Matilde de Souza; Victor de Matos Nascimento
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
1-27
Soberania e Crise Ambiental:
um estudo sobre a cooperação
relacionada ao compartilhamento de
recursos de água doce
1
Sovereignty and Environmental Crisis:
a study on cooperation related to the
sharing of freshwater resources
Soberanía y Crisis Ambiental:
un estudio sobre la cooperación relacionada
con el reparto de recursos de agua dulce
DOI: 10.21530/ci.v19n2.2024.1431
Matilde de Souza
2
Victor de Matos Nascimento
3
Resumo
Este artigo questiona em que aspectos a estrutura de governança
das bacias do Prata e Ganges Brahmaputra influencia a capacidade
de cooperação entre os países ripários frente aos desafios da crise
ambiental. Escolhemos estas bacias pelos critérios de relevância
geopolítica e importante vulnerabilidade climática. Através
de análise bibliográfica sobre hidropolítica e as estruturas de
governança das bacias, o estudo permitiu concluir que os países
1 O presente artigo foi realizado a partir de projeto de pesquisa Fapemig, através
do acordo CSA APQ 03349–18. Também está vinculado à Bolsa de Produtividade
CNPq, Processo 310017/2021-1.
2 Doutora em Ciência Política. Professora do Departamento e do Programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais da PUC Minas. Bolsista de
Produtividade Nível 2. (matilde@pucminas.br). ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-5241-5644 .
3 Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais da PUC Minas. (victormatosnasc@gmail.com).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9767-0769 .
Artigo submetido em 01/05/2024 e aprovado em 30/09/2024.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Copyright:
This is an open-access
article distributed under
the terms of a Creative
Commons Attribution
License, which permits
unrestricted use,
distribution, and
reproduction in any
medium, provided that
the original author and
source are credited.
Este é um artigo
publicado em acesso aberto
e distribuído sob os termos
da Licença de Atribuição
Creative Commons,
que permite uso irrestrito,
distribuição e reprodução
em qualquer meio, desde
que o autor e a fonte
originais sejam creditados.
ISSN 2526-9038
Soberania e Crise Ambiental: um estudo sobre a cooperação relacionada ao compartilhamento [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
2-27
da bacia do Prata optam por acordos bilaterais e multilaterais, enquanto os países da bacia
GB optam por bilaterais, refletindo preocupação com suas soberanias, além de haver pouca
previsão, nesses mecanismos, para abordar a crise ambiental.
Palavras-chave: Cooperação. Hidropolítica. Crise ambiental. Bacias Hidrográficas. Soberania.
Abstract
This article questions the aspects of the governance structure of the La Plata and Ganges
Brahmaputra Basins that influence the capacity for cooperation between riparian countries
in the face of environmental crisis challenges. We chose these basins based on geopolitical
relevance and critical climate vulnerability criteria. Through bibliographic analysis of the
hydropolitical and governance structures of the basins, the study allowed us to conclude
that the countries of the La Plata basin opt for bilateral and multilateral agreements. In
contrast, GB basin countries opt for bilateral, reflecting concern with their sovereignties,
and there is little forecast for these mechanisms to address the environmental crisis.
Key words: Cooperation. Hydropolitics. Environmental Crisis. Hydrographic basin. Sovereignty.
Resumen
Este artículo cuestiona en qué aspectos la estructura de gobernanza de las cuencas de
La Plata y Ganges Brahmaputra influye en la capacidad de cooperación entre los países
ribereños frente a los desafíos de la crisis ambiental. Elegimos estas cuencas en función
de criterios de relevancia geopolítica e importante vulnerabilidad climática. Por medio de
un análisis bibliográfico sobre hidropolítica y estructuras de gobernanza de las cuencas,
el estudio concluyó que los países de la cuenca del Plata optan por acuerdos bilaterales
y multilaterales, mientras que los países de la cuenca GB optan por acuerdos bilaterales,
reflejando preocupación por su soberanía, además en estos mecanismos hay pocas
disposiciones para abordar la crisis ambiental.
Palabras-clave: Cooperación. Hidropolítica. Crisis ambiental. Cuencas hidrográficas. Soberanía.
