Robson Cunha Rael; Priscila Carolina Pellens
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 3, e1266, 2022
1-23
Uso da força por potências da OTAN:
o caso da intervenção na Líbia
Use of force by NATO powers:
the case of the intervention in Libya
Uso de fuerza por las potencias de la OTAN:
el caso de la intervención en Libia
DOI: 10.21530/ci.v17n3.2022.1266
Robson Cunha Rael
1
Priscila Carolina Pellens
2
Resumo
Aborda-se o fenômeno do uso da força para o caso da Líbia.
O objetivo é analisar condições causais que influenciaram a
participação de potências da OTAN na intervenção. O método é
a Qualitative Comparative Analysis (QCA), pelo qual se analisam
condições causais que contribuíram para o uso da força por França,
Reino Unido e Estados Unidos em contraste com a Alemanha,
que teve um comportamento desviante por não ter participado
da intervenção na Líbia. Com ressalvas nos resultados, verifica-
se uma maior relevância das condições diplomática e status para
ocorrência do uso da força.
Palavras-chave: Líbia; Uso da Força; Potências da OTAN; QCA;
Condições Causais.
1 Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2019).
Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília,
(robson.c.rael@gmail.com), ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4355-552X.
2 Especialista em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (2020). Mestranda em Relações Internacionais
pela Universidade Federal da Integração Latino Americana, (carolinapellens@
gmail.com), ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3462-1927
Artigo submetido em 02/04/2022 e aprovado em 18/12/2022.
AssociAção BrAsileirA de
relAções internAcionAis
ISSN 2526-9038
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Uso da força por potências da OTAN: o caso da intervenção na Líbia
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 3, e1266, 2022
2-23
Abstract
The phenomenon addressed is the use of force in the case of Libya. Our aim is to analyze
causal conditions that influenced the participation of NATO powers in the intervention.
By using the Qualitative Comparative Analysis (QCA) method, we are able to compare
the causal conditions of France, the United Kingdom, and the United States’ use of force
versus Germany’s deviant decision to abstain from the Libyan intervention. We observed
that it seems that diplomatic and status conditions are more important for the occurrence
of use of force, notwithstanding limitations in the findings.
Keywords: Libya; Use of Force; NATO Powers; QCA; Causal Conditions.
Resumen
El fenómeno del uso de fuerza se aborda en el caso de Libia. El objetivo es analizar las
condiciones causales que influyeron la participación de potencias de OTAN en la intervención.
El método es el Análisis Comparativo Cualitativo (QCA), mediante el cual se analizan las
condiciones causales que contribuyeron al uso de fuerza por Francia, Reino Unido y Estados
Unidos en contraste con Alemania, que tuvo un comportamiento desviado por no haber
participado en la intervención. Con reservas en los resultados, hay una mayor relevancia
de las condiciones diplomática y status para la ocurrencia del uso de fuerza.
Palabras clave: Libia; Uso de Fuerza; Potencias de OTAN; QCA; Condiciones Causales.
Introdução
O estudo aborda o fenômeno do uso da força na intervenção na Líbia, em
2011, que contou com a participação de potências da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), como França, Reino Unido e Estados Unidos. Apesar
de ter obtido autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU)
para o uso da força para proteção humanitária, indícios de abuso do mandato
interventivo e as consequências da ação, como o desencadeamento de uma
guerra civil no país, trouxeram à tona questionamentos não somente sobre a
legitimidade e a efetividade da intervenção militar, como também de qual teria
sido sua real motivação (Bellamy, 2011; Pratiwi, 2018; Saba; Akbarzadeh, 2017;
Williams; Bellamy, 2012).
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As divergências entre os aliados na OTAN fizeram com que apenas alguns
membros se engajassem na operação liderada pela Organização (França, Reino
Unido e Estados Unidos) (Carati, 2017). Dentre alguns dos aspectos postos em
questão, pode-se citar a mensuração de riscos, custos e interesses; o suporte
interno e/ou da opinião pública; experiências históricas em ações semelhantes;
o respaldo do direito internacional; a liderança, a forma e a abrangência de uma
possível intervenção militar (Borger, 2011; Chesterman, 2011; Hallam, 2011).
Portanto, objetiva-se averiguar as motivações que culminaram na decisão
do uso da força pelas potências envolvidas (Reino Unido, Estados Unidos e
França), por meio da análise da contraposição entre as justificativas oficiais
apresentadas e os dados levantados, em contraste com a Alemanha (uma potência
de comportamento desviante, que não participou da intervenção). Foge do
escopo do artigo a análise do sistema de segurança coletivo da OTAN e de sua
normativa interna, considerando o foco na investigação das condições causais
que levaram à participação dos países supramencionados.
Para análise dos dados coletados, o desenho de pesquisa é comparativo com
a aplicação do método Qualitative Comparative Analysis (QCA), por meio do qual
foram operacionalizados os conceitos teóricos na forma de condições causais. Para
efeitos comparativos, contrastam-se os países que tomaram parte da intervenção,
com a Alemanha, por constituir um comportamento desviante, dada sua não
participação. Parte-se da hipótese de que uma maior presença de condições com
o caso desviante contribui para o uso da força no evento investigado. O estudo
contribui à literatura sobre o uso da força, principalmente no caso da Líbia, pela
combinação de diversas abordagens conceituais já utilizadas, aliadas a outras
ainda não investigadas, como a de geopolítica e de investimentos estrangeiros
diretos, para identificação das variáveis causais que culminaram na decisão
interventiva, sob a sistematização do QCA.
O artigo é composto de cinco partes. Primeiro, apresenta-se uma revisão da
literatura sobre o tema. Na sequência, explica-se a abordagem teórico-conceitual
utilizada. A seguir, delineia-se a metodologia aplicada e os materiais empíricos
coletados. Por fim, os resultados obtidos são apresentados e discutidos com
relação a cada condição causal, além do apontamento da identificação de outros
fatores que teriam concorrido à decisão do uso da força na Líbia. Na conclusão,
são sumarizados achados, contribuições e limitações do estudo.
