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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
A Irmandade Muçulmana Egípcia:
aspectos transnacionais e nacionais
de sua atuação política
The Egyptian Muslim Brotherhood:
national and transnational aspects
of its political performance
DOI: 10.21530/ci.v11n1.2016.315
Danny Zahreddine
1
Guilherme Di Lorenzo Pires
2
Resumo
O artigo apresenta um balanço da história da Irmandade Muçulmana e sua relação com os
sucessivos governos egípcios desde 1928, ano da criação da Irmandade por Hassan al-Banna.
Uma abordagem histórica que vislumbre os caminhos políticos da Irmandade Muçulmana no
decorrer das décadas mostra os processos que induziram mudanças significativas na agenda
política da organização. Nas primeiras décadas de existência, a Irmandade Muçulmana
era uma organização com vocação transnacional e engajada no combate ao colonialismo,
ao imperialismo e ao regime egípcio, visto como corrupto e imoral. Para essas contendas,
a organização desenvolveu uma ideologia militante e radical que encorajava ações drásticas,
e até mesmo violentas. Contudo, desde o governo de Anwar Saddat, a Irmandade Muçulmana
vem adotando uma postura diferente em relação à política, na medida em que ganhou
legitimação social informal, ainda que não tenha recebido o reconhecimento legal. A partir
desse momento, a Irmandade teve uma relação complexa com o regime egípcio, caracterizada
por um ciclo de acomodação e coerção por parte do regime. Fatores políticos e sociais são
fundamentais para a compreensão da mudança da agenda política da Irmandade Muçulmana,
1 Professor do Programa de Pós Graduação do Departamento de Relações Internacionais – PUC Minas.
2 Graduado em História pela UFMG. Mestrado em Relações Internacionais pela PUC Minas. E, atualmente,
doutorando em Relações Internacionais pela PUC Minas.
Artigo recebido em 18/02/2016 e aprovado em 23/06/2016.
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de uma organização intransigente engajada nas questões regionais para uma organização
que busca a aceitação institucional doméstica.
Palavras-chave: Transnacionalismo; Nacionalismo; Islã Político; Egito; Irmandade Muçulmana.
Abstract
This article presents an assessment of the history of the Muslim Brotherhood and its
relationship with the successive Egyptian governments since 1928, year of foundation
of the Brotherhood by Hassan al-Banna. An historical approach that follows the Muslim
Brotherhood’s political path through the decades shows the processes that have induced
significant changes in the political agenda of the organization. During its first decades of
existence, the Muslim Brotherhood was an organization with transnational vocation and
engaged in combating colonialism, imperialism and the Egyptian regime, seen as corrupt and
immoral. The organization has developed a militant and radical ideology that encouraged
drastic, and even violent, actions. But it is argued here that since Anwar Saddat presidency,
the Muslim Brotherhood has been adopting a different attitude to politics, as it gained
a meaningful informal social legitimacy, but yet failed to secure legal recognition. From
this moment, the Brotherhood has maintained a complex relation with Egyptian regime,
characterized by a cycle of accommodation and coercion. In this aspect, political and social
features are fundamental to understand the shift of the political agenda of the Muslim
Brotherhood from an uncompromising organization engaged in regional affairs to one that
searched domestic institutional acceptance.
Keywords: Transnationalism; Nationalism; Political Islam; Egypt; Muslim Brotherhood.
Introdução
O surgimento dos Estados nacionais na contemporaneidade representou
um desafio para as autoridades religiosas e políticas nas sociedades de maioria
muçulmana. O estabelecimento de Estados soberanos, com suas fronteiras definidas
pelas potências europeias, colocou em xeque a noção da Umma – entendida
como a comunidade de todos muçulmanos e que não reconhece distinções
étnicas ou raciais – como uma categoria política relevante (AYOOB, 2008).
A ideia de um sistema formado por nações, isto é, por comunidades políticas
imaginadas como limitadas e soberanas (ANDERSON, 2008), representou um
desafio tanto no sentido prático quanto ideológico às populações do Oriente
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
Médio
3
: qual deveria ser a base presumivelmente natural desses Estados nacionais?
As respostas apresentadas pelo mundo islâmico foram diversas e contraditórias
(AYOOB, 2008). O presente artigo analisa a maneira como a Irmandade Muçulmana
egípcia
4
se posicionou diante do princípio do nacionalismo, e como ela articulou
essa ideia em ações políticas efetivas.
Abd al-Fattah El-Awaisi (1998) assinala dois fatores importantes para a
compreensão da inserção da Irmandade Muçulmana na sociedade internacional
5
do Oriente Médio: primeiro, há a ideia de que a Umma é a principal referência para
a solidariedade coletiva. Nessa perspectiva, os motivos religiosos são constantes e
invariáveis, pois derivam dos princípios básicos do Islã. O segundo aspecto são as
realidades particulares nacionais as quais a Irmandade aceita como variáveis em
função das condições históricas e sociais (EL-AWAISI, 1998). Com isso, Hassan
al-Banna decompunha a lealdade política da Irmandade Muçulmana em três
dimensões: a lealdade para com o país, para com o arabismo
6
e para com o Islã.
Contudo, a lealdade entre as três unidades não era percebida como conflitante
nem contraditória, pois a interação entre os domínios teria como consequência
a aproximação entre as unidades. Mas, dentro desses círculos concêntricos de
identidades coletivas, o que se observa, no pensamento de al-Banna, é a primazia
da comunidade dos fiéis sobre os demais.
Contudo, é preciso destacar que, na tradição islâmica, a Umma é mais do
que uma comunidade política: ela abrange diversos elementos que dizem respeito
à fé e à relação do homem e Deus. Com efeito, é possível pensar na Umma
como uma comunidade puramente religiosa sem maiores implicações políticas.
Contudo, fica evidente que a expectativa de al-Banna era que o estabelecimento
de laços entre os fiéis os conduziria inevitavelmente a uma entidade política.
O nacionalismo territorial, por sua vez, era um princípio válido, mas subordinado aos
preceitos islâmicos, pois o nacionalismo teria uma finalidade “secular” e política
(MITCHELL, 1969). Tendo em vista tal discussão, o presente artigo pretende explorar
3 Entre as diversas acepções do termo, no presente artigo a noção de Oriente Médio remete à região que se
estende da costa oriental do Mediterrâneo até o Irã e da Anatólia central até a Península Arábica (ZAHREDDINE;
LASMAR; TEIXEIRA, 2011).
4 No início do século XXI, a Irmandade Muçulmana possuía ramificações em mais de 70 países (MEIJER; BAKKER,
2012), o que faz da Irmandade uma organização bastante popular no Oriente Médio, além de ter sido o modelo
para outros movimentos sociais e religiosos.
5 Emprega-se aqui o termo sociedade internacional tal qual elaborado por Barry Buzan (2004).
6 O arabismo foi um movimento político e uma ideologia moderna cujo objetivo primordial era o estabelecimento
da Nação Árabe. O arabismo teve origem entre intelectuais da região do Levante na segunda metade do século
XIX (HOURANI, 2006).
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determinados aspectos dessa problemática através da seguinte pergunta: qual o
escopo da atuação da Irmandade Muçulmana no espaço nacional e no internacional?
É um estudo de caso que pretende apreender a maneira como um movimento
islamista, a Irmandade Muçulmana egípcia, fez a passagem de um grupo
transnacional para um grupo nacional. Nesse sentido, é proposto entender
como os arranjos político-institucionais influenciaram a delimitação da agenda
política e ideológica do grupo ao Estado egípcio. Desta forma, esboça-se a
hipótese de que movimentos transnacionais com objetivos políticos, e buscando
reconhecimento institucional, quando em Estados com aparato institucional político
bem estabelecido, tendem a se nacionalizar, pois realidades políticas, sociais e
históricas criam barreiras para ambições revolucionárias.
