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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
Pan-africanismo e relações internacionais:
uma herança (quase) esquecida
Pan-Africanism and international relations:
a legacy (almost) forgotten
DOI: 10.21530/ci.v11n1.2016.347
Muryatan Santana Barbosa
1
Resumo
Este artigo traz uma análise de alguns conceitos centrais da herança pan-africanista, visando
torná-la mais conhecida no campo de relações internacionais no Brasil. Em particular,
a teoria das relações internacionais. Ele é dividido em duas partes. Inicialmente, faz-se uma
definição e uma breve contextualização dessa herança. Para tanto, revisita-se suas origens
e, mais importante, seu período de consagração pós-Segunda Guerra Mundial, quando ela foi
repensada por uma geração consagrada de intelectuais africanos e caribenhos. Na segunda
parte do texto, busca-se referendar a tese primordial deste ensaio. Ela defende que, para
além da diversidade de contribuições específicas que tais autores/ativistas trouxeram para
uma compreensão menos eurocêntrica do mundo e, portanto, das relações internacionais,
existe também um núcleo central que pode ser visto como uma característica original do
pan-africanismo. Tal núcleo é formado por quatro ideias primordiais, que aparecem ali de
forma inter-relacionada: a) personalidade; b) solidariedade; c) libertação; d) integração.
A partir dessa análise, defende-se que, embora o pan-africanismo tenha suas especificidades
teóricas, sua própria história e contextualização, ele também possui uma contribuição
universal que precisa ser melhor estudada, pois é parte integrante e atual das lutas dos
povos do Sul Global por sua autoafirmação.
Palavras-chave: Pan-africanismo, Terceiro Mundo, Teoria das Relações Internacionais,
Negritude, África.
1 Universidade Federal do ABC.
Artigo recebido em 04/03/2016 e aprovado em 04/05/2016.
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Abstract
This article presents an analysis of some central concepts of the Pan Africanist heritage,
aiming at making it better known to the field of International Relations in Brazil, particularly,
to the Theory of International Relations. It is divided into two parts. Initially, it offers a
definition and a brief background on this heritage. In order to do so, it revisits its origins
and, more importantly, its post-World War II consecration when the ideology was rethought
by an acclaimed generation of African and Caribbean intellectuals. Then, we seek to endorse
the primary thesis of this essay:, beyond the diversity of specific contributions that these
writers / activists brought to a less Eurocentric understanding of the world and, therefore,
of international relations, there is also a core that can be seen as a unique feature of Pan-
Africanism. This core consistis of four primary ideas that appear inter-related: a) African
personality; b) solidarity; c) liberation; d) integration. From this analysis, it is argued that
although Pan-Africanism has its theoretical characteristics, its own history and context, it
also has a universal contribution that needs to be better studied, it is part and parcel of
current struggles of the peoples of the South for self-assertion.
Keywords: Pan-Africanism, Third World, Theory of International Relations, Negritude,
Africa.
Pan-africanismo: período formador (1870-1920)
2
A geração mais conhecida de ativistas que construíram as bases do ideário
3
pan-africano, na segunda metade do século XIX, era formada por intelectuais
de tradição ocidental. Eles falavam e escreviam em línguas europeias, além de
atuarem em instituições tipicamente “modernas”, como as Igrejas protestantes,
as universidades, e os campos literários e jornalísticos. Em particular, na nascente
imprensa negra à época, na África e na América.
Essa geração era formada por intelectuais negros, tendo por destaque ativistas
como Paul Cuffee, Martin Delany, Booker T. Washington, Alexander Crummel,
J. A. Horton, J. Hayford, Bishop James Johnson, Edward Blyden, Marcus Garvey,
W. E. Du Bois, Silvester Williams, dentre outros. Na América, a questão central
era o escravismo e, no pós-abolição, a subalternização do negro nas sociedades
nacionais americanas. Na África, o problema crucial era o colonialismo externo,
2 Agradeço as sugestões dos pareceristas ad hoc da Carta Internacional.
3 Definição: conjunto ou sistema de ideias políticas, sociais, econômicas.
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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
com destaque para a discussão dos intelectuais negros estadunidenses sobre a
formação da Libéria.
4
Desse amplo debate surgiram os ideais primordiais do pan-africanismo:
liberdade e integração (OLA, 1979, p. 49). Pelo objetivo desse ensaio, ressaltar-se-á
aqueles pensadores que focaram o ideal de uma comunidade negra em sua práxis.
Dentre esses, destacam-se intelectuais como A. Crummel, Horton, Blyden, W. E.
Du Bois e Marcus Garvey. São ativistas que, embora nunca se desvinculassem do
dilema em torno da integração do negro à sociedade estadunidense, também se
envolveram no debate acerca da valorização do negro em escala internacional.
Em particular, na África.