Introdução
A água é essencial para a vida, a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento
social e econômico. Garantir segurança hídrica é fundamental para a solução
de problemas tais como pobreza e insegurança alimentar. Segurança hídrica diz
Matilde de Souza; Victor de Matos Nascimento
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
3-27
respeito à capacidade que uma população tem de garantir acesso sustentável à água
potável, em quantidade suficiente e qualidade aceitável, que sustente seus meios
de subsistência, o bem-estar humano e o desenvolvimento, além de preservar os
ecossistemas em condições de paz e estabilidade política (UNWater 2013).
A ampliação do consumo global de água, ocasionado por vetores como o
aumento da população mundial, da demanda por energia e por alimentos, causa
pressão sobre os recursos hídricos que se intersecciona com outros desafios,
como o aquecimento do planeta e a mudança global do clima, cujos impactos têm
consequências para a disponibilidade de água. O uso global de água aumentou
seis vezes nos últimos 100 anos e segue crescendo. A agricultura é responsável
por 69% das retiradas globais de água, usadas principalmente em irrigação,
pecuária e aquicultura. Indústria e geração de energia são responsáveis por 19%.
Pelos parâmetros atuais, projeta-se que o mundo enfrentará um déficit hídrico de
40% até 2030 e a demanda global aumentará em 55% até 2050 (UNWater 2021).
A crise ambiental atual é sistêmica e conjuga elementos específicos do
funcionamento do ecossistema terrestre e elementos que configuram as sociedades
atuais, seus sistemas econômicos e políticos e suas tecnologias. Ela transcende
a degradação física do ambiente e abrange as interações do ser humano com a
natureza (Ribeiro 2015), conforme indica o conceito de Antropoceno. Importa
salientar que, no âmbito da crise ambiental, discute-se a crise hídrica enquanto
uma crise global, entendida como escassez de água e aumento de conflitos
sobre os recursos hídricos, não garantia de condições de acesso à água potável
e inadequada oferta de serviços de saneamento para muitas pessoas (Gawel e
Bersen 2011).
Assume-se nesse artigo que insegurança hídrica e crise climática são alguns
dos problemas que compõem a crise ambiental. A relação entre água e mudança
do clima está presente, por exemplo, na redução da disponibilidade hídrica em
alguns lugares, já que o aumento de secas em algumas regiões, e inundações em
outras, refletem-se na escassez, na contaminação de fontes e em impactos para a
saúde humana. Como afirma o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima
(IPCC), o aumento da temperatura global já afeta a disponibilidade e distribuição
de chuvas, os fluxos de rios e águas subterrâneas e o derretimento de geleiras
(IPCC 2022). Além dos impactos ambientais, as consequências reverberam em
toda a sociedade, ampliando a vulnerabilidade de comunidades mais expostas
a esses problemas.
Soberania e Crise Ambiental: um estudo sobre a cooperação relacionada ao compartilhamento [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
4-27
Nesse cenário, é importante considerar as estruturas para a governança
dos recursos hídricos, que reúnem sistemas políticos, sociais, econômicos e
administrativos para regular a alocação e distribuição desses recursos nos
diferentes níveis da sociedade (Centre for Environment Education 2020). Esse
entendimento é desenvolvido por Assis, Ribeiro e Silva (2020), ao afirmarem
que a governança das águas se baseia em arranjos interdependentes entre essas
esferas, e incluem o processo de formulação e implementação de políticas e
estruturas institucionais, formais ou não, para regular a alocação do recurso.
Além dos aspectos ressaltados, a literatura especializada entende a necessidade
de uma abordagem adaptativa em relação aos recursos hídricos transfronteiriços,
que enfatize a aprendizagem e a experimentação estruturada, conjuntamente
com flexibilidade nos meios para obtê-las (Huitema et al. 2009, 1).
A governança de bacias hidrográficas transfronteiriças ou internacionais tem
estimulado diversos estudos direcionados, por um lado, para a potencialidade
para o conflito, implícito no compartilhamento de recursos de água doce por
Estados soberanos e pelos múltiplos e concorrentes usos da água e, por outro
lado, nas condições necessárias ao desenvolvimento da cooperação entre os
Estados ripários para estabelecer parâmetros para a apropriação, uso, preservação
e conservação desses recursos. Além dessa perspectiva, Newell e Paterson (2010),
destacam o papel central que atores econômicos desempenham no estabelecimento
de políticas ambientais. Esses atores frequentemente priorizam o crescimento
econômico e a exploração dos recursos, em detrimento de soluções coletivas e
sustentáveis, o que agrava a crise ambiental e limita a eficácia das iniciativas
de cooperação.