Para sustentar tal argumento, é proposto um estudo histórico da trajetória da
Irmandade Muçulmana, observando o escopo da atuação política da organização.
Nesse sentido, é importante observar que todos os processos políticos ocorrem
na história, e consequentemente necessitam de um conhecimento dos contextos
históricos em que estão situados. Assim sendo, a história é parte essencial da
explicação de processos políticos.
Portanto, no estudo de caso, a perda de universalidade inerente às análises
mais amplas é compensada pela apreensão de mecanismos causais, de sequências e
combinações de variáveis. Se, por um lado, são abandonadas quaisquer pretensões
de leis que expliquem grandes estruturas, análises mais detidas oferecem a
oportunidade de entender mais profundamente processos locais, suas causas e
suas trajetórias.
Nosso recorte temporal não alcançará com profundidade os desdobramentos
atuais das revoltas que marcaram o Oriente Médio a partir de 2010 (Primavera
Árabe), em particular no Egito (Revolução de Lótus), em 2011, por duas razões
principais: a primeira, diz respeito ao longo espectro histórico, que por si só é
capaz de reforçar a hipótese central do artigo. A segunda razão está ligada ao
receio de se debruçar sobre um fenômeno tão recente, e ainda em transformação,
o que poderia gerar análises equivocadas e imaturas sobre o processo em curso.
Movimentos islamistas e o Estado
A ascensão de movimentos islamistas no Oriente Médio vem sendo objeto
de pesquisa e de discussões acadêmicas calorosas. No que diz respeito ao papel
de fatores políticos, como mostra Annette Ranko (2015), a literatura sobre
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
movimentos islamistas pode ser dividida em duas teses gerais: a tese da repressão
e radicalização, e a tese da inclusão e da moderação.
A tese da radicalização se ampara na teoria dos movimentos sociais e
pressupõe uma relação causal entre a repressão estatal sobre grupos islamistas e a
radicalização desses. A abordagem da estrutura de oportunidade política prioriza o
estudo do Estado, dos limites e das oportunidades políticas existentes, assim como
a apreensão de fatores estruturais e institucionais que possibilitam a mobilização
(WIKTOROWICZ, 2004). No caso desta abordagem, o acesso a instituições políticas
(ou a falta dele) e a repressão estatal são as variáveis observadas. Porém, nem
sempre a repressão estatal é acompanhada pela radicalização dos movimentos
islamistas. Da mesma forma, existem casos em que movimentos se radicalizam
sem uma condição incisiva de repressão.
Por outro lado, uma literatura importante na ciência política vem defendendo
a integração de partidos políticos radicais dentro do sistema político, o que levaria
à sua moderação. Esses partidos repensam seus princípios ideológicos tendo em
vista a visibilidade eleitoral e a legalidade política. A moderação é entendida como
a aceitação dos procedimentos democráticos. A participação nas políticas eleitorais
leva, segundo tal perspectiva, à moderação da ideologia e à interiorização dos
princípios democráticos (RANKO, 2015). Porém, há aqueles autores que afirmam
que os movimentos islamistas usam a participação no sistema político como meio
para a ascensão política, geralmente através de eleições. Nesse sentido, não há
uma verdadeira aceitação dos princípios democráticos, mas um uso instrumental
das eleições para se chegar ao poder (GURSES, 2014). Argumenta-se aqui que tais
mecanismos que levam à moderação de movimentos islamistas são os mesmos
que são responsáveis pela “nacionalização” desses movimentos.
Tendo isso em vista, a contribuição do presente artigo é chamar atenção
para uma faceta que não é tão explorada: o escopo da atuação dos movimentos
islamistas. Para tal exercício intelectual, adota-se uma noção mais geral conforme a
proposta de Graham E. Fuller: islamista é aquele que “acredita que o Islã, enquanto
corpo de fé tem algo importante a dizer sobre como a sociedade e a política devem
ser ordenadas no mundo Muçulmano contemporâneo e busca implementar esta
ideia de algum modo”
7
(FULLER, 2010, p. 52, tradução nossa). Com isso, o termo
abrange tanto movimentos nacionais quanto transnacionais, que são o objeto de
pesquisa do presente artigo.
7 “(...) believes that Islam as a body of faith has something important to say about how politics and society
should be ordered in the contemporary Muslim World and seeks to implement this idea in some fashion.”
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A criação da Irmandade Muçulmana
A Irmandade Muçulmana foi fundada por Hassan al-Banna em 1928 no
Egito. Hassan al-Banna nasceu em 1906 em uma região rural a nordeste de Cairo.
O seu pai tinha formação religiosa, o que influenciou a vida espiritual de al-Banna,
muito embora ele próprio não tivesse uma formação religiosa formal. Em 1923,
al-Banna se mudou para o Cairo, onde teve contato com a ocidentalização da cultura
egípcia, processo que ele considerou preocupante (COMMINS, 1994). Em 1927,
al-Banna se juntou a outros jovens em uma sociedade que promovia o revivalismo
islâmico, denominada a Associação dos Jovens Muçulmanos (COMMINS, 1994).
Quando se graduou em 1927, o Ministério da Educação indicou Hassan al-Banna
como professor de língua árabe na cidade de Isma’iliya, localizada no Canal de
Suez e sede da administração da Companhia do Canal de Suez, lugar onde esteve
próximo dos europeus que trabalhavam para a Companhia (COMMINS, 1994).
Em 1928, al-Banna fundou a Irmandade Muçulmana com o objetivo de
promover aquilo que ele considerava constituir a essência do Islã. Nos quatro anos
seguintes, outras ramificações foram criadas nas cidades vizinhas e na região do
Delta. Em 1932, al-Banna decide mudar o centro da organização para o Cairo, e, a
partir de então, o número de integrantes cresceu significativamente. Dez anos após
a sua criação, a Irmandade contava com aproximadamente 50.000 membros e se
tornara um dos movimentos sociais mais importantes no Egito (MITCHELL, 1969).
Como outros movimentos religiosos de sua época, a Irmandade Muçulmana,
no início, era um movimento apolítico que buscava reformar a prática religiosa e
prestar auxílio social aos seus integrantes. Contudo, as atividades da Irmandade se
tornaram políticas ao final da década de 1930. O evento que precipitou tal mudança
foi o protesto árabe na Palestina em 1936 contra o movimento sionista que ganhara
fôlego no início daquela década. A Irmandade apoiou os protestos e militou pela
causa Palestina entre a população egípcia. Ao mesmo tempo, a organização publicou
críticas ao regime monárquico do Egito e à influência da Grã-Bretanha na política
egípcia (MUNSON, 2001). Em 1941, as autoridades militares britânicas exigiram
que al-Banna se retirasse do Cairo, e em outubro daquele ano, al-Banna e outros
líderes da Irmandade foram presos e os encontros da organização foram banidos.
Além do engajamento político, a Irmandade Muçulmana também buscou
estabelecer uma força paramilitar secreta. Hassan al-Banna via a causa Palestina sob
a ótica religiosa, e mesmo antes da resolução da partilha do território sob a tutela
britânica, a Irmandade Muçulmana dava grande importância à causa Palestina.
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
Hassan al-Banna argumentava que os governos árabes deveriam financiar e armar as
forças palestinas, mas não deveriam participar diretamente do conflito, pois assim
evitariam o possível envolvimento de forças internacionais (EL-AWAISI, 1998).
A situação na Palestina precipitou outra tendência da Irmandade Muçulmana
nas décadas de 1930 e 1940: a fundação de ramificações nos países vizinhos.
