Eiiti Sato
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 2, e1287, 2022
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A ascensão da China e alguns
desafios de uma nova geopolítica
The Rise of China and some
challenges of a new geopolitics
El ascenso de China y algunos
desafíos de una nueva geopolítica
10.21530/ci.v17n2.2022.1287
Eiiti Sato
1
Resumo
O artigo discute a ascensão da China e seus efeitos na ordem
internacional, em especial o papel desempenhado pelo Partido
Comunista Chinês, que foi capaz de reorganizar e disciplinar as
forças políticas da nação de mais de um bilhão de habitantes.
O artigo discute também como a milenar tradição confuciana,
paradoxalmente, passou a dominar o PCC. A partir de uma
abordagem histórica o artigo levanta a questão da necessidade
de compreender como poderá se comportar o Estado chinês no
quadro das transformações geopolíticas em curso, sem os elementos
democráticos típicos das sociedades que têm comandado a ordem
internacional.
Palavras-chave: Ascensão da China; Geopolítica mundial;
Liberalismo e autoritarismo na ordem internacional.
Abstract
The article discusses the rise of China and its effects on the
international order, particularly the role played by the Chinese
Communist Party, which was able to reorganize and to discipline the
1 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade
de Brasília, Distrito Federal, Brasil. (eiitisato@gmail.com). ORCID: https://
orcid.org/0000-0001-9765-0912.
Artigo submetido em 04/07/2022 e aprovado em 23/10/2022.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
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political forces of the nation of more than one billion inhabitants. The article also discusses
how the millenary Confucian tradition, paradoxically, came to dominate the CCP. From a
historical approach, the article raises the question about the need to understand how the
Chinese State could behave in the context of the ongoing geopolitical transformations without
the democratic elements typical of the societies that have commanded the international order.
Key-words: Rise of China; World geopolitics; Liberalism and authoritarianism in world politics.
Resumen
El artículo discute el ascenso de China y sus efectos en el orden internacional, en especial el
rol desarrollado por el Partido Comunista Chino, que fue capaz de reorganizar y disciplinar
las fuerzas políticas de la nación de más de mil millones de habitantes. El artículo discute
también cómo la tradición confuciana milenaria, paradojalmente, pasó a dominar el PCC.
A partir de un abordaje histórico, el artículo debate la cuestión de la necesidad de comprender
cómo podrá comportarse el Estado chino en el cuadro de las transformaciones geopolíticas
en curso sin los elementos democráticos típicos de las sociedades que han comandado el
orden internacional.
Palabras clave: Ascenso de China; Geopolítica mundial; Liberalismo y autoritarismo en
la política mundial.
Introdução
O presente artigo procura analisar o processo de mudança da China que a
transformou de um país pobre e com indicadores sociais entre os mais baixos do
mundo na potência econômica e política mundial dos dias atuais. Politicamente,
a China revolucionária de Mao Tsé Tung era uma nação marcada por um regime
completamente fechado, e um dos estímulos mais importantes dos estrategistas
das potências ocidentais, era o de integrar a China à economia capitalista mundial,
criando uma divisão irreversível no bloco socialista e, ao mesmo tempo, esperando
que a modernização e o progresso econômico acabassem por trazer a democratização
das instituições e da sociedade na China. O bloco socialista deixou de existir, a
China integrou-se fortemente à economia mundial, mas a democratização e a
liberalização do regime político progrediram muito pouco, trazendo incertezas
a respeito da política chinesa e da relação com seus líderes assentados sobre a
hermética burocracia estruturada sobre o Partido Comunista Chinês.
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Entre os dias 18 e 24 de outubro de 2017 realizou-se o 19º congresso do
Partido Comunista da China marcando o fim de um mandato de governo e o
início de outro. Tratava-se de um evento que se realiza a cada cinco anos e
tem significado semelhante ao da cerimônia de inauguração de mandato do
Presidente dos Estados Unidos, que se realiza a cada quatro anos. O próximo
Congresso do PC Chinês deveria se realizar, portanto, ainda em 2022. Tal como
nos EUA, mesmo nos casos de reeleição, por ser o início de um novo mandato,
o Presidente anuncia prioridades, iniciativas e os principais objetivos que sua
administração pretende atingir. As semelhanças, no entanto, não vão muito
além desses aspectos. No caso da China o Congresso do PCC se reveste de
muitos outros significados e, para a imprensa ocidental, abre espaço para muitas
análises e especulações sobre a luta pelo poder, que resultou na continuidade
ou na mudança do comando do Estado chinês. Nos EUA essa luta pelo poder
ocorre de forma aberta durante a campanha eleitoral.
Desafios internos e o papel da revolução de Mao Tsé Tung
A política na China está assentada sobre antigas tradições e experiências
históricas radicalmente diferentes daquelas vividas pelos Estados Unidos. Ao longo
do século que antecedeu a ascensão de Mao Tsé Tung (1949-1976) a experiência
política vivida pela China foi a de uma sucessão de governos notavelmente fracos
em todos os sentidos. Desde o século XIX não apenas as potências coloniais
mantinham formas variadas de dominação sobre a sociedade chinesa mas, mesmo
no plano doméstico, sob a longa dinastia Qing, a China enfrentava sérios problemas
crônicos de governabilidade. A revolta dos Boxers (1899-1901) foi uma típica
manifestação desses intermináveis problemas de governabilidade. Uma imagem dessa
deterioração da ordem política na China foi muito bem retratada na superprodução
cinematográfica produzida por Bernardo Bertolucci em 1987. O filme reproduz
em imagens dramáticas a história de Pu Yi, último imperador chinês, deposto
pelo golpe revolucionário que levou Mao Tsé Tung ao poder, fazendo surgir a
República Popular da China. Nomeado imperador aos três anos de idade, Pu Yi
viveu toda a sua vida enclausurado na Cidade Proibida até os 24 anos, quando
foi forçado a abandonar o luxo, a segurança e o isolamento da realeza, passando
a viver melancolicamente como homem comum sem qualquer habilidade para
enfrentar as dificuldades da vida e da própria subsistência fora das muralhas do
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palácio. As cenas reproduzem com imagens vivas o ambiente de dissolução da
ordem política e social em que a China passara a viver desde o final do século XIX
até a instituição do governo comunista de Mao Tsé Tung em 1949,2Nesse sentido,
a maioria dos historiadores entende que o principal legado político do período
da China revolucionária de Mao Tsé Tung foi um Estado renovado, fortalecido e
bem disciplinado, em condições de manter unidas as províncias e as lideranças
locais, além de manter as questões domésticas fora da ingerência das grandes
potências.3 Sob o comando absolutista de Mao Tsé Tung e do Partido Comunista
Chinês, as instituições do Estado e seus governantes recobraram a autoridade e
o controle da ordem política a ponto de fazer com que o Governo Central fosse
capaz de elaborar e implementar políticas estruturadas e eficazes com o objetivo
de promover uma modernização ampla, rápida e consistente para toda a China.