Esse era o caso, por exemplo, de Alexander Crummel. Ele trabalhou como
pastor na Libéria por 20 anos. Lá, pregou o cristianismo e a união africana para
o melhoramento da “raça negra”, entendendo por tal termo os africanos e seus
descendentes. Postulava que os negros estadunidenses deveriam guiar os africanos
para a civilização, sendo tolerantes com esses. Devido ao seu caráter paternalista,
suas ideias sobre a liderança negra tiveram muitos adeptos nos EUA, mas, fora,
muitos inimigos. A ideia de raça era central nas formulações de Crummel sobre
tal unidade do negro. Todavia, não possuindo uma postura crítico-assimilativa
dessa noção, Crummel acabou por reproduzir a crença nas diferenças raciais
biológicas, em voga em fins do século XIX. (APPIAH, 1997: 38)
Pode-se observar, entretanto, uma crítica coerente dessa noção biológica
de raça no pensamento de outro importante pensador negro da segunda metade
do século XIX: J. Horton. Horton nasceu em Serra Leoa, na África Ocidental. Foi
um dos primeiros intelectuais modernos a desqualificar a ideia da degeneração
da raça negra (africana, em seus termos), no livro Países e povos da África
Ocidental: uma reivindicação da raça africana (1868). Formulando uma postura
humanista sobre o tema, Horton defendeu a capacidade dos próprios africanos para
formarem uma nação autogovernada, embora acreditasse que esses não deveriam
dispensar o apoio dos “ocidentais” para tanto. Foi um dos primeiros intelectuais
estadunidenses a apoiar o direito de voto aos africanos nativos na Libéria – algo
que só se concretizaria em 1904. Outro importante pensador a defender a ideia
4 A Libéria se tornou independente em 1847. Antes disso, desde 1821, o território era uma colônia da Sociedade
Americana de Colonização, dos EUA. Essa colônia foi criada com a intenção de tornar-se um território de retorno
dos escravos e dos ex-escravos que saiam dos EUA. Em particular, para aqueles que tinham conseguido sua
alforria por intermédio de sua participação ativa nas Igrejas protestantes e demais irmandades negras. Com o
tempo, esse grupo formou uma elite local, que fundou a nação. (AKPAN, 2010, p. 282).
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de um autogoverno africano, criticando a dominação dos negros estadunidenses
na Libéria à época, foi o americano J. E. C. Hayford, em Instituições Nativas da
Costa do Ouro (1903) (DÉVES-VALDÉS, 2008, p. 20ss)
Entretanto, o mais célebre dos autores a defender tal ideia – do autogoverno
africano – foi o intelectual caribenho Edward Blyden, que morou por décadas na
Libéria. Sua argumentação em prol da igualdade entre africanos e afrodescendentes
(em especial, estadunidenses) é que ambos fariam parte de uma mesma unidade: a
“personalidade africana”. Sua teoria buscava fundamentar a ideia de raça dando-lhe
um enfoque cultural, enquanto especificidade de um povo, de uma circunstância
histórica. No seu entender, a “personalidade africana” seria o caminho específico
do negro (africanos e afrodescendentes) à civilização universal.
E. Blyden foi um dos primeiros intelectuais a dizer que as sociedades africanas
ancestrais tinham valores civilizatórios, como se poderia observar a partir da
importância que ali se dava à família, à vida coletiva e ao uso comum da terra e da
água. Tais valores deveriam ser reconhecidos universalmente. Segundo esse autor,
por tal fato, dever-se-ia inclusive estabelecer um projeto para “africanizar” a África,
aculturando as populações citadinas (nativas ou americanas) ao meio africano rural,
interiorano. Esse era um postulado pioneiro à sua época, sobretudo em relação
aos seus colegas norte-americanos, que tendiam a acreditar na superioridade do
afrodescendente americano em relação ao africano. Blyden entendia que este
projeto de “africanização” seria uma etapa necessária para a formação de um
Estado único na África Ocidental subsaariana. (LEGUM, 1965, p. 21)
Mas ele não parou aí. Embora tivesse formação católica, defendeu a
assimilação dos valores islâmicos e cristãos pelos próprios africanos. Nesse ponto,
aproximou-se do etiopismo
5
e do islamismo africano, que já possuíam uma história
secular na África. Eram um exemplo concreto desse processo de africanização,
de que falava o autor. Por essas e outras razões, pode-se perceber que Blyden foi
um pioneiro à sua época. Suas obras mais conhecidas foram Cristandade, Islã e
a Raça Negra (1887), África Ocidental depois da Europa (1905) e Vida e costumes
africanos, de 1908 (DÉVES-VALDÉS, 2008, p. 28-37).
5 Etiopismo: movimento religioso e político africano, nascido no último quarto do século XIX, que pretendia formar
Igrejas africanas autônomas, independentes das missões coloniais. Alguns líderes desse movimento fundaram
sua própria leitura do cristianismo, como Nehemiah Tile, Orishtukeh Faduma, Bishop James Johnson e outros.
O termo etiopismo deriva da autonomia religiosa Etíope, que reporta à civilização de Axum e à formação dos
reinos etíopes (ESEDEBE, 1970, p. 119).
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Outro autor fundamental dessas primeiras gerações do pan-africanismo foi
Marcus Garvey. Jamaicano de origem, Garvey fez sucesso nos EUA no início do
século XX, com seu projeto de “volta à África”. Com isso, ele não queria dizer
que todos os negros americanos deveriam realizar tal regresso, mas que alguns
deles – em especial aqueles que possuíssem conhecimentos técnicos modernos
– deveriam fazê-lo, em prol do desenvolvimento do continente e de si mesmos.
Defendeu a ideia de uma África unida e federada, em 1924. (ADI;SHERWOOD,
2003, p. 77)
Garvey não foi um acadêmico, mas um homem de atuação política. Possuía
notável retórica e personalidade carismática. Suas passeatas em prol do negro
reuniam milhares de adeptos. Com isso, ganhou projeção internacional a partir
da imprensa estadunidense; um fato que o ajudou a participar da formação
de diversos grupos pan-africanistas em todo o mundo. Sua retórica era de um
anti-integracionismo convicto. Acreditava que não havia saída para o negro na
América. Para ele, só os mestiços teriam lugar nesse continente, como auxiliares
dos brancos. Por isso, dizia que os negros deveriam ir, gradualmente, voltando à
África. Lá seria seu único e verdadeiro lar. Para concretizar tal ideal de retorno
coletivo à África, formou a Associação Universal para o Melhoramento do Negro.