Nesses anos, um intenso trânsito de pessoas e ideias tomou lugar entre a
Irmandade Muçulmana e grupos religiosos na Síria e na Transjordânia. Em 1940,
organizações religiosas sírias se uniriam sob o nome de Irmandade Muçulmana
Síria, mantendo uma intensa relação com os membros egípcios, e, inclusive, durante
a perseguição promovida durante o governo de Nasser, a Irmandade Muçulmana
Síria desempenhou um papel importante.
Após conhecer uma fase de expansão no início da década de 1940, a
Irmandade Muçulmana foi dissolvida no final de 1948 pelo governo egípcio sob o
argumento de que a organização promovia a instabilidade nacional. Em resposta,
a organização assassinou o primeiro-ministro egípcio Mahmud Fahmi al-Nuqrashi,
responsável pela dissolução. Dois meses depois, Al-Banna foi morto pela polícia,
encerrando, assim, a primeira fase da Irmandade Muçulmana (MITCHELL, 1969).
No momento em que Hassan al-Banna morreu, a organização possuía entre 300.000
e 600.000 membros ativos, constituindo uma das maiores forças políticas e sociais
organizadas no Egito (MUNSON, 2001).
Após o assassinato de Hassan al-Banna, a Irmandade entrou em um período
de crise e de enfrentamento com o regime monárquico. Al-Banna foi substituído
por Hasan Isma’il al-Hudaybi, juiz da Alta Corte e figura respeitada pela elite
egípcia. E, apesar de não ser tão carismático quanto o seu predecessor, al-Hudaybi
conseguiu garantir a sobrevivência do grupo durante os anos mais difíceis de sua
história.
O período de Nasser (1952-1970):
momento de declínio da Irmandade Muçulmana
Em julho de 1952, um grupo de jovens oficiais, sob a liderança do general
Muhammad Naguib, derrubou o regime monárquico. Após um breve período
de disputa interna, o coronel Gamal Abd Al-Nasser despontou como a figura
forte no grupo e assumiu a presidência, cargo que ocupou até a sua morte, em
1970. Essas duas décadas constituíram o período mais crítico para a Irmandade
Muçulmana em sua história. Nos seis primeiros meses de governo, os Oficiais
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Livres almejavam manter uma relação pacífica com a Irmandade, pois receavam a
popularidade e a capacidade de mobilização do grupo. A Irmandade Muçulmana,
por sua vez, apoiou a revolução, pois o novo regime se estabelecera em oposição
ao imperialismo europeu e ao regime monárquico (MITCHELL, 1969). Entretanto,
essa relação pacífica entre governo e a organização não durou muito. Logo surgiram
tensões entre a Irmandade Muçulmana e a liderança do novo regime, sobretudo
o coronel Gamal ‘Abd al-Nasser.
Nasser buscou legitimar o seu governo através de políticas sociais e do
nacionalismo secular ancorado no projeto pan-arabista. Ficava, então, evidente a
incompatibilidade entre o projeto dos Oficiais Livres e o da Irmandade Muçulmana
(GORDON, 1996). Ainda assim, é preciso observar que, apesar da desconfiança
em relação à nova liderança de Hasan al-Hudaybi, Nasser tentou cooptar figuras
importantes dentro da organização, inclusive oferecendo três ministérios a
membros da Irmandade Muçulmana, os quais a liderança da Irmandade recusou
(ZOLLNER, 2009).
Em 1954, um membro da Irmandade Muçulmana tentou assassinar Nasser
durante um discurso público. Nasser respondeu ordenando novamente a dissolução
da Irmandade e a prisão de centenas de membros. Os julgamentos subsequentes
levaram à execução de líderes da irmandade (MUNSON, 2001). Nesse período, a
Irmandade viu a liderança institucional de al-Hudaybi ser questionada por facções
mais radicais do movimento que seguiam lideranças mais carismáticas, como o
ideólogo Sayyid Qutb, que pregavam uma oposição mais radical ao regime de
Nasser. A dissolução da Irmandade Muçulmana em 1954 marca uma nova fase
na relação entre a organização e o regime que durou até 1967, quando os países
árabes perdem a guerra para Israel. Durante esses anos, a Irmandade foi obrigada
a agir de forma clandestina (ZOLLNER, 2009).
A Irmandade contava, nesse período, com o auxílio de membros que estavam
no exílio e com o apoio de outras organizações similares naquela área. Atores
externos, como a Arábia Saudita, que rivalizava com Nasser pela liderança na
região, se tornaram fonte de recursos financeiros para a Irmandade. Evidências
apontadas por Barbara Zollner (2009) mostram que a sobrevivência do grupo não
se limitou a pequenos grupos no Cairo e em Alexandria, mas abarcava círculos
que compreendiam outras partes do Egito.
Após alguns anos de uma liberdade controlada, em julho de 1965, o regime
retomou as perseguições. Nesses anos, Nasser condenara a Irmandade sob a
justificativa de que integrantes da organização estavam arquitetando um ataque
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
armado com o intuito de derrubar o governo. As cortes sentenciaram à pena de
morte diversos membros importantes, como Sayyid Qutb. Essa nova perseguição,
apesar de ter sido tão dura quanto a de 1954, não colocou a existência do grupo
em risco, pois, naquele momento, a organização da Irmandade estava mais
estabelecida e havia um sentimento mais claro sobre a identidade da organização
(ZOLLNER, 2009).
O que se pode observar nesses anos do governo de Nasser é a divisão entre
setores mais radicais da Irmandade Muçulmana e a liderança moderada. Apesar de
al-Hudaybi consentir com as atividades educacionais e os esforços de atualização
da liderança ideológica realizados por Qutb, o líder da Irmandade buscou se
distanciar da orientação mais radical vinculada ao combate da jahiliyya
8
. Desse
modo, al-Hudaybi acabou sendo isolado pela fração jovem mais radical da
organização, e foi considerado uma liderança fraca incapaz de guiar a Irmandade
durante os anos de repressão (ZOLLNER, 2009). Hassan al-Hudaybi morreu
em 1973, sendo sucedido por Urmar al-Tilmisani, proveniente de uma família
importante de proprietários de terra, que liderou a Irmandade durante o regime de
Sadat, fase caracterizada em seu início pela relativa cooperação entre a organização
e o regime. Apesar de não ter sido um líder carismático, al-Hudaybi estabeleceu
os fundamentos ideológicos adotados pelo grupo no início da década de 1970,
rejeitando os preceitos radicais e militantes de Sayyid Qutb.
Anwar Sadat (1970-1981):
momento de reconstrução da Irmandade Muçulmana
Logo após a morte de Nasser em 1970, o vice-presidente Anwar Sadat, um
dos líderes da Revolução de 1952, assumiu o cargo de presidente. Sadat assumiu
o governo de um país fragmentado e desmoralizado pela derrota na guerra de
1967. Sem o carisma de Nasser, Sadat se tornou uma figura política distinta de seu
antecessor, não somente no aspecto pessoal, mas na postura política (IBRAHIM,
2002, p. 37). A busca por legitimidade levou Sadat a enfatizar o caráter religioso
do governo e da sua própria pessoa (AYUBI, 1980). Para isso, ele endossava a
construção de um Estado baseado nos valores islâmicos, ainda que não fosse um
Estado teocrático no sentido estrito. Esse discurso ajudou a galvanizar a identidade
islâmica do governo e da sociedade.
8 O termo Jahiliyya, conforme usado por Qutb, adquire o sentido da condição social e espiritual de qualquer sociedade
que ignora a Sharia e a autoridade divina prescrita pelo Corão em todos os aspectos da vida (SHEPARD, 2003).
