Carolina Albuquerque Silva
1-29
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
OSSIÊD
Relações Internacionais:
da América Latina para o mundo
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Autonomia, geopolítica crítica
e decolonialidade:
contribuições latino-americanas ao
debate teórico sobre regionalismo
e integração regional1
Autonomy, critical geopolitics and
decoloniality: Latin American contributions to the
theoretical debate on regionalism and regional
integration
Autonomía, geopolítica crítica y decolonialidad:
aportes latinoamericanos al debate teórico sobre
regionalismo e integración regional
DOI: 10.21530/ci.v18n3.2023.1363
Carolina Albuquerque Silva2
Resumo
Este artigo aborda a dimensão epistemológica da integração e do regionalismo na
América Latina, com foco na ideia de autonomia e nas novas contribuições que as
ciências sociais trazem a este debate. Baseia-se, para tanto, na abordagem de Jaime
Preciado, que articula geopolítica crítica e decolonialidade na reflexão sobre os
obstáculos e potencialidades de uma integração autônoma latino-americana na
1 Pesquisa inanciada com recursos do CNPq.
2 Doutora em Ciências Sociais pelo Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília
(ELA-UnB). Consultora da Flacso Brasil.
(carolina.albuquerque@gmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4683-2721.
Artigo submetido em 18/06/2023 e aprovado em 19/03/2024.
Copyright:
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ordem mundial contemporânea. A argumentação realizada tem como conclusão a
importância de incluir as dimensões sociais e epistemológicas às visões tradicionais
da autonomia que a situam como assunto eminentemente estatal, tendo a América
Latina como lugar de enunciação.
Palavras-chave: Integração Regional; Regionalismo; Autonomia; Geopolítica
Crítica, Decolonialidade.
Abstract
This paper addresses the epistemological dimension of regional integration
and regionalism in Latin America, focusing on the idea of autonomy and on the
contributions that Social Sciences bring to this debate. It is based on the approach
of Jaime Preciado, who proposes an articulation between critical geopolitics and
decoloniality to reflect on the obstacles and potentialities of an autonomous Latin
American integration in the contemporary world order. The paper concludes
with the need to include the social and epistemological dimensions to enhance
the traditional view of autonomy as an eminently state matter, considering Latin
America as its locus of enunciation.
Keywords: Regional Integration; Regionalism; Autonomy; Critical Geopolitics;
Decoloniality.
Resumen
Este artículo aborda la dimensión epistemológica de la integración y del regionalismo
en América Latina, centrándose en la idea de autonomía y en los aportes que las
Ciencias Sociales traen al debate. Se basa en el enfoque de Jaime Preciado, quien
propone una articulación entre geopolítica crítica y decolonialidad para reflexionar
sobre los obstáculos y potencialidades de una integración autónoma latinoamericana
en el orden mundial contemporáneo. La conclusión remarca la importancia de
sumar las dimensiones sociales y epistemológicas a las visiones tradicionales de
la autonomía, que la sitúan como cuestión eminentemente estatal, partiendo de
América Latina como lugar de enunciación.
Palabras clave: Integración Regional; Regionalismo; Autonomía; Geopolítica
Crítica, Decolonialidad.
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Introdução
Este artigo aborda a dimensão epistemológica da integração regional
e do regionalismo na América Latina, com foco no debate em torno à ideia
de autonomia, que possui longa trajetória na história do pensamento
integracionista latino-americano. As interpretações acerca desta noção/
conceito sofreram variações, modificações e atualizações ao longo do tempo,
mas mantiveram-se, em geral, associadas à busca pela autodeterminação dos
países da região em relação ao sistema internacional – uma autonomia centrada
no papel dos Estados e frequentemente compreendida como assunto de
política externa. Desde o início do século XXI, contudo, o viés estadocêntrico e
eurocentrado desta representação da autonomia tem sido objeto de contestação
por parte dos movimentos sociais cuja atuação passou a incluir a escala
regional, o que se viu refletido na produção teórica a respeito da integração e
do regionalismo.
A partir desse contexto, os objetivos do artigo inscrevem-se na busca
por contribuir para um melhor entendimento das dimensões sociais e
epistemológicas dos processos de integração. Para tanto, foi utilizada a
abordagem da geopolítica crítica de Jaime Preciado, que propõe, a partir de
uma articulação com outras leituras, especialmente com a colonialidade nos
campos da política e do conhecimento (poder e saber), uma revisão teórica da
reflexão sobre os obstáculos e potencialidades de uma integração autônoma
latino-americana e caribenha na ordem mundial contemporânea. Ao situar
a análise no âmbito da geopolítica crítica, esta opção teórico-metodológica
coloca em destaque as dimensões territoriais e espaciais da integração, bem
como sua vinculação com os diferentes discursos geopolíticos produzidos
a respeito da questão regional – os dominantes, vinculados às práticas
espaciais que reproduzem a inserção subordinada e periférica da região no
sistema internacional; e os alternativos, muitas vezes protagonizados por
atores não estatais, que se relacionam à busca por autonomia e à superação da
colonialidade.
A integração regional tem recebido a atenção de movimentos políticos,
intelectuais e artísticos da América Latina há mais de 200 anos, construindo
um debate heterogêneo, mas recortado pelas ideias-chave da autonomia e,
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também, do desenvolvimento, ou seja, uma discussão que tem pensado a
unidade regional como forma de resistir às intervenções das potências externas
e como instrumento para alcançar a prosperidade econômica. As origens
históricas da integração regional como categoria de análise na América Latina
remontam ao século XIX, quando o tema se consolidou como um dos pilares do
pensamento independentista e das lutas contra o colonialismo espanhol, de um
lado e, de outro, a postura hegemônica e expansionista dos setores dominantes
estadunidenses. Esta linha de análise parte da premissa de que a América Latina
foi pioneira em pensar-se como região (Deciancio 2016 ; Briceño 2014).
Sob essa perspectiva, existe uma tradição de reflexão em torno da ideia
de autonomia na América Latina que se desenvolveu de forma articulada com
as propostas teóricas e as experiências empíricas de integração e cooperação
geradas na região. Neste sentido, o debate sobre como os projetos institucionais
regionais se relacionam com a necessidade de garantir autonomia no cenário
internacional esteve presente desde os primeiros ensaios unitaristas de Bolívar
até as iniciativas lançadas nos anos 2000 pelos governos do ‘giro à esquerda
(Arditi 2009), como a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América –
Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP), a União de Nações Sul-Americanas
(Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
Essas instituições correspondiam ao modelo que foi denominado como
regionalismo ‘pós-liberal’ ou ‘pós-hegemônico, baseado em uma agenda
que questionava os projetos regionais orientados aos mercados que haviam
prevalecido nos anos 1990 e propunha maior autonomia da região frente às
potências mundiais, especialmente os Estados Unidos (Riggirozzi e Tussie 2018).