Em outras palavras, do ponto de vista da teoria política, nas três décadas em
que Mao Tsé Tung comandou o governo com mão de ferro, a China viveu algo
parecido com o que os governos absolutistas fizeram na Europa nos séculos XVII
e XVIII que reconstruíram a ordem nos principais reinos da Europa.
A China na ordem internacional
Quando Mao Tsé Tung, à frente do Partido Comunista, tomou o poder na
China em 1949, tornando-se “O Grande Timoneiro” da nação chinesa, o país
rompeu as relações que mantinha com as potências ocidentais, que consideravam
o comunismo um regime hostil a ser combatido. A China representada na ONU
era a República Nacionalista da China comandada por Chiang Kai-Shek, que
havia se refugiado em Taiwan desde que suas forças haviam sido derrotadas por
Mao Tsé Tung. A China permaneceu fechada ao mundo até os fins da década
de 1960 quando, no plano doméstico, o governo de Mao Tsé Tung atingia seu
esgotamento e, na cena internacional, começava a emergir a política da détente
em substituição às tensões da guerra fria.
Entre os articuladores da détente destacava-se a figura de Henry Kissinger.
Seu “realismo político” podia ser, simplificadamente, resumido na seguinte
2 O filme (The Last Emperor) foi uma superprodução inglesa, francesa e italiana (quase 3 horas de duração) foi
dirigido e produzido pelo diretor Bernardo Bertolucci. Foi lançado em 1987 e teve como único ator ocidental
mais conhecido Peter O’Toole.
3 Referências e informações sobre a história da China podem ser encontradas na obra de John A. G. Roberts (1999),
que traça a trajetória histórica da China, inclusive dos anos que antecederam a ascensão de Mao Tsé Tung.
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fórmula: embora tenhamos grande superioridade tanto na economia quanto na
capacidade militar, no mundo de hoje o emprego da força tem limites morais que
não podem ser ultrapassados; assim, embora não gostemos do comunismo e os
países comandados pelos comunistas nos odeiem, não podemos eliminar um ao
outro, e uma guerra entre os dois campos é uma hipótese inaceitável; em conclusão,
só nos resta uma alternativa, que é a de desenvolver uma política de convivência
e de tolerância mútua .4 Após duas décadas de guerra fria, em que hostilidades
e ameaças geravam tensões entre as potências do mundo liberal-capitalista e do
bloco comunista, mas que se revelavam cada vez menos produtivas, o pensamento
realista ganhou força nos EUA, especialmente após o envolvimento dos EUA na
guerra no Sudeste asiático cuja impopularidade tornava-se crescente. Assim,
é natural que em relação à China, num ambiente internacional marcado pela
détente, estrategistas da diplomacia como Henry Kissinger nos EUA e Samuel Finer
, no Reino Unidio, passassem a buscar novas visões e orientações para a política
internacional.
5
Nesse quadro, estrategistas como esses passaram a identificar ao
menos duas oportunidades a serem exploradas: 1) aumentar a fragmentação do
bloco comunista sob a liderança da URSS e reduzir sua área de influência fora do
bloco; 2) liderar a incorporação de um imenso mercado de um bilhão de pessoas
até então virtualmente inexplorado. Mais tarde, especialmente após a ascensão
de Deng Xiaoping, um terceiro desenvolvimento passou a ser esperado e mais
visível nas manifestações dos estrategistas das potências ocidentais como resultado
da incorporação da China à ordem econômica internacional: a democratização
do sistema político chinês. Na medida em que os investimentos, sobretudo
americanos, fluíam para a China, fortalecia a crença de que a modernização e o
desenvolvimento econômico iriam provocar uma mudança no regime político da
China. Acreditava-se que o desenvolvimento econômico traria como consequência
a formação de uma crescente classe média instruída e de empresários abastados
que, ao se tornarem mais ricos e poderosos, passariam a contestar de forma
cada vez mais insistente o regime autoritário e centralizador comandado pelo
Partido Comunista Chinês.
4 Muitos observadores, equivocadamente, identificam o pensamento realista com belicosidade e com atitudes
intransigentes para com os adversários. No entanto, mestres do pensamento realista como Hans Morgenthau
e Kenneth Waltz eram fortes opositores do envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
5 A obra de Henry Kissinger é bastante conhecida, assim como seu papel desempenhado no Governo Nixon.
Samuel Finer (1915-1993) foi um notável cientista político que deixou uma extensa obra, além de assessorar
o Governo Britânico nas iniciativas de aproximação das potências ocidentais com a República Popular
da China.
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O processo de abertura da China para o mundo teve seu início em abril de
1971, ainda sob o governo de Mao Tsé Tung. A equipe de jogadores de ping-pong
dos EUA estava no Japão por ocasião do campeonato mundial de tênis de mesa
quando recebeu o inesperado convite para participar de torneios desse esporte
na China. Tendo em vista o ambiente da détente e o fato de que a Revolução
Cultural chinesa havia chegado ao fim, o convite se afigurou muito atraente e,
dias depois, a delegação americana de ping-pong cruzou a ponte de Hong Kong,
tornando-se os primeiros americanos a visitar a China após a Revolução de 1949.