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Na busca por aliados no âmbito doméstico, Sadat se aproximou da Irmandade
Muçulmana, mobilizando a lembrança de afinidades passadas para estabelecer
tal aliança. Mas, ao mesmo tempo, Sadat adotava uma postura mais favorável aos
Estados Unidos e às monarquias do Golfo, apontando para a nova posição do Egito
na geopolítica do Oriente Médio (ZOLLNER, 2009). Esses dois elementos não se
harmonizariam facilmente, o que constituiu um desafio para o governo de Sadat.
Ao passo que Nasser estabelecia sua legitimidade a partir do discurso de
independência nacional, redistribuição de riqueza e defesa do nacionalismo árabe,
Sadat utilizou a retórica do “direito” como fundamento de seu regime. Sadat se
amparou no discurso de abertura das instituições estatais e no Estado de direito.
E, realmente, Sadat consentiu abertura limitada aos oponentes do governo, mas,
ao mesmo tempo, não permitia que eles tivessem acesso pleno ao poder. Nesse
processo, o governo permitiu a criação de partidos alternativos para concorrer
às eleições parlamentares de 1976. Todavia, o poder executivo do presidente
suplantava as prerrogativas do Legislativo, além do governo acompanhar de
perto a criação dos novos partidos. Por exemplo, não era permitida a criação de
partidos baseados em afiliações religiosas, o que excluía a participação direta da
Irmandade no poder (AYUBI, 1989).
Nesse ambiente, ainda que o poder fosse exercido de fato pelo partido do
governo, grupos da oposição acolheram tal reforma com entusiasmo. Com isso,
a Irmandade voltou a ser um ator importante no espaço público: se, por um
lado, ela não poderia constituir um partido político, por outro, foi permitida à
Irmandade empregar outros meios para expor suas ideias no espaço público e
atuar abertamente na sociedade. Com a libertação de integrantes da Irmandade e
a gradual abertura política, a Irmandade reconstruiu a organização e consolidou
a sua presença no espaço público, rejeitando a ideologia mais radical da vertente
de Qutb e aproximando-se dos preceitos defendidos por al-Hudaybi, que previa
uma relação pragmática com as lideranças políticas (SULLIVAN, ABED-KOTOB,
1999). Desde então, um dos principais objetivos da irmandade é ser reconhecida
como um movimento legal (AL-AWADI, 2004).
No âmbito internacional, o principal evento envolvendo o Egito foram os
conflitos com Israel. Ao final da guerra em 1967, a ONU aprovou a Resolução 242
a fim de resolver o impasse entre Israel e os países árabes. Entretanto, Israel não
cumpriu as diretrizes da Resolução, que previa a devolução dos territórios ocupados
com a guerra, incluindo a Península do Sinai (ZAHREDDINE; LASMAR; TEIXEIRA,
2011). Nos anos após a guerra dos Seis Dias, houve o aumento das hostilidades
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
entre Egito e Israel, e Sadat buscou negociar um acordo com Israel no início da
década de 1970. O Egito estava disposto a reconhecer Israel como um Estado
legítimo em troca da devolução da Península do Sinai. Porém, Israel se recusou a
negociar sob o argumento de que o Sinai era um território fundamental para sua
segurança. Diante dessa situação, o Egito e a Síria lançaram um ataque surpresa
contra Israel, em 1973, no feriado judeu de Yom Kippur. A guerra evidenciou
que o Egito ainda era um ator importante no Oriente Médio, e diante disso Israel
aceitou iniciar as negociações de paz. Em 1978, ocorreram as negociações de Camp
David, promovida novamente pelos Estados Unidos, que foram as bases para o
acordo de paz de 1979 entre Egito e Israel (ZAHREDDINE; LASMAR; TEIXEIRA,
2011). No final desse processo, Israel retirara suas tropas do Sinai e o Egito, por
sua vez, reconheceu Israel como um Estado soberano.
Contudo, a despeito dos ganhos políticos no cenário internacional, no
cenário doméstico o regime passou a ser contestado, sobretudo por movimentos
islamistas insatisfeitos com a relativa aproximação do Egito com Israel. Em 1974,
houve uma tentativa de ataque em uma academia militar no Egito, promovida
pelo grupo Shabab Muhammad. A reação do governo foi prender os líderes da
organização e sentenciar alguns à pena de morte. Em resposta, o grupo Takwir
wa-Hijra sequestrou o ministro de Questões Islâmicas, Sheikh Mohammad Al-
Dhahabi, assassinando-o em junho de 1977.
Nos anos finais do governo de Sadat, a relação entre a organização e o governo
foi bastante tensa, muito embora não chegasse aos níveis de embate entre o regime
e grupos tais como o Jihad Islâmica e o Takwir Al-Hijra (BAKER, 1990). Tanto
ou mais do que o fracasso de Sadat em abrir completamente o espaço político à
participação pública irrestrita, o processo de paz de 1977 e a reconciliação com
Israel com o acordo de Camp David foram os motivos das críticas dirigidas ao
governo egípcio. Mas, mesmo com toda essa discordância, a Irmandade se manteve
distante das ações violentas.
A atmosfera de tensão entre Sadat e a oposição ganhou uma nova dimensão
em setembro de 1981, quando jornalistas, políticos e outras figuras importantes
foram presos. Um mês depois, em 6 de outubro de 1981, um integrante do grupo
Al-Jihad, sob a liderança de Abd Al-Salam Faraj, assassinou o presidente Sadat
durante uma parada militar. A Irmandade Muçulmana, por sua vez, se distanciou
dos grupos radicais e lamentou publicamente o assassinato, evidenciando os novos
rumos que a organização tomara a partir do governo de Sadat.
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Danny Zahreddine, Guilherme Di Lorenzo Pires
Era Hosni Mubarak:
um panorama da dinâmica política até as eleições de 1995
As relações entre a Irmandade Muçulmana e o governo de Mubarak, que
subiu ao poder após a morte de Sadat, podem ser divididas em duas fases: a
primeira, que vai de 1981 a 1990, foi um período de acomodação e relativa
tolerância. Nesse momento, Mubarak promoveu uma série de políticas que visava
fortalecer a legitimidade do regime. Por um lado, Mubarak buscou se aproximar
dos demais países árabes e restringiu o diálogo com Israel. Por outro, fortaleceu
a noção do Estado de direito e abriu espaço para maior atividade da imprensa. O
segundo período, de 1990 adiante, foi um período de crise econômica e política,
que desencadeou uma escalada de confronto e repressão.
A fragilidade econômica levou a uma crescente intervenção e manipulação
do governo na Assembleia e em outras arenas políticas. O regime havia aceitado
a decisão da Suprema Corte Constitucional, que considerara as eleições de 1987
inapropriadas, dissolvendo, assim, a Assembleia e convocando novas eleições
para 1990. Com isso, o regime tentava mostrar à população e ao mundo que o
Egito caminhava rumo a um período “pós-autoritário”. Mas a oposição, incluindo
a Irmandade Muçulmana, criticou duramente essa decisão e boicotou as eleições
de 1990, abalando a credibilidade do regime (AL-AWADI, 2004).
Outro elemento que ajudou a abalar a imagem do regime na década de 1990
foi a crescente confrontação com grupos radicais. Em 1992, a atuação de extremistas
religiosos coincidiu com a ascensão dos islamistas na Argélia e o assassinato do
presidente argelino Muhammad Boudiaf (AYALON, 1992). A intensificação da
violência extremista religiosa estava vinculada à frustração de diversos setores
da população em relação ao regime. O resultado desse conflito foi a escalada de
violência, na medida em que agressões contra o Estado incitaram uma resposta
radical por parte do governo, que não distinguia mais islamistas radicais e
moderados (BURGAT, 2005). Diante de tal cenário, a Irmandade optou pelo
caminho da preservação da reputação pública
9
.