Este contexto estimulou, nas décadas de 2000 e 2010, um aumento do
interesse na pesquisa sobre a temática regional e suas relações com as teorias
da autonomia, principalmente a partir da releitura das obras precursoras
produzidas nos anos 1970 e 1980 por Hélio Jaguaribe e Juan Carlos Puig.
Conforme Simono e Briceño (2017), as conexões existentes entre os trabalhos
de ambos permitem, não obstante as especificidades de cada um, considerar
que sua obra conformou uma ‘escola da autonomia, também conhecida como
‘teoria sul-americana da autonomia’: uma linha de pesquisa especíica da
disciplina das Relações Internacionais na América Latina, de forma equivalente
ao estruturalismo cepalino e as teorias da dependência.
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Apesar da relevância dessas três correntes – estruturalismo, teorias
da dependência, autonomia – para a interpretação das possibilidades de
inserção regional da América Latina, o campo de estudos da integração foi
tradicionalmente hegemonizado pelas teorias da integração europeia e do
novo regionalismo, originadas, sobretudo, na Europa e nos Estados Unidos.
Os pressupostos e categorias destas teorias não levam em consideração os
contextos espaciais e temporais da América Latina – nem da África ou da Ásia
– os quais estão relacionados a desafios próprios da inserção periférica no
sistema mundial, melhor representados a partir de temas como a autonomia e
o desenvolvimento, do que pela cessão de soberania a organismos regionais ou
pela abertura comercial como estratégia de inserção em um mundo globalizado.
Mais do que descartá-las aprioristicamente, trata-se de observar que o valor
explicativo das categorias dessas teorias para utilização fora da Europa
depende de seu grau de contextualização histórica, a partir de uma perspectiva
comparada (Briceño 2018; Vivares e Dolcetti-Marcolini 2016).
Sob essa perspectiva, o debate proposto está imbricado com as temáticas
da assimetria dos fluxos de conhecimento entre Norte e Sul, da dependência
acadêmica, da delimitação de centros e periferias na produção de conhecimento
e com a forma como ela age em favorecimento da manutenção das condições
de hegemonia no sistema-mundo e, portanto, da inserção periférica da
América Latina nele. Trata-se da abordagem proposta por Quijano (2000)
sobre a colonialidade do poder e do saber, a geopolítica do conhecimento e a
pretensão de universalização das teorias e conceitos elaborados no centro do
sistema a outros lugares e a outros contextos sócio-históricos, sem considerar
as especificidades das experiências latino-americanas nem seus problemas
epistemológicos próprios.
Conforme Svampa (2016), esta discussão diz respeito à diiculdade de
construir um legado teórico regional e aos processos de invisibilização e
expropriação epistêmica a que as tradições teóricas latino-americanas foram
historicamente submetidas, em campos como os da economia, ilosoia e
sociologia – argumento que, neste artigo, é estendido ao campo de estudos da
integração regional. Para a autora, a superação deste quadro de dependência
teórica implica em revisitar tanto os clássicos do pensamento latino-americano
quanto as perspectivas críticas atuais das ciências sociais na região. Estas
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abordagens compartilham características como o questionamento dos
paradigmas dominantes, o pluralismo epistemológico, a crítica aos dualismos
e ao pensamento moderno e o compromisso com os setores subalternos.
Nesta perspectiva estão inseridos autores e autoras que se dedicam ao
desenvolvimento das teorias decoloniais, feministas, étnico-raciais e
ambientais, entre outros.
Tais abordagens oriundas das ciências sociais encontram-se, contudo,
notavelmente ausentes do atual panorama regional de produção de
conhecimento no campo de estudos da integração (Perrotta e Porcelli 2019;
Benzi e Narea 2018). Temáticas centrais da atualidade da produção acadêmica
latino-americana, que escapam dos limites formais e economicistas das
abordagens hegemônicas, permanecem, assim, de fora da teorização sobre
a integração, a exemplo da questão territorial urbana, rural e indígena, da
interculturalidade e da crítica à modernidade colonial.
Este contexto de retomada do debate teórico, no início dos anos 2000,
trouxe à tona a importância de analisar se os pressupostos originais da teoria
sul-americana da autonomia se mantêm válidos para a explicação da atual
ordem mundial e do regionalismo latino-americano. Sob essa perspectiva,
Preciado ( 2018) tem explorado uma agenda de pesquisa que propõe uma
abordagem da autonomia para além do campo da política externa. Para o
autor, a continuidade da validez analítica dos pressupostos autonomistas
está relacionada à necessidade de atualizar este corpo teórico a partir das
contribuições mais recentes das teorias sociais críticas latino-americanas, de
modo a destacar o papel dos movimentos sociais e outros atores não-estatais
e superar o estadocentrismo tradicionalmente presentes nas análises sobre
integração e regionalismo, particularmente nos marcos disciplinares das
Relações Internacionais3. A abordagem realizada relaciona-se, nesse sentido,
à construção de novos paradigmas, capazes de ampliar os horizontes de
pesquisa, preocupados em romper com o universalismo que predomina nos
estudos da integração regional e de contribuir para a pluralidade ontológica e
3 Este debate também reverbera no contexto atual da produção teórica dentro da disciplina das Relações
Internacionais, como nos casos da abordagem das Relações Internacionais Globais proposta por Acharya
(2014), que destaca as contribuições à disciplina a partir do Sul Global, e de autores que têm proposto a
incorporação de perspectivas pós-coloniais e decoloniais aos estudos internacionais (Inoue e Tickner 2016;
Toledo 2021).
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epistemológica, por meio da introdução de vozes e debates invisibilizados na
tradição teórica dominante.
Este artigo foi realizado a partir da sistematização da literatura
especializada, com base no pressuposto de que a colonialidade é uma
dimensão central para pensar o mundo moderno, os processos e as formas de
subordinação e invisibilização das experiências sócio-históricas das sociedades
das periferias do sistema-mundo. A questão do contexto histórico e territorial
e da tensão entre discursos dominantes e alternativos no interior do campo
de estudos em questão – o da integração regional – é, portanto, crucial para a
metodologia adotada.
O texto foi organizado em cinco seções, incluindo esta introdução e as
considerações finais. A segunda seção traz a delimitação conceitual das ideias
de América Latina e de integração regional/regionalismo adotadas ao longo
do artigo. A seção seguinte apresenta os pressupostos teóricos da geopolítica
crítica utilizada por Preciado em suas interpretações sobre a integração
regional na América Latina, com foco na exploração de seus nexos com o
pensamento decolonial. A terceira seção busca situar o debate autonomia/
integração na tradição latino-americana e, por fim, é analisada a proposta de
Preciado para uma revisão conceitual da autonomia e das suas relações com a
integração regional na contemporaneidade.
América Latina, integração e regionalismo
América Latina, região, regionalismo e integração regional são utilizados
neste artigo não como fatos, mas como ideias em constante transformação e,
portanto, campo de disputa epistemológica. Parte-se do entendimento de que a
utilização dessas terminologias embute distintos objetivos políticos, interesses
econômicos, conflitos sociais e formas de produção do conhecimento, assim
como diferentes representações espaciais, concepções sobre o território e
discursos geopolíticos.
