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Samuel Alves Soares, Marina Gisela Vitelli
Comunidades epistêmicas e de prática
em defesa na Argentina e no Brasil:
entre a organicidade e a plasticidade
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Epistemic and practice defense
communities in Argentina and Brazil:
between the organic and plasticity
DOI: 10.21530/ci.v11n3.2016.510
Samuel Alves Soares
2
Marina Gisela Vitelli
3
Resumo
Amparado em uma discussão conceitual sobre comunidades epistêmicas e sobre comunidades
de prática, é objetivo do texto tratar de analisar a condução política das questões militares e
de defesa na Argentina e no Brasil. Comunidades epistêmicas referem-se a grupos de pessoas
com conhecimento socialmente legitimado que atuam junto a Estados para produzir políticas,
enquanto as comunidades de prática aludem aos saberes e fazeres orientados, em última
instância, para a busca de transformações nas estruturas sociais. Apresentados e desenvolvidos
os conceitos, voltamo-nos para os casos em tela, discorrendo sobre cada um deles, para
então indicar as diferenças de posturas nos dois países. Enquanto na Argentina formou-se
uma comunidade epistêmica que influiu sobre os contornos fundamentais da política de
defesa no retorno da democracia, no Brasil não surgiu um ator semelhante, ainda que se
argumente o surgimento de uma comunidade de prática, uma protocomunidade epistêmica.
Ainda que dissonantes, os dois países vêm produzindo ações e visões compartilhadas que
fortalecem mecanismos de cooperação na área.
Palavras-chave: Argentina; Brasil; Defesa; comunidades epistêmicas; comunidades de prática.
1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no XIII Congresso da Brazilian Studies Association, em 2016.
2 Professor Livre-Docente da Universidade Estadual Paulista-UNESP, professor do Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) do qual é coordenador, pela UNESP
e do curso de Relações Internacionais da mesma instituição. Pesquisador do Grupo de Estudos em Defesa e
Segurança Internacional (GEDES/UNESP). Coordenador do Grupo de Elaboração de Cenários Prospectivos da
UNESP. Pesquisador 2 do CNPq.
3 Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-
PUCSP), Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Doutora em Relações
Internacionais pela Universidad Nacional de Rosario.
Artigo submetido em 29/08/2016 e aprovado em 15/11/2016.
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Comunidades epistêmicas e de prática em defesa na Argentina e no Brasil [...]
Abstract
Based on a conceptual discussion of epistemic communities and communities of practice,
this article aims to analyze the political leadership over military affairs and defense in
Argentina and Brazil. Epistemic communities refer to groups of people in possession of
socially legitimated knowledge, who work with governments to produce policies, while
communities of practice allude to knowledge and action oriented, ultimately, to the search
for changes in social structures. After presenting and developing the concepts, we turn to
the cases, approaching each of them, and afterwards we point out some differences in terms
of each country’s outcomes. While an epistemic community emerged in Argentina, with
influence over the basic outlines of defense policy, a similar actor did not developed with the
return of democracy in Brazil, although we argue about the emergence of a community of
practice, an epistemic proto-community. In spite of having gone through different processes,
both countries have developed shared visions and actions that strengthen cooperation
mechanisms in the area.
Keywords: Argentina; Brazil; Defense; epistemic communities; communities of practice.
Introdução
Tanto na Argentina quanto no Brasil, os assuntos relativos às políticas de
defesa têm ganhando espaço nas agendas de pesquisa de sociologia, ciência política
e relações internacionais na última década. Aos estudos sobre os processos de
transição à democracia desde os autoritarismos, seguiram outros trabalhos sobre
o grau de sucesso alcançado pelas mudanças institucionais em favor da condução
política (DIAMINT, 2008; SAÍN, 2010; WINAND; SAINT-PIERRE, 2010), a relação
entre a política de defesa e a política exterior dos governos democráticos (SAINT-
PIERRE, 2010). Junto a trabalhos focados em um dos dois países, foram feitos
também estudos em chave de comparação, contrastando semelhanças e diferenças
em relação a questões como culturas estratégicas (SOARES; SOPRANO, 2014), as
agendas políticas e acadêmicas (POCZYNOK, 2011).
No contexto dessa bibliografia, este trabalho se insere na discussão sobre
os elementos que diferenciam as experiências pós-autoritárias dos dois países,
especificamente no que se refere aos atores das respectivas políticas de defesa.
Dentro do amplo grupo de estudos sobre o assunto, na Argentina tem se colocado
o foco na participação de assessores parlamentares, envolvidos ao mesmo tempo
em foros de discussão e pesquisa acadêmica (LALEFF ILIEFF, 2012; SOPRANO,
2012a; SOPRANO, 2012b; SOPRANO, 2013; VITELLI, 2015a). No Brasil, há análises
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voltadas para avaliar o grau de condução política da defesa (WINAND; SAINT-
PIERRE, 2010) ou o afastamento entre a política externa e a política de defesa
(ALSINA JR, 2003), evidenciando o distanciamento de atores das definições mais
centrais nesse campo.
Tendo em consideração os avanços e os desafios pendentes nessas agendas
de pesquisa, o objetivo deste texto é retomar os processos de condução das
questões militares e da defesa de Argentina e Brasil a partir das concepções de
comunidades epistêmicas, em primeiro plano, e subsidiariamente das comunidades
de prática. A primeira opção é justificada porque é possível identificar atores,
posições, interesses, crenças compartilhadas entre os membros comunitários – com
base em uma organicidade construída – tal como se argumenta ser a situação da
Argentina. Já as comunidades de prática caracterizam-se por maior plasticidade
se comparadas conceitualmente às comunidades epistêmicas. Busca-se sustentar
que tal é o caso do Brasil.
O texto está organizado em seis seções. Na primeira nos ocupamos de
aprofundar o conceito de comunidades epistêmicas, procurando tensioná-lo na
medida de seu uso mais restritivo, para na sequência indagar sobre o alargamento
conceitual. A terceira seção remonta ao caso argentino, a quarta ao brasileiro.
À guisa de conclusão, colocamos frente à frente os dois casos, para então
traduzi-los em suas especificidades.
Os princípios do conceito: maior peso da visão científica
Ainda que seja possível rastrear o conceito de comunidades epistêmicas em
trabalhos de John Gerard Ruggie (1975) e de Ernst Haas (1978), foi ao final dos anos
1980 e em princípios dos anos 1990 que esta conceitualização surgiu nos debates
em relações internacionais, dando lugar a um conjunto de pesquisas empíricas que,
em maior ou menor medida, dedicavam-se aos grupos de especialistas envolvidos
em processos de coordenação internacional de políticas.
De maneira clara, o desenvolvimento do conceito se dinamizou em 1992,
a partir da publicação do volume dedicado ao tema na revista International
Organization, um dos mais importantes fóruns de discussão sobre teoria das
relações internacionais em geral e sobre cooperação e regimes internacionais
em particular. Foi nesse contexto que se analisou o papel desempenhado por
especialistas em posição de negociação nos Estados na construção de regras
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internacionais para assuntos de grande complexidade técnica. Não constituem mera
casualidade que os estudos de caso publicados no número 1 do volume 46 da citada
revista trataram do controle de armas estratégicas, da regulação internacional de
emissão de clorofluorcarbonos e do sistema monetário internacional do pós-guerra.
