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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
O Brasil como potência regional: uma análise
da sua liderança na América do Sul no início
do século XXI
Brazil as a regional power: an analysis of its
leadership in the South America at the beginning
of the 21st century
DOI: 10.21530/ci.v11n3.2016.570
Patrícia Nasser de Carvalho
1
Fernanda Cristina Nanci Izidro Gonçalves
2
Resumo
Considerando a nova dinâmica geopolítica que se estabelece na América do Sul a partir dos
anos 2000, o objetivo deste artigo é examinar a atuação do Brasil como potência regional
a partir de evidências que corroboraram esse papel e o exercício de sua liderança regional
durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Verifica-se que, apesar de certas
limitações e de não ser uma potência inconteste, sua estratégia, sua disposição de assumir
uma posição como elo fortalecedor dos processos de integração, seu engajamento na
cooperação regional e seus recursos materiais permitiram o exercício da liderança regional
pelo país. Por fim, realiza-se uma breve reflexão sobre as condições para o mesmo exercício
por parte do Brasil na gestão Dilma Rousseff (2011-2016), inferindo-se que houve traços de
continuidade da política externa para a região, mas com menor pró-atividade brasileira em
função de mudanças das condições domésticas e internacionais.
Palavras-chave: Brasil, América do Sul, potência regional, liderança.
Abstract
Considering the new geopolitical dynamics established in South America from the 2000s, the
aim of this article is to examine the role of Brazil as a regional power taking into account
evidences and the exercise of its regional leadership during Luiz Inácio Lula da Silva mandate
1 Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
2 Doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). Atualmente é
coordenadora adjunta e professora do curso de Relações Internacionais no Centro Universitário La Salle-RJ.
Artigo submetido em 17/10/2016 e aprovado em 09/12/2016.
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(2003-2010). Despite certain limitations and because it was not an incontestable power in the
region, Brazilian’s strategy, willingness to take a position as a strengthening link of regional
integration, its involvement in regional cooperation processes and its material resources
enabled the exercise of Brazilian regional leadership. Finally, the paper offers a brief reflection
regarding the conditions of the same role played by Brazil during Dilma Rousseff (2011-2016)
mandate, and infers that there was a continuity of Brazilian foreign policy towards the region,
although with less proactivity due to changes of domestic and international conditions.
Keywords: Brazil, South America, regional power, regional leadership.
Introdução
As eleições de governos de esquerda e centro-esquerda na América do Sul,
a partir de 1999, propiciaram mudanças na política externa da grande maioria
dos países sul-americanos, implicando transformações nas suas relações com os
Estados Unidos (EUA) e na intensificação das iniciativas regionais de integração
e cooperação (SERBIN; VIGEVANI; HERSHBERG, 2014). Essas iniciativas se
basearam na ideia de fortalecimento da América do Sul como espaço geopolítico
e geoeconômico a partir de processos autóctones, que se consubstanciaram no
reforço do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), na criação da União das Nações
Sul-Americanas (UNASUL), na Aliança Bolivariana para os Povos da América
(ALBA), entre outras ações (PECEQUILO, 2013a).
O fortalecimento das relações políticas e econômicas dos países da América
do Sul inevitavelmente perpassa a potência regional, que é o Brasil. Sob a gestão
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o país se posicionou como
elo integrador da região e empenhou-se em liderar a construção de um espaço
político, econômico e de segurança autônomo, buscando projeção externa através
da cooperação Sul-Sul.
Considerando a nova dinâmica geopolítica que se estabelece na América
do Sul a partir dos anos 2000, o objetivo deste artigo é examinar a atuação do
Brasil como potência regional a partir de evidências que corroboraram o exercício
desse papel e de sua liderança na região durante o governo Lula (2003-2010).
Considerando que essa atuação tem implicações em suas relações com os EUA e
com os países vizinhos, este artigo analisa também as relações mais autônomas
adotadas pelo Brasil frente àquele país, a sua posição como elo fortalecedor dos
processos de integração e cooperação regional e como as potências secundárias
sul-americanas reagiram a sua liderança no período. Ademais, compreendendo
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
que nos últimos anos a política externa do país sofreu alguns ajustes, realiza-se
ao final uma breve reflexão sobre a atuação brasileira como potência regional na
gestão Dilma Rousseff (2011-2016).
Potência Regional e Potência Secundária: definições conceituais
Nos estudos sobre regiões, o termo potência regional é utilizado, de modo
geral, para fazer alusão a uma hierarquia de poder no sistema internacional,
referindo-se a um país que é influente em uma determinada região ou sub-região
(GODEHARDT; NABERS, 2011). As potências regionais são consideradas os
países que detêm capacidades superiores vis-à-vis seus vizinhos, sem, contudo,
conseguirem verdadeiramente projetar seu poder em nível global (BUZAN, 2011).
Para analisar as potências regionais, Nolte (2011) sistematizou uma
definição que contempla aportes teóricos do realismo, do construtivismo e do
institucionalismo neoliberal. Conforme sua proposta, uma potência regional é
definida como um país que: (i) articula uma posição de liderança em uma região
delimitada geográfica, econômica e politicamente; (ii) possui os recursos materiais
(militares, econômicos e demográficos), organizacionais (políticos) e ideológicos
para projeção de poder regional; (iii) possui grande influência nas relações e
nos resultados dos processos regionais; (iv) possui interdependência econômica,
política e cultural na região; (v) influencia de forma significativa a delimitação
geográfica e a construção política e ideacional da região; (vi) exerce influência por
meio de estruturas de governança regional; (vii) articula e define uma identidade
e um projeto regional; (viii) provê bens coletivos para a região ou participa de
forma significativa da provisão desses bens; (ix) influencia fortemente a definição
da agenda de segurança regional; (x) tem uma posição de liderança reconhecida
ou respeitada pelos demais atores regionais e extrarregionais; (xi) participa de
fóruns inter-regionais e globais, representando não apenas seus interesses, mas
também, ao menos de forma limitada, os interesses regionais.
Embora não exista uma definição única e consensual, a proposta por Nolte
(2011) consegue abranger diferentes aspectos que a literatura sugere como
definidores das potências regionais, englobando fatores mais objetivos, como os
recursos materiais, e subjetivos, como a disposição de assumir a liderança na
região, a capacidade de exercer a liderança regional, além do reconhecimento do
papel de líder pelos vizinhos.
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Diante disso, como é possível qualificar uma potência regional? Uma vez que
a capacidade material é levada em consideração, pode-se partir de indicadores
econômicos, militares, demográficos e de desenvolvimento para fazer a análise
dos critérios objetivos. Já a aceitação da liderança da potência pelos vizinhos não
é fácil de ser medida, visto que deve levar em conta a dimensão subjetiva, como
o reconhecimento dos países na região. Indicadores, como o apoio aos países
em cargos de direção em organizações internacionais, podem ser utilizados para
auxiliar nesse quesito (LIMA, 2014; WEHNER, 2011). Mensurar a disposição de
assumir um papel de liderança na região é um exercício mais complicado, pois
envolve a avaliação das ações de política externa dos países na América do Sul, o
que pode, inclusive, gerar resultados ambíguos (LIMA, 2014). Por fim, examinar
a liderança é a tarefa mais difícil, pois o próprio conceito de liderança é bastante
amplo e contestado na literatura.