Outro aspecto a ser levado em conta é o da importância de estruturas de
governança multinível, que “se refere a um sistema no qual várias camadas de
autoridade governam ou tomam decisões simultaneamente, sendo que cada
uma possui níveis de poder, competência e responsabilidade específicos, a
depender dos problemas enfrentados” (Souza 2024, 83). Embora complexas, tais
estruturas podem reduzir os desafios da gestão. Abordagens que incorporam
a governança multinível reconhecem a complexidade dos sistemas políticos
e os desafios relacionados às questões ecossistêmicas. Desse modo, entende-
se que a governança multinível atende à necessidade de eficácia na gestão
dos recursos hídricos, dado que requer a participação de múltiplos níveis de
governo e de outros atores como Organizações Não Governamentais (ONGs),
stakeholders e comunidades locais. Ela também valoriza a interação entre os
Matilde de Souza; Victor de Matos Nascimento
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
5-27
níveis de governo – locais, nacionais e internacionais – e há o entendimento de
que essa estrutura de governança facilitaria a cooperação, na medida em que
contribui para promover o compartilhamento do conhecimento, a negociação de
interesses e a implementação de políticas mais bem adaptadas às especificidades
locais ou de cada bacia hidrográfica. Essa estrutura teria, ainda, potencial para
prover condições para solução de tensões e conflitos, porque cria espaço de
diálogo e compromisso entre diferentes níveis de governo e demais stakeholders
(Assis, Ribeiro e Silva 2020; Gupta e Pahl-Wostl 2013).
Nosso objeto são as bacias hidrográficas do Prata, na América do Sul, e
Ganges Brahmaputra (GB), na Ásia. Tal escolha se justifica pela grande relevância
geopolítica, socioeconômica e ambiental de ambas; por serem muito vulneráveis
à mudança do clima, enfrentando eventos extremos como secas e inundações,
e porque são fundamentais para a sustentabilidade dos recursos hídricos,
biodiversidade e atividades econômicas em suas áreas. Além desses critérios,
nossa escolha também se pautou pelo fato de que ambas as bacias estão em
território de Brasil, China e Índia, que compõem um importante agrupamento,
o BRICS. Esses países atuam em conjunto em várias arenas de negociação
internacional e enfrentam desafios comuns relacionados à água tais como poluição,
uso insustentável e efeitos adversos das mudanças do clima. Eles têm, portanto,
grande relevância na gestão de bacias hidrográficas compartilhadas.
Isso posto, questiona-se em que aspectos a estrutura de governança das bacias
do Prata e GB influencia a capacidade de cooperação entre os países ripários frente
aos desafios da corrente crise ambiental. A esta pergunta sugerimos a hipótese
de que em ambos os casos, as estruturas de governança não provêm capacidade
suficiente de cooperação face aos desafios impostos pela crise ambiental. Tal
fragilidade pode ser observada tanto pela ausência de participação mais efetiva
dos stakeholders, como também à falta de acordos multilaterais que abordem
mais especificamente os impactos climáticos em ambas as regiões. Tais lacunas
colocam a necessidade de reforçar a cooperação entre os países ripários, tendo
em vista garantir a segurança hídrica e ambiental4.
4 Abdicamos de agregar à análise uma variável que poderia ser relevante: apoiados na perspectiva de Newell
e Paterson (2010), seria interessante admitir que a falta de acordos multilaterais poderia ser parcialmente
explicada pela influência de grandes corporações e setores econômicos que se beneficiariam de estruturas
de governança fragmentadas, favorecendo arranjos bilaterais que preservam seus interesses. Contudo, na
impossibilidade de realização de uma pesquisa de campo para identificação de evidências nesse sentido,
optamos pela trilha analítica apresentada na hipótese acima explicitada.
Soberania e Crise Ambiental: um estudo sobre a cooperação relacionada ao compartilhamento [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
6-27
Entende-se que acordos multilaterais expressam maior grau de cooperação
entre os países ripários de bacias hidrográficas do que acordos bilaterais, dado
que, em estratégias multilaterais, pode-se observar maior potencial para: inclusão
de múltiplos interesses, maior transparência e mais equilíbrio na participação de
diversos atores; adoção de mecanismos de governança mais robustos, estruturados
em comitês conjuntos ou estruturas similares; adoção de mecanismos de gestão
integrada, com incentivos à coordenação de políticas associadas às de recursos
hídricos; aumento da pressão para o cumprimento de normas internacionais de
sustentabilidade (Dombrowsky 2007; Conca 2006; Zeitoun e Mirumachi 2008).