(ADI; SHERWOOD, 2003, p. 78)
Garvey não deixou livros, apenas escritos e artigos, que serviram de inspiração
a uma série de ativistas negros nos EUA e na África, especialmente no entreguerras.
Após a Segunda Guerra Mundial, o garveysmo continuou tendo forte presença
nos congressos pan-africanos, a partir da participação de parentes de Garvey,
com seu filho, Marcus Garvey Jr., e sua esposa, Amy Jacques Garvey (MOORE,
2008, p. 240).
Mais recente do que esses pioneiros, tem-se também a figura paradigmática
do estadunidense W. E. B. Du Bois. Intelectual negro de exceção à sua época, Du
Bois estudou nas Universidades de Fisk e Harvard, nos Estados Unidos, e Berlim,
na Alemanha. No cerne de seu pensamento sobre o negro pode-se observar certos
dilemas que se perpetuaram na literatura posterior sobre o tema.
No início de sua carreira, Du Bois escreveu, geralmente, para o negro
estadunidense, como em Almas do povo negro (1903). Disse que esse vivia
dividido por uma dupla consciência: comunal (negra) e nacional (estadunidense).
Com o passar dos anos, Du Bois passou a entender tal fato como um reflexo
local do verdadeiro dilema universal do negro, emparedado entre a busca de sua
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especificidade e a integração ao Ocidente. Ele interpretava tal dilema tendo, por
premissa, a dicotomia clássica da filosofia romântica alemã: cultura x civilização.
Dizia, nesse sentido, que o negro possuiria uma essência (cultural) que se
contrapunha à lógica materialista e temporal da civilização ocidental. Por isso,
postulava que, longe de ser algo temerário, tal fato seria algo de que os negros
de todo o mundo deveriam se orgulhar, pois aí residia a fonte da originalidade e
criatividade perdida pelo Ocidente. Seu apelo era para que essa alma negra fosse
incorporada como um valor positivo à civilização ocidental. Só assim essa última
poderia reivindicar, de fato, a posição de patrimônio democrático da humanidade
(IJERE, 1974, p. 188ss). Em sua famosa frase, o futuro da América e do mundo
dependia disso. Afinal, o “século XX seria o século do confronto racial”.
Du Bois não só escreveu, mas também trabalhou em prol do negro. Tornou-se
uma figura central no movimento negro estadunidense, onde se opunha a
influência de Booker Washington e Marcus Garvey. Os conflitos entre eles foram
intensos. Em Nova York, tal atividade estava ligada à ebulição cultural e política
dos anos de 1920, com a consolidação da NAACP (National Association for the
Advancement of Colored People, fundada em 1908) e o Harlem Renaissance.
Buscando se aproximar da questão negra em outros países, Du Bois foi organizador
de importantes encontros, como os congressos pan-africanos na primeira metade
do século XX (Londres, Paris e Bruxelas, 1919; Londres e Lisboa, 1921; Nova York,
1927; Manchester, 1945). Dessa forma, deu continuidade ao trabalho político do
antilhano Henry Sylvester Williams, organizador do 1º Congresso Pan-Africano,
em Londres, em 1900. Por isso, ambos podem ser vistos como os iniciadores
do pan-africanismo como movimento político, além de movimento de ideias
(ESEDEBE, 1994).
Nesses congressos, Du Bois buscou construir alianças concretas que
possibilitassem a união africana com a diáspora negra. Tratava-se do “cooperativismo
negro” e da “solidariedade negra” etc. (IJERE, 1974, p. 190ss). Foi também um
incentivador do estudo da África pelos próprios negros, algo que só iria se fortalecer
posteriormente. Por essas e outras razões, sua influência fez-se sentir no pensamento
de diversos intelectuais africanos do pós-guerra (2ª Guerra Mundial), como Jomo
Kenyatta e Kwane N´Krumah. Em fins dos anos 1950, convidado por G. Padmore
e K. N´Krumah, mudou-se para Gana, onde viveu até sua morte, em 1963.
É interessante notar como os intelectuais negros sul-americanos e africanos
praticamente não participaram desse debate acerca da temática negra entre fins
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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
do século XIX e início do XX. Em parte, como observa o historiador Eduardo
Devés-Valdés (2008), tal fato pode ser explicado pelas frágeis redes de contato
de redes de contato entre os intelectuais negros dessas regiões com o centro da
produção intelectual negra da época: os EUA. Por outro lado, tal fato revela,
concomitantemente, o massacre que as políticas racistas – eugenistas na América
e colonialistas na África – trouxeram para a comunidade negra nos dois lados do
Atlântico à época. Nessa política de aniquilamento, qualquer crítica à superioridade
branca era silenciada. O pouco conhecido ensaio de Lima Barreto, Elogio da morte,
é um dos mais fortes testemunhos desse momento histórico desde o Brasil.
Por outro lado, no campo das ideias, contribuições como as de Edward
Blyden, Garvey e W. E. Du Bois mostram a importância que uma postura
crítico-assimilativa acerca da tradição ocidental teve para a formulação de uma
percepção mais positiva acerca da comunidade e da contribuição negro-africana
para o mundo. Falando para um público majoritariamente americano e europeu,
os intelectuais dessa geração (1870-1920) reformularam teorias e ideias ocidentais
para os seus próprios propósitos, consolidando um sentimento de coparticipação
do negro em uma mesma comunidade de interesses, enquanto raça, etnia, povo,
espírito, comunidade etc. Assim se funda a ideia força do pan-africanismo,
dialogando com o universo simbólico contemporâneo para embasar uma luta
comum do negro (africano e afrodescendente) contra o colonialismo e o racismo.
Dessa práxis, surgiu um lema que se tornou uma das características mais fortes
do pan-africanismo do século XX: liberdade e integração (OLA, 1979). Uma ideia
que será retomada pelas gerações posteriores dos intelectuais negros e não negros.