Ao tratar do conceito de liderança, Lima (2014), por exemplo, sugere que seja
compreendido não como a influência sobre terceiros, mas sobre resultados. Esse
tipo de influência define um ator com poder de veto, aquele sem cuja anuência
não é possível concluir um acordo ou negociação. Outra forma de compreender
liderança, sugerida pela autora, é proposta por Destradi (2010 apud LIMA, 2014,
p. 239), que entende o fenômeno no âmbito da cooperação. Nesse sentido,
diferentemente da hegemonia, o exercício de liderança se baseia na realização
do interesse comum do grupo, na liderança cooperativa.
Outro autor que discute formas de compreender o fenômeno é Flemes (2012),
que propõe quatro tipos de categorias de liderança: (i) distributiva (provisão
de bens públicos para a região, arcando com a maior proporção dos custos);
(ii) multilateral (compartilhar poder com potências secundárias na tomada de
decisões em instituições multilaterais); (iii) normativa (projeção de normas e
valores para obter aceitação do projeto regional); (iv) consensual (articular uma
agenda pluralista que conduza à criação de um consenso regional). Segundo o
autor, quanto mais formas de liderança uma potência regional exercer, menores
as chances de competição por parte das potências secundárias.
Wehner (2011), por sua vez, discute liderança a partir dos três tipos propostos
por Young (1991 apud WEHNER, 2011, p. 141): estrutural, empreendedora e
intelectual. O primeiro tipo se refere à tradução do poder estrutural (recursos
materiais) na influência nas decisões, podendo fazer uso de recompensas ou
sanções. O segundo tipo se refere à habilidade de convencer e atrair os atores para
uma negociação institucional que resulte em benefícios para todos, é consensual
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em sua essência e não envolve sanções ou recompensas. O terceiro tipo faz alusão
ao uso de conhecimento especializado para moldar as perspectivas dos atores,
ou seja, se baseia no poder das ideias.
Como visto, há um grande debate sobre o conceito de liderança e algumas
definições se aproximam em determinados aspectos. Neste artigo, para fins
metodológicos, propõe-se a análise da liderança brasileira a partir de um conjunto
das acepções de liderança apresentadas por Destradi (2010 apud LIMA, 2014),
Flemes (2012) e Young (1991 apud WEHNER, 2011) em três grupos: (i) a liderança
cooperativa, consensual e empreendedora, que salienta a capacidade da potência
regional de criar consensos e investir em uma relação cooperativa com seus
vizinhos, seja através da ativa participação em organizações regionais, da
proposição de criação de instituições ou de atitude conciliadora em crises regionais;
(ii) a liderança normativa e intelectual, que se reflete na capacidade da potência
regional de projetar ideias e valores que influenciam a região e sustentam o
projeto regional; (iii) a liderança estrutural e distributiva, que implica um papel
de paymaster do país, em que sua liderança se reflete na posse e utilização dos
recursos materiais, através da provisão de bens públicos, sejam esses a estabilidade
regional, a infraestrutura da região ou os custos econômicos da cooperação.
Assim, são observados se esses três tipos de liderança se manifestam na
política regional brasileira, buscando-se obter evidências a partir da análise do
comportamento do país na América do Sul. Discute-se se houve participação
ativa do Brasil nas organizações regionais, liderança na criação de instituições,
ativa participação em imbróglios diplomáticos e crises na região, disposição em
assumir o papel de paymaster e projeção de ideias capazes de influenciar outros
atores e moldar o projeto regional. Vale destacar que a liderança pode ser expressa
por mais de uma forma, manifestando-se de maneiras diferentes na política
externa do Estado.
Na hierarquia de poder regional, as potências secundárias são países que
possuem recursos de poder ideacionais e materiais relativamente menores do
que as potências regionais e, portanto, ocupam uma segunda posição de poder
regional (FLEMES, 2012; WEHNER, 2011). No âmbito da América do Sul, o Brasil
pode ser considerado potência regional, enquanto Argentina, Chile, Colômbia
e Venezuela, potências secundárias. A Tabela 1 a seguir, com dados de 2014,
apresenta indicadores que permitem analisar comparativamente a capacidade
material desses países na região:
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Tabela 1: Recursos Materiais: Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela – 2014
Indicadores Brasil Argentina Chile Colômbia Venezuela
Demografia/Geografia
População (em milhões) 206,1 43 17,8 47,8 30,7
Área (Km
2
) 8515,8 2780,4 756,1 1141,7 912,1
Economia e Desenvolvimento
PIB (em bilhões de dólares) 2429,7 579,2 264,8 381 373,3
PIB per capita (em dólares) 11790 13480 14910 7970 12500
IDH 0,755 0,836 0,832 0,72 0,762
Militar
Gastos militares (em milhões de dólares) 31954 5342 5071 12945 2032
Gastos militares (em % do PIB) 1,4 0,9 2 3,1 1,1
Efetivo das Forças Armadas 729.500 105.650 109.450 455.750 265.000
Fonte: elaboração própria a partir de dados disponíveis no site do Banco Mundial, do PNUD e do SIPRI, 2014.
3
No que se refere à capacidade material, como é possível observar por meio
dos dados, há uma grande concentração no Brasil. A população brasileira é a
maior da região, correspondendo a quase 50% da população sul-americana.
O território brasileiro é três vezes maior que o argentino, que ocupa o 2º lugar
no ranking. Ademais, o Brasil possui uma localização geográfica privilegiada,
com acesso ao Atlântico e o seu litoral se estende por mais de 7.000 quilômetros,
além de que faz fronteira com todos os países sul-americanos, com exceção do
Chile e do Equador. O país tem abundância em recursos naturais, como florestas,
recursos hídricos, petróleo, gás natural e minerais, terras férteis para a agricultura e
enorme biodiversidade. Os indicadores econômicos também são expressivos. O PIB
brasileiro é o maior da região, mais que o triplo do PIB da Argentina, a 2ª maior
economia da região, e quase 6 vezes o PIB da Colômbia, a 3ª maior economia da
região, apesar de ficar em posição inferior à Argentina, ao Chile e à Venezuela
quando se considera o PIB per capita e o IDH, refletindo os problemas sociais
e as desigualdades existentes no país. No que tange aos indicadores militares,
possui o maior efetivo militar e os maiores gastos no setor em números absolutos,
embora esteja em posição inferior à da Colômbia, do Chile e da Venezuela quando
se examina os gastos militares em relação ao PIB. Em vista disso, em termos de
3 Os indicadores de demografia/geografia, economia e efetivo das forças armadas foram extraídos do Banco
Mundial; o IDH das estatísticas das Nações Unidas; e os gastos militares do Stockholm International Peace
Institute (SIPRI). Os indicadores apresentados são referentes ao ano de 2014, pois foi o último ano em que os
indicadores de todos os países foram disponibilizados.
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
capacidade material, o país se destaca frente a seus vizinhos e é a maior potência
sul-americana. Além da capacidade material, a capacidade de exportação e o peso
de seus investimentos se mostraram elementos de barganha fundamentais nas
negociações internacionais brasileiras (MALAMUD, 2012).