Além dos americanos, atletas da Inglaterra, do Canadá e da Colômbia também
foram convidados. As partidas amistosas realizaram-se em ambiente de grande
cordialidade entre os dias 11 e 17 de abril de 1971 e, além dos jogos, realizaram
treinos em conjunto e visitas a palácios e a locais turísticos chineses.
A diplomacia de aproximação da China com o Ocidente ganhou momento
rapidamente. Ainda em 1971, os EUA levantaram o embargo a produtos chineses,
que durava mais de 20 anos e organizou-se uma visita de Henry Kissinger, então
Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon, à China e,
logo em seguida, o próprio presidente Nixon visitaria o país de Mao Tsé-Tung,
em fevereiro de 1972. O governo Chinês tentava assim ampliar ainda mais o
alcance de sua “Diplomacia do Ping-Pong. Foi nesse ambiente que ocorreu a
substituição da China Nacionalista de Chiang Kai-Shek pela China de Mao T
Tung na ONU, e a própria saída dos EUA do Vietnã foi uma hipótese que se
fortaleceu muito após essa aproximação da China com o Ocidente. Com efeito,
várias missões de especialistas americanos e britânicos foram organizadas para
visitar e discutir com as lideranças chinesas o avanço da integração da China à
ordem internacional tanto na política quanto na economia e na cultura.
Foi nesse ambiente que o governo Mao Tsé Tung chegou ao fim e, após sua
morte em 1976, a luta pelo poder que se seguiu acabou sendo vencida por Deng
Xiaoping, que fora sempre um desafeto do grupo liderado por Mao Tsé Tung. Essa
mudança foi bastante importante pois, sob muitos aspectos, o grupo de Mao T
Tung representava a corrente mais radical e ortodoxa do marxismo-leninismo
revolucionário, enquanto Deng Xiaoping havia sido perseguido e banido da política
por suas ideias pouco ortodoxas em relação a uma ordem estritamente marxista.
Na realidade, em1976, Deng Xiaoping foi expurgado novamente e mantido em
prisão domiciliar mas, ainda no mesmo ano, com a morte deMao Tsé-Tung,
Deng Xiaoping voltou a ocupar posição de destaque no Partido Comunista.
Finalmente estava aberto o caminho para tornar-se em 1978 o novo líder da China
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em condições de realizar as transformações na ordem política e lançar a nação
chinesa no caminho da integração à ordem econômica internacional.
O papel do Partido Comunista e da ideologia
Um ponto inicial a ser considerado é que a revolução de Mao Tsé Tung causou
muito menos comoção no Ocidente do que a tomada do poder por Lênin e pelos
comunistas na velha Rússia. O distanciamento geográfico e cultural, além do
ambiente internacional marcado pelos esforços de reconstrução do pós-guerra
foram importantes, mas também foi importante o fato de que as perseguições
e a eliminação dos opositores da revolução na Rússia atingiram diretamente
tradicionais famílias da nobreza europeia. Embora as famílias da nobreza russa
não estivessem tão ligadas com a nobreza europeia quanto estavam a nobreza
francesa, a alemã ou a austríaca, havia de fato muitas ligações familiares. Por
exemplo, Nicolau II, além de Czar da Rússia, ostentava vários outros títulos tais
como o de Rei da Polônia, Grão-Duque da Lituânia, Grão-Duque da Finlândia e
Grão-Duque de Oldemburgo, que decorriam de casamentos entre seus antepassados
com membros da nobreza europeia. Assim, quando Lênin e seus revolucionários
eliminaram a família Romanov e muitas outras famílias da nobreza da Rússia,
atingiram parentes de influentes famílias europeias. Ou seja, diferentemente da
Rússia, o interesse pela China, ou pelos excessos revolucionários de Mao T
Tung, não despertavam o mesmo interesse e a mesma rejeição na imprensa e na
opinião pública das potências ocidentais. Por vezes, à distancia, os acontecimentos
na China podiam até mesmo assumir um tom romântico como foi o caso do
cineasta francês Jean-Luc Godard. Seu filme “La Chinoise” (1967) foi visto com
grande interesse por muitos círculos intelectuais no Ocidente. Em La Chinoise
os excessos da Revolução Cultural de Mao Tsé Tung não foram objeto de crítica
ou mesmo de qualquer consideração moral. Na realidade, à época, havia se
formado uma corrente maoista entre os militantes de esquerda na Europa e em
outras partes do Ocidente capitalista, que viam na Revolução Cultural de Mao
Tsé Tung e nas ações violentas do Khmer Rouge no Camboja, uma renovação
do fervor revolucionário do movimento comunista internacional.6
6 O filme La Chinoise data de 1967, quando Mao Tsé Tung desencadeava a Revolução Cultural (1966) que
consistia numa campanha baseada no Livro Vermelho, com o objetivo de eliminar seus opositores no interior
do partido e entre gente comum da sociedade que não se alinhavam com a ideologia de Mao. A campanha
disseminou violência no país e resultou na morte de milhões de cidadãos chineses.
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Um outro elemento pouco lembrado mas importante para se compreender
a meteórica ascensão da China na ordem internacional, é o fato de que em sua
constituição nacional, mesmo tendo sido concebida nos anos revolucionários,
a China jamais extinguiu instituições centrais do capitalismo. Com efeito, na
constituição produzida sob o comando do Partido Comunista da China (PCC) em
1954, a propriedade privada não fora abolida e admitia até mesmo a existência
de “capitalistas”. No Artigo 5º, a constituição chinesa de 1954 declarava:
Na República Popular da China existem atualmente as seguintes formas
fundamentais de propriedade dos meios de produção: a propriedade do Estado
— isto é: a propriedade de todo o povo —; a propriedade cooperativa — isto é:
a propriedade coletiva dos trabalhadores —; a propriedade dos trabalhadores
individuais; e a propriedade dos capitalistas.” Vale reproduzir também trechos
do Artigo 10º dessa constituição onde se explica como deve ser entendida a
propriedade do capital e seu uso: “... Mediante a direção exercida pelos órgãos
administrativos do Estado, a direção exercida pelo setor estatal e o controle por
parte das massas trabalhadoras, o Estado aproveita o papel positivo da indústria e
do comércio capitalistas, que é útil ao bem-estar nacional e à prosperidade do povo;
limita seu papel negativo, que prejudica o bem-estar nacional e a prosperidade do
povo; estimula e orienta sua transformação em setor do capitalismo de Estado,
sob diferentes formas, e substitui gradualmente a propriedade dos capitalistas
pela propriedade de todo o povo”.