Na publicação, coordenada por Peter M. Haas, junto com outros trabalhos
subsequentes, houve a apresentação de uma perspectiva restritiva ao conceito,
tão logo discutida por outros trabalhos com novos enfoques. Os questionamentos
principais orientavam-se para interrogar até que ponto seria correto equiparar
comunidades epistêmicas a grupos de cientistas, transmitindo a ideia de que
o conceito designa comunidades de especialistas das ciências exatas, com
vinculação prioritária com o âmbito acadêmico. Outras críticas arguiram sobre
as implicações das primeiras conceitualizações com respeito à relação que existe
entre tais comunidades e os governos. Dessa forma, surgiam perguntas como:
as comunidades epistêmicas atuam como consultores externos? Qual é a relação
com as burocracias especializadas do Estado? Pode uma comunidade epistêmica
existir no interior do aparato estatal e ainda conservar sua essência conceitual?
Tal como explicou Haas, o enfoque sobre comunidades epistêmicas se baseia
no pressuposto de que a identificação e reconhecimento de interesses dos Estados
derivam de como os decisores, ou seus assessores, entendem os problemas em
situações caracterizadas por incertezas. É desta maneira que os Estados estabelecem
a amplitude de ações consideradas apropriadas em áreas que impliquem na
formulação de políticas. (1992, p. 2).
Em função do exposto, e segundo a define Haas, uma comunidade epistêmica
é “uma rede de profissionais que possuem reconhecida expertise e competência
sobre um tema determinado e que reclamam autoridade sobre um conhecimento que
é relevante para a formulação de políticas vinculadas a esse tema ou campo” (1992,
p. 3). Concretamente, o conceito buscava responder à crescente participação de
especialistas na formulação de políticas domésticas com repercussão internacional,
em um contexto sistêmico marcado por incertezas relativas aos impactos das
decisões estatais, produto da interdependência e da crescente complexidade das
questões. Tais temas, em virtude de sua alta tecnicidade, tornavam imprescindível
aos decisores recorrer a especialistas para o assessoramento prévio à formulação
de políticas.
Haas (1992) propôs quatro elementos como definidores das comunidades
epistêmicas. No que concerne às ideias compartilhadas com o grupo, essas se
dividem em crenças causais e crenças sobre princípios ou normas. Ainda que as
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primeiras sejam do tipo analítico, produto do conhecimento gerado em relação
às problemáticas do domínio da comunidade, as quais servem para “elucidar as
múltiplas vinculações entre ações de política e resultados desejados”, as segundas
são de tipo normativo e “provêm uma base lógica fundada em valores para a ação
dos membros”. Por sua parte, o conjunto de critérios de validez se referem aos
pressupostos metodológicos da comunidade epistêmica, definidos intersubjetiva
e internamente para produzir consensos sobre as maneiras apropriadas nas quais
se origina e se desenvolve o conhecimento comum. Finalmente, a comunidade
epistêmica se caracteriza por compartilhar uma meta, um propósito relacionado
com a ação, a qual Haas descreve como “um conjunto de práticas associadas a
uma série de problemas para os quais se enfoca a competência da comunidade”,
valorizado como um aporte para a melhoria do bem-estar social (1992, p. 3). Para
permitir distinguir a comunidade epistêmica de outro tipo de grupos, como os
grupos profissionais, os grupos de interesses e as agências burocráticas, torna-se
necessário identificar a totalidade dos quatro elementos.
Outro importante aporte conceitual desenvolvido no referido volume da
revista foi o estudo de caso escrito por Adler sobre uma “comunidade epistêmica
de controle de armas estratégicas”, no qual o autor apresenta cinco dimensões para
estudar o agir dessas comunidades. As primeiras delas são as unidades de variação,
definida pelo autor como “testes de novas variantes conceituais, interpretações
e significados baseados em expectativas, as quais circulam nas comunidades
políticas e acadêmicas”
4
. A dimensão seguinte é a inovação, que se refere tanto aos
processos pelos quais as comunidades de intelectuais “empacotam” essas unidades
de variações e disso criam um entendimento coletivo sobre o tema em questão
(ADLER, 1992, p. 104), como também aos conceitos que surgiram desses processos,
as inovações intelectuais. Tal dimensão ressalta as atividades desenvolvidas por
comunidades epistêmicas vinculadas à criação de um novo pensamento, que em
ocasiões supõe, mais que o surgimento de um novo conhecimento, a vinculação
de ideias novas e velhas ou a ressignificação do pensamento tradicional a partir
de novas combinações de ideias preexistentes.
Em terceiro lugar, considera a seleção, isto é, os processos políticos que
determinaram quais políticas foram efetivamente adotadas por um governo. Os
decisores traduzem em políticas concretas as ideias da comunidade epistêmica que
4 Consideramos que um elemento importante a ser considerado nessa dimensão é a identificação de entendimentos
do pensamento estabelecido questionados pela comunidade, confrontando-os com os argumentos incipientes
do grupo, ao tempo que se assinalam as ações contextuais que afetaram a evolução do pensamento.
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passaram pela prova dos interesses desses decisores, como também pelos filtros
da dinâmica da política doméstica. A comunidade epistêmica alcança influência
mediante uma atividade de lobby, de persuasão sobre a validade de suas ideias
(1992, p. 124). A seleção política também implica que os membros da comunidade
epistêmica podem ser recrutados para ocupar postos em um governo, como
também podem ser criadas agências novas que se dedicam à temática abordada
por uma comunidade epistêmica, se essa ainda não exista.
Passando ao nível externo da atuação das comunidades epistêmicas, Adler
define a variável da difusão, a qual põe em destaque a transmissão das expectativas,
os valores e outros tipos de ideias sobre outras nações, tanto por meios diretos
(propostas de negociação, encontros de cúpula, conferências técnicas e foros
científicos) como indiretos (declarações, debates, audiências legislativas, artigos
na imprensa e publicações acadêmicas). Finalmente, as unidades de modificação
efetiva destacam “o comportamento normativo padrão entre dois ou mais Estados
que resultam em parte devido à inovação, à seleção e à difusão de expectativas”
(ADLER, 1992, 105). De outro modo, nessa variável se percebe como as ideias
geradas por comunidade epistêmica e eleitas pelo poder político doméstico, a partir
da difusão internacional ou bilateral, se corporificaram em acordos, mecanismos
e instituições de cooperação.
Certamente, tal esforço conceitual de Adler contribuiu para um melhor
entendimento do fenômeno social que se designa através do conceito “comunidade
epistêmica”, sublinhando o seu lado mais dinâmico. Precisamente, o aporte que
realizam permite sustentar o processo que ocorre entre dois atores: a comunidade
epistêmica e a classe política que adota a visão impulsionada pela primeira.