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A ilegitimidade como indício da existência de outros interesses
para a intervenção na Líbia
A literatura sobre a intervenção na Líbia se dedica principalmente à discussão
sobre a legitimidade do uso da força no âmbito das Nações Unidas, a qual, em
razão do enfoque mais restrito do estudo, não será detalhada. Importa destacar
que o caso foi o primeiro a obter autorização do CSNU para o uso da força
para proteção humanitária contra um governo legítimo, calcado no princípio
da Responsabilidade de Proteger (R2P na sigla em inglês), malgrado diversos
obstáculos tenham, historicamente, obstado a atuação da comunidade internacional
(Williams; Bellamy, 2012). Foram emitidas duas resoluções: a primeira com
embargos de armas (1970) e a segunda com uso da força (1973) (Malito, 2019),
ambas com votos favoráveis de França, Reino Unido e Estados Unidos (Bellamy,
2011; Morris, 2013), sendo que a segunda contou com cinco abstenções (Brasil,
Rússia, Índia, China e Alemanha) (Bellamy, 2011; Dunne e Gifkins, 2011).
A implementação dessas medidas inovadoras, desenvolvidas para combater
o abuso da soberania estatal em violações extremas aos direitos humanos, expôs
lacunas que têm sido aproveitadas por certos atores, principalmente grandes
potências, em benefício próprio (Dawson, 2021; Mensah, 2017). A análise do
período imediatamente anterior à ação impetrada pela OTAN, entre fevereiro e
março de 2011, demonstra que não havia evidências suficientes para corroborar
o uso da força calcado na R2P como medida preventiva. Entretanto, opções
alternativas à solução do conflito não foram exploradas, ante a preferência pela
ação militar por parte de Estados Unidos, França e Reino Unido, e poderiam ter
evitado a escalada da violência (Saba; Akbarzadeh, 2017).
Há também controvérsias entre: a delegação de autoridade das Nações
Unidas para a OTAN; a característica universal do R2P e a natureza particular da
OTAN; o foco militar da aliança, que apenas ocasionalmente concerne a assuntos
humanitários (Carati, 2017). A interpretação ampla da OTAN da Resolução 1973
(2011) aponta à falta de limitação e de prestação de contas da Organização perante
as Nações Unidas (Carati, 2017; Çubukçu, 2013; Pratiwi, 2018). Em termos gerais,
o conceito de prestação de contas pode ser definido como a obrigação de informar
a um órgão ou ator sobre ações e decisões, passadas ou futuras, justificando-
as, sob pena da imposição de sanções no caso de má-conduta (Keohane, 2003).
Logo, inclui uma função político-normativa de monitorar potenciais abusos de
poder ao requerer daqueles que o exercem explicações e justificações acerca de
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suas ações e o enfrentamento de consequências (Henderson, 2014). O papel da
comunidade internacional é crucial para identificar possíveis áreas de intrusão
e de manipulação, bem como investigar a veracidade das informações que
informam a intervenção, em prol da credibilidade e sustentabilidade dessas
normas (Mensah, 2017).
Para Udegbulem (2019), a motivação da intervenção foi a mudança de regime
na Líbia, com o abuso do conceito de R2P e o uso do mandato como meio para
alcançar interesses geopolíticos das potências envolvidas. Ao invés de oferecer
limitações éticas, a ideia de proteção de civis acaba sendo usada como instrumento
político de expansão do uso de meios militares. Discursos morais hegemônicos
sobre a natureza do conflito e sua possível resolução, têm sido usados como
um sistema para construir consensos, tornando a mudança de regime na Líbia
não apenas possível, mas também aceitável e permissível (Malito, 2019). Ante
a carência de informações sobre o processo de tomada de decisão dos Estados
intervenientes, possibilita-se a utilização da intervenção humanitária como
licença para justificar ou possibilitar políticas externas discricionárias, como
intervenções unilaterais, em prol de interesses estatais (Steele; Heinze, 2014).
Determinados estudos focam em países isolados. A questão do status, ou
seja, a posição de um ator em relação a outros em uma determinada hierarquia,
com base em crenças comuns compartilhadas por uma comunidade, é levantada
por Dawson (2021) como parte da motivação do Reino Unido. O Primeiro-
Ministro David Cameron rechaçou a tese do declínio do país em uma declaração
de novembro de 2010, sendo a crise na Líbia uma oportunidade para influenciar
eventos internacionais de acordo com sua posição de grande potência.
No caso dos Estados Unidos, havia divergência entre as principais lideranças
do governo sobre o suporte norte-americano, com a falta de interesse no comando
das ações, principalmente em razão dos custos de operações militares anteriores,
da necessidade de respaldo do direito internacional e o apoio de outros países
(Chesterman, 2011). O entendimento da intervenção humanitária como obrigação
moral, a conformidade com o direito internacional, a possibilidade de participação
na operação militar sem tropas no solo e a viabilidade de transferência do
controle da operação para a OTAN, para um melhor custo-benefício em tempos
de crise econômica e emprego militar excessivo, são alguns fatores que teriam
influenciado a decisão norte-americana (Blomdahl, 218).
Outros estudos mencionam as três potências (Estados Unidos, Reino Unido
e França). Çubukçu (2013) conclui que as ações desses países, na condução
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da intervenção, foram mais voltadas para a mudança de regime do que para
a proteção de civis. Carati (2017) também segue esta linha, além de reforçar
que a proteção de civis foi uma razão muito vaga para a intervenção na Líbia,
tanto que o conceito de R2P foi pouco citado pelos membros do CSNU durante
os debates sobre a intervenção. Investigando os mecanismos utilizados para
legitimar a intervenção, Malito (2019) revela que a mudança de regime foi
fruto de estratégias políticas postas em prática desde o início da crise, com
a instrumentalização da situação e dos discursos violentos de Gadaffi para
forjar sua permissibilidade. Pratiwi (2018) entende que o excesso do mandato
pelas potências envolvidas (EUA, França e Reino Unido) aponta à corrupção
do conceito e à questionabilidade de seus motivos, além de que a falta de ação
com base na R2P em situações similares demonstra a inexistência de clareza
e procedimentos operacionais consistentes, o que prejudica a transparência, a
responsabilidade e a prevenção, tanto para reduzir riscos como para aumentar a
probabilidade de sucesso. Já Hehir (2013) aponta a falta de padrão nas decisões
do CSNU relacionadas a crises internacionais, de modo que, em razão do poder
de veto dos membros permanentes, a ação coletiva depende do interesse nacional
daqueles Estados.