Em um sentido geral, observa-se muitas diferenças importantes na trajetória
política percorrida pela China e pela URSS. Diferentemente da constituição
produzida por Mao Tsé Tung, a constituição soviética abolia e confiscava a
propriedade privada e, no geral, os termos da constituição procuravam reproduzir
os princípios básicos da doutrina marxista tradicional. Dessa forma, é possível
entender que, mesmo sem as reformas introduzidas por Deng Xiaoping (1978-
1992), legalmente a ordem econômica na China não proibia nem o lucro e nem a
existência de propriedade privada, inclusive para o capital, fato que se revelaria
essencial para a integração econômica da China nos fluxos internacionais de
capitais e do comércio de bens e serviços. Em larga medida, esse fato também é
revelador do entendimento de que as reformas introduzidas por Deng Xiaoping
relacionavam-se basicamente com a forma de ver e de exercer o poder e não
com eventuais elementos doutrinários. A ascensão de Deng Xiaoping marca a
emergência de uma nova visão sobre a nação chinesa e suas relações com o
meio internacional, em especial no que tange ao trato com o capital estrangeiro.
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Popularizou-se a frase atribuída a Deng Xiaoping “não importa se o gato é preto
ou branco, desde que pegue os ratos” que, no fundo, reflete bem esse fato de
que as mudanças formais trazidas pelas reformas de Deng Xiaoping não foram,
nem de longe, tão importantes quanto as mudanças na atitude e na forma de
conduzir o Estado Chinês.7 De acordo com a constituição não havia qualquer
problema em utilizar o capital e incentivar o lucro, mesmo que se tratasse de
capital estrangeiro.
Na realidade, a história tem mostrado que as atitudes dos governantes, assim
como suas políticas postas em prática, geralmente são bem mais importantes na
formação de focos de tensão ou de programas de cooperação internacional do
que ideologias expressas em documentos oficiais. Com efeito, durante a maior
parte da Idade Média, os reinos europeus eram todos católicos, mas esse fato não
impedia que o comportamento de governos e de governantes variassem dentro
de um amplo espectro de possibilidades. Além de interpretar à sua maneira a
doutrina cristã, os governantes na Idade Média podiam ser sensatos, benevolentes
e sábios ou podiam ser tiranos e ambiciosos, ou ainda podiam ser egoístas e
presunçosos e inseguros em suas decisões. Ou seja, reinos, ducados e baronatos
guerreavam entre si por direitos de sucessão, por ofensas e injúrias, por ambições
de governantes ou por quaisquer outras motivações que frequentemente movem
povos e governantes até os dias de hoje. Nesse sentido, pode-se dizer que o
autoritarismo do regime na China hoje apresenta muito mais semelhanças com
o absolutismo dos regimes praticados na Europa nos séculos XVII e XVIII do
que com aquele praticado pelo próprio Mao Tsé Tung. Aliás, nos dias de hoje,
o culto à memória de Mao Tsé Tung tem se restringido a pouco mais do que
manter seu mausoléu e promover, organizadamente, as visitas de turistas como
a qualquer outro ponto turístico da China. Em outras palavras, mesmo dentro
de uma mesma ideologia, seja ela laica ou religiosa, Estados e nações podem
apresentar comportamentos e práticas muito diferentes, dependendo de muitos
fatores, em especial do conjunto de virtudes, de qualidades e das percepções
de seus governantes.
A política da détente foi praticada tanto pelas nações líderes do Ocidente
quanto pela URSS, pelos países do Leste Europeu e pela China nas décadas de
7 Tal como a famosa expressão “laissez faire, laissez passer” atribuída aos fisiocratas, não se sabe exatamente
as circunstâncias em que essa frase teria sido pronunciada por Deng Xioaping, talvez em uma discussão
reservada do Comite Dirigente do PCC, mas sabe-se que lhe valeu muita dor de cabeça e repreensões até a
morte de Mao sé Tung.
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1970 e 1980. Nesse quadro a URSS e os países do Leste Europeu tiveram seu
regime baseado no marxismo abalado até seu colapso final. Os fatos mostram que
o colapso da ordem política na URSS, e nos países liderados por ela, foi motivado
essencialmente pela evolução do quadro político e pelo colapso econômico da
própria URSS e não em decorrência da détente ou de eventuais transformações
ocorridas nas visões ideológicas de seus governantes. Ou seja, a ascensão de
Mikail Gorbachev deveu-se essencialmente ao fracasso econômico da URSS
que, diante das dificuldades, se viu forçada a buscar alguma saída para essas
dificuldades. As velhas e tradicionais lideranças soviéticas não se mostravam
nem capazes e nem dispostas a buscar novos caminhos. Os principais estudiosos
da mudança de regime na URSS concordam que a perda da força da ideologia
comunista, tanto dentro da URSS quanto na esfera internacional, acompanhou a
deterioração das condições econômicas da URSS. Com efeito, a saída das forças
militares soviéticas da República Democrática da Alemanha após a queda do
Muro de Berlin fora notavelmente melancólica. No ambiente de celebração da
queda do Muro de Berlin, os soldados soviéticos, até mesmo oficiais de alta
patente, sem receber seus soldos, ou cujos valores reais desses soldos estavam
completamente deteriorados, vendiam emblemas e peças de seus uniformes
como souvenirs para turistas e para os eufóricos alemães que celebravam o fim
daquele símbolo da divisão da nação.8
Na China vem ocorrendo o contrário. O fortalecimento da economia chinesa tem
fortalecido o poder concentrado no Partido Comunista Chinês. A elite governante
percebeu a importância do papel desempenhado pelo PCC na manutenção da
estabilidade e da ordem na nação chinesa. O próprio Deng Xiaoping, mesmo
banido e preso por ordem de Mao Tsé Tung, jamais deixou de ser filiado ao Partido
Comunista. Essa elite percebeu que o PCC tinha se constituído numa formidável
máquina burocrática com instrumentos operacionais capazes de manter a ordem
e a autoridade sobre todo o território chinês com todas as suas particularidades e
diferenças regionais. Com efeito, embora os Han constituam ainda a maioria da
população, existem na China dezenas de etnias como os Mongóis, os Uiguris e
os Tibetanos, que são bastante distintas em termos de costumes e até da língua
falada nessas regiões. Trata-se de um fenômeno bastante estranho para o Brasil,
cujo território, apesar de tão extenso quanto o da China, apresenta uma população
8 Em meados da década de 1980, embora o valor do rublo soviético fosse oficialmente igual a um dólar americano,
qualquer motorista de taxi de Moscou trocava um dólar americano por 10 rublos.