No que diz respeito às potências secundárias, a Argentina é tradicionalmente
o país que ocupa o segundo lugar na hierarquia de poder regional. Com grande
território, população, recursos naturais diversos, o 2º maior PIB e o melhor
IDH da América do Sul, além do histórico de ativismo internacional, o país vem
demonstrando ambições de exercer a liderança regional (MALAMUD, 2012).
Entretanto, as dificuldades econômicas enfrentadas ao longo dos últimos anos
obstaculizaram o seu crescimento econômico e sua projeção de poder na região,
ampliando a assimetria frente à potência regional. O default da dívida externa
em 2001 abriu um longo período de resultados negativos para a economia e de
crise política no país. Além disso, é o país do grupo apresentado com o menor
percentual de gastos militares em relação ao PIB.
Conforme pode ser observado na Tabela 2, a Argentina cresceu menos que
Colômbia e Chile nos últimos cinco anos e, de acordo com as projeções econômicas,
até 2020 sua economia crescerá apenas 1,6%, enquanto a Colômbia crescerá
acima dos 20% no período 2016-2020, a maior taxa entre as maiores economias
da América do Sul.
Tabela 2: Taxa de crescimento econômico (2011-2020)
Países
Real
Previsão
2 011 2012 2013 2014 2015 2011-2015 2016 2017 2018 2019 2020 2016-2020
Argentina 8,4% 0,8% 2,9% 0,5% -0,3% 12,6% 0,1% 0,3% 0,4% 0,4% 0,5% 1,6%
Brasil 3,9% 1,9% 3,0% 0,1% -1,0% 8,1% 1,0% 2,3% 2,3% 2,4% 2,5% 10,9%
Chile 5,8% 5,5% 4,0% 1,9% 2,7% 21,4% 3,3% 3,6% 3,7% 3,8% 3,9% 19,7%
Colômbia 6,6% 4,0% 4,9% 4,4% 3,4% 25,5% 3,7% 4,0% 4,2% 4,3% 4,3% 22,2%
Venezuela 4,2% 5,6% 1,3% -3,9% -7,0% -0,3% -4,0% -2,5% -1,5% -0,5% 0,0% - 8,3%
Fonte: elaboração própria a partir de dados disponíveis no site do FMI, 2016.
A Venezuela, por seu turno, exerceu, sob a gestão de Hugo Chávez (1999-
2013), uma liderança paralela ao Brasil na América do Sul, ganhando espaço como
potência secundária. Além de altas taxas de crescimento econômico, impulsionadas
pelos recursos financeiros gerados pela diplomacia do petróleo, o país ampliou
sua capacidade de atrair aliados para sua esfera de influência (FLEMES, 2010;
MALAMUD, 2012) e investiu na área militar, ocupando a terceira posição regional
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em termos do volume total dos gastos realizados nesse setor em 2014. Todavia,
no momento atual, o país enfrenta grave crise econômica e a previsão das taxas
de crescimento econômico para os próximos anos é negativa, o que impacta o
exercício de sua liderança regional. As dificuldades venezuelanas, derivadas de
sua interdependência no setor energético com os EUA, a baixa diversificação de
sua economia e as polarizações sociais, ofereceram limitações reais ao crescimento
e projeção global (PECEQUILO, 2013a).
Embora o Chile seja a potência secundária que apresenta indicadores
demográficos e geográficos menos expressivos entre as potências secundárias, tem
uma das economias mais fortes da região em termos de crescimento econômico,
conforme pode ser observado na Tabela 2, e a maior renda per capita. O país vem
ampliando sua presença na América do Sul e no mundo através de exportações
e investimentos, sobretudo em razão de sua estratégia de inserção externa que
privilegia acordos bilaterais. Em 2014, seu IDH foi apenas pouco menor do que o
argentino. Na área militar, ocupa a 4ª posição no que tange ao efetivo militar, mas
seus gastos em relação ao PIB ocupam a 2ª posição, indicando alto investimento
proporcional aos seus vizinhos.
Ao longo dos últimos dez anos, a Colômbia se consolidou como o país que
mais cresceu entre os sul-americanos e a previsão é de crescimento contínuo para
os próximos anos (vide Tabela 2). O país possui o 2º maior efetivo militar na
região e os gastos em relação ao PIB são os mais elevados. No que tange à extensão
territorial, é o 3º maior país na América do Sul e possui uma localização geográfica
que facilita uma inserção internacional diversificada, com acesso aos oceanos
Pacífico e Atlântico, situando-se como uma ponte entre América Central, Caribe
e América do Sul. Em termos de demografia, possui a 2ª maior população, atrás
apenas do Brasil, um país 4 vezes maior em extensão territorial. O PIB per capita
e IDH comprovam que a Colômbia ainda tem grandes desafios socioeconômicos,
pois a alta taxa de crescimento econômico não se converteu em uma melhoria
significativa nos indicadores, refletindo uma posição inferior às demais potências
secundárias na região.
A América do Sul como espaço geopolítico no século XXI
O fim da Guerra Fria, a crise econômica dos anos 1980 e o cenário político
favorável à preponderância de poder dos EUA impuseram desafios aos países
sul-americanos nos anos 1990. As estratégias norte-americanas de política
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
econômica para a região baseavam-se no Consenso de Washington, nos novos
temas políticos e nas iniciativas de integração regional, que buscavam avançar a
liberalização econômico-comercial, como a Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA). Os principais temas da agenda sul-americana desse período foram a
negociação da dívida externa, a abertura comercial intrarregional, a consolidação
democrática, os ajustes estruturais e as condicionalidades impostas pelos países e
instituições do Centro à concessão de empréstimos internacionais (PECEQUILO,
2013a; LIMA, 2014).
Se os anos 1990 foram marcados por certa homogeneização das experiências
nacionais dos países sul-americanos, os 2000 têm como característica a
heterogeneidade e a diversidade (LIMA, 2014). Importantes transformações
ocorreram na América do Sul com a implementação de novas formas de regionalismo
que modificaram o espaço geopolítico e afetaram a condução das políticas
externas dos países sul-americanos. Entre os fatores que propiciaram o surgimento
dessa nova dinâmica regional, destacam-se acontecimentos exógenos, como os
atentados terroristas em 2001 nos EUA e a guerra global contra o terrorismo, além
da crise financeira global em 2007-2008 e o deslocamento do eixo dinâmico da
economia global para a Ásia – que enfraqueceram a liderança norte-americana
no subcontinente – e endógenos, como a ascensão de governos progressistas
na região, a busca por superar a ideologia neoliberal, por implementar políticas
desenvolvimentistas e de forte cunho social, além de políticas externas revisionistas
(SERBIN; VIGEVANI; HERSHBERG, 2014).
