Caio Augusto Martins Simoneti; Natália Maria Félix de Souza
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Epistemologias do Interstício:
Hibridismo, Pensamento Liminar
e Conexões Pós/Decoloniais
1
Epistemologies of the Interstice:
Hybridity, Border Thinking and
Post/Decolonial Connections
Epistemologías del Intersticio:
Hibridismo, Pensamiento Fronterizo
y Conexiones Post/Decoloniales
10.21530/ci.v17n1.2022.1230
Caio Augusto Martins Simoneti*
Natália Maria Félix de Souza**
Resumo
Este artigo pretende oferecer uma alternativa a interpretações que
identificam uma relação conflituosa entre os estudos decoloniais
latino-americanos e os estudos pós-coloniais do sudeste asiático.
Para tanto, será mobilizado um diálogo entre os pensamentos de
Walter Mignolo e Homi Bhabha enquanto exemplares de cada
grupo, procurando apontar os potenciais de uma leitura focada na
complementaridade de suas obras. Assim, este trabalho utilizará
1 As reflexões contidas aqui tiveram seu início no Trabalho de Conclusão do
Curso de Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, intitulado “Epistemologias do Interstício: Hibridismo
e Border Thinking em Homi Bhaba e Walter Mignolo”, cuja pesquisa contou
com financiamento da Bolsa Acordo Interno de Trabalho APROPUC.
* Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Sussex. Doutorando
em Política e Estudos Internacionais na Universidade de Cambridge.
(cam248@cam.ac.uk). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9524-7190.
** Doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais
da PUC-Rio. Professora do curso de Relações Internacionais e do Mestrado
Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais na
PUC-SP. (nmfsouza@pucsp.br). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9914-8985.
Artigo recebido em 29/09/2021 e aprovado em 29/03/2022.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
Copyright:
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originais sejam creditados.
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os conceitos de “pensamento liminar” e “hibridismo” como linhas condutoras para explorar
os projetos de ambos os intelectuais, procurando identificar as razões de seus contrastes,
assim como conexões possíveis entre eles.
Palavras-chave: Pós-Colonialismo; Estudos Decoloniais; Homi Bhabha; Walter Mignolo.
Abstract
This article aims to offer an alternative to interpretations that identify a conflicting relationship
between Latin American decolonial studies and Southeast Asian post-colonial studies. To
this end, it will mobilize a dialogue between the thoughts of Walter Mignolo and Homi
Bhabha as representatives of each group, aiming to point out the potentials of a reading
focused on the complementarity of their works. Thus, this work will approach the concepts
of “border thinking” and “hybridity” as guiding threads in order to explore the projects
of both intellectuals with a view to identifying the reasons for their contrasts, as well as
possible connections between them.
Keywords: Postcolonialism; Decolonial Studies; Homi Bhabha; Walter Mignolo.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo ofrecer una alternativa a las interpretaciones que identifican
una relación conflictiva entre los estudios decoloniales latinoamericanos y los estudios
poscoloniales del sudeste asiático. Para ello, se movilizará un diálogo entre los pensamientos
de Homi Bhabha y Walter Mignolo como representantes de cada grupo, buscando señalar
los potenciales de una lectura centrada en la complementariedad de sus obras. Así, ese
trabajo utilizará los conceptos de “pensamiento liminar” y “hibridismo” como líneas
conductoras para explorar los proyectos de ambos con el fin de identificar las razones de
sus contrastes, así como posibles conexiones entre ellos.
Palabras clave: Poscolonialismo; Estudios Decoloniales; Homi Bhabha; Walter Mignolo.
Introdução
Atualmente, observa-se um notável aumento da visibilidade de temáticas
coloniais, pós-coloniais e decoloniais na área de Relações Internacionais no
Brasil. Desde os anos 1980, a disciplina tem sido progressivamente interpelada
por tais questões, principalmente sob a influência de intelectuais ligados ao
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Grupo Sul-Asiático de Estudos Subalternos, como Gayatri Spivak, Homi Bhabha
e Dipesh Chakrabarty (Darby e Paolini 1994). Durante os anos 1990, a América
Latina foi introduzida no debate interdisciplinar do pós-colonialismo através do
Grupo de Estudos Subalternos Latino-Americanos e, posteriormente, do Grupo
Modernidade/Colonialidade, formado por pensadores como Walter Mignolo, Ramón
Grosfoguel, Arturo Escobar, Enrique Dussel e Aníbal Quijano, frequentemente
referidos como “decoloniais”.