Em suma, as questões apresentadas pela literatura evidenciam a aplicação
deturpada e interesseira da R2P e permitem a dedução da existência de outras
variáveis para a decisão interventiva, pois, com a omissão do CSNU na fixação
dos mecanismos de implementação do mandato, houve uma adaptação destes
para atender aos interesses dos Estados intervenientes (Udegbulem, 2019).
Ademais, a literatura apresenta algumas lacunas. As abordagens explanadas
enfatizam isoladamente alguns conceitos como o de R2P, prestação de contas e
limitações éticas/morais, mas sem apresentar uma análise conjunta de possíveis
condições causais que tenham contribuído para a realização da intervenção, mais
adequada para a explicação de fenômenos multicausais, como os da política
internacional. Ademais, não há uma comparação com uma quarta potência que
não tenha participado da intervenção, o que é fundamental para a identificação de
condições causais necessárias que estejam presentes para as potências interventoras
(ocorrências positivas de uso da força para o caso analisado) e ausentes para
uma potência que não participou da intervenção (ocorrência negativa de uso
da força).
Nesse sentido, a presente pesquisa possui originalidade tanto pela identificação
de possíveis condições causais necessárias, bem como pela análise conjunta
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das ocorrências positivas da intervenção na Líbia (Estados Unidos, França e
Reino Unido) em contraste com uma ocorrência negativa (Alemanha). Aplica-
se também uma combinação de conceitos já utilizados em pesquisas anteriores
(como o de status e de proteção humanitária) juntamente com conceitos não
utilizados, mas que são válidos para a compreensão do caso de uso da força,
tendo em vista dados empíricos também não utilizados em estudos anteriores,
como referências relativas a investimentos na Líbia, importações de combustíveis
e relações diplomáticas com os rebeldes por parte de potências da OTAN.
Outro ponto original do estudo é a utilização do método QCA, o qual também
não foi adotado em análises sobre o tema, que evidenciam o uso de metodologias
como análise discursiva (Dunne e Gifkins, 2011; Malito, 2019), estudo de caso
e hermenêutica jurídica (Bellamy, 2011; Cantini e Zavialov, 2018; Carati, 2017;
Chesterman, 2011; Hehir, 2013; Morris, 2013; Pratiwi, 2018; Teimouri e Subedi,
2018; Udegbulem, 2019; Williams e Bellamy, 2012), process tracing (Blomdahl,
2018; Dawson, 2021; Saba e Akbarzadeh, 2017), análise de atores (Mensah, 2017)
e análise geracional (Steele e Heinze, 2014).
Condições causais para o uso da força
Para compreensão das motivações da intervenção, são seis condições causais
consideradas, as quais abordam diferentes conceitos explicativos, a saber:
•Condição Diplomática: A diplomacia (Wight, 2002) é um sistema de
comunicação, negociação e informação entre os Estados, categorizada em
Embaixadas e Conferências em organizações internacionais. Na função
de comunicação, o agente diplomático (representante de seu governo) é
responsável pela transmissão e a explicação das mensagens enviadas para
o governo estrangeiro, e vice-versa. Na função de negociação, o diplomata
negocia com o governo estrangeiro conforme instruções fornecidas pelo
seu governo. Na função de informação, o agente diplomático informa ao
seu governo aquilo que sabe e considera relevante sobre o país estrangeiro.
Para o caso em tela, a condição diplomática é definida como a ruptura
da relação diplomática com o regime de Gaddafi e/ou estabelecimento
de relação diplomática com os rebeldes.
•Condição Investimento Estrangeiro Direto: Investimento estrangeiro direto
(Moosa, 2002) é um processo no qual investidores de um país (país
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fonte) adquirem a propriedade de ativos com o propósito de controlar a
produção, a distribuição e outras atividades de firmas de outro país (país
anfitrião). A condição é operacionalizada pela verificação da existência
de tratado bilateral de investimentos com a Líbia.
•Condição Geopolítica: A geopolítica é a espacialização do poder (Scholvin,
2014), dependendo das tecnologias predominantes e dos recursos, o
que faz com que algumas localizações se tornem mais importantes do
que outras. Por exemplo, a mudança dos motores movidos a carvão
para petróleo no início do século XX foi a resultante chave do papel
estratégico dos territórios de extração de petróleo. Deste modo, a condição
é definida pelo interesse em recursos energéticos presentes em território
líbio (materializado pela importação de combustíveis).
•Condição Humanitária: A condição humanitária é operacionalizada com
o voto favorável à Resolução 1970 (2011), a qual é anterior à Resolução
1973, que autorizou o uso da força. Caso um Estado votasse contrariamente
à primeira e favoravelmente à segunda (aprovada três semanas depois),
seria questionável a preocupação humanitária deste Estado com civis
líbios.
•Condição Militar: Operações militares (Peifer, 2016) de coalizões lideradas
pelas Nações Unidas ou pela OTAN possuem especificações quanto ao
tamanho do contingente militar, à duração da campanha e aos tipos
de operações a serem realizadas, as quais podem incluir patrulhas
navais, tropas no solo, voos de reconhecimento em zonas de guerra e
até bombardeios. Como as operações militares realizadas na Líbia foram
predominantemente aéreas, a condição militar se operacionaliza com
a capacidade de realizar bombardeios em território líbio, demonstrada
por um orçamento militar dezenas de vezes maior do que o da Líbia na
época.