Esse novo momento político deu fôlego à cooperação em diferentes áreas e
coordenação de políticas dos atores regionais (LIMA, 2014). Nesse contexto, as
relações com os EUA também foram transformadas. Historicamente, aquele país
não se deparou com muitas limitações à sua hegemonia não somente na América
do Sul, mas em toda a América Latina. A Organização dos Estados Americanos
(OEA) constituiu o âmbito multilateral privilegiado para a discussão das relações
hemisféricas, instituição através da qual os norte-americanos exerciam grande
poder. Todavia, sua preponderância política e econômica foi limitada no século XXI
pela emergência de uma nova dinâmica geopolítica do Sul e pela multipolaridade.
Brasil e México apresentaram altas taxas de crescimento econômico e ampliaram
suas lideranças no hemisfério, a China aumentou seus investimentos na América
do Sul e os próprios países sul-americanos apostaram na cooperação intrarregional
(SERBIN; VIGEVANI; HERSHBERG, 2014).
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Patrícia Nasser de Carvalho, Fernanda Cristina Nanci Izidro Gonçalves
Nesse cenário, podemos observar diversos padrões de relacionamento
estabelecidos com os EUA pelos diferentes atores regionais, que geraram três
opções estratégicas na região: o multilateralismo vinculante, a contenção limitada
e a colaboração seletiva. A primeira se baseia na utilização das instituições
internacionais para restringir propostas e ações dos EUA e induzir o cumprimento
das normas. A segunda se fundamenta sobre a criação de instrumentos regionais
que reduzam, excluam ou previnam a influência dos EUA na região, objetivando
ampliar a capacidade de ação coletiva. A terceira se pauta na construção de laços
cooperativos com a grande potência para solucionar problemas compartilhados
e reduzir sua influência (RUSSELL; TOKATLIAN, 2009).
Conforme mencionam Serbin, Vigevani e Hershberg (2014), as opções
estratégicas adotadas pelos países sul-americanos em seu relacionamento com
os EUA relacionam-se com as modalidades de regionalismo adotadas na América
do Sul nos últimos anos, baseadas em distintos enfoques ideológicos, políticos
e econômicos.
Nesse contexto, uma das primeiras iniciativas que caracterizou a nova
dinâmica geopolítica da região foi a criação da ALBA, em 2004, impulsionada
pelos então presidentes Hugo Chávez e Fidel Castro. O projeto, de cunho anti-
hegemônico e com forte viés ideológico, buscava estabelecer uma oposição aos
EUA, caracterizando-se como um instrumento de contenção limitada.
Os anos 2000 também foram marcados pela expansão do MERCOSUL com a
entrada da Venezuela, cuja ratificação pelos Estados partes aconteceu em 2013.
A Bolívia foi integrada ao bloco pelo Protocolo de Adesão ao MERCOSUL, ratificado
em 2015, a partir de negociações iniciadas em 2006. Não obstante a discussão
sobre a flexibilização do MERCOSUL ou sua maior institucionalização, o bloco
serviu como instrumento de resistência para pressões assimétricas, como em
negociações comerciais com os EUA e com a União Europeia ao longo do período
(VIGEVANI; ARAGUSUKU, 2014). Assim, também se caracteriza como uma forma
de contenção da influência norte-americana na região.
Outro projeto que caracteriza uma contenção aos EUA foi a criação da
UNASUL, em 2008, em substituição à Comunidade Sul-Americana de Nações
(CASA), estabelecida em 2004. A UNASUL foi uma grande inovação regional,
pois, até então, a região não contava com uma organização que abrangesse os 12
Estados sul-americanos e fosse um fórum privilegiado para discussão e mediação
dos problemas regionais. No âmbito da instituição, foram criados importantes
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
órgãos para tratar da cooperação em diferentes áreas, como o Conselho de Defesa
Sul-Americano (CDS), uma iniciativa pragmática de contestação da participação
dos EUA nos assuntos de defesa da região (BATAGLINO, 2012).
A Aliança do Pacífico, formada por três países sul-americanos (Colômbia,
Peru, Chile) e pelo México em 2012, é uma das mais novas iniciativas regionais.
Seus objetivos são construir uma área de livre-comércio e uma plataforma de
cooperação política, econômica e comercial que auxilie na projeção desses países
no plano internacional, sobretudo na Ásia e no Pacífico. A Aliança se inscreve em
um movimento distinto dos acordos anteriores, visto que, ao enfatizar acordos
de livre-comércio e soluções de mercado, tem um viés mais favorável à política
externa norte-americana (LIMA, 2014). Assim, seria uma opção de colaboração
seletiva, que tem também como expectativa obter os benefícios que a Parceria
Transpacífico (Trans-Pacific Partnership – TPP), liderada pelos EUA, poderá
proporcionar (SERBIN; VIGEVANI; HERSHBERG, 2014), com o objetivo de conter
a expansão da presença chinesa no Pacífico.
Tendo em vista o contexto apresentado, como o Brasil, enquanto potência
regional, se inseriu na América do Sul na primeira década do século XXI, em
especial no governo Lula? Como as potências secundárias lidaram com o Brasil
como potência regional?
O Brasil como potência regional no Governo Lula
A imagem que perdurou durante muito tempo na América do Sul era a de
que o Brasil não priorizava a região, mas sim seu alinhamento com os EUA, tendo
uma baixa identidade regional (LIMA, 2005a). Todavia, a partir da década de 1980,
a diplomacia brasileira buscou promover a cooperação em relação à vizinhança,
institucionalizando as relações regionais. Um marco nesse sentido foi a criação
do MERCOSUL, em 1991. Dos anos 1990 em diante, a região apareceu como uma
opção importante para a política externa brasileira, seja como forma de ampliar
a participação no mundo através da integração regional, seja como forma de
ampliar o poder de negociação que se inscreve nas alianças Sul-Sul e que amplia
a margem de manobra do país no exterior.
Durante a gestão Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995-2002), a liderança
brasileira na região não foi um tema central na política exterior, apesar da América
do Sul ter sido uma das prioridades da agenda brasileira. O Brasil sediou a primeira
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Patrícia Nasser de Carvalho, Fernanda Cristina Nanci Izidro Gonçalves
reunião de presidentes da América do Sul, no ano 2000, e teve importante atuação
como mediador no conflito entre Equador e Peru acerca da definição de limites
territoriais (WEHNER, 2011). Também foram expressivas entre o final da década
de 1990 e início dos anos 2000 as negociações com os EUA para a criação da
ALCA, conduzida pelo governo através do bloco regional.
A partir do governo Lula, o exercício de liderança regional e o aprofundamento
dos vínculos com a região ganharam intensidade. O contexto internacional
favoreceu a adoção de um comportamento mais autônomo por parte do Brasil,
visto que a agenda norte-americana se voltou à guerra ao terror e a prioridade
máxima se tornou o Oriente Médio. O governo brasileiro explorou esse cenário,
aprofundando as relações Sul-Sul no hemisfério e fora dele. Ao reforçar as relações
com outros países emergentes e em desenvolvimento, o Brasil se tornou menos
vulnerável nas relações com os EUA, sendo percebido pela potência como um
país que poderia complementar os interesses norte-americanos na região, atuando
como um elemento de equilíbrio (PECEQUILO, 2013a).
Com efeito, em 2005, o relacionamento com os EUA foi elevado à categoria
de diálogo estratégico pelos governos Lula e George Bush (2001-2008), o que
representou o reconhecimento norte-americano de que o Brasil se encontrava
em uma nova posição no equilíbrio de poder mundial (PECEQUILO, 2013b).