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onde as diferenças regionais nem de longe se apresentam tão profundas quanto
as da China. Assim, o papel desempenhado pelo PCC é notável como elemento
unificador capaz de administrar e de manter a ordem mesmo em uma nação
tão variada. Manter uma economia organizada em condições de formular e de
implementar políticas nacionais voltadas para a realização dos investimentos
necessários à manutenção de elevadas taxas de crescimento econômico vai muito
além das capacidades e das opiniões de lideranças individualmente consideradas.
Mancur Olson ao procurar responder à pergunta “por que algumas nações são ricas
e prósperas enquanto outras permanecem pobres?9 concentra seus argumentos
na hipótese de que a qualidade do Estado é condição necessária (embora não
suficiente) para que uma nação seja próspera.10
O fato é que, ao contrário da URSS da década de 1980, a crescente robustez
da economia chinesa vem garantindo e dando estabilidade ao poder da elite
governante assentada sobre a burocracia estatal construída pelo governo absolutista
de Mao Tsé Tung. Em termos teóricos é possível dizer que o melhor entendimento
das bases da eficácia do PCC podem ser muito melhor compreendidas pela
leitura de Max Weber do que pela doutrina exposta por Marx e Engels. Em
outras palavras, objetivamente, para o PCC é irrelevante considerar o problema
doutrinário implícito em sua denominação enquanto, na realidade, o verdadeiro
desafio que tem sido enfrentado pelo PCC é o de substituir as poderosas dinastias
que, no passado, conseguiram unificar o Império do Meio. Posto de outra forma,
uma das críticas ao marxismo feitas por Norberto Bobbio, era o fato de que a
doutrina marxista não incluía uma teoria do Estado, enquanto que, por outro
lado, para a elite governante chinesa e para o PCC o que realmente conta é a
preservação do Estado e da sua capacidade de organizar e de manter a ordem
em toda a nação.
Uma China Confucionista?
Nesse quadro afigura-se novamente inevitável, refletir sobre a época em
que, no Ocidente, o Estado Nacional se afirmava como instituição dominante na
9 Com essa pergunta Mancur Olson abre seu livro Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist
Dictatorships publicado post morten, em 2000 pela Basic Books.
10 Na realidade, o argumento de M. Olson é mais amplo e um de seus pontos centrais é o entendimento de que
entre as prerrogativas mais centrais do Estado é sua capacidade de prover ordem e estabilidade nas relações
sociais e políticas entre indivíduos e grupos que compõem a sociedade.
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ordem política doméstica e internacional. A noção de razão de Estado emergiu
como conceito na análise política quando o Estado Nacional estava se impondo
sobre as categorias políticas da ordem medieval.11 Nas escolas, por vezes, o
conceito de razão de Estado é utilizado de forma restrita como sendo o imperativo
a que está sujeito o governante no sentido de usar a força e outros meios que
se afigurem necessários para a manutenção do poder, apesar de tudo, o sentido
dessa expressão é mais amplo e mais rico. Por exemplo, um dos casos mais
notáveis de emprego do conceito de razão de Estado foi o do Cardeal Richelieu,
que comandava os rumos da política da França durante a Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648). Na época, apesar de ser um dos reinos mais católicos da Europa
(o próprio Richelieu era Cardeal), a França viu-se lutando contra a Espanha e o
Império Habsburgo (reinos também notavelmente católicos) enquanto tinha a
Suécia protestante como principal aliada. De fato, entre as disputas envolvidas
na Guerra dos Trinta Anos, havia a ameaça de a França perder parte de seu
território para a Espanha. Outro aspecto interessante do conceito de razão
de Estado, que se aplica muito bem ao caso da China, é o da precedência da
união diante de forças desagregadoras. As forças desagregadoras não precisam
aparecer na forma de um movimento separatista formalmente estruturado, uma
vez que o separatismo é um processo. Geralmente tem início com alguma forma
de insatisfação e de tensão mal resolvida que pode derivar para a sensação de
que uma região ou um grupo está sendo discriminado e negligenciado pelas
autoridades do governo central. Assim, uma nação grande e multi-étnica, como
é o caso da China, inclusive pela sua longa história de alternância entre as forças
de união e de fragmentação, é fundamental que governos e instituições sejam
capazes de evitar a formação de tensões regionais e de focos de resistência que
possam derivar para o separatismo. As forças regionais podem eventualmente
ter bastante razão em reclamar demandas negligenciadas, mas o governo central
pode estar sendo forçado a atender outras demandas que beneficiam o conjunto
da nação. Nesse quadro, a máquina política do PCC tem desempenhado papel de
grande relevância e ajuda a compreender a volta do confucionismo na condução
da política na nação chinesa. Os ensinamentos de Confúcio (551-479, a.C.) foram
reunidos em livro a partir de “rolos” de peças de bambu onde foram escritos Os
Analectos, que são uma coleção de sabedorias que poderiam muito bem serem
chamados de a arte de governar e de viver com sabedoria em sociedade.