Assim, em um contexto de ausência de plataformas políticas formais, a
Irmandade direcionou o ativismo a diversos espaços sociais, tais como os sindicatos
e universidades, que serviam como plataformas efetivas e como alternativas ao
sistema político desigual que negava a participação. Além disso, a Irmandade
9 Gilles Kepel (2003) considera a formação dos grupos islamistas radicais contemporâneos como consequência
da renúncia às ações violentas pela Irmandade Muçulmana na década de 1970.
130
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 11, n. 1, 2016, p. 118-143
A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
soube representar, de maneira bem articulada, os anseios da classe média baixa
que estava insatisfeita com o governo de Mubarak (AL-AWADI, 2004). Portanto,
na falta de meios institucionais, a Irmandade Muçulmana buscou fortalecer sua
posição política através da sua força social.
A tendência em transformar a legitimidade social em legitimidade legal, e
a mobilização envolvida no processo, foi manifesta também nas tentativas sem
sucesso de estabelecer partidos políticos, tais como o Hizb Al-Wasat. Além disso,
representantes da Irmandade Muçulmana tentavam participar das eleições como
candidatos independentes, além de terem forjado alianças com outros partidos
políticos, como o partido liberal secular Wafd. Dessa forma, fica evidente o
crescente pragmatismo da Irmandade Muçulmana, na medida em que ela buscou
articular alianças políticas com grupos de ideologias distintas.
Portanto, o principal elemento que levou ao conflito entre a Irmandade
Muçulmana e o regime de Mubarak foi a busca da Irmandade pela legitimidade,
e a insistência da organização em competir com o regime em seu próprio terreno
político (AL-AWADI, 2004, p. 177). Contudo, em 1991, um evento internacional
contribuiu para a intensificação da oposição entre Irmandade e o regime: a primeira
guerra do Golfo.
A posição regional e internacional egípcia era confortável até o início da crise
do Golfo em agosto de 1991. Cairo continuava a consolidar a sua posição influente
entre os países árabes, usufruindo o status de conciliador, especialmente com a
Síria. Simultaneamente, o regime de Mubarak buscou incrementar as relações
com a ainda existente União Soviética. O tratado de paz com Israel foi mantido,
apesar de momentos de tensão entre Egito e Israel (AYALON, 1992). Se, por um
lado, a crise do Golfo representou um divisor de águas no cenário internacional,
no âmbito doméstico egípcio, o ano de 1990 foi, em grande parte, de continuidade,
apesar dos impactos da crise. O que se observa é a continuidade nas questões
políticas, sociais e econômicas (AYALON, 1992). A crescente pobreza e a ausência
de perspectivas produziram tensões sociopolíticas e iniciou um período de violência.
Diante da reação internacional e da consequente Guerra do Golfo, o Comitê
para a Ação dos Sindicatos – uma coordenação dos sindicatos sob influência da
Irmandade – condenou a presença ocidental no Golfo Pérsico e considerou que o
governo egípcio era responsável pela segurança dos egípcios que trabalhavam no
Iraque e no Kuwait. Em uma segunda declaração, assinada no nome dos mesmos
sindicatos, o Comitê condenou duramente o envolvimento do Egito na guerra,
e reivindicou o retorno imediato das forças armadas (KEPEL, 2002). Contudo,
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 11, n. 1, 2016, p. 118-143
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Danny Zahreddine, Guilherme Di Lorenzo Pires
a Irmandade Muçulmana egípcia não se envolveu em maiores manifestações
públicas em defesa do Iraque.
Ao contrário da revolta palestina em 1936, evento internacional que incitou a
politização da Irmandade Muçulmana, a primeira guerra do Golfo não representou
um divisor de águas para a organização, que naquele momento estava completamente
imersa na política doméstica. Obviamente, são eventos situados em contextos
históricos distintos, mas não deixa de ser ilustrativo a comparação entre os dois
episódios e a reação política da organização. No primeiro caso, a Irmandade se
empenhou numa atividade transnacional pela união dos árabes em defesa da
causa Palestina. No segundo momento, embora a Irmandade tenha participado
de conferências internacionais e tenha mobilizado manifestações populares, esse
engajamento não resultou numa postura mais assertiva por parte da organização
nem redirecionou os principais pontos da agenda política, dedicada à busca da
legitimidade interna.
Além disso, ao se observar as ramificações da Irmandade Muçulmana em
outros países da região, é possível perceber a tendência das organizações a se
mesclarem à dinâmica política dos respectivos países, ao ponto de cada ramificação
adotar agendas distintas e autônomas. A Guerra do Golfo apresenta um caso
emblemático de tais diferenças: ao passo que a Irmandade Muçulmana Egípcia
mobilizou-se a favor de Saddam Hussein, a ramificação no Kuwait se opôs ao
líder iraquiano. E cabe lembrar que a própria Irmandade Muçulmana do Iraque foi
um dos principais aliados da invasão estadunidense, pois a ditadura de Saddam
Hussein oprimia radicalmente toda a oposição (MEIJER; BAKKER, 2012).
A Irmandade Muçulmana na Síria: uma breve comparação
Uma breve comparação com a origem e a trajetória da Irmandade Muçulmana
na Síria serve como caso ilustrativo do argumento aqui apresentado. A ramificação
da Irmandade Muçulmana na Síria era um movimento autônomo da matriz egípcia,
ainda que se inspirasse nas doutrinas de Hassan al-Banna. Tal autonomia foi
fruto das particularidades sociais e políticas da Síria, as quais propiciaram uma
trajetória histórica bastante distinta da organização egípcia (LEFEVRE, 2013).
Além disso, cabe ressaltar que a Irmandade Muçulmana Síria se diferenciava
internamente dependendo da região e das cidades nas quais ela se encontrava.
Em Alepo, por exemplo, predominava uma vertente mais liberal, ao passo que
em Hama se encontrava uma facção mais radical e violenta (LEFEVRE, 2013).
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
Foi em Hama onde explodiu a revolta de 1982 liderada pela Irmandade contra o
regime de Hafez al-Assad. A rebelião foi brutalmente reprimida e boa parte dos
integrantes da Irmandade Muçulmana foi perseguida, presa e exilada. Com isso,
a organização praticamente deixou de ter importância política nos anos seguintes.
Ela só voltaria a ter um papel relevante na Síria a partir dos anos de 2000, quando
a liderança em exílio da Irmandade buscou se aproximar do regime de Bashar
al-Assad, mas rompendo novamente a relação a partir do conflito interno em 2011
(LEFEVRE, 2013).
Apesar da Irmandade Muçulmana egípcia ter desempenhando um papel
ideológico e simbólico na formação da Irmandade síria, ela nunca teve controle
absoluto sobre as ações e a administração de sua irmã. Isso porque a Irmandade
na Síria não foi apenas uma ramificação da matriz, mas foi a união de inúmeros
grupos religiosos já existentes no Levante. Esses grupos, anteriormente autônomos,
foram unificados por integrantes que haviam visitado o Egito, onde entraram em
contato com a ideologia da Hassan al-Banna. (TEITELBAUM, 2011). Portanto,
pode-se dizer que a ideologia da Irmandade Muçulmana desempenhou um papel
mais aglutinador do que realmente criador.
