuda” e/ou intervenções.
Considerando o cenário econômico e político internacional e os casos conflitivos
apresentados na primeira seção, somando-se os efeitos desestabilizadores políticos
e econômicos ao Estado e à sociedade (de âmbito nacional) causados por epidemias
(nacionais e/ou globais) apontados por McInnes, revela-se a impossibilidade de
que Estados periféricos possam confiar na cooperação global, na visão cosmopolita
ou num conceito de segurança humana para o acesso a vacinas e medicamentos
fundamentais. Por outro lado, reforçam a ideia de que a indústria de saúde nacional
é fundamental para a segurança nacional, desenvolvimento e autonomia estratégica
de um Estado periférico, reduzindo suas vulnerabilidades diante influências e
decisões de abastecimento concentradas nas mãos de empresas transnacionais
ou de seus Estados de origem.
A concepção aqui defendida, apoiada na busca pela autonomia estratégica
estatal em um sistema interestatal competitivo e anárquico, encara que a segurança
de saúde deve ser tratada a partir de uma perspectiva nacional, como um tema de
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Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional
segurança e desenvolvimento nacional. Seguindo a definição de Buzan (1991) para
segurança econômica, poderíamos definir a segurança de saúde como o acesso a
recursos, financiamento e mercados na área de saúde, necessários à sustentação de
níveis aceitáveis de bem-estar social e poder estatal. Pelo seu caráter estratégico, o
setor de saúde não pode ser tratado como parte da segurança econômica. Ainda,
a segurança de saúde pode ser vista como a capacidade de um Estado (economia
nacional) de produzir internamente os bens e serviços de saúde que atendam às
necessidades de sua população, de forma a universalizar o acesso tanto em tempos
de paz como diante de contenciosos e conflitos político-econômicos interestatais.
Depende, assim, do domínio de tecnologias, da capacidade financeira e produtiva,
e de mobilização de recursos em tempo hábil. Sobretudo, depende de um projeto
nacional e de capacidade e coesão política interna para articular diferentes setores
em prol desse objetivo superior, diante de possíveis constrangimentos e ações
externas. É importante sublinhar que a segurança sanitária possui interconexões
com outros temas de segurança: econômica, política, societal, militar e alimentar.
Diante da necessidade ou da conveniência de importação, ou da não
viabilidade da produção interna, seria fundamental para a segurança de saúde,
nos termos definidos acima, que o Estado: em períodos de conflitos ou diante de
contenciosos políticos, seja capaz (em tempo hábil) de mobilizar recursos para
a produção de medicamentos antes importados; não dependa de fontes restritas
de importação (seja país(es) ou empresa(s)); diversificar o máximo possível as
fontes de importações (em termos de áreas geográficas, de países e empresas,
ou coalizões desses, olhando para a propriedade do capital das empresas), assim
como diversificar as rotas comerciais de abastecimento, as fontes de financiamento
e moedas em denominação de contratos. Sem embargo, a segurança sanitária e
a segurança econômica possuem relações estreitas. A abordagem de segurança
de saúde aponta a necessidade de olhar para a propriedade do capital das
empresas que atuam no país, possibilidades de transferência tecnológica e perfil
de empresas que fazem comércio com o país (independente de sua localização
territorial). Os processos identificados de concentração global da propriedade das
empresas (através de fusões e aquisições) e da inovação tecnológica (patentes),
com consequente processo de desnacionalização da indústria nacional, tendem a
gerar vulnerabilidades econômicas e políticas, tornando vulneráveis a segurança
de saúde e, de forma mais ampla, a segurança nacional.
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Conclusões
O cenário econômico internacional na área de saúde aponta para uma
crescente concentração da propriedade de empresas, produção e geração e
propriedade de tecnologias nos países centrais, a partir de suas grandes empresas
transnacionais. As indústrias biotecnológica e nanotecnológica seguirão crescendo
de importância, a indústria de equipamentos e materiais seguirá sendo fundamental,
e as TICs (tecnologias da informação e comunicação) serão crescentemente
importantes.
Ao mesmo tempo, no âmbito político internacional, a tendência é de que os
Estados poderosos acirrem as disputas por mercados, acessos a investimentos e
compras governamentais, direitos de propriedade intelectual, e pela influência
na construção de regras e da agenda internacional de saúde, tentando garantir
os interesses de suas grandes empresas e tornar Estados periféricos ainda mais
dependentes, vulneráveis externamente e instáveis politicamente internamente. Os
conflitos em torno de direitos de propriedade intelectual, ou das relações desses
com o trânsito internacional de medicamentos e a produção de medicamentos com
menores custos, e do acesso a medicamentos e vacinas em períodos de pandemias,
mostram um ambiente internacional conflitivo onde os interesses nacionais de
Estados e interesses econômicos de empresas tendem a ser priorizados sobre
interesses sociais, humanos ou globais.