Todavia, a cooperação estabelecida não implicou a ausência de posições dos EUA
para garantir sua hegemonia na região. A reativação, em 2008, da Quarta Frota
do Atlântico Sul nas Américas Central, do Sul e Caribe, que aconteceu após o
anúncio da descoberta de petróleo na camada do pré-sal na Plataforma Continental
Brasileira, a intensificação da guerra contra as drogas na Colômbia e no México,
a instalação de bases militares na América do Sul e a renovação da definição da
Tríplice Fronteira como um problema de segurança pelo governo norte-americano
depois de 2001, apontam para algumas manifestações de poder e preocupação do
país com uma América do Sul mais autônoma (PECEQUILO, 2013a).
Por seu turno, o governo brasileiro reforçou as parcerias regionais e
extrarregionais. A relação com os EUA se caracterizou ao longo desse período
conforme o modelo de oposição limitada, proposto por Russell e Tokatlian (2009),
em que há uma combinação de cooperação e resistência. Em tal modelo, a
integração regional é instrumento essencial para ampliação do poder de negociação
frente à grande potência. Esse modelo está inserido na estratégia de contenção
limitada, que utiliza instrumentos regionais para reduzir, excluir ou prevenir a
influência dos EUA na região. Com efeito, parte do ativismo regional brasileiro se
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
inscreveu nesse movimento de busca por ampliar a capacidade de ação coletiva
e obter maior autonomia frente à grande potência, confirmando a sua disposição
de assumir a liderança na região. Nesse contexto, o Brasil tomou a iniciativa de
convocar um encontro que reuniu 33 países latino-americanos e caribenhos, em
2008 e que deu origem à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos
(CELAC), instituída em 2010, e que começou a funcionar em 2011.
O governo Lula compreendeu que a base econômica e não exclusivamente
política deveria lastrear a liderança do Brasil na América do Sul e que ela exigia
o aumento das trocas comerciais no contexto de um comércio regional mais
equilibrado (BANDEIRA, 2008). Todavia, na prática, o país também enfrentou
alguns obstáculos para aprofundar a sua capacidade de ação coletiva na América
do Sul. Um exemplo foi o processo de integração regional por meio do MERCOSUL.
A dificuldade de consenso entre os países membros, as grandes assimetrias entre
os países do bloco e a tarifa externa comum com inúmeras exceções demonstram
problemas na implementação da iniciativa. O Brasil buscou revitalizar a instituição,
aprofundando o seu viés político e estratégico, investindo em diversos projetos como
a criação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana
(IIRSA) no ano 2000 (durante governo FHC), o Fundo para Convergência Estrutural
do Mercosul (FOCEM), em 2005, e o Parlasul em 2006 (MALAMUD, 2012). A adesão
da Venezuela na organização, o acordo para inclusão da Bolívia e os acordos de
associação de alguns vizinhos também se inserem nesse enquadramento (FLEMES,
2010). A ampliação do bloco mercosulino acontecia a despeito da falta de avanços
no projeto de mercado comum, da existência de instrumentos regionais adequados
para compensar as assimetrias e do grande investimento político-institucional do
governo brasileiro na UNASUL (VIGEVANI; RAMANZINI, 2014).
A atuação brasileira como potência regional no âmbito do MERCOSUL pode
ser questionada no quesito liderança, uma vez que o aprofundamento da integração
no bloco poderia limitar sua autonomia. Assim, o país adota postura que Pinheiro
(2004) caracteriza como institucionalismo pragmático, mantendo uma baixa
institucionalização do MERCOSUL. Todavia, esse é um aspecto que restringe o
exercício de liderança pelo Brasil. Como pontuam Vigevani e Aragusuku (2014),
cabe ao país trabalhar como potência regional em prol da integração, assumindo
o papel de paymaster. Neste aspecto, a liderança distributiva/estrutural brasileira
encontra limites.
No âmbito da mediação de crises regionais, são indicativos da limitação
de liderança regional brasileira a recusa do Chile e da Bolívia no litígio sobre a
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saída boliviana para o mar e o episódio de nacionalização do gás boliviano, em
2006, que assinalam respectivamente a ausência de uma liderança consensual e
estrutural. Ademais, destaca-se a omissão brasileira nas negociações entre Argentina
e Uruguai acerca da implantação de empresas de celulose no rio Uruguai, entre
2005 e 2006 (WEHNER, 2011), apontando para a restrição da liderança regional
no que tange ao estabelecimento de consenso.
Por outro lado, o Brasil exerceu liderança ao ajudar a reduzir as tensões
entre Colômbia, Equador e Venezuela, em 2008, durante crise relacionada ao
combate às FARC e liderou a criação do Grupo de Amigos da Venezuela, em 2003,
para cooperação entre governo e oposição. Ademais, em 2009, posicionou-se
claramente em repúdio ao golpe que levou a deposição do presidente de Honduras
democraticamente eleito, Manuel Zelaya, posteriormente abrigado na embaixada
brasileira em Tegucigalpa. Ainda que polêmico, o fato pode ser visto como uma
defesa dos princípios democráticos, mesmo que, para tanto, sinalize-se uma
mudança da prerrogativa de não intervenção do Itamaraty. O governo brasileiro
tratou dos conflitos colombianos como um assunto de segurança regional e
participou na tentativa de resolvê-los. Em 2008, a missão humanitária organizada
pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, com o apoio logístico do Exército
brasileiro, auxiliou o resgate bem-sucedido de alguns reféns das FARC (BORGES,
2015). Nessas diversas ocasiões, o exercício da liderança de potência regional
consensual/cooperativa/empreendedora foi, de fato, desempenhado pelo Brasil.
No que tange à UNASUL, o Brasil teve grande relevância para a sua construção
política e ideacional. A liderança brasileira no processo de institucionalização da
organização pode ser caracterizada como consensual/cooperativa/empreendedora,
pois embora tenha sido um dos principais promotores do organismo, dividiu a
tomada de decisões com os demais atores regionais. A presidência Pro-Tempore
foi ocupada por outros países como Chile, Equador e Venezuela, bem como os
cargos de secretário-geral, atualmente ocupado pela Colômbia.
Ao mesmo tempo, no âmbito da UNASUL a liderança distributiva é cobrada
do Brasil. O país respondeu à iniciativa liderada por Chávez de criação do Banco
do Sul, em 2007, com o intuito de combater as consequências da crise financeira
internacional, sendo um dos grandes promotores da instituição juntamente com
a Argentina, com ênfase em investimentos em infraestrutura, integração regional
e de redução de assimetrias entre os países, a fim de reduzir a dependência
do dólar, estimular o comércio e ganhar autonomia em relação às instituições
financeiras tradicionais (SANTOS, 2013). No entanto, o Brasil, que tem sido um
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
ator com capacidade de veto nas questões financeiras na região sul-americana, por
intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
mostrou-se contra a criação do Banco do Sul até o cumprimento das exigências
relativas às normas técnicas em todas as questões de financiamento (LIMA, 2013).