•Condição Status: Em relações internacionais, o status (Duque, 2018) é
o reconhecimento dos atributos de um Estado, como riqueza e força
militar, por parte de outros Estados e atores. Não se trata de uma questão
meramente relativa à percepção, vez que o status emerge de práticas que
geram reconhecimento e atribuição a determinado “clube”, como o de
potências. Para o presente estudo, a condição é definida como a prática
estatal que visa manter/recuperar o reconhecimento do Estado como
potência.
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Qualitative Comparative Analysis (QCA)
O caso da intervenção na Líbia faz parte do fenômeno do uso da força nas
relações internacionais. As unidades de análise são Estados Unidos, França, Reino
Unido e Alemanha por comporem a interseção de países membros do CSNU e da
OTAN, isto é, do organismo decisório e da organização executora do uso da força.
Logo, a escolha dos países deriva do caso concreto, por isso não há comparação
entre uma mesma quantidade de países que participaram e não participaram
da intervenção. A participação de uma potência na intervenção indica uma
ocorrência positiva do fenômeno do uso da força e a não participação indica uma
ocorrência negativa para o mesmo fenômeno no caso mencionado. A referida
intervenção não é um processo em andamento, mas sim, um acontecimento
empírico com resultados concluídos em 2011, no que se refere ao uso da força.
A inclusão da Alemanha justifica-se por se tratar de uma unidade de análise
com resultado desviante, possibilitando a comparação entre ocorrência positiva
e negativa do uso da força.
Parte-se da hipótese de que a presença de uma maior quantidade das
condições causais listadas acima para cada potência da OTAN considerada,
aumenta a probabilidade de participação na intervenção na Líbia. Não é uma
hipótese tautológica, uma vez que há falseabilidade no sentido de Karl Popper
(2002). A falseabilidade de uma hipótese consiste no teste empírico que resultará
na verificação ou não da hipótese de pesquisa. No caso de não verificação,
prevalece a hipótese nula, ou seja, a negação da hipótese de pesquisa. Logo,
a sua verificação da hipótese de pesquisa depende de uma menor quantidade
de condições causais para a Alemanha. A hipótese nula é verificada com uma
maior quantidade de condições causais para o referido país.
As condições causais podem ser necessárias ou suficientes. Uma causa é
necessária (Ragin e Rubinson, 2009) para um fenômeno quando a ausência da causa
resulta na não ocorrência do fenômeno. Uma causa é suficiente quando a presença
da causa resulta na ocorrência do fenômeno. Nas relações internacionais, os
fenômenos são multicausais, isto é, nenhuma causa isoladamente é suficiente para
a ocorrência de um fenômeno. Além disso, são possíveis múltiplas combinações
de condições causais para a produção de um mesmo resultado, ou seja, nenhuma
causa é isoladamente necessária ou suficiente para a ocorrência do resultado.
Para análise do uso da força por potências da OTAN no caso da intervenção na
Líbia, o método de pesquisa proposto é o QCA, através da comparação entre três
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ocorrências positivas (Estados Unidos, Reino Unido e França) e uma ocorrência
negativa (Alemanha). A comparação entre as ocorrências refere-se à verificação
da presença ou não de condições para o uso da força propostas na hipótese
para o caso em tela. Deste modo, identifica-se quais combinações de condições
causais proporcionam o resultado de uso da força, ou seja, a participação na
intervenção na Líbia.
O QCA (Rihoux e Grimm, 2006; Mahoney, 2007; Ragin e Rubinson, 2009;
Medina et al., 2017) possibilita analisar diferentes combinações de variáveis como
causas de um fenômeno, através de uma análise mais detalhada na relação entre
as condições causais e a presença/ausência do resultado. O método contém uma
lógica para identificar combinações de variáveis causais que sejam suficientes
para a ocorrência de um resultado. A vantagem de tal técnica de pesquisa é
identificar uma combinação de causas necessárias que conjuntamente sejam
suficientes para o resultado.
A hipótese da pesquisa é representada da seguinte forma:
A + B + C + D + E + F => Uso da Força
A, B, C, D, E e F são condições presentes na hipótese mencionada acima,
de modo que a presença de mais condições aumentaria a probabilidade para
o uso da força da intervenção na Líbia. Já uma menor presença das condições
indicadas diminuiria a probabilidade do uso da força. Logo, para as três ocorrências
positivas de uso da força (Estados Unidos, França e Reino Unido), o número de
condições causais presentes deve ser maior do que para a ocorrência negativa
de uso da força (Alemanha), caso contrário, a hipótese nula é confirmada. Além
disso, por cada país possuir realidades diversas, não se espera que as ocorrências
positivas apresentem as mesmas condições causais necessárias, de modo que o
teste de hipótese também indique diferentes rotas causais (com algum grau de
suficiência) para o fenômeno do uso da força no caso considerado.
Os materiais empíricos utilizados para a aplicação do método de teste da
hipótese são compostos de documentos, notícias e bases de dados. Entre os
documentos estão resoluções do CSNU, tratados sobre investimentos bilaterais
com a Líbia e discursos de chefes de governos. As notícias são provenientes de
veículos de imprensa diversos e foram reportadas principalmente nos meses
de fevereiro e março de 2011. As bases de dados incluem informações sobre
importações de combustíveis extraídos do território líbio, bem como informações
do SIPRI para gastos militares.
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O uso da força na intervenção na Líbia
A partir dos materiais empíricos coletados, por meio do método QCA, foi
realizada a análise das condições causais Diplomática, Investimento Estrangeiro
Direto (IED), Geopolítica, Humanitária, Militar e Status com relação aos países
envolvidos na intervenção da Líbia, a saber Estados Unidos, França e Reino
Unido, e para a Alemanha, que apesar de não ter participado, faz parte da OTAN
e integrou as discussões no CSNU que culminaram na aprovação da Resolução
1973. A tabela abaixo sintetiza os resultados verificados, na qual “1” significa
o implemento da condição e “0” sua ausência para o país em questão.