Nesse sentido, entendemos que, metodologicamente, mais que variáveis, tais
elementos deveriam ser entendidos como ferramentas para um estudo de process-
traicing (COLLIER, 2011), isto é, rastrear um processo causal com uma sequência
cronológica, mostrando a vinculação concreta entre tais variáveis – parte da cadeia
causal proposta pela teoria.
A ampliação do conceito: a possibilidade de uma comunidade
epistêmica da defesa
Levando em conta que, no seu surgimento, o conceito foi utilizado para
analisar a participação de cientistas, nas políticas nacionais e processos de
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barganha internacionais sobre assuntos de alta tecnicidade, surge o questionamento
sobre a sua validade para estudar os atores da política de defesa, um assunto
eminentemente político. Importa deixar claro que a concepção restrita do que
é uma comunidade epistêmica não surgiu dos trabalhos de Haas, mas sim dos
estudos de caso que se seguiram a sua conceituação. Não obstante, as discussões
críticas sobre a visão restrita das comunidades epistêmicas em geral referenciaram-
se aos trabalhos do autor. Entre tais aportes críticos, destacamos dois trabalhos:
o de Andreas Antoniades (2003) e o de Mai’a Davis Cross (2013). O fundamental
da redefinição do conceito decorreu do questionamento da associação entre
comunidade epistêmica e conhecimento científico, entendido como vinculado às
ciências exatas e ao âmbito acadêmico-universitário, como também foi repensada
a noção de incerteza e a necessidade de considerar a comunidade epistêmica como
algo separado do governo. Abordaremos na continuação tais reflexões.
Em seu trabalho “Comunidades Epistêmicas, Epistemes e a Construção da
Política (mundial)”, Antoniades sustentou que, longe de caracterizar-se pelos
cânones de cientificidade, o que importa é o conhecimento que se torna relevante
para comunidades ou socialmente reconhecido, independente de seu caráter
científico, no sentido indicado, ou não. Chegou a essa conclusão destacando
uma dimensão de tais comunidades que havia sido deixada de lado nos estudos
anteriores: a dimensão normativa do epistêmico, vista desde a relação entre poder
e saber proposta por Michel Foucault e a teoria construtivista.
Assim, ainda que reconheça a relevância de estudar a maneira como as
comunidades epistêmicas ad hoc – coalizões que buscam a resolução de um
problema particular – influem sobre os processos de formulação de determinadas
políticas, para entender a construção e a mudança da política mundial é necessário
reconhecer a existência de comunidades de pensamento (thought communities)
“organizadas por redes baseadas em conhecimento reconhecido, cujos membros
compartilham um entendimento comum sobre um problema particular ou uma
cosmovisão e buscam transformar suas crenças em discurso e em prática social
dominante” (ANTONIADES, 2003, p. 26).
São várias as implicações de tal distinção. Em primeiro lugar, supõe separar
o conceito do requisito de cientificidade do conhecimento. Ao sublinhar o
reconhecimento social da autoridade do saber próprio da comunidade epistêmica,
Antoniades enfatiza a vinculação entre o grupo e o contexto social em que atua.
Trata-se de uma autoridade reconhecida pela sociedade em que essa comunidade
está enraizada e não em virtude de uma adequação a um método particular.
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Destarte, a legitimidade do conhecimento provém do contexto externo, não da
adesão no âmbito interno a um conjunto de regras e métodos. Por outro lado,
a proposta do autor permite pensar em comunidades epistêmicas em sentido
holístico, na medida em que buscam o estabelecimento e a perpetuação de crenças
e visões em discursos sociais permanentes, oferecendo como um possível exemplo
a comunidade epistêmica dos economistas keyenesianos.
O autor esclarece que na prática ocorre uma superposição das comunidades
epistêmicas ad hoc e holísticas, ressaltando que essas últimas transmitem a
ideia central de seu argumento: que o conceito de comunidades epistêmicas
serve para conhecer o papel dessas na construção da política mundial. São, em
última instância, comunidades de poder. Tal construção ocorre em dois níveis
interligados: um de caráter cognitivo, a produção da realidade da política mundial;
e outro de caráter prático, que é a maneira particular na qual influem sobre a
formulação de políticas específicas. Decerto o primeiro nível é o mais fundamental,
e seguindo uma lógica eminentemente construtivista, o nível cognitivo implica o
controle sobre o fator-chave das interações sociais: o conhecimento socialmente
reconhecido, que habilita o poder de impor discursos. Tal como adverte o autor,
não se pode perder de vista que – a partir de suas crenças normativas e de seu
conhecimento especializado – as comunidades epistêmicas desejam influir sobre
a realidade social, “uma vontade que é constitutiva de sua existência”, o que para
Antoniades constitui a dimensão normativa da ação das comunidades epistêmicas
(2003, p. 30).
Davis Cross coincide com Antoniades e agrega um fator adicional. Por um
lado, a autora entende que o importante é que haja um reconhecimento social da
legitimidade desse conhecimento, como sucede com o saber próprio de autores não
cientistas como os diplomatas, os juízes, os oficiais militares e os especialistas em
defesa
5
. Por outro lado, o aporte da autora, que se deixa entrever nessa passagem,
é que a chave é o profissionalismo, não a ciência. Tal característica é entendida
pela autora como uma qualidade interna da comunidade que contribui para o seu
grau de coesão, um fator-chave para a possibilidade de influir sobre as políticas
que essa comunidade possa alcançar.
5 A autora assinala como exemplo os altos oficiais militares que participam de academias com projeção internacional,
como West Point ou a Escola das Américas. Essas têm o potencial para transformar-se em comunidades
epistêmicas, sempre e quando se proponham a perseguir objetivos de políticas baseando-se em suas normas
profissionais compartilhadas e na sua expertise. Somente é possível identificar tal aspecto se é adotado um
conceito amplo de conhecimento especializado, isto é, não necessariamente científico.
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Sobre essa base, Davis Cross formula uma definição em termos mais amigáveis
que os utilizados por Haas: “Em outras palavras, as comunidades epistêmicas
são redes de especialistas que persuadem a outros sobre suas crenças causais e
metas de políticas compartilhadas, em virtude de seu conhecimento profissional”
(DAVIS CROSS, 2013, p. 142)
6
.
Em síntese, ainda que o que outorga especificidade e caráter explicativo ao
conceito de comunidades epistêmicas é o quanto e como especialistas conseguem
influir sobre a formulação de interesses estatais em virtude de contar com um
conhecimento reconhecido como válido, isso não constitui razão para assumir
que atores com conhecimento especializado não científico não possam ser
igualmente persuasivos, e ainda operar de acordo com critérios iguais ou similares
aos científicos.
Finalmente, com respeito ao tipo de vinculação estabelecida entre os
especialistas e os governos, Haas (1992) havia sustentado que tais redes de
especialistas são consultadas pelos atores governamentais, que selecionam
politicamente os entendimentos advindos coletivamente dos membros da
comunidade epistêmica. Todavia, nessa afirmação não estava claro um aspecto que
se tornou evidente mais tarde: que em certas ocasiões as comunidades epistêmicas
não permaneciam totalmente fora do Estado, senão que com ele estabeleciam uma
relação de sinergia importante. Antoniades (2003) apontava que há situações em
que ondas se consolidam no interior de uma burocracia, seja esta local, nacional
ou transnacional, produzindo a institucionalização de sua influência no processo
de formulação de políticas. Podem ter ainda um envolvimento indireto, quando
atuam como consultores, assessores e fontes de informação, situação em que
influem sobre a definição da agenda ou mudam a forma com que os temas já
existentes sejam conceituados.