Também na UNASUL, a criação do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura
e Planejamento(COSIPLAN), em 2009, contou com a liderança brasileira.
A iniciativa foi impulsionada pelo governo devido à sua dimensão estratégica, ao
propiciar investimento de recursos e de diferentes tipos de financiamento para os
projetos de infraestrutura na região (PADULA et al., 2015). O COSIPLAN também
implica o desempenho de uma liderança distributiva brasileira, visto que cabe à
potência regional ofertar bens coletivos na região.
Ainda no que tange à UNASUL, o CDS foi criado a partir de uma proposta
exclusivamente brasileira, como forma de ampliar a cooperação em defesa e
segurança, impulsionar a indústria de defesa e evitar a imposição da agenda de
segurança dos EUA no subcontinente. Destaca-se o contexto de criação do órgão:
logo após eclosão da crise entre Colômbia e Equador e dias após ser anunciada a
reativação da Quarta Frota no Atlântico Sul pelos EUA, tornando evidente a sua
dimensão estratégica (BATTAGLINO, 2012). No âmbito do CDS, o país também
teve papel importante ao atuar como estabilizador diante de algumas tensões,
como no reavivamento das relações diplomáticas entre Colômbia e Venezuela, em
2010, e na redução das tensões com os EUA sobre a utilização de bases militares
na Colômbia (VIGEVANI; ARAGUSUKU, 2014). Nessas ocasiões, a liderança
consensual/cooperativa/empreendedora se manifestou no desempenho brasileiro
de potência regional.
O ativismo regional brasileiro foi acompanhado pelo aumento da
internacionalização do capital nacional, refletido na presença de grandes empresas
na América do Sul, em setores de energia e infraestrutura (NEL; STEPHEN,
2010). Outra empresa que expandiu consideravelmente sua atuação na região
foi a Eletrobrás (PADULA et al., 2015). Também o BNDES teve papel central na
internacionalização das empresas brasileiras, provendo crédito para impulsionar
as exportações e os projetos de infraestrutura na região (COSTA, 2009). Como
consequência disso, a internacionalização das empresas brasileiras não deixa de
ser um traço da liderança do Brasil enquanto potência regional na América do
Sul, evidenciando um aspecto de liderança estrutural/distributiva.
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Conforme proposto por Nolte (2011) e destacado neste artigo, um dos aspectos
que caracteriza uma potência regional e fortalece sua posição enquanto tal é o
reconhecimento dos vizinhos a respeito da posição de liderança regional. Sendo
assim, diante do poder dos recursos materiais do Brasil, da sua participação ativa
nos organismos regionais, da busca pelo exercício da liderança na América do Sul
e da expansão de seu capital na região, a seção seguinte analisa como as potências
secundárias lidaram com o país e sua política regional ao longo do governo Lula.
Uma potência regional inconteste?
Na América do Sul, a Argentina é o país que historicamente procurou
equilibrar o poder brasileiro. Mesmo após superação do quadro de desconfiança
que permeava as relações até os anos 1980, a posição do país pode ser caracterizada
como ambivalente, variando entre cooperação e competição. Ao longo dos anos
2000, ao mesmo tempo em que ampliou a cooperação com o Brasil e fez parte
da construção de uma estrutura de governança regional, também firmou alianças
com terceiros para contrabalançar o peso brasileiro na região, como indica a
aproximação com a Venezuela durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner.
A busca por limitar o poder brasileiro se baseou em estratégias institucionais, como
no MERCOSUL, por meio da adoção de políticas protecionistas, e na UNASUL,
instituição na qual o ex-presidente Kirchner exerceu o cargo de secretário-geral
e onde a Argentina buscou atuar junto com o Brasil como mediador em crises
regionais. Assim, a Argentina adotou mecanismos de soft balancing e buscou
compartilhar a liderança regional brasileira no subcontinente.
É importante destacar que o país não apoia o pleito brasileiro por um assento
permanente no Conselho de Segurança (CS) da ONU, como representante da
América Latina. A Argentina integra o grupo Unidos pelo Consenso e propõe
que sejam estabelecidos membros semipermanentes (MALAMUD, 2012). Desse
modo, fez uso também de coalizões diplomáticas como forma de contrabalançar
o poder na região.
Todavia, não foi esse país quem mais ofereceu limitações ao exercício da
liderança regional brasileira nesse novo século, mas, sim, a Venezuela, que investiu
no fortalecimento das relações econômicas, buscando mudar o equilíbrio de poder
sul-americano. Na área energética, a empresa estatal de petróleo venezuelana,
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
Petróleos de Venezuela, S.A. (PdVSA), cooperou com a sua coirmã brasileira,
Petrobras, em busca de investimentos em recursos energéticos. Ademais, o Brasil
firmou inúmeros acordos garantindo o fornecimento de petróleo com condições
diferenciadas para países vizinhos (FLEMES, 2010). Na área política, o ativismo
ideológico de Chávez exerceu papel central em fase de ascensão de governos
progressistas, permitindo construir alianças políticas, que se refletiram, sobretudo,
na ALBA. Todavia, a liderança venezuelana manteve-se limitada na região, devido
às grandes diferenças políticas e ideológicas que possui com alguns países, além
das dificuldades internas que enfrenta em termos políticos, econômicos e sociais
depois da morte de Chávez.
A respeito do Chile, o país apoiou a liderança regional brasileira quando o Brasil
construiu consensos, limitando posições extremistas, como as da Venezuela. Por
outro lado, contestou tal papel quando houve tentativa de exercê-lo em assuntos
relacionados aos seus interesses, como no conflito com a Bolívia. No que tange à
área econômica, o Chile buscou se resguardar das negociações em bloco do lado
brasileiro, investindo nas relações bilaterais com o Brasil. A esse respeito, o país
tem uma política econômica distinta da brasileira, investindo em tratados de livre-
comércio (TLC) com EUA, outros países e blocos. Em nível global, o país apoia a
candidatura brasileira ao assento permanente no CS da ONU, mas tem uma posição
ambígua, pois apoiou o pleito, mas não o direito ao poder de veto no Conselho,
o que criou um problema de status para o Brasil na instituição (WHENER, 2011).
Historicamente, a Colômbia investiu na aliança extrarregional com os EUA e
tem uma baixa identidade regional que limita sua projeção de liderança na América
do Sul. No que tange ao relacionamento com o Brasil, os governos Álvaro Uribe
e Lula tiveram divergências em relação ao Plano Colômbia, visto que os países
compartilham cerca de 1.644 km de limites e o plano estabeleceu a presença militar
estadunidense na região fronteiriça. Todavia, apesar das diferenças existentes, os
governos ampliaram a cooperação na região amazônica, em segurança e combate
ao narcotráfico (ARCINIEGAS, 2015).