Ao contrário da organização egípcia, que contava com amplo apoio popular, a
vertente síria era apenas um partido, entre vários, e nunca conseguiu estabelecer
uma rede difundida na sociedade. Os integrantes da Irmandade Muçulmana
Síria eram limitados à classe média urbana sunita e homens da religião, o que
contribuiu para que o apelo da organização fosse limitado. Interessante notar que,
ao contrário do Egito, a Irmandade Muçulmana Síria buscou apoio dos ulemás
e das instituições tradicionais da religião, evidenciando seu distanciamento de
movimentos mais populares (WEISMANN, 2010).
Uma outra diferença, ideológica, entre a Irmandade Muçulmana síria e a
egípcia diz respeito ao lugar das minorias religiosas. No caso da organização
egípcia, as referências ao cristianismo estavam associadas ao imperialismo europeu
na região. Em contraste, a realidade social na Síria, caracterizada por um quadro
étnico e religioso mais complexo e diverso, favoreceu uma visão mais nuançada do
cristianismo (e das diversas minorias). Nesse caso, a ramificação síria adotou um
discurso menos sectário e relativamente mais inclusivo que entendia o Islã como
uma civilização no seio da qual diversas tradições e comunidades coexistiram.
Em consonância com a tradição intelectual do Levante no início do século XX,
a Irmandade Muçulmana Síria manifestava uma postura arabista mais forte que
aquela expressada pelos seus colegas egípcios (TEITELBAUM, 2011).
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Danny Zahreddine, Guilherme Di Lorenzo Pires
Por outro lado, pode-se apontar uma postura calculista e racional da
Irmandade Muçulmana em adotar um discurso menos sectário, uma vez que as
pretensões políticas da organização a levou a adotar um compromisso com um
eleitorado mais diverso. Logo em 1947, a Irmandade Muçulmana Síria participou
das eleições parlamentares e em 1949 das eleições para a assembleia constituinte.
Diante das ambições de galgar ao poder através de eleições, a Irmandade precisava
contar com os votos de cristãos e judeus (e outros grupos) (TEITELBAUM, 2011;
WEISMANN, 2010). Essa tendência da Irmandade Muçulmana Síria em participar
das eleições continuou até 1963, quando houve o golpe na Síria, que mais tarde
levaria ao poder o partido Ba’th. Neste intervalo, a Irmandade deu origem a um
partido político que participava ativamente da vida política síria.
Os Aspectos Transnacionais e Nacionais da Irmandade Mulçumana
O estudo da trajetória histórica da Irmandade Muçulmana ajuda a compreender
os rumos que o grupo tomou em resposta aos contextos nacional e internacional.
Comparando o cenário doméstico e o regional é possível observar um processo
de “nacionalização” da Irmandade Muçulmana. Isto é, no decorrer das décadas,
fatores internacionais passaram a exercer uma influência relativamente menor em
comparação aos fatores domésticos. No início do século XX, a presença britânica
e o movimento sionista foram fatores que retroalimentaram a identidade e a
existência da Irmandade. Portanto, tal período é caracterizado pelo seu aspecto
mais transnacional. No decorrer do século XX, os fatores domésticos sobrepujaram
as variáveis externas, de modo que a Irmandade Muçulmana Egípcia gradualmente
foi restringindo a sua atuação ao território egípcio. Nessa condição, ainda que a
dinâmica internacional seja de extrema importância, acentuando ou retardando
o processo em andamento, ela própria é filtrada pelas condições nacionais. Mas
como entender tal mudança ocorrida na ação política da Irmandade Muçulmana?
Particularmente importante é o arranjo político introduzido com o Estado
moderno, que teve papel fundamental na demarcação da agenda política do
grupo. De modo geral, a Irmandade Muçulmana está inserida numa cadeia de
movimentos religiosos que vinham atuando no Egito desde o século XIX. Contudo,
essa longa tradição foi radicalmente alterada com a introdução do Estado moderno,
o qual moldou o espaço de atuação política. Com isso, se elementos culturais
permaneceram, o modo e a intensidade como foram mobilizados dependeram
amplamente dos processos de modernização política.
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
John Breuilly (1993) argumenta que uma das consequências do espaço
político introduzido pela modernidade é a exigência de que elementos culturais se
articulem de maneira a fazer sentido politicamente. Isto é, “a menos (e até) que
essas ideias se ‘fixem’, por se tornarem parte de um movimento político que tem
que negociar com governos e granjear apoio na sociedade, elas tendem a ser vagas
e descontínuas” (BREUILLY, 2000, p. 170). O que se observa no caso da Irmandade
Muçulmana é reflexo desse processo. No princípio, a Irmandade era um movimento
social que abarcava um espectro amplo de ideias. Assim permaneceu nos primeiros
anos, quando os círculos de identidade eram mobilizados de forma bastante
ambígua. Contudo, a realidade política do Egito obrigou a Irmandade Muçulmana
a articular as suas ideias de maneira que elas fizessem sentido politicamente para
um determinado público. Com isso, o argumento nacionalista aos poucos foi se
impondo à Irmandade, ainda que não de forma absoluta. John Breuilly (2000)
chama atenção para o fato de que a ação política nacionalista tende a criar um
conjunto mais coerente de doutrinas e sentimentos. As exigências da ação política,
seja ela de movimentos oposicionistas ou dos governos, disciplinam as ideias e
as direcionam para objetivos práticos, assim como canalizam sentimentos difusos
numa direção particular. Desse modo, é possível perceber como a Irmandade
Muçulmana, no decorrer do século XX, assumiu uma agenda política que, mesmo
se opondo ao regime, continha pressupostos políticos e intelectuais compartilhados
pela liderança política do Egito. A Irmandade Muçulmana passou a contestar o
regime egípcio em nome da própria nação egípcia.
Talal Asad (1999), ao estudar a relação entre secularismo e religião nos espaços
políticos nacionais, chama atenção para o fato de que, hoje, todo muçulmano habita
um mundo diferente daquele vivido pelos fiéis do período clássico. Mesmo o mais
conservador dos muçulmanos se ampara em experiências do mundo contemporâneo
para aferir coerência às interpretações teológicas. Talal Asad considera que os
islamistas estão, de diversas maneiras, próximos aos nacionalistas, mesmo que a
doutrina do nacionalismo não encontre nas doutrinas teológicas clássicas algum
conceito equivalente ao nacionalismo moderno. Os islamistas buscam atuar através
dos Estados nacionais, os quais se tornaram entidades políticas centrais após a
expansão da sociedade internacional europeia na contemporaneidade. Para Talal
Asad é exatamente este projeto “estadocêntrico”, e não uma suposta fusão de
religião e política inerente ao Islã, que confere o caráter nacionalista aos grupos
islamistas. Portanto, a preocupação dos islamistas com o poder do Estado não
é um comprometimento a priori com ideais políticos nacionalistas, mas é uma
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Danny Zahreddine, Guilherme Di Lorenzo Pires
resposta às delimitações colocadas pela reivindicação do Estado nacional moderno
de constituir a arena e a identidade social legítima (ASAD, 1999).
Desenvolvendo um argumento semelhante, Olivier Roy (2012) introduz o termo
“pós-islamismo” para os grupos que abandonaram, diante das novas realidades
políticas e sociais, a ambição utópica de instaurar um “Estado islâmico”. Uma das
opções adotadas por esses movimentos islamistas foi a adoção do partido político
moderno como meio de defender os seus interesses. Isso implica a aceitação das
regras institucionais do espaço político moderno. Ou seja, os partidos islamistas
se transformam em puros partidos políticos, interiorizando as regras do Estado
moderno, participando de eleições ou se aliando a outros partidos de ideologias
políticas diversas, a fim de exercer influência no aparato estatal. A outra opção
adotada foi a “radicalização” e contestação da política moderna. Olivier Roy (2012)
mostra que as ramificações da Irmandade Muçulmana em outros países possuem
suas próprias agendas nacionais, e, apesar da proximidade ideológica entre elas,
as ramificações não apresentam uma estratégia regional coesa (ROY, 2012).