Pan-africanismos: teoria e política (a partir de 1920)
A geração pan-africanista formada no entreguerras é marcada por uma
diversidade de perspectivas. A explosão da Segunda Guerra Mundial (1939-45) foi
certamente um momento de ruptura na expressão pública desse amplo e diverso
movimento de valorização (e autovalorização) da população negra que se iniciara
em meados do século XX. No entanto, logo que ela se findou, tal movimento
voltou renovado, com a participação de uma nova geração de intelectuais e
ativistas africanos.
Visando resumir tal heterogeneidade dos pan-africanismos do pós-Guerra,
distinguir-se-á dois tipos ideais: a) pan-africanismo teórico; b) pan-africanismo
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político
6
. O primeiro tem sua origem no pensamento de autores do período
formador do pan-africanismo, em especial, E. Blyden. Mas encontrará o seu auge
na negritude francófona e na historiografia africana e caribenha. O segundo nasce
da atuação radical de ativistas antilhanos, estadunidenses e africanos que se
formaram intelectualmente no entreguerras, como G. Padmore, Wallace-Johnson,
C. R. James, Frantz Fanon, K. N´Krumah, J. Nyereré, J. Kenyatta. Essa geração
será a responsável pelas independências nacionais africanas. O ápice de ambas
as correntes é o pós-2º Guerra Mundial, entre 1945-66.
O que chamamos de pan-africanismo teórico pode, em verdade, ser dividido em
ao menos três eixos: a) cultural; b) historiográfico; c) econômico. Cronologicamente,
o primeiro deles foi o pan-africanismo teórico-cultural. Os pan-africanismos culturais
se consolidaram nos anos de 1920, nas redes de relações entre os intelectuais negros
e o público ocidental, na Europa e EUA. A marca maior desse período inicial será,
sem dúvida, a produção literária e artística. Entre os grandes escritores negros
que atuaram no período, destacam-se nomes como René Maran, Jean Toomer,
Claude McKay, Price-Mars, René Ménil, Langston Hughes e outros. Na arte, vê-se
a consagração da bailarina Joséphine Baker, e, entre as expressões musicais, o
jazz, o samba, a salsa etc. Os pontos cardeais dessa renovação cultural serão Paris
e New York, onde se forma o movimento do Harlem Renaissance nos anos de 1920
e de 1930. Esse é um período de intensa incorporação simbólica do negro à cultura
artística ocidental. Não se trata do fim do racismo, obviamente, mas da passagem
de um racismo genocida (de caráter eugenista e posteriormente nazista) para
um exotizante, em que o negro e a África passam a representar o lado obscuro e
instintivo da natureza humana (MUDIMBE, 1994). Desde então, esses passam a
ser vistos na cultura ocidental (artes, literatura, dança, pintura etc.) como parte
integrante da própria modernidade, vista como o gosto por tudo aquilo que é tido
por novo e original (GUIMARÃES, 2003). Quanto mais se aprofundava o trauma
das guerras mundiais e do nazismo, mais tal ideal de tolerância se propagava,
abrindo espaços para a difusão de uma imagem culturalista do negro. Muitas vezes,
impulsionada pelos próprios artistas e intelectuais africanos e afrodescendentes.
Nesse contexto, nasce o mais importante movimento intelectual negro da
década de 1950: a negritude francófona. Originada em Paris, nas redes de interação
6 Tal distinção tem caráter típico-ideal, seguindo a tradição weberiana. Ou seja, abstrai certos elementos puros,
que servem como guia de análise geral. Cada autor e corrente teórica aqui citados, evidentemente, possui suas
particularidades próprias, que não poderão ser aqui pormenorizadas.
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entre os intelectuais negros vindos de diversas partes do mundo (África Ocidental,
Antilhas, Caribe e EUA), a negritude se tornou, na década de 1950, um fenômeno
de amplitude internacional. Embora de forma heterogênea, os intelectuais da
negritude, na essência, buscaram demonstrar que havia uma contribuição cultural
do negro à civilização universal (MUNANGA, 1986). Um tema que era exposto e
aprofundado nas mais variadas formas artísticas e literárias: poesia, ensaio, teatro,
artes plásticas etc. Para isso, reconstruíram ideias como as de “personalidade
africana” e “subjetividade negra”, que foram desenvolvidas diferentemente
pelos seguidores do movimento. Seus principais nomes e organizadores foram
o martiniquense Aimé Césaire, o guineense Léon Damas, o malgaxe Jacques
Rabemananjara e o senegalês L. Sédar Senghor, contando ainda com a participação
de Léonard Sainville, Aristide Maugeé, Birago Diop, Ousmane Soce e dos irmãos
Achille (MUNANGA, 1986).
Entre as décadas de 1930 e 1950, portanto, a visão do negro, difundida pelo
Harlem Renaissance e pela negritude francófona, tendia a reforçar uma imagem
culturalista e espiritualista. Ambos movimentos coincidiam em reforçar uma
visão pan-africana do negro, que não se limitava a uma perspectiva nacionalista.
Ali, “negro” era visto desde uma ótica internacionalista, focada na África e na
diáspora. Como dito, era algo próprio de um pensamento que não era articulado
apenas na África, mas que se formou, no período entre 1920 e 1945, em redes
intelectuais transnacionais, na Europa (sobretudo Londres, Paris e Lisboa), EUA
(New York) e Caribe. Daí saíram, por exemplo, os dois congressos de escritores e
artistas negros, em Paris (1956) e Roma (1958), a Sociedade Africana de Cultura
7
e a revista Présence Africaine
8
.