Quadro 1: Condições Causais para a participação na Intervenção na Líbia
Casos Resultado Condição
Diplomática
Condição
IED
Condição
Geopolítica
Condição
Humanitária
Condição
Militar
Condição
Status
Estados Unidos 11 0 1 1 1 0
França 1 1 1 1 1 1 1
Reino Unido 1 0 0 1 1 1 1
Alemanha 0 0 1 1 1 1 0
Fonte: Elaboração própria.
Nenhuma condição é isoladamente suficiente para o resultado de uso da
força. Depreende-se da tabela acima que é necessário para o uso da força ter
a condição diplomática ou a condição status, uma vez que dos três países que
participaram da intervenção, Estados Unidos possui a condição diplomática,
Reino Unido possui a condição status e a França possui a duas. A Alemanha
não tem as condições status e diplomática.
A condição Investimento Estrangeiro Direto é definida e operacionalizada
pela identificação da existência de tratado bilateral de investimentos com a
Líbia no período anterior a intervenção no país, com vigência no ano de 2011.
A referida condição possui limitações, pois o ideal seria analisar os dados efetivos
de IED. No entanto, em bases de dados como Banco Mundial e Ciafactbook
não foram encontrados os dados para o período mencionado. Considerando
os tratados bilaterais, Alemanha e França apresentam resultado positivo para
a referida condição. Estados Unidos e Reino Unido contêm resultado negativo
(UNCTAD, 2021).
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A Alemanha assinou um tratado de investimento direto com a Líbia em
15/10/2004, o qual entrou em vigor no dia 14/07/2010. O referido Tratado
(UNCTAD, 2004b) visava a promoção e a proteção de investimentos entre os
países signatários (art. 2º), sendo investimento definido como qualquer ativo
(art. 1º), em especial propriedades móveis e imóveis, ações de empresas e
dinheiro utilizado para criar valor econômico. Conforme o artigo 13, a vigência
do Tratado era de 10 anos e poderia ser estendida por tempo indeterminado.
Este também prevê a denúncia do Tratado por qualquer das partes, mas somente
após os primeiros 10 anos de vigência e com aviso prévio de 12 meses.
A França assinou um tratado investimento direto com a Líbia em 19/04/2004, o
qual entrou em vigor no dia 29/01/2006 (UNCTAD, 2021). O acordo foi estabelecido
para ter vigência inicial de 10 anos, a menos que uma das partes denunciasse
o tratado com pelo menos um ano de antecedência. Mesmo com o decurso do
prazo de validade, os investimentos realizados continuariam a serem beneficiados
pelas suas provisões pelo prazo adicional de 20 anos (UNCTAD, 2004a). Com
potenciais 30 anos de proteção de investimentos realizados, infere-se que a
França teria interesse em garantir o cumprimento das normas estabelecidas para
proteger os seus investimentos, mesmo diante de um novo governo.
O Reino Unido firmou tratado bilateral de investimentos com a Líbia no ano
de 2009, mas que não entrou em vigor. Já os governos de Estados Unidos e Líbia
firmaram acordo bilateral de investimentos, no entanto, somente em dezembro
de 2013, mais de dois anos e meio após o início da intervenção em território
líbio (UNCTAD, 2021). Logo, não havia diretamente interesses de proteção de
investimentos por parte dos governos americano e britânico.
A condição humanitária é definida como a preocupação com a situação dos
civis e é operacionalizada pelo voto favorável à Resolução 1970 do CSNU, aprovada
três semanas antes da Resolução 1973 que autorizou o uso da força na Líbia. A
Resolução 1970 (Brockmeier, 2013) impunha sanções à Líbia (como congelamento
de bens, banimento de viagens e embargos), reafirmando a responsabilidade
de proteger a população civil, bem como encaminhava o caso para o Tribunal
Penal Internacional. Trata-se de ações com a intenção de pressionar autoridades
do regime de Gaddafi a recuarem em seus atos de violência.
A variável em tela está presente para todos os países considerados, os quais
votaram pela adoção da primeira resolução. Houve um grande peso do senso
de obrigação moral de intervenção humanitária para proteção de indivíduos de
genocídio ou perseguição coletiva, ante a aparente deterioração dos ataques
Robson Cunha Rael; Priscila Carolina Pellens
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 3, e1266, 2022
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contra civis na Líbia. O principal argumento utilizado foi o apoio ao direito
de autodeterminação dos povos, à luta dos líbios por reformas democráticas à
guisa dos protestos iniciados com a Primavera Árabe e a promoção dos direitos
humanos. Logo, visava-se a manutenção da estabilidade na região e evitar que
outros ditadores seguissem políticas semelhantes, de modo que a obtenção de
respaldo no direito internacional pelo mandato concedido pelo CSNU e o apoio
de uma coalizão de países foram fatores chave ao apoio dos EUA (Blomdahl,
2018; Chesterman, 2011; BBC, 2011).
É importante analisar em contexto as duas resoluções. Vale notar que a
Alemanha apoiava o primeiro esboço da Resolução 1973, que determinava uma
zona de exclusão aérea no território da Líbia, para a proteção de civis. Guido
Westerwelle, Ministro das Relações Exteriores alemão, concordava com o texto,
mas queria a participação de países árabes (Liga Árabe, Conselho de Cooperação
do Golfo e Organização para a Cooperação Islâmica). Hillary Clinton, Secretária
de Estado americana, afirmou ter o apoio de países árabes, após reuniões com
a Liga Árabe no Cairo e em Paris. Conforme instruções de Obama a Susan Rice,
Representante Permanente estadunidense nas Nações Unidas, os Estados Unidos
efetuaram uma mudança no esboço da Resolução 1973, de modo que passasse a
incluir a expressão “todas as medidas necessárias [...] para proteger civis”, além da
zona de exclusão aérea, o que implicava em um aumento significativo da margem
ao uso da força, incluindo ataques aéreos contra o regime de Gaddafi e suas
tropas no solo. O governo alemão não concordou com a mudança, diferentemente
de Reino Unido e França.