Nessa perspectiva, a obra de John Breuilly (2000) ajuda a compreender o
caráter ambíguo e utópico de qualquer ideologia, e da transformação que ela passa
diante da realidade política. A partir da metade do século XX, após o processo de
descolonização e do fim da influência britânica, a Irmandade não mais se opunha
a uma potência externa, mas ao próprio Estado egípcio. Diante desse cenário,
a Irmandade teve duas reações distintas, uma que optou pelo radicalismo sectário,
que não buscou mobilizar a comunidade egípcia como um todo. Por outro lado,
a liderança escolheu o caminho do compromisso com o povo egípcio como meio
de garantir a reputação pública e a realização de seu projeto, muito embora tal
compromisso não se traduzisse em uma visão de mundo pluralista. Dessa forma,
a mobilização social e coordenação política são dois aspectos fundamentais na
compreensão da atuação da Irmandade Muçulmana ao longo do século XX.
Portanto, argumenta-se aqui que as mudanças pelas quais passaram os diversos
movimentos islamistas no Oriente Médio não podem ser atribuídas a um único
fator. Processos de mudança são o resultado da intervenção de inúmeras variáveis,
internas ou externas aos grupos analisados. O estudo de caso ajuda a iluminar
a maneira como tais fatores interagem entre si em determinadas circunstâncias
históricas. Tendo isso em vista, é possível apontar alguns fatores relevantes.
O primeiro fator é a composição dos movimentos sociais. É preciso estar
atento para a diferença entre gerações e para a heterogeneidade dentro da
Irmandade Muçulmana. Esses aspectos implicam mudança de interesses, objetivos
136
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 11, n. 1, 2016, p. 118-143
A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
e interpretações de acordo com cada geração e de acordo com as divisões internas
à organização. Através do estudo da composição social dos movimentos e de como
é distribuído o poder internamente, é possível observar que grupos progressistas
alcançam a liderança em alguns casos, em outros, não. No caso da Irmandade
Muçulmana, a ala mais radical foi perdendo espaço a partir da segunda metade do
século XX em benefício do setor pragmático. Contudo, os líderes mais reformistas
nunca ocuparam os mais altos escalões da organização. As decisões da organização
são tomadas pelos “conservadores pragmáticos”. Carrie Rosefsky Wickham (2013)
demonstra como o processo de reforma e moderação da Irmandade Muçulmana
pode ser entendido, em parte, como resultado do embate de uma liderança mais
jovem em substituir a “velha guarda”.
O segundo fator é a natureza da relação entre movimento e governo. A maior
ou menor abertura, a solidez das instituições, os canais de comunicação existentes, a
legitimidade do governo, todos estes aspectos informam as estratégias e as preferências
dos movimentos. Os primeiros momentos de perseguição da Irmandade Muçulmana
pelo Estado egípcio corresponderam aos momentos de maior radicalização. Os
períodos de abertura criaram espaço para que a Irmandade buscasse a legitimidade
institucional e o reconhecimento legal enquanto partido político.
O terceiro fator é o modo como os movimentos estão inseridos na sociedade
como um todo. A Irmandade Muçulmana sempre se relacionou com outras
organizações sociais, seja no Egito ou no exterior. Mas a busca pela legitimidade
política, forma encontrada para promover os interesses da organização, implicou
uma relação mais profunda com a sociedade egípcia e seus diversos grupos. Ainda
que representasse uma fração considerável da sociedade egípcia, a Irmandade não
possuía meios para, sozinha, chegar ao poder. A opção pelo meio institucional
implicou a aproximação a grupos distintos e a coordenação de interesses entre
eles. Por outro lado, a Irmandade Muçulmana buscou se firmar através de serviços
sociais, especialmente nas áreas em que o Estado estava menos presente. Como
acontece em casos semelhantes de outros movimentos islamistas, a liderança da
Irmandade Muçulmana buscou ganhar apoio social mais amplo e se afastar de
uma postura mais extremista. Contudo, um afastamento radical dos princípios da
organização poderia implicar uma alienação da própria liderança em relação aos
interesses dos integrantes da Irmandade. Nesse caso, a intensidade das preferências
dos integrantes impôs limites às reformas propostas por alguns membros. Em
momentos de maior radicalização, a liderança pragmática foi eclipsada por figuras
carismáticas mais radicais, como foi o caso de Sayyid Qutb.
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Tal interação vai além do âmbito das escolhas racionais e de estratégias. Pode-
se dizer que a Irmandade Muçulmana passou por um processo de socialização em
que novos valores e crenças foram introduzidos na organização. Não seria correto
afirmar que o interesse da liderança da Irmandade Muçulmana em se engajar na
política egípcia seja apenas uma estratégia cínica desprovida de conteúdo. Houve
uma transformação de ideologia e de valores, resultado desse longo processo.
É possível pensar que a experiência de debates e interações entre integrantes da
Irmandade Muçulmana e outras figuras políticas tenha afetado mutuamente cada
lado. Nesse sentido, a participação da Irmandade Muçulmana no processo político
não somente engendrou novas estratégias como também criou a necessidade de
debates internos sobre os objetivos últimos e as crenças da organização.
Assim sendo, a análise da trajetória da Irmandade Muçulmana, de sua criação
até a primeira década do século XXI, demonstra que a participação política resultou
em mudanças importantes para a retórica e para as práticas da organização. Ao
passo que muitos estudos enfatizam como as condições políticas e institucionais
colaboraram com a moderação de movimentos mais radicais, o presente estudo
buscou enfocar um aspecto mais limitado: o escopo de ação dos movimentos
islamistas. Não se trata de dizer se a Irmandade Muçulmana abraçou valores
democráticos ou não. Mas os mesmos mecanismos que funcionaram para a
moderação da Irmandade são aqueles que delimitaram o escopo de ação do grupo
a uma realidade política e social específica. A inserção da Irmandade Muçulmana
em um espaço político, com regras e valores específicos, contribuiu para tal
processo. O compromisso da organização para com grupos e movimentos nacionais
influenciou a maneira como ela entende seu lugar na política egípcia e regional.
Mais do que uma entidade abstrata e homogênea, a Irmandade Muçulmana é um
grupo composto por indivíduos que pertencem a outros grupos e movimentos.
São indivíduos que possuem múltiplas identidades, mas que, em última instância,
reconhecem-se como egípcios. O Egito, ao contrário de outros países na região, tem
uma história institucional mais consolidada. Suas fronteiras políticas, a despeito
dos laços identitários que ligam os egípcios à região, são bem consolidadas
(DAWISHA, 2003). As divisões internas, apesar de serem profundas, não criaram
nenhum movimento separatista relevante. O Egito não é um país dependente de
uma figura política forte que une grupos diversos que, de outra maneira, tenderiam
a se dispersar. Tal realidade política e social do Egito é fundamental para entender
a trajetória de “nacionalização” da Irmandade Muçulmana.