Além desses pan-africanismos teórico-culturais, nos parece que outra forma
de conceituar os pan-africanismos teóricos do século XX seria interpretá-los como
percepções historiográficas da unidade afro-negra. É a tendência em construir, a
partir da história, um paradigma comum de estudo e de práxis dessa coletividade.
É o pan-africanismo teórico-historiográfico.
7 A Sociedade Africana de Cultura foi criada por ocasião do 1º Congresso dos Escritores e Artistas Negros, em
Paris (1956). Era sua missão defender os interesses das nações africanas e o enriquecimento da solidariedade
internacional do povo negro. Em 1958, torna-se órgão consultivo da UNESCO. Seu primeiro evento foi o
2º Congresso de Escritores e Artistas Negros, em Roma, em 1959.
8 Principal revista do mundo negro-africano no século XX. Seu idealizador e diretor inicial foi o intelectual
senegalês Alioune Diop (1910-1980). O primeiro número da revista foi lançado em 1947, com o apoio de
importantes nomes da intelectualidade europeia, como Jean-Paul Sartre, André Gide, Albert Camus, Théodore
Monod, Georges Padmore, Emmanuel Mounier, Roger Bastide e outros. Seu intuito era a defesa do pensamento,
das culturas e das civilizações negro-africanas
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Genealogicamente, pode-se observar a origem de tal tendência nos primeiros
estudos sobre o “problema afro-negro”, como unidade própria, em trabalhos
historiográficos pioneiros que relacionaram o fenômeno escravista com a formação
do mundo moderno, como nos trabalhos de Eric Williams, Oliver Cox e C. L. R.
James. A questão que se colocava, então, para esses autores, era incorporar a
importância do escravismo e das relações étnico-raciais nas discussões da época
sobre a formação e reprodução do capitalismo realmente existente, que envolviam
diversos intelectuais ligados ao marxismo, desde fins do século XIX. Isso porque,
na medida em que se pudesse comprovar a importância do escravismo e da
classificação racial para o desenvolvimento do capitalismo, poder-se-ia incluir,
em tese, a discussão sobre as questões étnico-raciais do negro no debate marxista
de então. Algo que, apesar de ter sido incorporado pela ótica anticolonialista
de Lenin na III Internacional, estaria sendo secundarizado na política da Frente
Única, comandada por Stalin na década de 1930, de acordo com tais historiadores
(WORCESTER, 1996, p. 31). Tal vertente prosseguiu posteriormente nos trabalhos
de historiadores, como Walter Rodney.
Entretanto, a figura central dessa tendência pan-africana na história foi,
sem duvida, o senegalês Cheikh Anta Diop, um dos grandes historiadores do
século XX. Diop foi o primeiro pensador a construir um paradigma pan-africano
coerente para a historiografia. Sua base era formada por duas ideias centrais:
a) a África como berço da humanidade; b) a unidade afro-negra estaria fundada
numa relação histórico-cultural milenar, cuja gênese estaria no Egito Antigo e na
Núbia, tidas por eles como as primeiras civilizações humanas
9
. Essas seriam as
premissas científicas para o estudo da Antiguidade clássica (por consequência,
da antiguidade greco-romano) e das sociedades africanas sul-saarianas (DIOUF;
MBOJI, 1992, p. 120).
Por seu engajamento teórico e político, Diop se transformará num ícone para
a maioria dos historiadores africanos que se formará nas décadas entre 1960 e
1970. Dentre esses, alguns seguirão à risca seu projeto de estudos para a história
africana, que foi, posteriormente, intitulada por seus discípulos estadunidenses
como “afrocentrista” ou “afrocentrada”. No geral, todavia, está visão será retomada,
9 Para Diop, essa civilização negra teria, inclusive, consciência de sua negritude à época. Kemético é um termo
utilizado por Diop, e pela maioria dos afrocentristas contemporâneos, para se referir à pertença negra dos
egípcios antigos. Segundo esses, Kmt, geralmente transcrito como Kemit ou Kemet, era um dos nomes pelos
quais os egípcios denominavam a si mesmos e a sua nação. Ela significaria, segundo esses, “os pretos” e “a
terra dos pretos”. Isso é considerado importante por esses autores porque demonstraria que os antigos egípcios
tinham consciência de sua negritude (FARIAS, 2003, p. 330).
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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
por tais historiadores, como uma perspectiva possível dentro de uma pluralidade
crescente de interpretações de viés pan-africanista, a partir dos anos de 1970, como
aquelas trabalhadas, dentre outros, por Theophile Obenga, John Clarke, Yosef
Ben-Jochannan, Joseph Ki-Zerbo, Van Sertima e Molefi Asante (BARRY, 2000).
Por fim, o pan-africanismo teórico-econômico. Salvo melhor juízo, ainda está
por se fazer uma história intelectual pormenorizada de tal vertente. Os ideais de
libertação e integração, idealizados pelos clássicos do pan-africanismo do período
formador, como E. Blyden, W. E. Du Bois e Garvey, já implicam a necessidade
de se pensar a economia africana (e quiçá da diáspora) desde uma perspectiva
própria. Em particular, a partir do princípio da integração africana. Afinal, quais
seriam as formas e consequências dessa integração? Ela seria continental ou
regional? Não havia nada de óbvio nisso, visto que se tratavam de sociedades
estruturalmente colonizadas. Por consequência, desarticuladas entre si e voltadas
para o mercado externo.
Ao que parece, os primeiros ensaios nessa direção só foram publicados na
década de 1950, poucos anos antes das independências nacionais africanas. Durante
tal período, existia a crença de que, num primeiro momento, dever-se-ia unir os
interesses do setor público e privado na formação de uma nação industrializada,
em que o Estado teria forte participação na economia. A questão era o espaço que
cada um desses setores deveria ter e que papel as antigas metrópoles poderiam
ocupar. Muitas das graves crises políticas que afetaram os governos africanos na
década de 1960 decorriam de posicionamentos sobre tais assuntos.