Por sua parte, Davis Cross sustenta que o importante é identificar que tipo
de sinergia ocorre entre os governos e as comunidades de especialistas. Destaca
inclusive que em certos momentos as comunidades epistêmicas estão localizadas
6 O componente de companheirismo ou espírito de corpo foi destacado como indicador por Davis Cross, que põe
a ênfase no grau de profissionalização dos membros da comunidade, assim como nos elementos de socialização
compartilhados, entendidos como indicadores da coesão interna do grupo, um elemento que a autora relaciona
diretamente com o grau de influência sobre as políticas que tais comunidades podem exercer. Destarte, Davis
Cross propõe interrogar-se sobre se as relações profissionais atingem patamares além daqueles dos papeis
burocráticos formais: se esses membros somam um alto grau de expertise em suas posições institucionais; e se
compartilham experiências de aprendizagem e treinamento; se se reúnem fora do trabalho, de maneira informal
(2013, p. 154).
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no interior das estruturas de governo, embora ainda conservem sua independência.
Essas situações podem incrementar suas chances de influência sobre as políticas
e, ainda mais, a participação no interior do governo pode mesmo servir de origem
às comunidades epistêmicas.
Evitar o alargamento conceitual
Consideramos fundamental encontrar um equilíbrio entre, por um lado,
a necessidade do refinamento conceitual e, por outro, o risco de cair em uma
associação excessivamente estreita entre as comunidades epistêmicas e as
comunidades científicas. O trabalho de definição conceitual é importante para
tornar menos equívocos os fenômenos sociais designados por um conceito, já que
existem outros atores coletivos com participação nas dinâmicas da cooperação
internacional, com similitudes e diferenças.
Assim sendo, sustenta-se que as comunidades epistêmicas podem estar
estabelecidas dentro de um Estado, porém cabe indagar como distingui-las de um
grupo burocrático regular. De forma similar, seguindo-se a Davis Cross, em que
medida o profissionalismo é uma variável crucial para entender essas comunidades?
Como evitar confundi-las com as profissões? Propondo-se priorizar as crenças
normativas, as visões de mundo, que diferenças há em relação a um partido
político, a uma ideologia como as das advocacy networks?
7
Se o fundamental é o
momento do conhecimento, que critério tomar para não as igualar à comunidade
acadêmica, algo que usualmente acontece devido à familiaridade dos termos?
Em primeiro lugar, é útil aclarar que o conceito designa um grupo de
pessoas “de carne e osso”, isto é, deve ser possível identificar cada um de seus
membros, distinguindo o nível de participação nas atividades do grupo, ou o
grau de reconhecimento de cada um por parte de outros atores, sua permanência
dentro do grupo ou a diversidade de afiliação institucional, podendo essa,
inclusive, ser múltipla. Uma comunidade epistêmica pensada como um conjunto
7 Margaret Keck e Kathryn Sikkink definiram as Transnational Advocacy Networks como “redes de ativistas,
distinguíveis em grande parte da centralidade que têm as ideias e os valores na motivação de sua criação”.
Tais redes incluem “atores que trabalham internacionalmente sobre uma problemática, unidos por valores
compartilhados, um discurso comum e intercâmbios densos de informação e serviços”. Essa interação centrada
no intercâmbio de informação reforça “a capacidade de atores internacionais não tradicionais para mobilizar
estrategicamente informação com o fim de criar novas questões e categorias e persuadir, pressionar e obter
influência sobre outras organizações e sobre os governos” (KECK; SIKKINK, 1999, p. 89).
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de pessoas tem um início no tempo, apesar de que se pode rastrear antecedentes
não comunitários.
Em segundo lugar, como se indicou anteriormente, trata-se de um grupo
de pessoas que possui um conhecimento socialmente reconhecido, o qual é
produzido, reproduzido e modificado a partir de instâncias de interação nas
quais participam esses membros de maneira mais ou menos regular. Em função
de tal elemento epistêmico, a referência é sobre práticas associadas à reflexão,
à pesquisa, à discussão e à publicação de resultados, todas entendidas em sentido
amplo, isto é, não necessariamente devem coincidir com os cânones das atividades
científicas, como a realização de projetos de pesquisa estruturados e a publicação
em periódicos científicos.
Certamente, esse conhecimento é crucial para o conceito de comunidades
epistêmicas e, seguindo Haas (1992), está conformado por crenças causais – ideias
sobre as relações entre determinadas causas e determinados efeitos em uma área
de ação política – e outro tipo de ideias mais normativas: como deveriam ser as
políticas para obter o bem-estar da sociedade. Essa conceituação é fundamental
para diferenciar as comunidades epistêmicas de outros coletivos. Por um lado,
as crenças surgem de seu conhecimento e não de seus interesses ou ideais.
A diferença com os segundos é que são crenças que passaram pela prova da
reflexão e da discussão sem condicionalidades nem dogmas durante as instâncias
já descritas. Conservam, portanto, um elemento relativo a princípios éticos,
porém esses são difíceis de separar das crenças causais. Por outro lado, o que
as diferencia de fenômenos sociais que podemos denominar como “correntes de
pensamento” é o grau de profissionalização e de interação das comunidades, ainda
que tais correntes a priori possam não cumprir tal requisito. Por exemplo, pode-
se dizer que a política exterior de tal presidente se inspirou em um pensamento
autonomista e, a de outro, no neoliberalismo. Ambas são conjuntos de crenças
causais e normativas, mas não necessariamente indicam a existência de um grupo
de pessoas organizadas para atuar com o propósito de influir sobre a orientação
externa de um governo. Esta é uma pergunta empírica que deverá ser respondida
com uma pesquisa concreta.
Contudo, se é importante entender que as comunidades epistêmicas possuem
crenças normativas, um propósito orientado ao bem-estar geral e um grupo de
pessoas interagindo, como diferenciá-las das advocacy networks? A chave está em
que essas crenças e esse propósito são inseparáveis desse conhecimento socialmente
reconhecido, surgido e trabalhado em instâncias ligadas ao cognoscível. As advocacy
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networks, pelo contrário, realizam atividades mais similares à dos lobbies – neste
caso, lobbies humanitários –, baseadas na comunicação e no convencimento em
lugar da busca por contrastar teorias. Claramente, as comunidades epistêmicas
não são lobbies porque esses defendem interesses particulares, enquanto que
as aspirações das primeiras, fundadas em seu conhecimento específico sobre
determinados temas, estão ligadas a resultados benéficos para a sociedade.
Por último, consideramos que, por vezes, as comunidades epistêmicas se
formam ou existem no interior do Estado, mas, ao contrário das burocracias, tal
pertencimento não é constitutivo do conceito, como são os tipos de crenças e o
propósito comum. As comunidades epistêmicas podem ou não tomar parte de
uma burocracia estatal, internacional ou transnacional. O que faz a diferença é
a capacidade de influir sobre as políticas.