11 O termo frequentemente é utilizado em francês (Raison d’État) por ter sido disseminado e popularizado a
partir do governo de Louis XIII e de seu ministro Cardeal Richelieu.
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De uma forma bastante resumida e simplificada pode-se dizer que o
confucionismo não propõe uma teoria de como uma sociedade deveria ser
organizada e estruturada. O confucionismo não procura formular uma “teoria
social ou política” que servisse como alternativa ao marxismo ou ao liberalismo
democrático. Sua preocupação é com o comportamento principalmente moral dos
homens, especialmente daqueles que ocupam posições no comando do Estado.
Diferentemente da tradição ocidental de produzir tratados filosóficos sobre a
vida humana e seu destino na terra e no céu, ou sobre a natureza da justiça ou
ainda sobre como e porque organizar a convivência humana dessa ou daquela
maneira, os escritos mais notáveis deixados pela tradição chinesa e do oriente,
de uma forma geral estão expressos na forma de “sabedorias”.12
Em “Os Analectos”, Confúcio não expõe uma doutrina sobre como a sociedade
chinesa deveria se organizar, mas reflete, juntamente com seus discípulos, sobre
a natureza do Estado e como um Estado pode ser bem governado. Nesse quadro
destaca a importância da conduta moral do indivíduo e da família, do respeito
às tradições e da capacidade de seus líderes de gozar da confiança de seus
governados. Giorgio Sinedino, que prefacia a edição brasileira mais completa de “Os
Analectos” afirma que “o confucionismo é o sangue que manteve viva a burocracia
chinesa durante dois milênios” (Confúcio, p. 22). Entre os ensinamentos está o
entendimento de que os símbolos de autoridade, notadamente as instituições do
Estado, devem ser respeitados quase ao nível da veneração, mas para que isso
ocorra é preciso que não apenas os governantes, mas que todos os que ocupam
posições de autoridade nesse Estado tenham um comportamento absolutamente
irrepreensível. Pode-se dizer que o conhecido aforismo latino que diz que “para
a mulher de César não basta ser honesta, é preciso também que pareça honesta”,
deveria ser estendido a toda classe de pessoas que ocupam alguma posição no
serviço público. Nos Analectos há todo um capítulo dedicado aos junzi (Sexto
Rolo, capítulo 12) que podem ser traduzidos como os homens nobres, isto é,
aqueles que desempenham papel de liderança nas instituições do Estado. Nesses
ensinamentos de Confúcio há algo parecido com a distinção que se fazia na
Grécia Antiga, onde o termo idiotes não designava o imbecil ou o inculto, como
12 O pensamento ocidental recuperou os tratados filosóficos deixados pelos antigos, especialmente pelos gregos,
e deu continuidade à prática de produzir tratados filosóficos. Na alta Idade Média, pensadores como São
Gregório, São Jerônimo e Santo Agostinho deram início a essa tradição. Na China os pensadores mais notáveis
deixaram coleções de “sabedorias” (como a Bíblia). “O Livro do Caminho e da Virtude” de Lao Tsé “A Arte
da Guerra” de Sun Tzu, e os “Analectos” de Confúcio são coletâneas de “sabedorias” e estão entre as obras
mais notáveis do pensamento dentro da tradição chinesa.
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hoje, mas designava aquele que se ocupava apenas de seus interesses privados.
Assim, os junzi eram aqueles que, na China de Confúcio, para além das questões
pessoais, eram capazes de colocar as preocupações com a cidade, com a nação,
com o bem comum, acima de seus interesses individuais. Na essência, educar
esses junzi foi o objeto central da escola que criou. Entre os cerca de 3.000
discípulos que Confúcio teve ao longo de sua vida, havia estudantes oriundos
de todas as camadas sociais que, no entender dele, apresentavam potencial para
tornar-se um junzi, isto é, um homem nobre, capaz de exercer algum papel no
Estado.
Um fato que reforça esse entendimento de que o confucionismo passou a ser
dominante no Estado chinês foi a iniciativa do governo que, em 2004, criou um
programa de amplitude mundial para disseminar a língua e a cultura chinesas
sob a denominação de Instituto Confúcio. Hoje existem centenas de Institutos
Confúcio espalhados pelo mundo. O financiamento do programa é feito pelo
Ministério da Educação da República Popular da China e tem sede em Beijing.
No Brasil já existem duas dezenas de institutos instalados em cooperação com
grandes universidades e cada Instituto possui um(a) Diretor(a) indicado(a) pelo
governo chinês e outro(a) Diretor(a) indicado(a) pela Reitoria da universidade
local. Vale notar que desde a criação do Partido Comunista Chinês, no início do
século XX, seus líderes criticaram e denunciaram Confúcio como a personificação
das tradições “feudais” e retrógradas da China. Nesse ambiente criou-se um
anti-confucionismo militante que se estendeu desde o Movimento da Nova
Cultura (1912) até aRevolução Cultural de Mao Tsé Tung. Esses fatos dão uma
indicação do porque Deng Xiaoping fora perseguido antes de chegar ao poder
após a morte de Mao Tsé Tung. Afinal, se fosse mantido o credo revolucionário
original e ortodoxo do PCC, o maior programa de difusão cultural da China
(soft power) ao invés de se chamar Instituto Confúcio, não deveria se chamar
Instituto Karl Marx ou, talvez, Instituto Mao Tsé Tung?
Uma nova ordem internacional
Como a velha sabedoria chama a atenção, todo sucesso gera problemas.