Na agenda de saúde internacional, seguirão as ações das grandes potências,
que perseguem seus interesses estratégicos e são pressionadas por suas grandes
empresas, para a manutenção de regras no sistema internacional que sejam
favoráveis à continuidade da expansão e concentração de mercado. Trata-se,
portanto, de uma atuação incisiva e contrária a ações que não sejam condizentes ou
desafiem as regras e regimes de manutenção do status quo. Tal quadro aponta para
a tendência de crescentes conflitos em questões de saúde no âmbito internacional,
relativos a comércio de bens e serviços, investimentos e direitos de propriedade
intelectual. No âmbito das organizações internacionais – Conselho de Segurança
da ONU, OMC, OMS –, as grandes potências seguirão se articulando em torno
dos seus interesses e marginalizando políticas contrárias. A tendência então é de
aprofundamento do padrão de expansão e concentração da indústria de fármacos
(e não de reversão) nas mãos das big pharmas, visto que os mesmos fatores que
o consolidaram persistem.
194
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Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional
A falta de acesso a medicamentos gera efeitos desestabilizadores sociais,
econômicos, políticos e de segurança no Estado e na sociedade. A construção
do complexo industrial da saúde deve ter um papel fundamental na autonomia
estratégica e na segurança nacional, principalmente do ponto de vista da segurança
econômica e da segurança política, além do potencial de conexão com a indústria
de defesa (e consequentemente com a segurança militar).
Por sua importância socioeconômica e tecnológica, o desenvolvimento da
indústria de saúde é fundamental como vetor de crescimento, para a estabilidade
interna, para a segurança interna e externa do País, para diminuir sua vulnerabilidade
econômica e política, e para aumentar o grau de independência nas suas relações
exteriores. Além do caráter social, a universalização do acesso trabalha em favor da
estabilidade política interna, ao eliminar diferenças internas em relação ao acesso
da população a bens e serviços básicos. É importante para a segurança nacional de
um Estado também por torná-lo autossuficiente em possíveis períodos de conflitos
ou interrupção de fluxos e, assim, menos vulnerável a pressões internacionais e
aos interesses (poder de barganha) de potências externas. Ainda, a distribuição
geográfica das atividades da indústria de saúde e a universalização do acesso aos
seus bens e serviços por todo o território nacional (pelas suas diferentes regiões,
inclusive fronteiriças) são importantes do ponto de vista do desenvolvimento
socioeconômico do território nacional, do seu aproveitamento em todas as suas
potencialidades geográficas e da segurança do território nacional – ao promover o
domínio político e a ocupação demográfica, econômica e militar adequada de todo
o território e de seus recursos. Assim, considerando sua importância econômica,
tecnológica, social, política e militar, o complexo industrial nacional de saúde é
estratégico e seu destino não pode ser deixado ao mercado global, à vontade de
potências externas, de organizações internacionais e de empresas transnacionais.
Nos países BRICS, há uma forte demanda por produtos e serviços de saúde.
O caráter indutor do desenvolvimento das compras governamentais é tão evidente
que, recorrentemente, as mesmas aparecem como um dos impasses nas negociações
da Rodada de Doha, promovida no âmbito da OMC. A forma como essa demanda
crescente será suprida deve estar associada ao padrão de desenvolvimento
e inserção internacional que os Estados pretendem. Nesse sentido, é preciso
observar dois aspectos: a capacidade nacional de ofertar os produtos e serviços
necessários para atender, não apenas à demanda doméstica como também concorrer
internacionalmente com a produção das demais potências, podendo inclusive ser
um vetor estratégico de inserção geopolítica; e a concorrência internacional das
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transnacionais fomentadas inclusive pelas estratégias geopolíticas de seus países
sede. Do contrário, seu crescimento econômico e seus crescentes mercados podem
se transformar em maior dependência e vulnerabilidade externa, transferindo
recursos públicos para grandes empresas transnacionais sediadas em países
centrais. Os países do BRICS têm em comum, além de um crescente mercado,
o compromisso estatal com a universalização do acesso à saúde, a reforma do
sistema internacional na área de saúde e o acesso a medicamentos em países
subdesenvolvidos. As doenças e medicamentos pouco rentáveis são negligenciados
pelas grandes empresas farmacêuticas transnacionais, não obstante afetarem
grande número de pessoas e serem extremamente importantes para a medicina. Os
interesses da saúde e os interesses dos mercados estão em caminhos opostos, assim
como os interesses dos Estados centrais e periféricos ou emergentes, especialmente
quando esses buscam reformas no sistema internacional, e especificamente no
sistema de saúde internacional, de forma articulada através de alianças.
Referências
ALMEIDA, Célia . Saúde, Política Externa e Cooperação Sul-Sul em Saúde: Elementos para
Reflexão sobre o Caso do Brasil. In GADELHA, P.; CARVALHO, J. N. de; PEREIRA,
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