Uma comunidade epistêmica argentina da defesa
Em trabalhos anteriores sustentamos que a política de defesa argentina
posterior à restauração da democracia em 1983 não pode ser entendida separada da
existência de uma comunidade epistêmica (VITELLI, 2015a; VITELLI, 2015b). Tal
comunidade se formou pela ação de um conjunto de atores políticos – acadêmicos
e militares – com o propósito fundamental de dar lugar a uma política de defesa
democrática. Depois de décadas de interrupções da ordem constitucional sob o
controle das Forças Armadas, os partidos políticos, os militares não comprometidos
com os crimes do “Proceso” e os acadêmicos que se aproximavam pela primeira
vez da temática da defesa foram constituindo um coletivo em torno de ideias
causais e normativas e à meta antes mencionada.
Ainda que a defesa não constitua um tema tecnicamente complexo, na
Argentina de 1983 a incerteza e a complexidade eram os dados fundamentais
da realidade política. A guerra das Malvinas e a queda do governo do “Proceso”
deixavam duas prioridades claras: a construção da governabilidade democrática
e a reinserção da Argentina na política internacional. Para o primeiro desafio,
era fundamental reformular as relações civis-militares de maneira que as Forças
Armadas nunca mais atuassem como um condicionante da vida política do país.
No que se refere ao seu lugar na comunidade internacional, a Argentina deveria
negociar seu retorno desde um lugar de desprestígio construído a partir das
violações dos direitos humanos e da invasão das ilhas do Atlântico Sul.
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Samuel Alves Soares, Marina Gisela Vitelli
Em função deste cenário, tanto o radicalismo, desde seu papel de governo,
como o peronismo, desde seu lugar de oposição, se envolveram internamente
em um processo de reflexão sobre a relação que deveria estabelecer-se entre civis
e militares, assim como a orientação da política de defesa em relação aos seus
vizinhos e ao mundo
8
. Tais debates foram levados ao Congresso por ocasião das
negociações da Lei de Defesa Nacional, aprovada em 1988. Junto aos legisladores,
os que assessoravam o processo, e que argumentavam em favor de uma ou outra
concepção sobre a defesa na democracia, foram convertendo-se em autênticos
especialistas, alguns aproveitando seu passado militar, outros, pela sua formação
em direito, sociologia ou ciência política
9
. O debate não se circunscreveu ao
recinto parlamentar: os legisladores e suas equipes de assessores participaram –
e em certas ocasiões organizaram – de múltiplos eventos acadêmicos de reflexão
e pesquisa sobre a questão militar, instâncias tanto nacionais como de alcance
internacional, atividades a partir das quais foram se transformando nos detentores
de um conhecimento especializado, socialmente reconhecido
10
.
O governo radical se aliou com um setor do justicialismo conhecido como
peronismo renovador, em função da convergência relativa à crítica à doutrina de
segurança nacional, formulação importada que estabelecia como prioridade das
Forças Armadas o combate às derivações domésticas do conflito entre o capitalismo
e o comunismo, um conflito total, permanente e sem fronteiras. Todas as forças
da nação deviam estruturar-se com base no combate ao inimigo do Ocidente, até
mesmo quando encarnados em cidadãos do país, fazendo desaparecer os limites
entre a defesa externa e a segurança interior. A doutrina da segurança nacional e
suas implicações para a vida política do país e para o pensamento estratégico das
forças armadas constituem a principal unidade de variação sobre a qual trabalhou
a então nascente comunidade epistêmica.
8 Junto com a atividade parlamentar, ambos partidos políticos foram constituindo, como parte de suas estruturas,
oficinas permanentes destinadas à reflexão sobre a questão militar e a defesa nacional. No calor da crescente
conflitividade entre os setores militares e os governos constitucionais, em particular na rebelião da Semana
Santa, o justicialismo constituiu, em 1987, sua Secretaria de Defesa. Por sua parte, o radicalismo criou em
outubro de 1988 sua Comissão de Defesa (MIGUENS; DRUETTA; TIBILETTI 1994, p. 223).
9 Nos referimos a Ramón Orieta, Luis Tibiletti, Gustavo Druetta e Mario Rossi – por parte do Partido Justicialista
(PJ) – e José Manuel Ugarte, Ángel Tello e Andrés Fontana como assessores da União Cívica Radical. Alguns
anos mais tarde se somaram outros nomes, como Marcela Donadío, Rut Diamint e Jaime Garreta.
10 Entre as mais relevantes, cabe mencionar as atividades organizadas pela Escola de Sociologia da Universidade
de Buenos Aires e a Associação Argentina de Investigação sobre Forças Armadas e Sociedade (AAIFAS): o
“Seminário sobre Sociedades Democráticas e Sociedades Militaristas” de 1984 e a “Conferência sobre Forças
Armadas, Estado, Defesa e Sociedade”, de 1988.
112
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Comunidades epistêmicas e de prática em defesa na Argentina e no Brasil [...]
Frente a este legado da Guerra Fria, o consenso a que chegaram o radicalismo
e o peronismo renovador foi a completa subordinação do poder militar ao governo
democrático e a correspondente circunscrição do âmbito da ação dos militares.
Tal premissa, que constituiu a inovação intelectual fundamental da comunidade
epistêmica, é a essência da lei 23.554 aprovada em 1988, principal indicador da
seleção política das ideias desse coletivo. Pontualmente, o artigo n° 2 dessa norma
designa como espaço de atuação das Forças Armadas os conflitos surgidos a partir
de agressões de origem externa, enquanto a segurança pública seria o âmbito de
ação das forças de segurança, regida pela lei de Segurança Interior, sancionada
em 1991, também como fruto dos debates e complexas negociações entre os
referidos atores, marcando o início da constituição da comunidade epistêmica
argentina da defesa.
11
Em outras palavras, militares – na ativa ou na reserva –, assessores
parlamentares e acadêmicos se articularam informalmente como um coletivo
com os mesmos propósitos: dar lugar a uma política de defesa democrática,
dependente da consecução de três metas: formular um patamar normativo que
garantisse o controle civil das forças armadas; a formação de especialistas civis em
temas de defesa; e a construção da política de uma defesa pacífica. A orientação
estratégica defensiva da política de defesa foi fundamentada a partir de conceitos
como a suficiência defensiva, a construção de confiança e transparência e a
desarticulação das hipóteses de conflito com os países vizinhos, resumidos em um
modelo de segurança cooperativo, e constituiu-se em uma crença advogada pelo
grupo. O modelo se orientava pela prevenção dos conflitos a partir de medidas
de transparência e confiança para reduzir ao mínimo as possibilidades e alcances
das agressões, constituindo a legitimação conceitual dos mecanismos de medidas
de fomento da confiança e da transparência e das instâncias de diálogo político
sobre temas de defesa
12
.