De acordo com essa perspectiva, a dimensão do conceito de América
Latina adotada é a que aborda a região não apenas como representação
geográica ou interpretação histórica, mas como categoria de análise.
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Trata-se do entendimento de Ianni (1995) sobre a América Latina como
história e imaginação, ou seja, como a
história de
crises, golpes, revoluções
e contrarrevoluções,
marcada por avanços e retrocessos, rupturas e
continuidades
e, simultaneamente, como ideia formulada pelo pensamento
latino-americano. A ideia de América Latina pode ser vista, assim, como
o resultado das interpretações realizadas por filósofos, cientistas sociais,
escritores e artistas latino-americanos que, a partir de perspectivas
explicativas distintas, foram construindo um pensamento que ao mesmo
tempo expressa e constitui a região. A formação da ideia de América
Latina não se deu, contudo, sem uma série de controvérsias e contradições,
resultantes não apenas das diferentes visões da história que tinham seus
autores, mas, também, das profundas diversidades nacionais em termos
políticos, culturais, linguísticos, étnicos etc. Ainda assim, emergem
semelhanças e convergências que dão origem à construção gradual de uma
problemática própria.
A concepção da América Latina como uma ideia também está presente no
debate sobre a geopolítica do conhecimento realizado por autores ligados ao
pensamento decolonial. Segundo esta abordagem, a subdivisão do mundo nos
atuais continentes e subcontinentes deve ser compreendida não como um fato
geográfico, mas como reflexo das estruturas geopolíticas e do longo processo
histórico que construíram esta regionalização, cuja origem remonta ao século
XVI e ao expansionismo europeu com bases no capitalismo comercial. Sob
essa perspectiva, a América Latina é a invenção eurocêntrica que dá origem
ao conceito de raça como padrão de controle, hierarquização e classificação
da população mundial, que legitima as relações de dominação impostas pela
conquista e estabelece o controle europeu sobre as diferentes dimensões da
existência dos povos colonizados – ou seja, a colonialidade do poder, conceito
que trata de evidenciar o papel da América Latina para a formação do sistema-
mundo moderno-colonial-capitalista (Quijano 2000).
A emancipação jurídica das ex-colônias não foi, contudo, acompanhada por
uma mudança estrutural na situação de opressão a que estavam submetidos
os povos indígenas e os afro-americanos escravizados, o que está nas origens
do ‘colonialismo interno’ (Casanova 2007), conceito que se refere às relações
de conflito e subordinação entre os diferentes grupos sociais que compõem
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as chamadas ‘comunidades nacionais’ dos países que foram colonizados. Este
processo tem início com a conquista e a colonização – por meio do massacre,
destituição de terras, guerra biológica, imposição religiosa, supressão de
línguas e costumes e negação da memória histórica de longa duração dos
povos originários latino-americanos – e teve continuidade com os Estados
independentes que, por sua vez, impuseram fronteiras que dividiram
territórios ancestrais, ao mesmo tempo em que mantiveram a coação sobre
modos de vida, de organização social e de exercício da política dessas
sociedades. Esta negação da diversidade se estendeu também aos territórios
ocupados por comunidades de origem africana que foram trazidas às Américas
na condição de escravizadas (Casanova 2007; Ceceña 2021).
No entanto, ainda que com signiicados distintos para as elites e para
as populações indígenas, negras, camponesas etc., a concepção de que a
identidade latino-americana foi sendo construída ao longo dos séculos de luta
contra a opressão estrangeira – presente nos ideais latino-americanistas da
Nossa América de Martí (1891) e da Pátria Grande de Ugarte (1924) – persistiu
até a atualidade e, sobre diferentes aspectos, manteve sua validade como
categoria de análise. Esta constatação está na base das propostas regionais
que, historicamente, têm relacionado ideias e projetos de integração à busca
pela autonomia da região frente ao colonialismo europeu e ao imperialismo
estadunidense (Preciado 2018).
A complexidade em deinir a América Latina reletiu-se também nos
debates teóricos relacionados à integração regional e ao regionalismo.
A procura por uma delimitação conceitual para essas noções permanece como
uma questão central para o campo de estudos da integração, especialmente nos
aportes provenientes das Relações Internacionais, em que proliferam conceitos
muitas vezes pouco diferenciados entre si – região, integração regional,
regionalismo, regionalização e o mais recente ‘regionalidade’ (regioness).
Dentre estes, ‘integração regional’ e ‘regionalismo’ são os mais assiduamente
empregados (Perrotta e Porcelli 2019; Richard 2014).
O desenvolvimento dos conceitos de integração e regionalismo esteve
relacionado às duas grandes ondas de visibilidade do tema das regiões que
ocorreram nas redes centrais de produção de teoria no âmbito da disciplina de
Relações Internacionais: as teorias centradas no caso europeu que surgiram nos
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anos 1950-1960, sob inspiração da criação da Comunidade do Carvão e do Aço,
e as teorias do ‘novo regionalismo, que emergiram nos anos 1990 na esteira da
nova ordem mundial estabelecida pela globalização neoliberal (Briceño 2018;
Perrotta 2018). As teorias da integração europeia ficaram marcadas pelas ideias
neofuncionalistas e sua ênfase nos fatores da cessão de soberania a organismos
supranacionais e à dimensão econômico-comercial como base da integração.
Estas foram objeto “de fortes críticas por assumir que o caminho da integração
europeia poderia ser um parâmetro para o estudo e a prática do regionalismo
em outros espaços geográficos e geopolíticos.” (Riggirozzi e Tussie 2018,10,
tradução da autora)4.
Como reflexo deste debate travado nos centros hegemônicos de produção
do conhecimento, na década de 1990, a categoria integração foi substituída pela
de regionalismo, permanecendo a primeira reservada à excepcionalidade da
evolução da União Europeia. O termo ‘regionalismo’ difundiu-se nas análises
dedicadas a explicar os projetos regionais latino-americanos surgidos nos anos
2000 a partir das propostas dos governos do giro à esquerda, na maioria das
vezes acompanhado de adjetivações como ‘pós-liberal’ (Veiga e Rios 2007) ou
‘pós-hegemônico’ (Riggirozzi e Tussie 2012).
Entretanto, o termo ‘integração regional’ é utilizado neste artigo também
para as experiências latino-americanas, assumido o pressuposto de que os
diversos contextos geopolíticos e sócio-históricos que coexistem na região
determinam uma interpretação peculiar do conceito. Adicionalmente, também
são utilizadas as duas expressões em conjunto, ‘regionalismo e integração
regional’, como o faz Briceño (2018).