Como se pode perceber, o Brasil não é uma potência regional inconteste,
pois as potências secundárias possuem um comportamento ambivalente em
relação ao Brasil, variando entre a cooperação e a competição ou contestação
em temas específicos, fazendo uso de mecanismos de soft balancing. Frente a
tal cenário, o país buscou exercer de forma ativa a liderança na América do Sul,
embora tenha manifestado seu papel de diferentes formas, dependendo do tema
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e da instituição regional. Essa liderança variou entre as categorias de consensual,
cooperativa e empreendedora e de distributiva e estrutural, não sendo notável o
exercício de liderança normativa e intelectual. Todavia, muitos autores apontam
para uma limitação na disposição brasileira para o exercício do papel de potência
regional, devido a sua hesitação e mesmo falta de disposição para arcar com
os custos da integração econômica, energética e em infraestrutura. A crítica se
refere à falta de concessões financeiras e da adoção do papel de paymaster na
região (SPEKTOR, 2010; FLEMES, 2010). Não houve consenso interno, a despeito
da retórica governamental favorável, para a reversão das assimetrias produtivas
e comerciais na região com políticas efetivas. No caso da integração econômica,
some-se a dificuldade de estabelecer políticas regionais de desenvolvimento,
devido, entre outros problemas, aos TLCs, acordos de investimentos e de
propriedade intelectual que países como Colômbia, Chile e Peru possuem com
países fora da região, principalmente com os EUA (SANTOS, 2013).
Com efeito, existiram constrangimentos ao desempenho do papel de potência
regional do Brasil, mas, considerando os requisitos, entre os países sul-americanos,
o país é o que melhor se enquadra na definição. O enquadramento não é perfeito,
pois, como vimos, embora ele tenha os recursos materiais necessários, a disposição
para assumir a liderança, o seu exercício e o reconhecimento dos vizinhos são
quesitos muitas vezes limitados. Considerando os ajustes empreendidos na
política regional brasileira no governo Rousseff, a seção seguinte discute como
foi o exercício de liderança do Brasil como potência regional na América do Sul
durante seu mandato.
Brasil como potência regional no Governo Rousseff: limitações no
exercício da liderança
Rousseff foi eleita a primeira mulher presidente do Brasil. Sua gestão,
iniciada em 2011, até o seu afastamento após a aprovação do impeachment, em
agosto de 2016, compreende um período muito recente, mas pode-se afirmar
que a política externa para a América do Sul se caracterizou, por um lado, por
traços de continuidade e, por outro, por sua menor pró-atividade (SANTOS, 2013;
CORNETET, 2014; LESSA; CERVO, 2014). Inicialmente, os objetivos externos,
como a diversificação das parcerias com ênfase na cooperação Sul-Sul, o esforço
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
do fortalecimento da América do Sul como espaço geopolítico prioritário e a
pretensão de consolidar a liderança regional do Brasil para projetar seu poder em
nível global foram mantidos. No entanto, por outro lado, os esforços e os recursos
despendidos em política externa no governo Rousseff foram relativamente menores
(LESSA; CERVO, 2014; SARAIVA, 2014).
Sem dúvidas, a combinação das condições do cenário externo com a
complicação da situação econômica brasileira, resultantes de fragilidades não
enfrentadas anteriormente, explicam, em parte, o menor ativismo do Brasil
em assuntos de política externa e em termos regionais. As condições externas
se reverteram em razão do baixo crescimento da economia mundial pós-crise,
quando o nível de preços internacionais das commodities passou a apresentar uma
tendência de decréscimo. Com o agravamento da situação econômica doméstica,
crescimento pífio e inflação, a partir de 2013, os cortes de gastos públicos foram
inevitáveis. Consequentemente, o país foi menos propositivo internacionalmente,
uma vez que se reduziram os recursos orçamentários para ações desse gênero
(CORNETET, 2014; CASARÕES, 2016). Em paralelo, Rousseff também enfrentou
insatisfação popular com as manifestações de junho de 2013 (com o movimento
“não vai ter Copa”) e, adiante, aquelas relacionadas aos esquemas de corrupção
da Petrobras. Somou-se a esse cenário o agravamento da crise política, e novas
demonstrações públicas contra o governo, em 2015, com grupos demandando o
impeachment da presidente, aprovado em agosto de 2016.
A internacionalização das empresas brasileiras não foi interrompida, mas o
Brasil perdeu posições nos últimos anos, havendo uma redução considerável da
participação dos investimentos brasileiros na região, o que pode ser atribuído à
conjuntura econômica enfrentada pelo país e à desvalorização do real (CINDES, sem
data). Com isso, diversas iniciativas, mesmo quando financiadas pelo BNDES, não
foram concluídas. Inclusive, houve reações em vários países vizinhos às políticas
de exploração estatal de recursos primários realizadas pelo Brasil, que colocaram
em perigo a política brasileira de integração, com obstáculos sendo erigidos à
penetração de capitais e empreendimentos do país (LESSA; CERVO, 2014). Esses
foram os casos do Peru, em 2011, que suspendeu a licença provisória que uma
construtora brasileira tinha para erguer uma usina hidrelétrica, e na Bolívia, em
2013, onde a mesma empresa esteve no centro de outro impasse envolvendo a
população indígena em torno de uma obra em uma estrada em área de reserva.
Mesmo assim, houve ampliação do papel do BNDES no financiamento de projetos
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na região e no incremento da cooperação técnica regional (SANTOS, 2013). O Porto
de Mariel, em Cuba, e a extensão das linhas do metrô de Caracas, na Venezuela,
são alguns exemplos.
Com efeito, outros episódios mostraram uma diferença na percepção dos
vizinhos sobre o papel do Brasil como potência regional na gestão Rousseff. Na
Argentina, a preocupação passou a ser a desvalorização do real, elemento que
afetava o comércio bilateral. Os vultosos investimentos brasileiros recuaram desde
a reestatização da companhia petrolífera YPF pelo governo argentino, em 2012.
Grandes grupos empresariais brasileiros reconsideraram seus projetos no país e
alguns foram desativados (LESSA; CERVO, 2014). Em 2015, Maurício Macri, eleito
presidente, esperava que o Brasil mudasse a sua posição em relação ao governo
venezuelano de Nicolás Maduro, que havia assumido o posto em 2013, após o
falecimento de Chávez, por entender que a Venezuela havia transgredido a cláusula
democrática do MERCOSUL e deveria ser punido com a sua suspensão do bloco.
Apesar das suspeitas de fraudes nas eleições legislativas naquele país, Rousseff,
no entanto, rejeitou a proposta de Macri (EL PAÍS, [s.d.]).
A suspensão do Paraguai, em 2012, paralelamente à admissão da Venezuela
como membro pleno, revelou um contrassenso para a integração regional no
MERCOSUL. O então presidente paraguaio, Fernando Lugo (2008-2012), foi
vítima de golpe parlamentar de Estado. Como resposta, Brasil, Argentina e
Uruguai puniram o país com a suspensão do MERCOSUL e, diante da janela de
oportunidade, formalizaram o ingresso da Venezuela como membro pleno do
bloco (o que era obstaculizado pelo Paraguai) (LOPES, 2013). Em verdade, o
Brasil não demonstrou capacidade de antecipação e gestão da crise política que
se instalou no MERCOSUL.