11 O limite entre a defesa externa e a segurança interior tornou-se plasmado no conceito de Segurança Estratégica
Regional. Havia fortes críticas a proposições que visavam ampliar o campo que constituía a segurança por
implicar sérios riscos para a vida democrática, já que se assemelhava à noção do estratégico como abarcando
todos os âmbitos de uma sociedade política, tal como no período da doutrina de segurança nacional. Em virtude
disso, propunham que a dimensão diretamente relacionada com o uso potencial do poder militar constituiria
um referente exclusivo da noção de Segurança Estratégica.
12 Os membros da comunidade epistêmica cumpriram um papel central na proposta de funcionamento dos esquemas
de diálogo bilateral sobre defesa: o Comitê Permanente de Segurança entre Argentina e Chile (COMPERSEG) e
o Mecanismo Permanente de Análise Estratégica (MAE), entre Argentina e Brasil. Igualmente importante foi a
participação em duas instâncias hemisféricas que promoveram o modelo de segurança cooperativa nas Américas:
a Comissão sobre Segurança Hemisférica da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)
e as Conferências Ministeriais de Defesa das Américas.
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Samuel Alves Soares, Marina Gisela Vitelli
Mais adiante, e durante a década de 1990, parte dessa comunidade epistêmica
criou uma organização civil vinculada ao trabalho das Comissões de Defesa do
parlamento, porém delas distinta. Dessa forma, “SER en el 2000” se converteu
em dinamizador de uma série de eventos de discussão de conceitos e posições
sobre o que deveria ser uma política de defesa democrática, estabelecendo um
diálogo com outras instituições acadêmicas, da sociedade civil e militares, em
torno de coincidências e também de discordâncias. Essa comunidade epistêmica
em formação dialogava em escala nacional, mas também começava a estabelecer
fortes e diversificados laços de diálogo com instituições de outros países, em
particular com Chile (Flacso-Chile); Brasil (Núcleo de Estudos Estratégicos-
Unicamp, Secretaria de Assuntos Estratégicos); Estados Unidos (National Defense
University) e Espanha (Ministério de Defesa)
13
.
Observe-se que as crenças mencionadas passaram por todas as etapas do
processo que descreve Adler: em sua origem ocorreram debates em torno de
unidades de variação (ideias anteriores, como a Doutrina de Segurança Nacional),
as discussões representaram momentos de inovação conceitual, o governo as
selecionou politicamente para incluí-las em normas e em estratégias de ação, ao
tempo que a comunidade buscou a difusão desses conceitos, fundamentalmente
para a região. A unidade de modificação efetiva que surgiu desse processo foi
o diálogo político regional sobre defesa, institucionalizado a partir da criação
do Conselho de Defesa Sul-Americano, entretanto impossível de entender sem
compreender as instâncias prévias de discussão sobre segurança regional e sobre
a construção de confiança e transparência.
Uma protocomunidade epistêmica de defesa no Brasil
Enquanto na Argentina o regime autoritário entrou em colapso após a derrota
na Guerra das Malvinas, o processo no Brasil foi bastante distinto. Estabelecido,
maiormente, intramuros do próprio regime, a autonomia militar foi mantida na
13 “SER en el 2000” organizou o Seminário Permanente sobre as Forças Armadas do ano 2000, ciclo que se prolongou
durante seis anos em que foram realizados sessenta e cinco encontros de debates e discussão, com participação
de especialistas da Argentina e do exterior, sobre uma diversidade de temas, entre eles: a situação nacional,
regional e internacional; a política de defesa nacional, sua repercussão sobre as três forças e as relações civis-
militares; os esquemas de segurança coletiva e alianças regionais; os conceitos estratégicos, como a dissuasão
e a suficiência defensiva; os processos de integração regional, as operações de paz e os processos de reforma
e reestruturação das Forças Armadas.
114
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 11, n. 3, 2016, p. 99-123
Comunidades epistêmicas e de prática em defesa na Argentina e no Brasil [...]
quase totalidade, trazendo à tona um significativo desafio ao sistema político, que
era equacionar a questão militar, isto é, estabelecer marcos mínimos para as relações
civis-militares. Gozando de autonomia e ausente um descrédito das instituições
militares frente à opinião pública, o tema da defesa não se transformou em agenda
política, e, desta forma, as definições estratégicas permaneceram condicionadas à
caserna e de forma fragmentária, já que cada Força definia os objetivos, metas e
rumos. Dessa maneira, os temas relacionados à área permaneciam enclaustrados
nas instituições militares.
Um tratamento mais orgânico havia sido estabelecido nas lindes da Doutrina
de Segurança Nacional, repetindo, de certa forma, a situação da Argentina. No
caso brasileiro, contudo, uma maior sistematização pode ser notada tendo em vista
o papel assumido pela Escola Superior de Guerra. A ESG não apenas reproduziu
os ditames definidos nos Estados Unidos da América, como adicionou elementos
singulares ao sistema político brasileiro, em especial a visão dos autoritários
instrumentais (BRANDÃO, 2005), refratários ao considerado utopismo liberal
de participação da sociedade nas decisões políticas, ou ainda, a fragilidade da
concepção de emergência de uma sociedade civil, sendo mais razoável considerar
a necessidade de fortalecimento do Estado, esse sim o aparato político consistente
a ponto de “produzir” uma sociedade. A ESG guardava reminiscências de seu
papel aglutinador de interesses de classes e integrador com o braço armado do
Estado, as Forças Armadas (OLIVEIRA, 1976).
Ao adicionar tais elementos à formulação do War College, a ESG estabelecia
parâmetros de definição do campo político e das excepcionalidades advindas de
uma situação considerada de guerra no desenrolar da Guerra Fria. As instituições
militares tomaram para si a tarefa soberana de estabelecer os momentos excepcionais
(SCHMITT, 1992)
,
como em 1964, o que configura a situação da necessidade de
distinguir os campos da política entre amigos e inimigos. Para o pensamento
militar, em sua matriz esguiana, as características de debilidade política e de
fragmentação do social seriam atributos comuns à sociedade como um todo,
reforçando as teses do autoritarismo instrumental. Somente as Forças Armadas
se manteriam coesas e organizadas. Ao subsistir um quadro de incompreensão
da importância do poder militar por parte da sociedade civil e do descaso pela
segurança por parte da classe política, às instituições militares caberia a soberania
na decisão sobre a emersão de crises e, por estes parâmetros, estariam reduzidas
as possibilidades de subordinação do poder militar ao poder civil (SOARES, 2005).
O ponto central é que tal mentalidade, ainda vigorante nos primeiros anos após o
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 11, n. 3, 2016, p. 99-123
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Samuel Alves Soares, Marina Gisela Vitelli
início da redemocratização, apontava para as Forças Armadas a tarefa de definir
os rumos da segurança.
Embora o pensamento esguiano tenha crenças causais e normativas, e tenha
sido elaborado por um grupo de agentes com certa legitimidade social, deve se notar
que não se trata do tipo de conhecimento associado às comunidades epistêmicas,
que tem como um quesito indispensável ser pensamento livre, submetido à crítica
pelos pares, de sorte a promover o sentido de variação. Já na origem afasta-se da
conceituação de comunidades epistêmicas.