A compreensão de integração regional/regionalismo aqui utilizada é
inspirada nas interpretações realizadas por Preciado (2014, 2018), que utiliza
o termo ‘integração’; e por Vivares e Dolcetti-Marcolini (2016), que utilizam a
terminologia ‘regionalismo, e possui as seguintes características: (i) compreende
os processos de integração como construções históricas e sociais, que abarcam
dimensões materiais e do campo das ideias e se relacionam a dinâmicas
históricas de longa duração; (ii) atrela-se à busca de modelos ontológicos e
4 No original: “de fuertes críticas por suponer que el camino de integración europea podía ser parámetro para
el estudio y la práctica del regionalismo en otros espacios geográicos y geopolíticos.
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epistemológicos mais adequados às realidades latino-americanas; (iii) busca a
contextualização geográfica e histórica e evita pretensões de universalidade;
(iv) inclui em seu modelo analítico os movimentos sociais e outros atores
não-estatais, suas visões de mundo e propostas de região; (v) abrange, mas
não se resume, aos projetos e organismos regionais intergovernamentais;
(vi) pressupõe a primazia do político sobre o econômico; (vii) assume-se como
teoria a serviço da transformação social, da emancipação e da autonomia.
Para Vivares e Dolcetti-Marcolini (2016), dentre os limites que as tradições
teóricas europeias e estadunidenses apresentam para a análise do caso latino-
americano, destaca-se a redução dos regionalismos a suas dimensões comercial
e formal-institucional, que relega a um segundo plano os atores e as relações
não estatais e não comerciais. Os autores destacam as possibilidades analíticas
que se abrem a partir da superação do estadocentrismo e do comercialismo,
as quais possibilitam contextualizar histórica e geograficamente os processos
latino-americanos e avaliar as transformações da região e de suas sociedades
em um marco de longa duração, bem como os diferentes modelos de
desenvolvimento e de interrelação entre Estados e sociedade civil que se foram
sucedendo. Esta perspectiva pretende favorecer a inclusão de ‘regionalidades
subalternas’ na análise sobre os regionalismos:
Outros sujeitos, tradicionalmente silenciados e desvalorizados pelos
estudos internacionais, participam da formulação de ideias e práticas
de região, coexistentes e resistentes, que podem contribuir para repensar
este debate e reconsiderar as fontes e consequências da heterogeneidade
deste continente. (Vivares e Dolcetti-Marcolini 2016, 34, tradução da
autora)
5
.
A contextualização histórica, temporal e territorial proposta pela dupla de
autores se apresenta como ponto de partida para a realização de análises sobre
a integração latino-americana que pretendam superar a falsa homogeneização
da região. Abre-se, assim, um caminho analítico para explicar a existência
simultânea de diferentes projetos regionais na América Latina, com escopos
5 No original: “Otros sujetos, tradicionalmente silenciados y menospreciados por los estudios internacionales,
participan en la formulación de ideas y prácticas de región, coexistentes y resistentes, que pueden contribuir a
repensar este debate y a reconsiderar las fuentes y las consecuencias de la heterogeneidad de este continente.
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geográicos, ideológicos e programáticos diferenciados, como a Celac, o
Mercosul, a Aliança do Pacífico e o Acordo Estados Unidos, México e Canadá, que
substituiu o Naa. A literatura sobre integração e regionalismo, contudo, tende,
em geral, a abordar a América Latina como unidade homogênea, ignorando
as profundas especificidades culturais e fraturas históricas existentes em seu
interior. O mesmo se aplica ao debate sobre a autonomia, cujo sentido não será
idêntico se considerarmos, por exemplo, Equador e Bolívia em contraste com
Argentina e Brasil, ou o Caribe em contraste com a América do Sul.
Para Preciado (2018), por sua vez, é necessário reconhecer as práticas
espaciais políticas e epistemológicas que, a partir do início do século XXI,
passam a questionar as representações que tradicionalmente deiniram o
imaginário geopolítico sobre a América Latina como região periférica do
sistema-mundo, subordinada ao projeto pan-americanista de integração
conduzido pelos Estados Unidos. Estas práticas espaciais alternativas colocam
em destaque as redes transnacionais da sociedade civil e as práticas culturais
indígenas, feministas, ecologistas, dos migrantes etc., e as correlacionam aos
processos de integração regional. No centro de seu argumento, está, portanto,
a ideia de que uma integração regional autônoma na América Latina demanda
a ampliação dos temas tratados, em conformidade com uma concepção
multidimensional dos processos regionais que soma as dimensões social e
epistemológica às preocupações econômicas tradicionais.
A partir de um enfoque centrado na articulação entre integração e
autonomia, Preciado coloca em destaque a dimensão epistemológica deste
debate, em diálogo com a proposta decolonial: “Pensar a integração latino-
americana com um olhar multidimensional, a partir da transmodernidade e da
crítica à colonialidade do poder, é promissor, pois permite localizar as raízes
históricas que impedem uma integração autônoma autêntica e eficaz.” (Preciado
2018, 33-34, tradução da autora)6. As articulações entre pensamento decolonial
e geopolítica crítica, utilizadas pelo autor em sua formulação sobre integração
regional e autonomia, são exploradas na seção seguinte.
6 No original: “Pensar la integración latinoamericana con una mirada multidimensional, desde la
transmodernidad y desde la crítica a la colonialidad del poder, es promisorio, pues ello permite ubicar las
raíces históricas que impiden una integración autónoma auténtica y eicaz”.
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Geopolítica crítica, decolonialidade e integração
regional na América Latina
A abordagem da geopolítica crítica e suas implicações para a integração
regional na América Latina têm sido objeto de trabalhos de Preciado nas
últimas duas décadas. O argumento do autor consiste em que as representações
espaciais tradicionais sobre a região possuem raízes nas referências e
interesses euro-estadunidenses e fortalecem sua posição subordinada e
dependente em relação ao sistema-mundo. Dentre essas representações
e práticas espaciais dominantes, pode-se enumerar a construção de
fronteiras estratégicas e de identidades nacionais supostamente homogêneas
e monoculturais, além da imposição de modelos de desenvolvimento e
democracia específicos (Preciado e Uc 2010; Preciado 2008).
Estas práticas dominantes sustentam posições de poder que, desde tempos
coloniais, reforçam a representação espacial7 da América Latina como região
subordinada aos interesses das potências hegemônicas que se sucederam
(Portugal, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos). Sob essa perspectiva,
a proposta de Preciado de uma agenda de pesquisa da geopolítica crítica
para a América Latina – e suas articulações com a integração regional e a
autonomia – concentra-se na contraposição a essa condição de marginalidade
e subalternidade a que a região foi historicamente submetida nas diferentes
expressões da geopolítica moderna. Para tanto, propõe uma análise sócio-
histórica e crítica das práticas homogeneizadoras que pregam a existência de
um único tempo, ou de uma única história, e de um único espaço nacional –
representado pelos Estados (Preciado 2018).