No que diz respeito às relações com outros vizinhos, Paraguai e Uruguai,
cada vez mais insatisfeitos com a sua condição assimétrica no MERCOSUL,
apresentaram retração nas suas taxas de crescimento econômico e se mostraram
mais propensos a firmar acordos comerciais bilaterais com diferentes parceiros
no mundo. Com o Chile, a volta da presidente Michele Bachelet à presidência,
em 2014, levou ao fortalecimento das relações com o Brasil, que se tornou, em
2015, o terceiromaior parceiro comercial do país.
No que tange à Venezuela, Rousseff manteve o discurso de alinhamento,
afirmando, em 2011, que havia uma “parceria estratégica”. Mesmo assim, foi
perceptível que o governo brasileiro mudou a política para o país, marcada por
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O Brasil como potência regional: uma análise da sua liderança na América do Sul no início do século XXI
certo afastamento, além de que mostrou preocupação com os rumos da política
venezuelana, algo inédito até então. Em 2015, após o assassinato de um opositor
político do governo Maduro, o Brasil, unindo-se à UNASUL, condenou o uso de
qualquer tipo de violência que poderia afetar o bom desenvolvimento do processo
eleitoral, instando as autoridades venezuelanas a investigar os fatos e punir os
responsáveis.
As relações com a Bolívia também sofreram reveses. No primeiro semestre
de 2012, Evo Morales viu o Brasil oferecer asilo político ao senador oposicionista
Roger Pinto Molina na embaixada em La Paz e, contrariado com o gesto brasileiro,
não concedeu salvo-conduto para que o asilado pudesse se evadir do país, criando
uma situação desconfortável. Como saldo, Molina seguiu encarcerado, por mais
de um ano, na sede da missão diplomática brasileira. Em contraposição, Morales
também não facilitou a vida dos brasileiros detidos em Oruro, em fevereiro de
2013 (LOPES, 2013).
Com a Colômbia houve maior aproximação. Foram criadas missões com o
intuito de negociar acordos de facilitação de investimentos e acelerar a redução
de tarifas do acordo de complementação econômica em curso, além de realizados
acordos de cooperação em educação, pesquisa científica e desenvolvimento agrário,
além de um memorando de entendimento para o setor automotivo. O Brasil também
manifestou apoio ao processo negociador da Colômbia com as FARC.
O MERCOSUL não foi prioridade, mas sua defesa foi necessária para
administrar as relações do Brasil com países vizinhos. Os avanços apontaram
para áreas não comerciais e buscou-se espaços para a expansão industrial e o
desenvolvimento de infraestrutura (SARAIVA; GOMES, 2016). Porém, os obstáculos
ao comércio, concentrados no eixo Brasil-Argentina, foram mantidos. Mesmo com
desencontros, o bloco seguiu uma perspectiva de ampliação. Além da Venezuela, a
Bolívia solicitou a entrada no bloco também como membro pleno sem abandonar
a Comunidade Andina. Guiana e Suriname assinaram acordos de associação
(SARAIVA, 2014). Na UNASUL, houve um importante avanço representado pela
discussão em torno do Registro de Gastos em Defesa, acordado em junho de 2012
na instância executiva do CDS, além de um projeto industrial e de defesa regional
(MARIANO; RAMANZINI; ALMEIDA, 2014).
Dado que, na prática, os países sul-americanos favoreciam a ideia de
autonomia e de soberania sobre o território nacional, convergiram interesses e
ideologias muito diferentes entre eles (VIGEVANI; RAMANZINI, 2014), tendência
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que foi reforçada com a volta de eleições de presidentes de centro-direita na região.
Mesmo a CELAC teve dificuldades em acomodar as diferenças existentes entre os
países latino-americanos. Na verdade, os vínculos brasileiros com países vizinhos
estabelecidos e ramificados por diferentes esferas se sobrepunham.
A criação da Aliança do Pacífico não foi recebida de forma consensual pela
diplomacia brasileira (LESSA; CERVO, 2014). Assim como a ALBA, ela espelhou
divergências acerca de integração e comércio, por mais que líderes políticos
afirmassem a conveniência da concertação entre todos os órgãos regionais. Ainda
pairavam sobre a América do Sul o avanço das negociações da TPP, dos TLCs,
do Acordo de Livre Comércio de Serviços (SEVERO, 2015) e os discursos das
grandes potências apontando que o Brasil estava afastado das oportunidades dos
mega-acordos comerciais em função da sua insistência em apostar no MERCOSUL.
A resposta brasileira foi enfática: em 2015, o país ofertou três Acordos de
Cooperação e Facilitação de Investimentos ao México, à Colômbia e ao Chile a fim
de dinamizar a entrada de investimentos brasileiros no país (CASARÕES, 2016).
Apesar dos limites enfrentados ao longo do período, a rede de instituições
construída no decorrer dos mandatos de Lula não foi posta em xeque e seguiu
sendo considerada um instrumento importante no campo da cooperação regional.
A despeito dessa profusão, o crescimento do volume de comércio na América do
Sul foi muito pequeno desde 2011 (WTO, 2016).
Os motivos apontados implicaram limitações ao desempenho do papel de
potência regional do Brasil se comparado ao governo anterior. O país conservou
os recursos materiais que permitiram defini-lo como potência regional, mas, no
campo da liderança, percebem-se claros sinais de enfraquecimento no que tange
tanto às modalidades consensual, cooperativa, empreendedora, como estrutural
e distributiva e normativa e intelectual. A fragilidade doméstica e a reversão de
condições externas tiveram reflexos diretos para as ações brasileiras direcionadas à
promoção dos seus interesses no âmbito da região e as condições para o exercício
da liderança ficaram comprometidas. Consequentemente, o país não conseguiu
se posicionar como elo integrador regional e liderar a construção de um espaço
geopolítico autônomo como na gestão anterior.
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Conclusões
A partir da discussão da atuação do Brasil como potência regional e da
sua liderança na América do Sul nos governos Lula (2003-2010) e Rousseff
(2011-2016), foram apresentadas evidências de tal exercício na esteira da nova
dinâmica geopolítica que se estabeleceu na região a partir dos anos 2000. O país
se empenhou em liderar a construção de um espaço político, econômico e de
segurança autônomo, buscando projeção externa através da cooperação Sul-Sul
com seus vizinhos.
Dado que o Brasil pode ser considerado uma potência regional em razão
dos fatores expostos, a metodologia empregada para a discussão de liderança,
concepção bastante contestada na literatura sobre o tema, pautou-se em um
conjunto de conceitos que elegeram elementos classificatórios para uma liderança
regional. Em seguida, a discussão se concentrou em mostrar fatos que credenciaram
a liderança regional brasileira no governo Lula como cooperativa, consensual e
empreendedora e também estrutural e distributiva, a partir da análise detalhada
acerca da atuação política nos processos de integração regional, do engajamento
cooperativo na região, da maneira como as potências secundárias reagiram, a
despeito da não incontestabilidade da liderança brasileira, e do seu posicionamento
frente aos EUA.
Diante da fragilidade doméstica e da reversão das condições externas, no
governo Rousseff, a política externa do Brasil para a região se caracterizou por
traços de continuidade, embora com perfil de menor pró-atividade. Em vista disso,
houve limitações ao desempenho do papel do Brasil como potência regional e
menor capacidade do exercício de liderança se comparado ao governo Lula.
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