Uma indústria ao ser muito bem sucedida no lançamento de um novo produto,
deve saber que, no momento seguinte, terá que administrar problemas gerados
pelo sucesso. Entre outros problemas, provavelmente terá que lidar com níveis
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inéditos de necessidades de capital, enfrentar a concorrência em mercados
com os quais não está acostumado e terá que se adaptar a novos mecanismos
operacionais de muito maior complexidade. Internacionalmente, a era nuclear
resultou de um notável sucesso científico e tecnológico, mas seu advento trouxe
consigo ameaças inusitadas e preocupantes para toda a humanidade. Do mesmo
modo, com os países, políticas bem sucedidas também trazem consigo novos
problemas, especialmente em se tratando de uma nação como a China que
compreende uma população de cerca de 1,3 bilhão de pessoas e uma série de
diferenças regionais, muito maiores e mais complexas do que as que estamos
acostumados em um país como o Brasil. Além disso, a dimensão do sucesso
também aponta para novos problemas a serem administrados. Por três décadas
a China foi capaz de manter uma taxa de crescimento próxima de dois dígitos,
que a tirou da condição de economia pobre e periférica elevando-a à condição
de segunda economia do mundo, isto é, de uma grande potência em todos os
sentidos. Se o sucesso gera problemas, um grande sucesso gera grandes problemas.
O pronunciamento do Chefe do Governo, Xi Jinping, dirigido aos delegados
presentes no XIX Congresso do Partido Comunista (2017), apresentou uma longa
lista de problemas que deveriam ser enfrentados no âmbito doméstico, que incluía
a luta contra a corrupção, a implantação mais efetiva do Estado de Direito e a
promoção de mais justiça social. O objetivo implícito na decisão de priorizar o
ataque a esses problemas estava a preocupação em reforçar a capacidade de o
Governo e o Estado chineses de conseguir continuar exercendo com eficácia a
governabilidade sobre toda a nação chinesa composta de realidades regionais
distintas entre si. Por outro lado, a condição de segunda potência econômica do
mundo passa a implicar a necessidade de uma diplomacia capaz de administrar
os inevitáveis problemas decorrentes de sua nova posição internacional. Em
outras palavras, significa que a China deve estar preparada para assumir mais
responsabilidades nas questões internacionais, ao menos se for consistente sua
retórica de promoção de paz na forma de harmonia na ordem internacional,
conforme ensinam os escritos deixados por Confúcio.
É importante lembrar que o status de grande potência não é uma condição
que se pode adquirir apenas com retórica diplomática ou com simples formulação
de política externa por parte de qualquer governo tentando interferir na ordem
internacional. A condição de grande potência significa reunir condições objetivas
e materiais consideradas relevantes para a ordem internacional. A história mostra
que a grande potência é aquela que não pode deixar de ser — mesmo que não
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queira — um ator relevante na construção e no manejo dos regimes econômicos
e políticos internacionais (Strange, 1988).13 Nesse sentido, o caso dos EUA do
início do século XX é muito ilustrativo. Embora já tivesse se tornado a maior
potência econômica e militar, os EUA recusaram-se a participar da Liga das
Nações; um fato que os historiadores reconhecem como fator relevante para
reduzir substancialmente a credibilidade e a capacidade de ação da Liga das
Nações nas questões internacionais em disputa na época. Na economia, no
período do entre-guerras, a recusa dos EUA em tomar parte no estabelecimento
de um regime monetário internacional foi muito bem definida por H. v. B.
Cleveland (1976, p. 43) em seu estudo sobre o sistema monetário no período,
onde concluía que aquela enorme economia desenvolvendo políticas econômicas
autônomas era como “um touro se movendo na loja de porcelanas do sistema
monetário mundial”.
Estes são apenas dois exemplos entre os mais conhecidos que ilustram como
e quanto pode ser problemática para a estabilidade da ordem internacional a não
participação de forma ativa de uma grande potência nos regimes internacionais.
No sentido inverso, pode-se observar o longo período de estabilidade da ordem
internacional vivida após a segunda guerra mundial, quando, de um lado, os
EUA decidiram de forma clara e inequívoca participar ativamente da construção e
da administração dos regimes internacionais que foram criados e que evoluíram
ao longo do tempo, enquanto, por outro lado, também as potências tradicionais
compreenderam que essa participação ativa dos EUA era necessária e benéfica
para todos. O fato é que as décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra
Mundial foram marcadas pela estabilidade e pelo surgimento de várias iniciativas
de cooperação internacional. A própria ascensão da Ásia, em especial da China,
deu-se dentro dos regimes internacionais criados após a Segunda Guerra Mundial.
Com efeito, as potências europeias tradicionais e o Japão passaram a entender que
os regimes nascentes, sob a liderança dos EUA, não ameaçavam seus interesses
mas, ao contrário, eram benéficos aos seus objetivos de buscar a prosperidade
em um ambiente pacífico.
Em outras palavras, independente de simpatias e de preferências, objetiva-
mente, hoje a China tem um papel a desempenhar na ordem internacional. John
13 Na visão de Susan Strange (1923-1998) haveria quatro formas de poder que, poderiam caracterizar uma grande
potência: recursos de segurança, capacidade de produção econômica, recursos financeiros e conhecimentos
científicos e tecnológicos. Essas quatro capacidades combinadas permitiriam à nação interpretar e atuar com
alguma autoridade sobre a ordem internacional.
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Mearsheimer, conhecido teórico das Relações Internacionais, dá uma explicação
para um dos problemas centrais da ordem internacional em qualquer tempo: como
manejar as inevitáveis mudanças na distribuição do poder mundial? (Mearsheimer,
2001). Ele qualifica como “trágico” o destino das grandes potências porque, em
sua avaliação, as grandes potências, mesmo aquelas que estão satisfeitas em viver
em paz consigo mesmas, estão fadadas a se engajarem em uma interminável
luta pelo poder na esfera internacional. O que Mearsheimer está fazendo é
reafirmar, à sua maneira, o fato de que as grandes potências não podem isolar-se
e deixar de participar ativamente do processo de construção e do manejo da
ordem internacional, mesmo que, por vezes, essa ordem não pareça favorecer
a potência dominante.