Do lado das práticas espaciais alternativas que se contrapõem ao discurso
geopolítico dominante sobre a região, ganharam projeção, no final do século
XX e início do século XXI, uma série de novas expressões geopolíticas e
geoeconômicas, dentre as quais se destacam os blocos regionais e continentais
que foram criados no período e que cobravam um imaginário de maior
7 As ‘representações’ espaciais se referem aos códigos, signos e entendimentos que condicionam as formas
efetivas de uso e exploração do espaço e de seus elementos constitutivos. Já as ‘práticas’ espaciais consistem
nas formas como se dão o exercício concreto da produção econômica e da reprodução social nas diferentes
escalas espaciais (local, nacional, regional, global).
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autonomia da região em relação aos Estados Unidos, como a Unasul e a Celac; e
as redes transnacionais da sociedade civil, que se organizaram em plataformas
críticas à hegemonia neoliberal em torno de temas como meio ambiente,
direitos humanos, direitos indígenas etc. A abordagem da geopolítica crítica
inclui, desse modo, tanto as organizações regionais impulsionadas pelos
governos nacionais – as estruturas mais visíveis e mais estudadas no campo
da integração – quanto os novos significados de pertencimento, resistência,
participação e identidade regional projetados pela sociedade civil (Preciado e
Uc 2010).
Preciado refere-se especificamente às organizações, redes e mobilizações
da sociedade civil que, no início do novo milênio, protagonizaram, tanto
do ponto de vista global quanto regional, um novo ciclo de protestos,
também denominadas como ‘movimentos antiglobalização neoliberal’. Estes
constituíram redes de apoio transnacionais que buscaram incidir em processos
que incorporavam a dimensão regional à sua atuação, questionando, dessa
forma, o entendimento de que a integração é fundamentalmente interestatal
e definida de cima para baixo, o que leva à invisibilização da escala local –
onde se desenvolvem os conflitos que são objeto da atuação dos movimentos
sociais. Nesse processo, o Estado se desconstrói como marco referencial para a
política dos movimentos sociais, que passam a envolver-se em um processo – a
integração regional – antes exclusivo da economia mundial e do Estado, num
movimento de transnacionalização da política e do território. Do ponto de vista
regional, trata-se, assim, de acrescentar o imaginário socioespacial local a um
debate antes fechado à escala nacional (Preciado e Uc 2010; Preciado 2008).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil; a
Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie); o movimento
cocalero boliviano; o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN),
no México; e os piqueteros argentinos são exemplos de iniciativas dos
movimentos sociais e indígenas da região que se posicionaram contra o modelo
de globalização neoliberal. O Fórum Social Mundial (FSM), que se reuniu
pela primeira vez em Porto Alegre, em 2001, foi um ponto de confluência e
culminação destas experiências de articulação (Cairo, Bringel e Ríos 2020).
No que concerne à integração regional, destacaram-se as ações de
resistência empreendidas pelos movimentos sociais em relação aos projetos
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intergovernamentais que impactam diretamente em seus territórios,
particularmente os grandes corredores de exportação projetados em um
contexto de aumento dos preços das commodities que, conjugado ao crescimento
da participação da China na balança comercial dos países da América
Latina, especialmente da América do Sul, levou à ocorrência do chamado
de ‘neoextrativismo. Esta tendência pode ser identificada nos dois grandes
projetos regionais de reordenamento territorial lançados nos anos 2000 – a
Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA),
posteriormente incorporada à Unasul por meio do Conselho Sul-Americano
de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) e o Plan Puebla Panamá/Projeto
Mesoamérica.
Concebidos para dar suporte à crescente exportação das commodities
produzidas pelo agronegócio e pelas corporações ligadas à produção de energia,
mineração, madeira/celulose, soja e pecuária, esses megaprojetos desenham
na região uma nova geograia, novas fronteiras e novas normatividades,
marcadas por obras bi ou plurinacionais de estradas e linhas de transmissão
de energia (Ceceña 2021). Mais recentemente, a busca porlítiopara abastecer
a crescente indústria de eletrônicos volta a reposicionar aAmérica Latina,
que concentra 52% das reservas mundiais do mineral , na mira dos interesses
de grandes oligopólios transnacionais (CEPAL 2023). Para Preciado, propostas
como a IIRSA/Cosiplan e o Projeto Mesoamérica configuram novos projetos
geoestratégicos que “acentuam a acumulação via desapropriação e conspiram,
assim, contra a autonomia da integração latino-americana. (Preciado 2018, 52,
tradução da autora)8.
Além do destaque dado à geopolítica dos movimentos sociais, um segundo
ponto central da geopolítica crítica é a consideração de que a produção de
conhecimento é paralela à construção de espacialidades e, assim como há
práticas espaciais dominantes no campo do conhecimento, existem, também,
práticas alternativas, ou seja, propostas epistemológicas que desaiam as
representações espaciais predominantes. Conforme esta concepção, o estudo
das práticas espaciais do conhecimento oferece a possibilidade de uma
reinterpretação das articulações entre espaço e poder e, ao mesmo tempo,
8 No original: “acentúan la acumulación por desposesión y así conspiran contra la autonomía de la integración
latinoamericana.
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representa “uma demanda pela descolonização do pensamento e dos saberes
que envolvem a compreensão do espaço” (Preciado e Uc 2010, 82, tradução
da autora)9.
A agenda de pesquisa da geopolítica crítica proposta por Preciado consiste
em uma abordagem, a partir das construções espaciais e territoriais, do
debate da decolonialidade e, particularmente, da estruturação do sistema-
mundo moderno colonial tal como definido por Quijano, ou seja, uma análise
sobre como a classificação e hierarquização da população mundial a partir
da ideia de raça, articulada ao controle das formas de trabalho, produziu
uma hierarquização semelhante no campo das identidades territoriais
e geográicas. Este padrão, denominado como ‘colonialidade do poder’,
surge com o período colonial e a conquista das Américas e se mantem até a
atualidade, ajudando a naturalizar a ideia de América Latina, África e Ásia
como territórios sob domínio europeu. No centro desta argumentação está
que as estratégias simbólico/ideológicas de dominação nas relações centro-
periferia, bem como a racionalidade eurocêntrica, não são um resultado,
mas sim elementos constitutivos da economia política do sistema-mundo
capitalista e do imaginário da modernidade: “O capitalismo mundial foi,
desde o início, colonial/moderno e eurocentrado.” (Quijano 2000, 126, tradução
da autora)10.
Quijano parte do pressuposto de que a colonialidade é uma dimensão
central para pensar o mundo moderno, bem como os processos e as formas de
subordinação e invisibilização das experiências sócio-históricas das sociedades
das periferias do sistema mundial, uma vez que a mesma hierarquia racial
global que caracteriza a modernidade e o capitalismo dá origem a classificações
derivativas que dividem o mundo entre dicotomias como superior/inferior,
desenvolvido/subdesenvolvido e civilizado/bárbaro, que colocam os povos
conquistados e dominados, suas culturas e conhecimentos, em uma situação
de inferioridade ‘natural’.