Como metodologia, adotamos a análise bibliográfica sobre o tema; a partir
de dados secundários, caracterizamos ambas as bacias, enfatizando estruturas
políticas dos países ripários e desafios climáticos apontados pelo IPCC. Finalmente,
apresentamos uma análise comparativa entre as estruturas de governança e
como podem incidir sobre as possibilidades de cooperação nessas bacias. Com
esse esforço, pretendemos identificar limitações e potenciais oportunidades para
fortalecer a governança e a colaboração transfronteiriça, visando melhorar a
gestão sustentável dos recursos hídricos e a resiliência climática nas regiões em
análise. A comparação adota critérios de similaridade e de diferença: estruturas
específicas de governança; respectivas dinâmicas de cooperação; tipos de impactos
climáticos e as estratégias de adaptação e de mitigação adotadas para a região
de abrangência de ambas as bacias.
Este artigo contém, além desta introdução e da conclusão, quatro seções:
a primeira discute conceitos e desenvolve as bases teóricas para as análises
subsequentes; a segunda e a terceira apresentam as bacias e seus desafios em
relação à governança; e a quarta compara as estruturas de governança dessas
bacias, tendo como referência a hipótese supracitada.
Hidropolítica no contexto do Antropoceno
Antropoceno é um termo introduzido por Crutzen e Stoermer (2000) em
artigo intitulado “The ‘Anthropocene’”, no qual os autores argumentam que o
planeta Terra teria deixado o Holoceno – época geológica que se estendeu pelos
últimos dez a doze mil anos. Sobretudo nos últimos três séculos, observam-se
processos com implicações diretas para o equilíbrio do planeta, a exemplo do
aumento da população, da urbanização e da liberação de gases de efeito estufa
Matilde de Souza; Victor de Matos Nascimento
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
7-27
(GEE). No Antropoceno, a atividade humana é entendida como uma força
geológica global (Steffen et al. 2011).
Essa perspectiva tem ganhado força com o acúmulo de evidências ano a
ano. Em relatório recente o IPCC concluiu que: (i) é preciso parar o aumento
das emissões globais de GEE até 2025 para limitar o aquecimento do planeta
a 1,5º C; (ii) é preciso aumentar de 3 a 6 vezes até 2030 o financiamento para
mitigação visando limitar o aquecimento global a 2º C; e (iii) é preciso expandir
o uso de energia limpa, descarbonizar a economia e conservar os ecossistemas
(IPCC 2022).
Esses problemas têm repercussão direta nos estoques de água doce.
Distribuição, garantias de uso e de acesso a esse recurso, sua conservação
e preservação têm sido entendidos como fontes potenciais de conflitos entre
usuários em nível local, regional e internacional, demandando capacidade mais
robusta de cooperação (Ribeiro 2015). Somado a isso, a distribuição geográfica da
água, definições de regras em fóruns internacionais para o uso compartilhado de
águas internacionais ou transfronteiriças, além do desenvolvimento de políticas e
estruturas de governança nos níveis doméstico e internacional para o gerenciamento
das águas doces têm ensejado o desenvolvimento de um arcabouço teórico que
fundamenta estudos e pesquisas sobre o tema.
Desse modo, a hidropolítica foi conceituada pela primeira vez por Arun P.
Elhance (1998, 3) que a entende como análise sistemática de conflito e cooperação
interestatal com foco nos recursos de água doce. A discussão sobre o termo se
iniciou no final da década de 1970, com o trabalho de John Waterbury (1979),
estudioso da bacia do rio Nilo, e entendia que a hidropolítica era marcada por
relações de ambivalência entre bacias hidrológicas, sistemas hídricos, Estados
e pessoas. Ou seja, trata-se do estudo e da gestão de problemas entre agentes
que são afetados multidimensionalmente por sistemas hídricos compartilhados.
Nas décadas de 1980 e 1990, o conceito de hidropolítica ganhou espaço e foi
muito debatido em outras esferas, como nas Nações Unidas, que tiveram um
papel importante ao incentivar pesquisas sobre governança das águas e possíveis
conflitos a elas relacionados (Michel 2010).