Com esse delineamento geral em vigor, a Constituição Federal de 1988
manteve como função das Forças Armadas a garantia da lei e da ordem, permitindo
que houvesse deslizamentos jurídicos do artigo 142 daquele documento, ao artigo
144, que engloba o uso das referidas forças na segurança pública. Reside nesse
aspecto uma das graves debilidades democráticas do país, já que não instituiu
distinção entre a defesa – orientada para o exterior – e a segurança pública, umas
das principais preocupações da comunidade epistêmica argentina da defesa.
Na combinação entre a mentalidade militar, o documento de mais alto nível do
país e as características da transição estava montado o quadro em que foram se
delineando os termos para a definição inicial da orientação para a área. Esse peso
ampliado das instituições militares nas definições nesse campo não significa,
por certo, exclusividade nos processos de decisão. Aponta, entretanto, para uma
característica singular do sistema político brasileiro à época do fim do regime de
exceção. O desdobramento é que havia uma questão militar em tela, ocupando o
nível dos decisores políticos e movimentando um conjunto amplo de acadêmicos
voltados a analisar e mesmo propor alternativas para a redução da autonomia
militar no campo mais geral da política, o que era acompanhado de temores de
retrocessos.
Note-se que a questão militar não implica, diretamente, o tratamento
das questões de defesa e de segurança internacional. Nesse caso, o aparato
governamental brasileiro, ao iniciar a transição, concedeu pouca ou nenhuma
atenção ao tema, ocupado com o desafio mais premente da questão militar em si.
Somente em 1995, dez anos após o fim do regime autoritário, haveria um primeiro
esboço de política de defesa, amplo o suficiente para não produzir resistências
mais acentuadas e por isso tendendo ao amorfismo, mas que teve o mérito de
inaugurar a prática da definição política da defesa. E posteriormente, em 1999,
seria criado o Ministério da Defesa, uma decisão de destaque para configurar
um exercício de condução política da área. Aponte-se essa decalagem de tempo
116
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Comunidades epistêmicas e de prática em defesa na Argentina e no Brasil [...]
entre o término do regime autoritário e as primeiras ações concretas oriundas do
poder político.
Será também nesse período que a temática da defesa, e não mais apenas
a questão militar, passa a ganhar mais espaço nas análises acadêmicas. Há uma
relativa sincronia entre esse movimento de ampliação e a criação de novos cursos
de relações internacionais no país, até então em número muito restrito. Uma nova
agenda de política externa e a perspectiva de que o país poderia e deveria ocupar
um novo patamar de inserção internacional constituem o bojo conjuntural que
impulsionava o debate sobre temas até então praticamente circunscritos ao meio
militar. A partir de 1995, tal movimento se amplia consideravelmente e novos
grupos de pesquisa
14
se afirmam e ocupam importante espaço de reflexão na área.
Do ponto de vista adotado nesse texto, não se poderia considerar a
existência efetiva de uma comunidade epistêmica em defesa. Os esforços, ainda
que crescentes, eram também fragmentados e os impactos no processo decisório
ainda merecem ser analisados em profundidade para que se possa conhecer o seu
grau de efetividade. Entretanto, a ampliação do número de grupos de pesquisa,
fóruns de debates, publicações atinentes à área ganham relevo. Um dos frutos
mais visíveis desse processo foi a criação da Associação Brasileira de Estudos de
Defesa – ABED –, em 2005. É interessante apontar que a comunidade acadêmica
de estudos de defesa no Brasil conseguiu se institucionalizar e multiplicar cursos
sobre a temática, publicações importantes e projetos de pesquisa, alguns com
financiamento do Ministério da Defesa, o que não aconteceu na Argentina.
A comunidade acadêmica da defesa não conseguiu fornecer um influxo direto
sobre as decisões políticas, sem o que não se pode considerá-la, efetivamente,
como uma comunidade epistêmica de defesa.
Contudo, se não são perceptíveis aderências mais diretas com o conceito
de comunidades epistêmicas, há que se tensionar as proposições e considerar
uma perspectiva que atua em sentido inverso. Das formulações de Haas (1992)
e Adler (2003) extrai-se que o mote para a atuação das comunidades epistêmicas
são as demandas originadas no Estado. No caso brasileiro, o indicativo é que a
origem não foi precipuamente no Estado, mas sim ensejada pelas próprias Forças
Armadas. Não será aqui o lugar mais apropriado para aprofundar a discussão,
porém ressalte-se que as Forças Armadas brasileiras saíram do regime autoritário
14 Grupos de pesquisa são inaugurados em distintas universidades brasileiras ao longo dos anos 2000, em especial.
Sem indicar uma lista exaustiva, cabe destacar grupos na UNESP, USP, UNB, UFRGS, UFS, UFPA, UFSCar, UFF,
UFPB, UEPB, UFPE, UFSC.
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Samuel Alves Soares, Marina Gisela Vitelli
eivadas da concepção de que exercem um papel que seria precípuo do Estado,
isto é, que em momentos considerados de crises e incertezas, cabem-lhe as tarefas
de imposição da ordem, conforme estabelecido na Constituição Federal. Estariam
dessa forma dotadas do múnus estatal, e fundamentadas em uma autossuficiência
proclamada.
Se essa análise é minimamente sustentável, a autonomia relativa das Forças
Armadas no caso brasileiro permite situar a transição de outra forma. A incerteza,
no caso argentino, fornecia o combustível para considerar medidas entendidas
como emergenciais, com destaque para o controle civil das Forças Armadas, um
dos propósitos principais da comunidade epistêmica. No Brasil, mormente pelas
características conservadoras de seu sistema político, e somada a autonomia das
Forças Armadas, a emergência transfigurou-se como complacência. Nesse sentido,
pode-se propor que comunidades epistêmicas podem agir no sentido de definir
agendas e não apenas a elas responder. Nesse caso, para evitar o alargamento
conceitual, pode-se considerar que as próprias Forças Armadas constituíram uma
protocomunidade epistêmica, autoinvestidas de conhecimento necessário para
dar conta dos temas de defesa e, importante advertir, reconhecidas por parcelas
significativas da sociedade.
Retomando a perspectiva histórica, a partir de 2005, o quadro vai se alterando
significativamente. É lançada nova versão da Política de Defesa, nesse mesmo
ano, e, em 2008, a Estratégia Nacional de Defesa (END). Em 2012, além de novas
versões desses dois documentos normativos, a primeira edição de um livro branco
de defesa. Importa destacar que a comunidade acadêmica brasileira participou,
de alguma forma, do processo de debate. Todavia, do ponto de vista comparativo
a outros países, como a Argentina, o debate foi bem menos inclusivo. Há que se
notar, ainda assim, que certas concepções passam a configurar nos documentos
normativos, e sua origem não mais reside exclusivamente nas Forças Armadas.
A título de exemplo, passa a fazer parte das concepções brasileiras a perspectiva
do alargamento dos campos das ameaças, próprio da Escola de Copenhague.
São traços que permitem notar a ampliação do debate, porém sem que se
possa identificar iniciativas orgânicas que constituam uma base referendada de
legitimidade de um esforço consentâneo, próprias às comunidades epistêmicas.