Da concepção de colonialidade do poder derivam as ideias de ‘colonialidade
do saber’, que tem a ver com o papel da epistemologia e da produção de
9 No original: una demanda por la decolonización del pensamiento y los saberes que involucran la comprensión
del espacio.
10 No original: “El capitalismo mundial fue, desde la partida, colonial/moderno y eurocentrado.
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conhecimento na manutenção dos regimes de pensamento coloniais; e de
colonialidade do ser’, que se refere aos efeitos da colonialidade na mente,
na experiência vivida, no corpo e na linguagem dos sujeitos colonizados e
subalternizados (Maldonado-Torres 2007).
O conceito de decolonialidade se contrapõe à ideia de que, com o fim das
administrações coloniais e a formação dos Estados nacionais na periferia, o
mundo teria se tornado descolonizado ou pós-colonial. O colonialismo refere-
se, nessa perspectiva, ao status político e jurídico das colônias portuguesas,
espanholas, inglesas e francesas, rompido pelos movimentos independentistas
dos séculos XIX (Américas) e XX (África e Ásia). A colonialidade, por sua vez,
engloba as demais dimensões de relações hierarquizadas – econômicas, étnicas,
sexuais, epistêmicas e de gênero – que as independências deixaram intactas.
Conforme essa concepção, a divisão internacional do trabalho entre centros
e periferias, bem como a hierarquização étnico-racial entre as populações do
mundo, não se modificaram significativamente com o fim do colonialismo.
O que ocorreu foi uma transição desde o colonialismo moderno para uma
colonialidade global, que pode ter modiicado as formas de dominação,
mas não a estrutura das relações centro-periferia em escala mundial. As
instituições criadas pelo capitalismo após a Segunda Guerra, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou a Organização do Tratado
do Atlântico Norte (Otan), por exemplo, seguiram mantendo a periferia em
uma posição subordinada. Assim, diferentemente da descolonização, que é um
evento jurídico-político marcado no tempo, a decolonialidade é um processo
de ressigniicação a largo prazo, que envolve a mudança das estruturas
internas do imaginário da modernidade e do sistema-mundo capitalista
(Castro-Gómez e Grosfoguel 2007; Grosfoguel 2012).A abordagem decolonial
sustenta-se na percepção de que a história do conhecimento é marcada geo-
históricamente, não sendo nem deslocalizada, nem neutra, em contraposição
ao entendimento da racionalidade eurocêntrica da modernidade, que pretende
constituir um universalismo abstrato ocidental que encobre seu sujeito e
seu lugar de enunciação. Neste sentido, Grosfoguel (2007, 2012) caracteriza
este universalismo como ‘descarnado, o qual constitui uma forma de racismo
epistemológico que, desde um particularismo hegemônico, pretende impor-
se como desenho global imperial, escondendo sua localização epistêmica na
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geopolítica e na ‘corpo-política’ do conhecimento masculino-branco-ocidental:
“Esta questão não tem a ver apenas com valores sociais na produção de
conhecimento nem com o facto de o nosso conhecimento ser sempre parcial.
O essencial aqui é o lócus da enunciação, ou seja, o lugar geopolítico e corpo-
político do sujeito que fala.” (Grosfoguel 2012, 119).
A proposta realizada pela decolonialidade consiste, assim, em incorporar
à teoria social as vozes e os imaginários dos grupos sociais que, a partir do
colonialismo, foram silenciados pela modernidade em nome do pensamento
ocidental hegemônico – no caso da América Latina, sobretudo os povos
indígenas e os afro-americanos.
Na busca pela transcendência da versão eurocêntrica da modernidade,
Dussel propôs a ideia de ‘transmodernidade, um projeto ‘utópico descoloni-
zador’, engendrado a partir do olhar epistêmico mestiço e latino-americano que
defende, no lugar de uma modernidade eurocentrada e imposta como projeto
global colonial/imperial, uma multiplicidade de propostas que se encontram
localizadas – geograficamente, culturalmente e epistemologicamente – nas
espacialidades que correspondem aos povos colonizados do mundo. Trata-se
de revelar o potencial epistêmico dos povos que foram colonizados e que, por
essa razão, gozam de uma ‘exterioridade relativa’ em relação à modernidade
eurocêntrica, a partir da qual surge, nas periferias do sistema-mundo, o
pensamento crítico fronteiriço, que aporta diferentes projetos ético-políticos
ao debate sobre a produção do conhecimento, à modernidade e ao seu ‘outro
lado’: o racismo, genocídio, ecocídio, patriarcado e epistemicídio (Dussel 2000;
Castro-Gómez e Grosfoguel 2007).
O cruzamento entre os conceitos de colonialidade do poder, colonialidade
do saber e transmodernidade propõe elementos para pensar a integração
latino-americana como projeto político-pedagógico e não apenas como
institucionalidade estatal. Nesse sentido, pode-se inferir que a contribuição
do pensamento decolonial ao campo de estudos da integração regional é a
pergunta sobre qual integração cabe à América Latina enunciar a partir de
sua condição de ‘outro lado’ da modernidade. Trata-se de conceber a integração
regional estadocêntrica e comercialista também como fenômeno moderno,
ou seja, colonial e eurocentrado. A colonialidade, ao determinar a classificação
dos países no sistema-mundo moderno-colonial-capitalista, passa a ser
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compreendida como elemento fundamental da integração entre os países
(Silva 2023).
A integração moderna é assim entendida como parte do imaginário
geopolítico moderno, e a ela correspondem as práticas espaciais de integração
imperialistas ligadas aos projetos do pan-americanismo estadunidense e os
acordos regionais que se concentram no aspecto da liberalização da economia,
sem se traduzir em transformação social, fim da exploração, marginalização e
subalternidade e melhoria da qualidade de vida dos povos latino-americanos.
Seus objetivos estão relacionados à lógica da colonialidade global, à manutenção
das posições de poder estabelecidas no sistema mundial e aos interesses do
capital e contribuem, desse modo, para a manutenção da condição periférica
e dependente da América Latina. Trata-se de uma integração imposta desde
cima e que não representa as demandas das classes populares, as quais não
participam de sua formulação. O engajamento dos sujeitos subalternizados
seria imprescindível, portanto, para a formulação de respostas descoloniais e
transmodernas à integração, isto é, reconhecedoras das diferentes formas de
ser, saber e poder que coexistem na América Latina.
Conforme Grosfoguel (2012), os estudos dedicados à economia política
internacional privilegiam as relações econômicas sobre as relações
socioculturais, de modo que, sob esse ponto de vista, o sistema-mundo
capitalista seria essencialmente um sistema econômico. Contrariando a
perspectiva eurocêntrica dominante, o autor argumenta que elementos como
raça, diferença sexual, sexualidade, espiritualidade e epistemologia são parte
integrante daquilo que foi por ele batizado como ‘sistema-mundo patriarcal/
capitalista/colonial/moderno europeu. As estratégias ideológico-simbólicas
globais, a cultura colonial/racista, os processos de acumulação capitalista e o
sistema interestatal são assim igualmente compreendidos como constitutivos
das relações centro/periferia.