O conceito de hidropolítica expressa a ideia de que a água é afetada pela
organização política, econômica e social, ao mesmo tempo em que afeta essa
organização. Embora, em princípio, trate de conflito e cooperação, tendo os
Estados como principais atores, eles não são os únicos envolvidos nesse jogo,
pois há que se levar em conta atores não-Estatais, organizações e os vários
Soberania e Crise Ambiental: um estudo sobre a cooperação relacionada ao compartilhamento [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
8-27
potenciais usuários dos recursos, em escalas que vão do local ao global (Elhance
1998; Martinez 2012). O trabalho de Anthony Turton (2002) ampliou o conceito
de hidropolítica ao considerar outras formas de interações políticas, para além
das dimensões do conflito e da segurança. Turton expandiu os níveis de análise e
as escalas no estudo das interações políticas que permeiam os recursos hídricos
considerando, por exemplo, as relações entre os grupos assentados nas margens
dos rios, bem como a história das águas transfronteiriças.
A importância da hidropolítica tem sido reafirmada ano a ano, sobretudo
considerando grandes bacias hidrográficas, ou regiões densamente povoadas,
com recursos hídricos escassos. A geopolítica da água assume que a posição
geográfica de atores estatais em relação aos recursos hídricos que compartilham
implica em condições melhores para os Estados à montante, e piores para os
Estados à jusante, em relação ao aproveitamento da água. Estas condições
geográficas podem ser desafiadoras para o gerenciamento das águas e podem
influenciar relações cooperativas ou conflitivas. Há que se considerar, em relação
aos múltiplos usos da água, que eles podem ser consuntivos – para irrigação,
abastecimento público ou dessedentação animal e humana, ou não consuntivos
– pesca, turismo, navegação e geração de energia elétrica (Queiroz 2011).
Considerando-se a crise ambiental, reconhece-se que é preciso ir além das
fronteiras estatais para a proposição de soluções coletivas. Muito embora a
soberania seja uma instituição fundante do sistema de Estados europeu, que
se estende para todas as regiões do globo, os desafios apresentados pela crise
ambiental exigem estratégias coletivas para o seu enfrentamento. Para Matthews
(2021), trabalhos recentes que discutem a soberania falham em lidar com os
desafios da mudança global do clima, cujo enfrentamento demanda que a soberania
seja reimaginada, considerando a perspectiva do Antropoceno. Adelman (2019)
sugere haver um problema na forma como a soberania funciona, já que os
Estados podem explorar seus recursos naturais sem interferência externa, ainda
que existam normas internacionais que condenem estas ações.
Para Adelman (2019) uma precondição da sustentabilidade ambiental é a
ação coletiva de Estados soberanos por meio de acordos ambientais multilaterais.
No que se refere à governança de recursos comuns, entende-se que é possível
lidar com o desafio da soberania se houver o desenvolvimento de políticas e
estruturas para sua governança compartilhada. Esse é um desafio enfrentado
por muitos países ripários de bacias hidrográficas. Logo, é preciso a criação de
incentivos de longo prazo e o controle do acesso aos recursos naturais, como
Matilde de Souza; Victor de Matos Nascimento
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
9-27
águas e florestas, para conservá-los e protegê-los. Matthews (2021) também
acredita que a soberania moderna insiste em uma separação entre o mundo
“natural” e a agência humana, mas que a crise ambiental e o Antropoceno nos
fazem rever esta relação e demandam uma nova perspectiva sobre a soberania.
A bacia do Prata e sua vulnerabilidade climática
A América do Sul é uma das regiões com maior disponibilidade hídrica do
planeta, abrigando duas das maiores bacias hidrográficas do mundo, a amazônica
e a do Prata. A bacia do Prata ocupa uma área total de 3.086.000 km2, distribuídos
entre os países que a compartilham: Brasil (46%), Argentina (30 %), Paraguai
(13 %), Bolívia (7 %) e Uruguai (5%). Suas principais sub-bacias são as dos
rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Dos países ripários, a bacia banha 17% do
território brasileiro; 100% do território do Paraguai e 80% do Uruguai, além de
Argentina e Bolívia, com 33% e 19% do território na bacia, respectivamente
(Aquastat 2016).
Composta predominantemente por planícies, a região abriga ampla variedade
de espécies animais e vegetais, e possui grande capacidade de produção
agropecuária – atividade responsável pela maior retirada de água. Em 2015,
estimava-se a população da região em cerca de 160 milhões de habitantes,
a maior parte composta por brasileiros e argentinos. A bacia inclui 57 cidades
com mais de 100 mil habitantes e, de todas as capitais dos países ripários, apenas
Laz Paz, da Bolívia, não se localiza nela (Aquastat 2016).