A condição militar é definida e operacionalizada pela capacidade de efetuar
ataques aéreos em território líbio, uma vez que as operações no país foram
conduzidas principalmente com bombardeios. A condição está presente para os
quatro países considerados uma vez que todos possuíam um gasto militar no
mínimo 40 vezes ao orçamento militar da Líbia na época (1,1 bilhão de US$), quais
sejam: Alemanha (45,0 bilhões de US$), Estados Unidos (656,7 bilhões de US$),
Reino Unido (72,9 bilhões de US$) e França (55,3 bilhões de US$) (SIPRI, 2022).
Apesar da memória dos bombardeios sofridos durante a Segunda Guerra
Mundial, aeronaves alemãs já participaram de bombardeios realizados pela
OTAN. Durante a guerra do Kosovo (1999), ataques aéreos foram efetuados
por aeronaves alemãs para minar o sistema de radar da Sérvia (Peifer, 2016).
No entanto, para o contexto da Líbia, Merkel e Westerwelle (Brockmeier, 2013)
tinham ceticismo sobre a eficácia e as consequências da intervenção militar,
Uso da força por potências da OTAN: o caso da intervenção na Líbia
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 3, e1266, 2022
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pois a proximidade de eleições e uma intervenção poderiam causar a perda do
governo. Ademais, Westerwelle tinha dúvidas sobre os reais motivos de França
e Reino Unido em participar.
Quanto à França, o país tinha disposição em realizar bombardeios, permitidos
pela Resolução 1973 (2011) de acordo com a expressão “todas as medidas
necessárias [...] para proteger civis” (Onu, 2011b), tanto que os primeiros ataques
aéreos (Chesterman, 2011), em 19/03/2021 (Sly et al., 2011), contra veículos
militares e tanques de tropas leais ao Coronel Gaddafi, foram comandados pela
França e, posteriormente, pela OTAN. O plano inicial francês (BBC, 2011) era
atacar unidades pró-Gaddafi que combatiam rebeldes na cidade de Benghazi.
Em maio de 2011, helicópteros franceses realizaram ataques mais acurados para
remover o presidente do poder (France 24, 2011), conforme interesses de França,
Reino Unido e Estados Unidos, apesar da relutância de outros aliados da OTAN
de irem além da zona de exclusão aérea autorizada pela CSNU.
Do ponto de vista militar, a opção de emprego da força foi tópico controvertido
no governo norte-americano e entre a opinião pública, que era majoritariamente
contrária a ações na Líbia (Labott, 2011). Apesar de o Presidente Barack Obama
ter justificado com cautela o uso da força, mencionando a necessidade de
mensurar riscos, custos e interesses em jogo, as especificidades do caso da Líbia
foram ressaltadas como aspectos favoráveis. Principalmente, não havia vontade
política para se assumir um papel de liderança na operação militar, por isso, a
possibilidade de interromper a violência do regime de Gaddafi, sem os riscos do
emprego de tropas em solo, propiciava a obtenção de um melhor custo-benefício
ao país, dada a crise econômica e o emprego militar excessivo (numa fase de
retirada de tropas do Afeganistão e do Iraque). Assim, a premissa era de que a
participação norte-americana devia ser limitada, como parte integrante de uma
coalizão internacional, e evitar acusações de “imperialismo” estadunidense. Por
outro lado, a aceitação dos Estados Unidos em apoiar a intervenção na Líbia
foi considerada crucial na extensão dos termos da Resolução 1973 (2011) além
da imposição de “zona de exclusão aérea” para incluir a autorização de “todas
medidas necessárias” para proteger civis (Blomdahl, 2018; Chesterman, 2011;
Mataconis, 2011; Obama, 2011).
Referente ao aspecto militar, o Reino Unido foi um dos principais articuladores
da resolução interventiva do CSNU. O ministro das Relações Exteriores William
Hague ressaltou que a Líbia, numa situação de Estado falido e com Gaddafi no
poder, poderia ser uma fonte potencial para terroristas, logo uma ameaça próxima
Robson Cunha Rael; Priscila Carolina Pellens
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 3, e1266, 2022
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à Europa. O país atuou ativamente na persuasão de aliados ocidentais para a
aprovação de uma base legal para uma “zona de exclusão aérea” e a obtenção do
apoio regional de países árabes. Após a aprovação da Resolução 1970 (2011), as
forças britânicas iniciaram ataques com mísseis em alvos da defesa aérea líbia,
na sequência do anúncio de um cessar-fogo por parte do governo Gaddafi, que foi
recebido com suspeita pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos. Posteriormente,
em 21 de março, a Casa dos Comuns aprovou a ação militar por ampla maioria
(557 votos a favor e 13 contrários) (Cantini; Zavialov, 2018, Dawson, 2021; BBC
News, 2011; Morris, 2013).
No que concerne à condição diplomática, esta se expressa pela ruptura
de relações diplomáticas com o regime de Gaddafi e/ou o estabelecimento de
relações diplomáticas com representantes dos rebeldes líbios. Verificou-se seu
implemento para Estados Unidos e França.
No caso estadunidense, deu-se em razão da imposição de sanções e da
interrupção de relações diplomáticas, com a suspensão das atividades na embaixada
em Trípoli e a retirada de pessoal. Além disso, o governo norte-americano, por
meio da Secretária de Estado Hillary Clinton, realizou reuniões com representantes
dos líderes da oposição na Líbia, sem reconhecimento formal, para discutir as
possibilidades de ação frente à crise do país. Já a França, foi o primeiro país a
reconhecer os líderes rebeldes como governo líbio, com promessa de troca de
embaixadores, em 10/03/2011. O Presidente Nicolas Sarkozy se encontrou com
Mahmoud Jibril e Ali Al-Esawi, representantes do Conselho Nacional Líbio que
foi formado depois do levante ocorrido em fevereiro de 2011.