Incertezas e expectativas sobre a China na ordem internacional
Diante desse quadro, também é preciso considerar até que ponto as grandes
potências tradicionais estarão dispostas aceitar a China como um jogador cada
vez mais importante no tabuleiro do xadrez da política mundial. Seja para os
analistas ou para os estadistas a novidade é saber como essa possibilidade poderá
ser assimilada quando, pela primeira vez na modernidade, a ordem internacional
parece demandar uma efetiva cooperação entre potências de bases culturais tão
distintas quanto os EUA e a China. De fato, a pragmática integração da China
à economia mundial iniciada pelo próprio Mao Tsé Tung aponta para uma
questão posta tanto para Xi Jinping quanto para as lideranças ocidentais: até
que ponto uma China próspera e integrada à economia e à política mundial pode
ser compatível com um Estado fechado e autoritário. Para a lógica do mercado,
um sistema político e social fechado e autoritário inspira pouca confiança em
qualquer plano ou programa de investimento e de cooperação internacional. Em
larga medida, a desconfiança em relação a sistemas políticos fechados e formas
de governos autoritários deriva do fato de que, em geral, governos autoritários —
ainda que o autoritarismo seja exercido de forma benevolente — tendem a viver
em um ambiente de incerteza pois, até mesmo por razões biológicas, governantes
autoritários, a qualquer momento, podem deixar o poder — ou devem deixar o
poder — para serem substituídos por outros governantes que podem ter outra
forma muito diferente de ver o mundo e a concorrência internacional. No caso
da China, o autoritarismo é exercido por uma notável máquina burocrática
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que é o Partido Comunista da China. Tem quase 100 milhões de associados e
a filiação ao partido é considerada essencial para quem quer ascender social e
profissionalmente, seja na política, no mundo dos negócios, ou até mesmo na
área da cultura e do entretenimento. Isso vale, portanto, para grandes empresários
como Jack Ma, fundador da gigante do comércio eletrônico Alibaba ou para
Ren Zhengfei, fundador da empresa de telecomunicações Huawei. Com efeito,
tudo indica que o exercício do poder não deverá mudar muito, mesmo quando
a liderança de Xi Jinping chegar ao fim, do mesmo modo que ocorreu quando
Deng Xiaoping ou Hu Jintao deixaram o poder.
Em um sentido cultural e comportamental, a questão parece ser a de saber
como será possível conciliar sociedades que valorizam a individualidade, os
direitos individuais e a liberdade da informação como elementos centrais da
ordem social e política, em vista de outra sociedade marcada pelo entendimento
de que o indivíduo só ganha sentido quando diluído em algum tipo de identidade
coletiva e pelo controle da circulação da informação por parte da burocracia estatal.
Quando Wittfogel formulou sua tese de que havia um “despotismo oriental”
associado à construção de barragens que exigiam grandes quantidades de mão
de obra e de uma burocracia estatal muito bem organizada e eficiente não havia
grandes obras públicas como pontes, túneis e trens de alta velocidade, e nem
terceirização da atividade industrial de produção em massa e em escala global,
mas de qualquer modo, há séculos, os chineses foram capazes de construir a
Grande Muralha (Wittfogel, 1957).14
Aparentemente, o Partido Comunista Chinês percorreu uma trajetória
semelhante à trajetória pessoal de Karl August Wittfogel que, quando jovem foi
marxista militante, mas depois desencantou-se com a doutrina tornando-se um
crítico do marxismo. Não se pode dizer que o Partido Comunista Chinês tenha
se tornado um crítico do marxismo e de sua tese do igualitarismo, mas a opção
do PCC pela burocracia como razão de Estado tem sido muito clara. No manejo
dessa burocracia, no entanto, ficam muitas dúvidas quanto ao curso que pode
ter o tratamento de questões internacionais e mesmo nacionais. Muito embora a
constituição fale em liberdade de manifestação, as questões envolvendo esse tipo
de manifestação são tratadas de forma reservada no âmbito do alto comando do
poder político. Além disso, embora a constituição fale explicitamente em regiões ou
14 Karl Wittfogel (1896-1988) analisou as visões de Max Weber sobre o fenômeno burocrático do Estado e
construiu a partir daí a conceituação de um despotismo oriental entendendo que havia um modo de produção
tipicamente asiático observando os casos da China e da Índia.
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províncias e administrações autônomas, não fica claro que tipo de entendimento
e qual deve ser o tratamento a ser dispensado a Taiwan ou à segurança regional
e internacional. O recente caso da invasão da Ucrânia pelas forças da Federação
Russa, em uma decisão tomada por Vladimir Putin e pelo seu alto comando de
forma reservada, inevitavelmente, levanta a hipótese de que o governo chinês
possa tomar curso semelhante tanto diante de questões domésticas quanto diante
de questões internacionais consideradas como sendo de seu interesse estratégico.
Apesar das claras diferenças no quadro institucional da estrutura política que
ordena o processo político na China e na Federação Russa — esta muito mais
próxima do autoritarismo do antigo império czarista — a ordem política na China
não deixa de ser conduzida de forma reservada, muito distinta dos padrões
ocidentais caracterizados por um ordenamento jurídico do poder bastante claro
e pelo fluxo de informações sobre o qual a autoridade governamental não exerce
controle. Nesse quadro, as possibilidades se revelam abertas, e mesmo incertas,
quanto a mudanças de curso diante de desenvolvimentos na ordem econômica
e na política doméstica, regional e internacional.
Referências
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In B. M. Rowland, Balance of Power of Hegemony: the Interwar Monetary System,
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CONFÚCIO. Os Analectos. Instituto Confúcio, Editora UNESP e Folha de S.Paulo, 2015.
MEARSHEIMER, John J. The Tragedy of Great Power Politics. W. W. Norton & Co. New
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OLSON, M.. Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships.
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(2ª. edição).
STRANGE, Susan States and Markets. Continuum Publishers, London, N. York, 1988.
WITTFOGEL, Karl A. The Oriental Despotism. A Comparative Study of Total Power.
Yale University Press, 1957.