Há cerca de 75 barragens na bacia, a maior parte delas no rio Paraná e em
território brasileiro. Destacam-se as usinas hidrelétricas de Itaipu, compartilhada
por Brasil e Paraguai; Furnas, no rio Grande, que é brasileira; Yacyretá, no rio
Paraná, na fronteira entre Argentina e Paraguai; e Salto Grande, no rio Uruguai,
na fronteira entre Argentina e Uruguai (Aquastat 2016).
Soberania e Crise Ambiental: um estudo sobre a cooperação relacionada ao compartilhamento [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
10-27
Figura 1 – Bacia do rio da Prata
Fonte: Aquastat 2016.
Matilde de Souza; Victor de Matos Nascimento
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
11-27
Em relação aos desafios climáticos da região, o quadro 1 sintetiza suas
vulnerabilidades.
Quadro 1 – Vulnerabilidades da Bacia do rio da Prata
Menções
diretas à bacia
Secas na bacia da Prata serão mais frequentes no curto prazo (2011-2040), e no
longo prazo (2071-2100), em comparação ao período entre 1979 e 2008. Para
cenários mais extremos de emissões, projetam-se secas mais curtas e mais
severas.
Inundações em regiões urbanas se tornaram mais frequentes na bacia da Prata,
causando danos à infraestrutura e aumento da mortalidade.
A costa do rio da Prata está sujeita a inundações quando há ventos fortes
vindos do sudeste.
A bacia do rio da Prata e a cidade de Buenos Aires são altamente vulneráveis a
inundações, e o aumento populacional dificulta a adaptação da região.
Estresse
hídrico na
região
Eventos recentes de chuvas fortes no Brasil levaram à inundações substanciais
e se tornaram mais prováveis devido à mudança do clima antropogênicas.
Devido ao crescimento urbano desordenado, cerca de 21,5 milhões de
brasileiros que vivem em grandes cidades devem estar expostos à escassez de
água, apesar da grande disponibilidade hídrica na região.
A diminuição do escoamento pode levar à escassez de água na Argentina e
aumentar os efeitos multissetoriais.
Uma crise hídrica afetou grandes cidades brasileiras entre 2014 e 2016, e se
tornou mais frequente depois. Secas severas também foram reportadas no
Paraguai e na Argentina.
Fonte: elaborado pelos autores a partir de IPCC 2022.
Como mostra o quadro 1, os principais problemas da região são os
desequilíbrios que levam à secas extremas ou grandes inundações. Também é
evidente que o impacto sobre regiões urbanas densamente povoadas é maior.
Além disso, o relatório chama a atenção para o descompasso entre a grande
disponibilidade de água na região, e a escassez hídrica vivida por muitas
populações, com risco maior nas grandes concentrações urbanas.
Soberania e Crise Ambiental: um estudo sobre a cooperação relacionada ao compartilhamento [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 19, n. 2, e1431, 2024
12-27
A bacia do rio Ganges-Brahmaputra e sua
vulnerabilidade climática
A bacia hidrográfica Ganges-Brahmaputra-Meghna (GBM) banha uma área
de 1.7 milhões de km2. Nosso foco neste artigo será na sub-bacia dos rios GB,
que ocupam, respectivamente, 1.087.300 km2 e 543.400 km2. A bacia GB se
estende por Índia, Bangladesh e China, sendo que o rio Ganges também passa
pelo Nepal, e o Brahmaputra pelo Butão. Destaca-se que o Nepal está inteiramente
localizado na bacia do rio Ganges, e o Butão inteiramente na do rio Brahmaputra
(Aquastat 2011).
A sub-bacia GB se localiza em uma das regiões mais povoadas do planeta,
estendendo-se por China e Índia, os dois países mais populosos do mundo.
Nesses dois países, grande parcela dos habitantes da região banhada pela sub-
bacia GB são pessoas pobres, em situação de insegurança alimentar, hídrica e
energética. Em Bangladesg, a área banhada pela bacia também possui grande
densidade populacional, sendo a agricultura sua base econômica, atividade que
é favorecida pelo solo aluvial fértil, pela quantidade de rios que a compõem,
pelas monções e precipitações. Grande parte da água da bacia é usada para
irrigação (Aquastat 2011).