Diferentemente, os governos alemão e britânico indicaram que têm a prática
de reconhecer Estados e não governos. No entanto, autoridades do Reino Unido
informaram a validade dos rebeldes como interlocutores. Nesse sentido, para ambos
os países não houve a implementação da condição. No caso britânico, houve
somente a imposição de sanções econômicas à Líbia, por meio do congelamento
de ativos financeiros no país, desde o início do conflito em fevereiro de 2011. De
maneira geral, a Alemanha (Schreer, 2013) atuou como líder na OTAN entre os
países que não tinham interesse em participar da Operation Unified Protector (dos
28 membros da OTAN, apenas 8 participaram da operação), já que a Líbia não
era considerada uma ameaça para a Alemanha, mas sim um parceiro comercial,
e não havia interesse na derrubada de Gaddafi.
A condição geopolítica está presente para todos os países analisados e se
expressa pelo interesse em recursos energéticos presentes em território líbio,
Uso da força por potências da OTAN: o caso da intervenção na Líbia
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avaliado por meio do montante de combustíveis importados do país. No caso
da França, o país era o maior importador de combustíveis da Líbia, no ano
de 2010, correspondente a mais de 5,6 bilhões de dólares. A referida quantia
é mais do que o dobro dos valores das importações de combustível líbio por
parte de Estados Unidos (US$ 903.612,14), Alemanha (US$ 870.467,96) e Reino
Unido (US$ 373.029,27) somados (WITS, 2021). Os dados mostram que a França
era a maior interessada em recursos energéticos existentes em território líbio.
Logo, o destino político da Líbia decorrente da guerra civil no país era de suma
importância para o governo francês. Quando foi aprovada a Resolução 1970,
em 26/02/2011, a situação do enfraquecido regime de Gaddafi sinalizava uma
derrota para os rebeldes. Neste cenário, depreende-se que a opção pelo apoio
francês aos rebeldes, com reconhecimento diplomático em 10/03/2011, seria
uma forma de garantir o suprimento dos recursos energéticos com a iminente
vitória dos opositores do regime de Gaddafi. No entanto, as forças de Gaddafi
conseguiram se recuperar e equilibrar o confronto. Como o reconhecimento
francês aos opositores do regime já estava consolidado, não havia como voltar
atrás e Gaddafi precisava ser deposto. Com isso, em 17/03/2011 foi aprovada a
Resolução 1973 que autorizou o uso da força na Líbia. Importante mencionar que
a Alemanha já estava num processo de redução da utilização de combustíveis
fósseis em sua matriz energética, no ano de 2010, com aumento do consumo de
fontes renoveis (Appunn; Haas; Wettengel, 2021).
A condição Status exprime o interesse em manter ou em recuperar o
reconhecimento como potência pela comunidade internacional, com seu implemento
para Reino Unido e França. Em uma declaração de novembro de 2010, o Primeiro
Ministro Britânico David Cameron recusou a tese de declínio do Reino Unido,
demonstrando que, na ideologia de seu governo, seu estado era percebido como
uma grande potência. O interesse nacional também foi usado como argumento,
com nota de que poderia denotar independência dos EUA em contraste aos
eventos com Tony Blair e Bush, que revela uma submissão britânica. Assim, a
crise na Líbia representou uma oportunidade para o país voltar a influenciar
eventos internacionais, considerando que os eventos decorrentes da Primavera
Árabe que levassem a “sistemas políticos abertos” ensejariam maior presença
do soft power britânico (Dawson, 2021).
Para a França, sua ocorrência é observada pela narrativa do Presidente
Sarkozy para a campanha militar na Líbia. O país (Grand, 2015) se apresentou
Robson Cunha Rael; Priscila Carolina Pellens
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 3, e1266, 2022
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como genuína liderança (ou coliderança) no gerenciamento de crise e na condução
de operações militares, com envolvimento direto de Sarkozy na condução das
operações desde o início, o qual quis transmitir a ideia de sucesso ao final da
campanha militar, com o sucesso político acompanhado à queda do Coronel
Gaddafi.
No caso dos Estados Unidos, o elemento não foi considerado no processo
decisório da intervenção, já que inconteste a superioridade militar norte-americana,
o país somente não desejava assumir sozinho os custos e a responsabilidade de uma
ação unilateral, como no Iraque e no Afeganistão. Para o governo alemão, o país
possui uma postura internacional que evita o militarismo, desde o final da Segunda
Guerra Mundial (Maull, 2000) em busca de uma posição como potência civil, com
a política externa voltada para a promoção do multilateralismo, fortalecimento
institucional, integração supranacional e visando restringir o uso da força nas
relações internacionais através de normas nacionais e internacionais, para que
o nacionalismo e o militarismo alemão não ameacem mais a estabilidade na
Europa. O uso da força sem um claro mandato internacional, como a participação
da Bundeswehr na intervenção no Kosovo, permanecerá improvável, apesar de
não ser inconcebível.
Assim, a hipótese se confirma em parte na medida em que se verificam 4
condições causais para Alemanha e 6 para França. Não há confirmação total
porque Estados Unidos e Reino Unido também possuem 4 condições verificadas,
o que não invalida o estudo, o qual buscou evitar raciocínio tautológico. A
validade da pesquisa científica não está na confirmação enviesada de uma
hipótese (com a desconsideração sistemática de contra-argumentos), o que seria
uma “propaganda” da hipótese por falta de raciocínio autocrítico. A validade da
ciência produzida neste artigo está no processo de argumentação, que considera
argumentos e contra-argumentos na confrontação da hipótese elaborada com
dados empíricos coletados. São contra-argumentos à hipótese de pesquisa cada
ponto da interpretação dos dados que não omite a presença das condições
causais para o país que deveria ter menos condições para a confirmação da
hipótese. Ademais, a Alemanha não teve mais condições causais do que nenhum
outro país da amostra. Uma hipótese totalmente explicativa para o caso em tela
precisaria incluir mais condições causais, o que se sugere para estudos futuros
sobre o tema. Observa-se uma relevância para as condições diplomática e status,
as quais estão presentes para a França e ausentes para a Alemanha.