Como consequência, transformações políticas e sociais radicais – do nosso
ponto de vista, inclusive no que diz respeito aos espaços regionais – não podem
ser reduzidas às dimensões econômica e estatal, ainda que estas não possam ser
deixadas de lado. Tampouco se trata de uma defesa irrestrita do identitarismo:
as identidades subalternas podem funcionar como ponto de partida para uma
crítica das epistemologias eurocêntricas, porém, uma intervenção efetiva no
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sistema de exploração requer alianças mais amplas entre uma diversidade de
grupos oprimidos, abarcando a dimensão de classes em torno da radicalização
da noção de igualdade social (Grosfoguel 2012).
Esta inlexão epistemológica exige, por sua vez, a problematização
do campo de estudos da integração em perspectiva interdisciplinar e
contextualizada, a im de contemplar essas diversidades internas. Esta
hipótese configura um dos caminhos que Preciado aponta para a construção
de uma integração regional autônoma: a consideração das dimensões social
e epistemológica da autonomia, para além da estatal, conforme aprofundado
adiante.
Autonomia e integração regional na
tradição latino-americana
A ideia de unidade regional está presente na América Latina desde os
processos independentistas do século XIX, conigurando a ideia de uma
identidade político-territorial diversa desde suas origens. Neste sentido,
o debate sobre o regionalismo latino-americano tem uma longa história,
como expressão da busca por autonomia e resistência às intervenções das
potências europeias e dos Estados Unidos e como instrumento para alcançar o
desenvolvimento econômico. Esta tradição de reflexão se manteve ao longo dos
séculos XX e XXI, adequando-se em cada caso às especificidades dos contextos
históricos que se sucediam (Briceño 2018; Deciancio 2016).
Autonomia política e desenvolvimento econômico constituíram-se, assim,
não apenas como debates teóricos, mas como objetivos presentes na história
latino-americana desde o início de sua vida independente. No entanto, estas
ideias não permaneceram estáticas ao longo dos anos, dado o surgimento de
novas questões que atualizam seus acervos teórico-conceituais, tais como as
modificações que o debate ambiental traz para o desenvolvimento e a que o
constitucionalismo plurinacional dos países andinos traz para a autonomia.
Como relexo da predominância dos temas da autonomia e do
desenvolvimento, as correntes teóricas do estruturalismo latino-americano
da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), nos anos
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1950-1970, e da autonomia de Jaguaribe e Puig, nos anos 1970-1980, se
consolidaram como as contribuições latino-americanas mais destacadas
ao campo de estudos da integração regional ao longo do século XX. O
pensamento estruturalista promoveu a vinculação entre integração regional
e desenvolvimento, enquanto os trabalhos de Jaguaribe e Puig vincularam
integração regional e autonomia. Ambas correntes teóricas, ainda que
originadas no contexto regional próprio da América Latina, escapam da
excepcionalidade e se apresentam como uma contribuição aos estudos sobre
regionalismo/integração em outras regiões periféricas do sistema mundial,
cujos contextos sejam similares ao latino-americano (Briceño e Simono 2017).
A produção intelectual de Jaguaribe e Puig relaciona-se a uma proposta de
reflexão sobre as relações internacionais desde uma perspectiva genuinamente
latino-americana, para a qual selecionaram duas variáveis centrais: as
assimetrias de poder no sistema internacional e as condições internas –
materiais e sociais – que os países periféricos deveriam garantir para poder
transitar da dependência à autonomia. Suas interpretações relacionavam-
se à busca por maiores margens de manobra dos países da periferia face às
imposições dos países centrais, especialmente no que se referia à execução
de projetos nacionais de desenvolvimento via industrialização, geração de
conhecimento e de tecnologia. Retomava-se, assim, o antigo vínculo entre
autonomia, desenvolvimento e integração regional, adaptando-a ao contexto
da bipolaridade da Guerra Fria. Os objetivos subjacentes eram os de reduzir o
alto grau de vulnerabilidade e dependência externas presentes historicamente
na região, de modo a conquistar uma participação ativa e não-subordinada no
sistema interestatal capitalista (Jaguaribe 1979; Puig 1986).
Sob essa perspectiva, estes autores analisaram tanto os efeitos negativos
das assimetrias existentes entre os Estados Unidos e a América Latina quanto
os caminhos viáveis para atingir os objetivos nacionais. Esta orientação
supunha a prevalência de uma autonomia limitada pela inserção dependente e
subordinada dos países da região na economia política mundial, que se baseava
em uma divisão internacional do trabalho favorável aos países do centro do
sistema (Bernal-Meza 2015). Afastaram-se, assim, do entendimento das visões
realistas clássicas, segundo o qual a autonomia seria um objetivo semelhante a
todos os Estados, e imprimiram ao conceito um conteúdo histórico particular
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– a discussão sobre as assimetrias na ordem mundial sob a perspectiva da
proteção e ampliação da autonomia nacional e regional dos países periféricos
(Silva 2023).
Puig e Jaguaribe propuseram a integração regional como uma das
estratégias válidas frente à necessidade de agir de modo coletivo e coordenado
para aumentar a autonomia dos países latino-americanos no sistema
internacional. No inal da década de 1990 e início dos anos 2000, novas
teorizações continuaram vinculando autonomia e integração, como no caso do
conceito brasileiro de autonomia pela participação (Fonseca Júnior 1998) e na
autonomia relacional proposta por Russell e Tokatlian (2002).
Cabe então questionar se o autonomismo se mantém vigente como
categoria de análise das possibilidades de inserção dos países latino-americanos
no sistema internacional e, especificamente, para explicar os regionalismos
desta parte do mundo. Emerge, neste sentido, a importância de superar
a visão de uma América Latina, ou mesmo de uma América do Sul, como
unidade homogeneizada, por meio da exploração dos diferentes sentidos que
a autonomia terá para os países da região em função, por exemplo, do grau de
industrialização de suas economias ou das particularidades advindas de nações
cuja população é majoritariamente indígena.
No entanto, ainda que o marco teórico gerado no Cone Sul tenha concebido
a autonomia como um conceito multidimensional, que incluía aspectos
econômicos, políticos e socioculturais, ao constituir-se sobretudo como teoria
sobre política externa, temas como os dos direitos sociais e humanos e do debate
territorial proposto por indígenas e camponeses, temáticas-chave no contexto
atual das ciências sociais na América Latina, não aparecem em seu modelo
explicativo.