Foi, sobretudo, após o golpe militar contra o Governo de K´Nrumah em Gana,
em 1966, que se começou seriamente a defender a hipótese de que uma visão pan-
africanista da economia deveria seguir necessariamente o ideal continentalista,
pós-nacional, que lhe era inerente. Afinal, só assim se criariam as condições
infraestruturais para a superação do neocolonialismo e, ademais, para o usufruto
adequado dos recursos naturais africanos para suas próprias populações. Nesse
ponto, retomava-se a análise pioneira de Cheikh Anta Diop (1956), na Présence
Africaine. Os críticos de tal ideia diziam que ela era utópica, quando não totalitária.
Para esses, só se poderia pensar numa futura economia africana, continental e
integrada, se os países recém-independentes caminhassem concretamente para
a formação de economias regionais, que gradualmente fossem se tornando mais
complementares (N.A.C. Cox-George, 1960).
Ao longo da década de 1970, esses pontos de vista extremos foram se
aproximando dentro da tradição pan-africanista. Em grande parte, porque a
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alternativa política continentalista de curto prazo, de acordo com o esperado
pela primeira corrente citada (e, em particular, pelos seguidores de N´Krumah),
praticamente deixou de existir à época, com a consolidação dos Estados-Nação
africanos nos moldes e fronteiras das ex-colônias. Desde então, há certo consenso,
entre os pan-africanistas, de que as transformações estruturais necessárias
às economias africanas dependem mais de soluções locais e regionais do que
continentais
10
.
Por fim, temos que falar do pan-africanismo político, que vemos como algo
distinto do pan-africanismo teórico (cultural, histórico, econômico) aqui tratado.
O pan-africanismo “político” nasceu da atuação de jovens ativistas durante a
década de 1930. Sua marca distintiva foi pensar a causa negra e africana desde o
viés tático-estratégico. Daí o termo “político”, embora os pan-africanismos citados
também tenham tido raízes e consequências políticas. Sua origem é a atuação
anterior de líderes históricos dos movimentos negros, como W. E. Du Bois e Garvey.
No entanto, ele é fundamentalmente fruto da atuação de uma nova geração de
ativistas negros, dentro e fora da África, que resolveu se unir após a invasão da
Etiópia pela Itália (1935)
11
, para combater a discriminação racial e defender mais
veementemente a independência dos países africanos. Nesse sentido, sua ação era
mais radical do que aquela dos congressos pan-africanos anteriores, organizados
pela N.A.A.C.P. (Londres, Paris e Bruxelas, 1919; Londres e Lisboa, 1921; Nova
York, 1927) (DECRANE, 1962).
Dessa nova geração, surgiram associações como a West African Student Union,
Ligue de défense de la race nègre, International African Service Boureau (IASB) e
Panafrican Federation. A IASB foi essencial. Seu núcleo era formado por C. R. James
e G. Padmore. Amigos de infância na Ilha de Trindade, eles haviam emigrado para
Londres na década de 1920. Lá, se juntaram a outros ativistas da luta anti-imperialista
e antirracista da época: T. R. Makonnen (empresário e organizador, advindo da
Guiné Britânica), Amy Ashwood Garvey (ativista, ex-esposa de M. Garvey),
Jomo Kenyatta (futuro primeiro-ministro do Quênia), Wallace-Johnson (conhecido
10 A formação da União Africana pouco altera esse quadro, pois ela só pode interferir na soberania nacional dos
seus membros por questões de segurança e direitos humanos.
11 Trata-se da Segunda Guerra Ítalo-Etíope. A primeira foi vencida pelos etíopes em 1896. A Segunda Guerra
foi vencida pelos italianos, o que levou a uma ocupação do território etíope pelas tropas de Mussolini, entre
1936-1941. O fato teve ampla repercussão internacional e foi sumamente importante para a reorganização
do movimento pan-africanista, no entreguerras. Vale lembrar que, a exceção da Libéria, que era território
protegido dos EUA, a Etiópia era o único país africano que havia escapado da ocupação colonial, deflagrada
após a Conferência de Berlim (1984-85). Daí que a invasão italiana, em 1935, tenha causado tanta indignação
internacional, tornando-se um fator fundamental para a mobilização pan-africanista.
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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
ativista de Serra Leoa),T. Garan Kouyaté (senegalense, antigo membro da
Internacional Comunista) e Kwame N´Krumah (futuro presidente de Gana).
Em depoimentos posteriores, C. R. James (1973) e Makonnen (1973) coincidem
ao dizer que Padmore era o verdadeiro líder político desse grupo. Após sair de
Trindade, Padmore se formou na Howard University, a mais conhecida universidade
dirigida pela comunidade negra norte-americana. Nessa época, em fins da década
de 1910, integrou-se ao Partido Comunista dos EUA, tornando-se, posteriormente,
um membro influente no Comintern durante a década de 1920. Ele era, então,
o principal dirigente encarregado de dialogar com as organizações negras na
África, Europa e EUA. Após romper com o Comintern, em 1934, Padmore trouxe
essa vasta experiência e contatos para a luta pan-africanista, levando-a a outro
patamar de organização.