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Vale notar que as rotas causais dos países participantes da intervenção são
diferentes. No entanto, além das condições analisadas, a literatura e os dados
analisados ressaltaram a ocorrência de outros fatores na decisão interventiva
na guerra da Líbia, os quais auxiliam na compreensão desse evento singular no
histórico do CSNU. Argumenta-se que o apoio à resolução a nível regional, pela
União Africana, a Liga dos Estados Árabes, o Conselho de Cooperação do Golfo
e a Organização do Conselho Islâmico, foi crucial à sua aprovação, tendo em
vista que todos os membros do CSNU citaram essa questão para justificar seu
comportamento na votação (Morris, 2013).
Em geral, o estabelecimento de um governo pró-ocidental seria favorável aos
interesses nacionais das potências envolvidas, a exemplo da Tunísia e do Egito.
Por parte dos Estados Unidos, o suporte dos países árabes da região, inclusive
para a imposição da zona de exclusão aérea, requeria um posicionamento norte-
americano pela manutenção dessas relações políticas, principalmente no contexto
pós-Primavera Árabe. Logo, foi considerada a manutenção da estabilidade na
região e o fato de que outros ditadores poderiam seguir políticas semelhantes.
Do lado da França, havia o desejo de aumentar a influência francesa no Norte da
África e, assim, aproveitar a oportunidade de reafirmar sua posição no mundo
(Cantini; Zavialov, 2018; House of Commons, 2016).
Outro fator relevante foi o movimento de deslegitimação internacional do
governo de Gaddafi, que reflete os esforços internacionais para isolar politicamente
o ditador. Desde a declaração do grupo opositor ao ditador, o CNT, como governo
legítimo da Líbia, no começo de março de 2011, este passou a angariar amplo
apoio internacional, inclusive de países árabes da região. Primeiro, o Conselho
de Cooperação do Golfo (GCC) retirou seu reconhecimento legal do regime de
Gaddafi. A Liga Árabe e a União Europeia seguiram o exemplo. Posteriormente,
a França anunciou o reconhecimento legal da oposição baseada em Benghazi
e, dentre os países árabes, os Emirados Árabes foram os primeiros a fazer o
mesmo. Esse movimento de reconhecimento legal da oposição poderia servir de
fundamento legal à intervenção, na medida que a crescente perda da soberania
e da legitimidade do governo de Gaddafi somada a sua retórica violenta contra
a oposição corroboram a iminência de uma atrocidade humanitária, bem como
minavam a continuidade do regime, questões que viriam a servir de argumento
à guinada da operação interventiva para a sua retirada do poder.
Robson Cunha Rael; Priscila Carolina Pellens
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Conclusão
A pesquisa contribui com a literatura na medida em que trabalha com
conceitos não utilizados em outros estudos, como o de geopolítica e investimentos
estrangeiros diretos. Além disso, os referidos conceitos foram analisados de
forma sistemática com a aplicação do método Qualitative Comparative Analysis
(QCA), sendo o uso de tal técnica outra contribuição para o fenômeno do uso
da força em geral, e para o caso da Líbia em específico. Há limitações no artigo
identificadas com a análise de dados empíricos no tópico de discussão, como a
não inclusão da variável deslegitimação internacional do governo de Gaddafi, a
qual se sugere que seja abordada em futuras pesquisas.
A intervenção militar em caso de violação de direitos humanos é questão
polêmica na comunidade internacional, que historicamente preferiu se abster
de atuar para prevenir atrocidades em massa, como nos casos da Bósnia e de
Ruanda, os quais demonstram dificuldade no estabelecimento de um consenso,
principalmente por conflito de interesses. O ineditismo da autorização do CSNU
para utilização da força no contexto da guerra da Líbia, com base no princípio da
R2P, trouxe à tona a discussão sobre o estabelecimento de um novo paradigma
no Direito Internacional, o qual privilegiaria o dever de proteção humanitária em
detrimento da soberania estatal. Não obstante, os abusos ao mandato interventivo
pelas potências envolvidas na intervenção e indícios de inveracidade dos fatos
que a justificaram serviram de mote à realização deste estudo, com o fito de
averiguar as motivações que culminaram na decisão do uso da força.
Por meio da análise dos dados e da literatura especializada, em contraposição
às justificativas oficiais apresentadas pelos países interventores, percebe-se que,
no caso da Líbia, a condição humanitária não é capaz de explicar, por si só, a
decisão interventiva, na qual houve maior influência de questões militares e
geopolíticas. Interesses particulares dos estados envolvidos predominaram no
processo decisório, como ilustra a indecisão dos Estados Unidos em tomar partido
na questão, principalmente devido aos custos políticos envolvidos. Por outro
lado, o apoio estadunidense se mostrou essencial na viabilização da aprovação
de uma resolução no CSNU contendo a disposição “todas medidas necessárias,
que na prática implica na possibilidade de uso da força.
Sem embargo, não podem ser desconsideradas questões conjunturais, como a
suposta iminência de graves violações de direitos humanos, a falta de apoio político
a Gaddafi e o consequente suporte regional à decisão do CSNU, que contribuem
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na compreensão da singularidade do evento, em que se logrou contornar a
possibilidade de veto por um dos membros permanentes. Outrossim, o argumento
moral de um dever de a comunidade internacional intervir, corporificado pela
R2P, não explica a decisão de agir por parte dos países interventores, dada sua
incidência em todos os casos, inclusive para a Alemanha, que não participou da
operação. A prevenção de atrocidades humanitárias se mostrou como retórica
instrumentalizada no caso em prol da persecução de interesses privados das
potências envolvidas, ante a ausência de consenso na forma de lidar com tais
situações, o que impede a fixação de um padrão normativo que dê maior segurança
jurídica aos estados e que possa, de fato, contribuir na promoção dos direitos
humanos conquanto se resguarde o direito à soberania.
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