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
Como mostra John Hutchinson (2005), movimentos transnacionais sempre
coexistiram com Estados-nações. Apesar dos estudos tradicionais nas relações
internacionais reconhecerem os Estados como os únicos atores legítimos no
sistema internacional, esses nunca foram os únicos atores. Desde o início do
período contemporâneo, movimentos nacionalistas coexistiram com movimentos
transnacionais. Dessa forma, não é a existência de tais movimentos transnacionais
uma prova da perda de importância do princípio do nacionalismo no sistema
internacional contemporâneo. Apesar de o Estado-nação não ser o único ator no
sistema internacional, ele ainda continua a ser o mais importante. No caso da
Irmandade Muçulmana, ela não surgiu no final do século XX, quando movimentos
islamistas transnacionais ganharam destaque nos estudos acadêmicos. Como foi
apontado, ela surgiu em 1928, no mesmo período de gestação do nacionalismo
pan-arabista e dos nacionalismos estatais no Oriente Médio. O engajamento da
Irmandade em outros países ocorreu concomitantemente aos esforços das lideranças
políticas dos países do Oriente Médio para conseguir a independência frente às
potências europeias. Nesse sentido, a Irmandade Muçulmana é mais antiga que
muitos países na região. Portanto, o estudo da trajetória da Irmandade Muçulmana,
uma organização que, em sua origem, pregava abertamente o transnacionalismo,
aponta para algumas razões por conta das quais há uma grande pressão para a
nacionalização de organizações semelhantes em longo prazo.
No nível sistêmico e interestatal, não há previsão de que o princípio do
nacionalismo será substituído por algum outro princípio. Isso porque, para ser
reconhecido como ator político legítimo detentor de algum território, as entidades
políticas precisam ser reconhecidas pelos outros atores no sistema internacional.
Como mostra James Mayall (1999), tradicionalmente, há a interpretação de que a
sociedade internacional é composta por Estados independentes e soberanos; e de que
eles formam uma sociedade devido ao fato de eles reconhecerem cada um enquanto
entidades legítimas e soberanas. Ainda que a soberania seja uma ideia fluida e que
constantemente entra em contradição com o princípio da autodeterminação, em
última instância, o reconhecimento pelos outros atores do sistema internacional
importa. Isso implica uma mudança sistêmica do princípio legítimo que ordena o
sistema internacional. O que, por si só, é uma tarefa considerável.
No âmbito inter-humano, os aspectos nacionais e transnacionais são menos
evidentes. Por um lado, as atividades da Irmandade Muçulmana nunca estiveram
limitadas pelas fronteiras estatais. Integrantes da Irmandade transitam através de
fronteiras, coordenam ações e agendas com grupos em outros países e se engajam
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em causas regionais. Mas, por outro lado, o comportamento e a ideologia da
Irmandade foram moldados com a interação com o Estado e a sociedade egípcia.
Como argumenta Carrie Wickham (2013), a participação política foi a responsável
pelas mudanças de comportamento e ideológicas da Irmandade, mais do que
qualquer outro fator externo. Foram os arranjos institucionais, as relações de
poder com o regime egípcio e a busca por apoio na sociedade que moldaram a
natureza da Irmandade Muçulmana Egípcia.
Conclusões
O presente artigo tentou mostrar que a ação política da Irmandade
Muçulmana se volta tanto para o espaço nacional como internacional, o que
caracteriza a organização em sua origem com “cores” tanto nacionais quanto
transnacionais. Essa situação particular fez com que Abd al-Fattah El-Awaisi (1998)
constatasse que:
A sociedade da Irmandade Muçulmana foi, e ainda é, transnacional, ao mesmo
tempo em que é nacional. Por um lado, ela inevitavelmente se expandiu para
além de seu centro de origem no Egito, e, por outro lado, a invocação da questão
Palestina na política Egípcia ajudou a definir a diferença da Irmandade Muçulmana
com outros grupos, principalmente os nacionalistas. Deste modo a Ikhwan
[a Irmandade Muçulmana] concretizou e definiu sua base de apoio e apelo dentro
da política egípcia. A interação entre a política doméstica e a transnacional se
reforçaram mutuamente. (EL-AWAISI, 1998, p. 205, tradução nossa)
10
Entretanto, ao longo do século XX, aspectos nacionais ganharam maior
relevância e a ação política da organização passou a se direcionar à dinâmica
nacional egípcia. Portanto, a Irmandade Muçulmana não pode ser descrita como
um movimento transnacional em sentido estrito, pois cada ramificação permanece
política e historicamente vinculada aos seus respectivos Estados nacionais e,
aparentemente, não pretendem transcender essas fronteiras. Apesar da ideologia
de Hassan al-Banna pregar a união de todos os muçulmanos, fatores políticos
foram fundamentais para a conformação da Irmandade Muçulmana ao cenário
10 “The Muslim Brotherhood society was, and remains, transnational as well as national. On the one hand, it
inevitably expanded beyond its originating centre in Egypt, and, on the other hand, the invocation of the Palestine
question in Egyptian politics helped to define the Muslim Brothers’s [sic] differences with other groups, mainly
nationalists. In this way the Ikhwan solidified and defined its base of support and appeal within Egyptian
politics. The interaction between domestic and transnational politics was mutually reinforcing.”
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A Irmandade Muçulmana Egípcia: aspectos transnacionais e nacionais de sua atuação política
nacional egípcio. Ainda que ela possua uma identidade que a vincule à população
da região, a atuação política do grupo paulatinamente se restringiu ao Egito. Como
observa Mona El-Ghobashy (2005), o contexto institucional teve grande importância
nas mudanças pelas quais a Irmandade Muçulmana passou desde a sua criação.
Aspectos ideológicos tiveram que ser adaptados às novas realidades políticas e
sociais do Egito a fim de que a organização preservasse a sua relevância social.
A situação perante Israel é emblemática. Se em 1936 e em 1948 a Irmandade
Muçulmana egípcia teve um papel ativo na Palestina, em 1967 e em 1973, ela não
tomou parte dos conflitos, ainda que condenasse as ações de Israel.
Cabe ainda nesta conclusão aludir à situação atual da Irmandade Muçulmana
após os protestos de 2011 que levaram à queda de Mubarak no Egito. A Irmandade
Muçulmana, embora não representasse a maioria dos egípcios, era o partido mais
bem organizado comparado aos inúmeros grupos que surgiram desde 2011 e, dentre
todos, era um dos que tinha maior capacidade de mobilização social. A Irmandade,
que não participara ativamente dos protestos, saiu fortalecida politicamente após a
queda de Mubarak, e através do Partido Liberdade e Justiça, ela conseguiu maioria
nas eleições parlamentares e elegeu o seu candidato à presidência, Mohamed Morsi
em 2012. Cabe destacar aqui que, mesmo promovendo uma agenda política com
referências religiosas, Morsi buscou legitimar o governo através de argumentos
que evocavam a unidade nacional.
Contudo, o que se observou nos meses seguintes foi a incapacidade tanto da
Irmandade quanto da oposição de estabelecer uma frente coesa. Por um lado, o
governo se distanciava dos outros partidos e adotava gradativamente uma postura
autoritária. Por outro lado, a oposição, fragmentada e heterogênea, impacientava-
se com a estagnação econômica e a situação social precária. Com isso, novos
protestos eclodiram em 2013, e os militares despontaram para determinados setores
como um mal menor diante da ameaça de caos.
Em julho de 2013, uma junta militar depôs e prendeu o presidente Morsi,
encerrando a breve experiência democrática egípcia. Semelhante ao que ocorrera
no governo de Nasser, a corte egípcia baniu a Irmandade Muçulmana e ordenou
o confisco de suas propriedades (ADULLAH, 2013). Com isso, a Irmandade
muçulmana não somente está impossibilitada de participar da política egípcia
por vias institucionais legais, como também passa por uma situação delicada no
que diz respeito à sua própria sobrevivência enquanto movimento social.
No quinto aniversário da “Revolução de Lótus”, esses acontecimentos
evidenciam que o regime instaurado pelos Oficiais Livres não foi desmantelado
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após a queda de Mubarak. Mas, por outro lado, a história da Irmandade Muçulmana
leva a crer que, a despeito da perseguição, a organização ainda terá um papel
relevante na sociedade egípcia nos anos vindouros.
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