Um dos frutos dessa nova política foi o congresso pan-africano de Manchester,
de 1945. Esse congresso foi uma ruptura em relação aos demais. Em primeiro
lugar, porque, até então, a maioria dos delegados presentes em tais congressos
era de brancos liberais e negros estadunidenses e europeus. Enquanto que,
em Manchester, ao contrário, os africanos não foram apenas majoritários, mas
também se tornaram as figuras proeminentes do evento. Secundariamente e, em
parte, como resultante desse fato, ali também se consagrou um pan-africanismo
diretamente vinculado ao processo de descolonização na África, liderado por
ativistas e intelectuais do continente, como Léopold Sédar Senghor, Azikiwe
Nandi, Jomo Kenyatta e Kwame N’Krumah (KODJO; CHANAIWA, 2010, p. 897).
Pan-africanismo: unidade e diversidade (1945-63)
Não se deve refletir sobre a especificidade do que seria uma herança pan-
africana, sem ter em conta a diversidade dos pan-africanismos. Algo que aqui
se buscou sintetizar nessa divisão típico-ideal: a) teórico (cultura; história;
economia); b) política. É uma visão generalista, sem dúvida, e como tal carrega
pontos positivos e negativos.
A partir de Manchester, o pan-africanismo torna-se uma ideologia mais coesa.
Sobretudo, porque, desde então, se estabeleceu o consenso de que a luta pan-africana
seria essencialmente a luta intransigente pelas independências africanas. Tal linha
foi retomada no VI e no VII congressos pan-africanos, em Kumasi (1953) e Accra
(1958). Mas, nesses dois encontros, a questão da Guerra Fria já se tornará central,
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condicionando a posterior divisão dos pan-africanistas africanos nos grupos de
“Monróvia” (1962) e “Casablanca (1961)”
12
. Essa história já é conhecida em suas
linhas gerais. O que se discutirá aqui é como a divisão tipológica estabelecida
ajuda a reestabelecer algumas premissas comuns da ideologia pan-africanista desse
período, para além de suas diversidades. Uma unidade baseada em quatro pilares
inter-relacionados: a) libertação; b) integração; c) solidariedade; d) personalidade
africana.
O termo libertação, por exemplo, é unânime em todos os pan-africanismos
na época tratada. Era uma premissa pós-Manchester (1945). Mesmo entre os
liberais que fundaram o grupo de Monróvia. Afinal, para eles, não havia dúvida
de que sua soberania implicasse a libertação da África do julgo colonial. O que
os distinguia do grupo de Casablanca era que eles não admitiam uma ideia
fundamental desse segundo grupo: de que tal libertação só se consagraria com
uma rápida unificação continental.
O mesmo pode-se dizer da discussão de época sobre a “integração”
africana. Enquanto sinônimo de integração continental e federalismo, o termo
foi pioneiramente trazido por M. Garvey na década de 1920. Mas, após 1945, a
ideia tornou-se uma utopia concreta. E vários intelectuais e ativistas começaram a
defendê-la publicamente. Em particular, nas páginas da revista Présence Africaine,
que se tornou porta-voz desse ideal entre 1955 e 1963. Em suma, existia a crença
geral de que era preciso trabalhar concretamente em prol dessa integração, antes
que as independências nacionais legitimassem e consagrassem as fronteiras
“nacionais” criadas pela Conferência de Berlim (ASANTE; CHANAIWA, 2010).
Só assim poder-se-ia lutar contra aquilo que era visto como o principal problema
do continente: a balcanização da África. Essa era uma ideia que, publicamente,
12 O Grupo de Casablanca tinha por membros Gana, Guiné, Egito, Mali, Sudão, Marrocos, Líbia, Tunísia e o governo
argelino no exílio. Ele reunia aqueles dirigentes africanos militantes do pan-africanismo, do socialismo e do
não alinhamento, preconizando uma planificação e um centralizado desenvolvimento econômico, um sistema
de defesa e de segurança em esfera continental e a defesa e restabelecimento dos valores culturais africanos.
Eram favoráveis a uma integração rápida, com forte unificação política, tal qual idealizada por K. N´Krumah.
Era o chamado pan-africanismo maximalista. O grupo de Monróvia era formado pelo Congo, Senegal, Costa do
Marfim, República Centro-Africana, Etiópia, Mauritânia, Benim, Gabão, Níger, Alto Volta, Chade, Madagascar,
Camarões, Libéria e Serra Leoa. Esse grupo era favorável a uma confederação “maleável” de Estados africanos,
soberanos e independentes, que favorecesse uma participação e uma cooperação voluntárias no âmbito dos
intercâmbios culturais e da interação econômica. Os seus membros eram particularmente inflexíveis no tocante
ao respeito pela soberania e integridade territorial de cada Estado, desconfiando das ambições de certos Estados
do grupo de Casablanca e antevendo uma possível ingerência em seus assuntos internos. Era o chamado
pan-africanismo minimalista, de viés liberal, cujos principais defensores eram L. Senghor, do Senegal, e Félix
Houphouet Boigny, da Costa do Marfim (ASANTE; CHANAIWA, 2010, p. 877).
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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
se encontrava tanto nos liberais, como Senghor e Azikiwe, quanto nos radicais,
como N´Krumah. Ou seja, assim como em relação à libertação, a questão era mais
política do que teórica. O problema era como realizar tal integração.
Vejamos como o mesmo tipo de dilema político se coloca com relação a outro
consenso teórico entre os pan-africanistas: solidariedade. Em verdade, enquanto
solidariedade “racial”, tal pressuposto é algo presente desde o 1º Congresso
Pan-africano, de 1900. Mas, na década de 1950, esse pressuposto se tornou cada
vez mais cosmopolita, englobando não apenas os africanos e seus descendentes,
mas também os demais povos explorados e oprimidos do mundo. Em particular, os
povos do Terceiro Mundo que estavam em luta contra o colonialismo, na Indonésia,
Vietnã etc. É fato que o termo podia ser entendido de um ponto de vista meramente
abstrato. Mas não há dúvida de que ele ultrapassou tal limite em momentos
históricos importantes, como, por exemplo, na luta contra o ultracolonialismo
português e o apartheid.