Os saberes desses atores – indivíduos e grupos ligados ao meio acadêmico – não
atendem aos requisitos conceituais para que os consideremos como parte de
uma comunidade epistêmica. Falta-lhes atender claramente aos quatro fatores
considerados por Haas (1992).
118
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Comunidades epistêmicas e de prática em defesa na Argentina e no Brasil [...]
Por outro lado, reforce-se que as instituições militares continuam a prevalecer
na definição das linhas mais gerais da estratégia nacional de defesa. Duas razões
contribuem para isso. Primeiro, porque constituem um aparato burocrático bem
organizado e detentor de conhecimento técnico sobre algumas dimensões da
defesa. Segundo, porque são militares a maioria dos funcionários do Ministério
da Defesa. Ainda que deva registrar-se a relevância da Secretaria de Assuntos
Estratégicos na elaboração da primeira versão da END, em análise detalhada do
documento nota-se a perspectiva de cada uma das Forças, sendo que a estratégia
contempla os projetos mais caros a cada uma das instituições militares, sem que
necessariamente configurem um todo ajustado adequadamente. Assinale-se que
sequer o documento versando sobre a política de defesa é referido no documento,
indicando que a estratégia tem peso mais relevante e é reflexo das condicionantes
institucionais e não propriamente uma tradução efetiva de condução política.
A título de exemplo, a perspectiva de projeção de poder já estava presente em
documentos da Marinha e do Exército desde a década de 1990, pelo menos.
Ao estabelecer a dissuasão como linha mestra da estratégia – diferentemente
da Argentina em que a estratégia é de corte defensivo – alinhava-se, de fato, a
dissuasão com a projeção de poder. As implicações são várias, pois não deixam
claro como tal estratégia se insere no âmbito regional, já que é contraditório
estabelecer a dissuasão com quem se pretende cooperar.
Se acadêmicos não constituíram uma comunidade epistêmica, e menos
ainda assessores parlamentares, já que não atuaram organicamente e ainda não
atuam com desenvoltura nesse campo, além de faltar-lhes uma legitimidade social
mais definida, há que se considerar outra alternativa conceitual. O processo de
aprendizagem leva a constituição de novos saberes, na medida em que indivíduos
ou grupos “compartilham uma preocupação ou uma paixão por algo que eles
fazem e buscam aprender a fazer melhor” (WENGER, 1999), o que se configura
como uma comunidade de prática. Adler chega a considerar as comunidades
epistêmicas, entre outras, como subconjuntos de comunidades de prática (2008).
A questão-chave do conceito refere-se à capacidade desses indivíduos ou grupos
para transformar as estruturas sociais. É possível considerar que não há um
empreendimento específico das comunidades de prática no sentido de definição
clara de metas ou de objetivos consensuais. Há, nesse caso, uma conceituação
bem mais flexível, pois pode abarcar também as advocacy network, por exemplo.
O seu caráter plásmico autoriza identificar processos de aprendizagem e práticas,
na perspectiva de que essas são “sustentadas por recursos comunitários, tais como
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rotinas, sensibilidades e discursos” (2008, p. 199)
(grifo nosso), isto é, agência e
estrutura se sobrepõem e nem sempre é possível colocar os atores face a face.
Interpõe-se esse conceito, de maneira breve, como forma de propor que
o grau de maturação das comunidades de prática não atinge o mesmo nível
das comunidades epistêmicas. Dessa forma, é possível sustentar que os atores
envolvidos nas questões de defesa no caso brasileiro – em certo sentido, militares
e instituições militares, acadêmicos, funcionários de governo e de Estado –
constituem-se em plasmas distintos, distantes de configurarem uma comunidade
embebida de horizontes definidos e tendentes a certa univocidade. Bem ao
contrário, são percepções distintas, quer para os que advogam que a um papel
relevante no sistema internacional deva corresponder uma estrutura militar à altura
de potências e que no plano regional a orientação deve ser de caráter instrumental,
quer àqueles postulantes de uma perspectiva de fortalecimento do regionalismo
como forma precípua de organizar-se para uma postura efetivamente defensiva,
ou, no limite, dissuasória e de âmbito regional. E isso apenas para indicar duas
possíveis posições, entre tantas outras.
Reflexões finais: entre a organicidade e a plasticidade
Argentina e Brasil transitam por veredas permeadas por assimetrias, distintas
perspectivas, diversificadas narrativas a apontar objetivos e refletir identidades.
Observados os processos históricos da condução das questões militares e das
questões de defesa, há visíveis diferenças. Entretanto, ainda que sejam posturas
e postulações diferenciadas, o papel regional desempenhado pelos dois países
nos últimos trinta anos, e mais ainda a partir de 2003, com o ascenso de Néstor
Kirchner e Lula da Silva aos respectivos governos, orientou-se para robustecer a
região da América do Sul, além de uma relação recíproca cada vez mais distante
da possibilidade de conflitos abertos. Entretanto, as disparidades e as questões
ainda não totalmente resolvidas geraram duas ordens de questões no âmbito
nacional e com desdobramentos regionais e mesmo globais.
A Argentina criou as condições para que se efetivasse um mecanismo
suficiente de condução política da defesa dentro de parâmetros democráticos.
Esse feito é claramente creditado ao papel desempenhado por uma comunidade
epistêmica ativa e dotada de clareza política, pelo menos até dezembro de 2015.
Até o momento organiza-se para contemplar uma estratégia defensiva, inclusive
120
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Comunidades epistêmicas e de prática em defesa na Argentina e no Brasil [...]
aduzindo a que a defesa cooperativa regional é suporte e fortalecimento da defesa
nacional, conforme se nota em seus documentos normativos.
No Brasil, por sua parte, houve o entendimento de governos de variados
matizes que o formato de tratamento da questão militar funcionaria mais a
contento se não houvesse uma forte revisão do passado, e que as questões de
defesa são mais bem conduzidas em formato de consórcio, com uma presença
marcante das Forças Armadas e de militares na definição dos objetivos políticos
da defesa. Seriam comunidades de prática orbitando entre posturas singulares,
sem que ainda sejam produzidos resultados alinhados a uma grande estratégia.
A fragilidade, contudo, não reside apenas nessa dimensão nacional, como
é o caso brasileiro. Os avanços regionais ainda carecem de maior contato e troca
de saberes entre comunidades de prática sul-americanas, quiçá de comunidades
epistêmicas que possam, enfim, contribuir para promover identidades regionais.
Por ora, os avanços institucionais são reveladores de maior aproximação, porém
ainda distantes de pactuarem crenças regionais compartilhadas. Os países ainda
se prendem aos valores tradicionais de afirmação das soberanias, hipostasiando
os Estados e estabelecendo estratégias apropriadas aos tempos das formações
territoriais, concepções pouco aderentes às novas realidades, em que as ameaças
são difusas e não respeitam limites geográficos estabelecidos. De um ponto de
vista regional, e a partir de novos marcos conceituais e políticos, a organicidade de
uma – a Argentina – e a plasticidade de outro – o Brasil – já “não correspondem
aos fatos”.
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