Com o intuito de contribuir para o preenchimento desta lacuna, a proposta
de Preciado para uma integração regional autônoma inclui três dimensões:
a autonomia estatal, que tem a ver com a autonomia decisória dos governos
periféricos face às condicionalidades do sistema internacional; a autonomia
social, que compreende uma concepção ampla de sociedade civil anti-
hegemônica e, ainda, a dimensão da autonomia como categoria de análise da
integração regional a partir das ciências sociais:
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A forma como entendemos a autonomia implica três níveis de discussão:
a sua viabilidade heurística para analisar a integração desde um ângulo
relevante e situado nas ciências sociais; sua expressão como autonomia
estatal, onde o Estado se torna um sujeito e não um mero instrumento ou
conjunto estático de instituições, e a autonomia do social, entendida como
a constituição autônoma dos sujeitos sociais com capacidade de agência
para a autogestão e o autogoverno. (Preciado 2018, 45, tradução da autora)
11
.
A autonomia estatal tem sido historicamente a mais relevante e visível na
prática e na teoria da autonomia. Já a dimensão da viabilidade heurística da
autonomia é desenvolvida por Preciado com base em uma leitura de Bourdieu,
segundo a qual a integração pode constituir-se em um campo de reflexividade
sociológica, já que a prática dos processos de integração consiste em um
âmbito de atividades sociais que pode ser distinguido do todo social, e que em
sua conformação interna responde a uma hierarquia de poder que resulta
em permanente competição entre os agentes sociais para ocupar as posições
dominantes no campo.
A autonomia social, por sua vez, alude aos atores sociais organizados que,
a partir da crítica e da resistência contra a versão hegemônica da integração,
essencialmente estadocêntrica e comercialista, rechaçam os tratados de livre-
comércio com as grandes potências, questionam a ação estatal a partir da crítica
da modernidade/colonialidade e propõem alternativas desde o princípio da
alteridade, da interculturalidade e do direito à diferença. O autor ressalta, desse
modo, o caráter da integração regional como projeto em disputa.
Os movimentos sociais e populares antiglobalização neoliberal aportam
fundamentos materiais e imateriais aos processos regionais. A dimensão
imaterial dos movimentos sociais está conectada aos novos horizontes de
sentido representados em imaginários e conhecimentos produzidos na
América Latina, como o aporte andino do Sumak Kawsay, ou Buen Vivir, que
representa um contraponto à colonialidade do saber e do poder mediante o
reconhecimento de saberes ancestrais e da democracia comunitária. Em função
11 No original: “la manera en que entendemos autonomía implica tres niveles de discusión: su viabilidad
heurística para analizar la integración desde un ángulo pertinente y situado en las ciencias sociales; su
expresión como autonomía estatal, donde el Estado se convierte en sujeto y no mero instrumento o conjunto
estático de instituciones, y la autonomía de lo social, entendida como la constitución autónoma de los sujetos
sociales con capacidad de agencia para la autogestión y el autogobierno.
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da relação diferenciada com os direitos da natureza que essas visões de mundo
evocam, o estudo das práticas espaciais da integração sob esta ótica propõe uma
crítica à imposição de modelos de desenvolvimento ortodoxos relacionados à
depredação do meio-ambiente. O desafio consiste em como conciliar essas visões
com os projetos políticos nacionais e regionais.
Dentre os aportes materiais que apontam para as potencialidades de uma
integração autônoma latino-americana desde a alteridade, Preciado destaca
o Estado Plurinacional da Bolívia e as micro experiências autogestionárias
dos movimentos sociais, como os caracoles zapatistas e as redes de Economia
Social e Solidária baseadas no cooperativismo. Estas coniguram-se como
práticas espaciais autônomas que abrem possibilidades para avançar não
apenas no debate sobre o reconhecimento dos particularismos nacionais
e regionais de caráter étnico, etário e de gênero, mas também na discussão
sobre a interculturalidade e sobre a contribuição dos movimentos sociais e
populares para a construção, desde os territórios, de uma integração regional
que promova a sustentabilidade ambiental, a partir de uma geopolítica crítica
do modelo neoextrativista e da acumulação por despossessão.
Considerações finais
A persistência da questão da autonomia na agenda teórica e prática da
América Latina no século XXI demonstra que a região ainda não conseguiu
implantar mudanças estruturais nos âmbitos nacionais e que continua
atravessada por interesses das potências extrarregionais. O enfrentamento
deste desafio demanda examinar as transformações conjunturais e estruturais
da região e do sistema-mundo desde una perspectiva integral e sócio-histórica,
o que implica atualizar as teorias existentes e elaborar novas abordagens
teórico-conceituais para permitir a interpretação e conceitualização corretas
da atualidade, tendo a América Latina como lugar de enunciação.
Conclui-se, nesse sentido, que a possibilidade de uma integração que
fortaleça a autonomia regional e, consequentemente, a materialidade da
transformação social dos povos latino-americanos, está atrelada à consideração
do eixo epistemológico e dos contextos próprios da região. Trata-se de analisar
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a integração e o regionalismo como campo de disputa epistêmica, desde uma
postura teórica descolonizadora, de modo a prescrutar caminhos de pesquisa
que possibilitem a inclusão de temáticas como justiça social, responsabilidade
ambiental e defesa da diversidade cultural e territorial da América Latina.
O método multidimensional e multiescalar da geopolítica crítica de
Preciado oferece ferramentas de análise para o entendimento desses
processos sócio-históricos diferenciados segundo seu referente territorial,
ao contextualizar a relação entre atores políticos, econômicos e sociais e as
práticas espaciais que se desenvolvem nos níveis local, nacional, regional e
internacional. A geopolítica crítica incorpora a dimensão social e a escala local
aos fenômenos que se relacionam com o território, ampliando as perspectivas
teóricas do imaginário geopolítico moderno, centrado na escala dos Estados
nacionais.
Por outro lado, refletir sobre a autonomia no atual momento da América
Latina torna-se essencial frente às tendências que configuram ameaças ou
obstáculos à integração autônoma latino-americana. Dentre estas, é possível
enumerar: o avanço das fronteiras extrativas sobre a Amazônia e os Andes; o
crescimento das disputas por matérias-primas, energia e água; e o surgimento
de novas direitas, com novos protagonismos que buscam apropriar-se das
mudanças sociais, culturais e políticas na região. A superação destes desafios
demanda, conforme a agenda de pesquisa proposta por Preciado, a articulação
entre as três dimensões da autonomia: a autonomia estatal, a autonomia social
e a autonomia epistemológica.
Nesse sentido, os contextos nacionais, regionais e internacionais que se
impõem na América Latina do início dos anos 2020 representam também um
desafio intelectual, acadêmico e epistemológico ao objetivo de contribuir para
a elaboração de estratégias de integração com pretensões contra-hegemônicas
e potencializadoras da autonomia, que favoreçam a participação social e
popular em articulação com as instituições regionais. Neste ponto, o debate
radica na necessidade de elaborar esquemas analíticos próprios, situados
desde a periferia do sistema capitalista, ou do Sul Global, por meio da seleção
de variáveis relevantes que permitam identificar as condições estruturais de
inserção internacional e integração regional autônomas.
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