A questão da “personalidade africana” é mais complexa. Entre 1945 e 1970,
aproximadamente, generalizou-se também a ideia de que o pan-africanismo deveria
se formar como uma nova ideologia política, que se afastasse das tendências
ocidentais, o liberalismo e o marxismo. Não há espaço para explicar tal fato em
pormenores, nesse artigo
13
. Mas a ideia era que essa nova ideologia deveria se
enraizar nas culturas locais africanas. E, para tanto, seria preciso retomar aspectos
da “civilização” e da “personalidade” africana para reconstruir os valores próprios
dos africanos. O ponto extremo, mais essencialista, dessa perspectiva talvez seja
o de L. S. Senghor (1956).
Em verdade, inicialmente, essa não era uma questão importante para o
“pan-africanismo político”, que veio de Padmore e James. Mas a questão será
retomada por N´Krumah, em Personalidade africana, 1963, o principal discípulo
desse grupo. O termo “personalidade” é interessante. Ele foi retomado de Edward
Blyden, que o havia cunhado em fins do século XIX. Foi reutilizado também
pela negritude francófona na década de 1950. Ali ele era tido como uma certa
essência própria, que seria a contribuição cultural do negro à civilização universal
(MUNANGA, 1988). Evidentemente, não se trata de uma essência estacionada na
tradição, mas dinâmica, voltada para o futuro. Algo que o historiador J. Ki-Zerbo
(1962) sintetizou na tríade: coletivismo, gerontocracia, solidariedade.
13 Sobre esse particular, ver, sobretudo, Esedebe (1994).
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Tais considerações, que de certo mereceriam maior análise, mostram que as
divisões entre os pan-africanistas entre 1945-63 não se colocavam essencialmente
no plano teórico, mas político. Teoricamente, o pan-africanismo foi uma ideologia
coerente, fundamentada em alguns princípios básicos: libertação, integração,
solidariedade, personalidade africana. Os quatro termos são inter-relacionados e
se constroem na luta política. Em suma, o que os pan-africanistas diziam – com
razão – é que a soberania, na África, dependia da independência nacional, sem
dúvida. Mas dependia também da formação de uma nova África, federalizada e
endogenamente desenvolvida e solidária, a partir da modernização de suas próprias
tradições e culturas, ou seja, sua personalidade.
Tal é o caminho para a África, e os intelectuais africanos de ontem e hoje sabem
disso. Não se faz necessário que alguém lhes explique a lógica da dependência, do
mercado mundial, do imperialismo, da exploração de classes etc. Eles sabem de tudo.
E, vale dizer, criaram uma ideologia própria para lidar com toda essa problemática:
o pan-africanismo. A questão é política. Assim como ocorre na América Latina, o
fato de eles não trilharem tal caminho não se deve a insuficiências teóricas, mas a
derrotas no plano político. Esse é o desafio colocado para que a América Latina e
a África consigam se colocar de forma mais afirmativa no mundo policêntrico que
está se formando no início do século XXI.
Conclusões
Na área de relações internacionais na África, o pan-africanismo tem sido
cada vez mais trabalhado como abordagem teórico-metodológica e política para
pensar os dilemas dos países do continente e da África como um todo. Em verdade,
trata-se de uma recuperação de tal abordagem que, embora tenha inspirado
fortemente a cultura política africana na última metade do século XX, teve parca
repercussão no campo específico das relações internacionais, dentro e fora da África.
Três questões centrais parecem determinantes nessa retomada. Em primeiro lugar,
o chamado “renascimento africano”, como foi chamado o crescimento econômico
recente de certos países africanos, que aproveitaram o boom das commodities para
aumentar suas exportações agrícolas e minerais. Em segundo lugar, a consolidação
da União Africana, como organismo continental de promoção da integração e da
unidade africana. Por fim, a renovação e a ampliação dos estudos acadêmicos sobre
relações internacionais (dentro e fora da África) desde a década de 1970, que vêm
contribuindo para torná-la uma área menos eurocêntrica do que outrora.
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Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida
Nesse contexto, o presente ensaio se coloca em diálogo com os intelectuais
que vêm promovendo a “escola pan-africanista” (MURITHI, 2016) dentro das
relações internacionais. Não apenas porque se acredita que o conhecimento dessa
escola” seja importante para consolidar um diálogo intercultural no campo, mas
também porque se defende que tal ideário possui uma contribuição importante ao
saber humanístico, em geral, e à área de relações internacionais, em particular.
No Brasil, ainda se confunde a abordagem pan-africanista com outras
mais em voga e conhecidas no dito Ocidente, como o “pós-colonialismo” ou
as “epistemologias do Sul”. Esse artigo buscou contribuir para a difusão de
um conhecimento introdutório sobre o assunto, que poderá ser debatido e
complementado com pesquisas futuras e com a participação de novos estudiosos.
Mas ele visou também defender a existência de certo núcleo duro pan-africanista. Em
outros termos, uma unidade para além das diversidades ali existentes – inevitáveis
em uma teoria crítica de história secular. Algo que sumarizamos nos quatro
pontos citados: a) liberação; b) integração; c) solidariedade; d) personalidade.
Em uma próxima oportunidade, debater-se-á de que forma tal interpretação do
pan-africanismo dialoga com temas fulcrais das relações internacionais (nação,
regionalismo, sistema internacional, segurança, direitos humanos etc.), buscando
explicitar nossas diferenças e semelhanças com a bibliografia especializada da
escola pan-africanista”, que busca se renovar na África.
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