Ao apresentar a trajetória e as características do pensamento do Grupo
Modernidade/Colonialidade, Luciana Ballestrin (2017) a contextualiza no quadro
geral da história da formação do pós-colonialismo enquanto corrente teórica
marcada por três momentos: anticolonial, pós-colonial canônico e decolonial. O
primeiro estágio teria sido fortemente ligado às lutas de libertação nacional na
África e na Ásia a partir dos anos 1960, marcado por autores como Frantz Fanon,
Aimé Césaire, Ho Chi Mihn e Amílcar Cabral, os quais deixaram uma vasta obra
que extrapola o escopo tradicionalmente acadêmico, incluindo ensaios e poesia.
Nesse momento, observou-se uma forte influência do marxismo revolucionário,
da psicanálise, do pan-africanismo e do pensamento afro-diaspórico sobre tais
estudos, os quais abordaram temas como a identidade do colonizado em sua
oposição ao colonizador e a importância do racismo para o colonialismo (p. 316).
O segundo momento — o “pós-colonialismo canônico” — teve seu início
no final dos anos 1970 e foi fortemente influenciado pelo pós-estruturalismo, os
estudos culturais e os estudos subalternos indianos, abordando questões emergentes
diante do cenário da globalização, do multiculturalismo e da diáspora (Ballestrin
2017, 316). Tal sensibilidade levou autores como Gayatri Spivak, Ashis Nandy,
Homi Bhabha, Stuart Hall e Paul Gilroy a colocar maior destaque na diferença e
na situação de sujeitos que habitam interstícios incapazes de serem plenamente
representados por categorias totalizantes de gênero, raça ou nação, vivendo
nas intersecções entre identidades múltiplas. Além disso, tal etapa também foi
marcada por estudos que abordaram a relação colonizador-colonizado para além
da simples oposição entre totalidades antagônicas, apontando a mútua produção
e emergência simultânea de ambos em sua relação no encontro colonial.
A fase “decolonial”, terceiro momento do pós-colonialismo segundo Ballestrin
(2017, 316), teve seu início com a dissolução do Grupo Latino-Americano de
Estudos Subalternos e a fundação do Grupo Modernidade/Colonialidade, em
1998. Formado, em grande parte, por intelectuais da América Latina atuando nos
Estados Unidos, o grupo teve como objetivo produzir uma crítica que recupera
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elementos da fase anticolonial, ao mesmo tempo se afastando do cânone pós-
colonial do momento anterior. Influenciados pela teoria da dependência, a teoria
do sistema-mundo, a filosofia da libertação e o pensamento caribenho, intelectuais
como Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel, Enrique Dussel, Aníbal Quijano e
Arturo Escobar propuseram radicalizar a crítica pós-colonial à modernidade e
ao eurocentrismo.
Nessa tarefa, o distanciamento do cânone pós-colonial da década de 1980
se deu em termos de um repúdio à profunda influência de autores europeus
sobre alguns de seus principais expoentes: segundo Mignolo, tais intelectuais
não teriam realizado uma ruptura adequada com autores eurocêntricos (Mignolo
apud Ballestrin 2013, 95). De forma semelhante, Grosfoguel (2008, 116) relata
sua indignação frente ao antigo Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos,
cujos membros, ao se embasarem em Michel Foucault, Jacques Derrida, Antonio
Gramsci e Ranajit Guha, “traíram o seu objetivo de produzir estudos subalternos”.
Segundo o autor, seria necessário transcender a epistemologia e o cânone ocidentais,
de modo que o recurso a estes consistiria em uma limitação da radicalidade da
crítica ao eurocentrismo.2
Observa-se como, tanto na reconstituição histórica de Ballestrin (2017)
quanto na autoimagem dos componentes do Grupo Modernidade/Colonialidade,
a fase decolonial tem sua origem fortemente marcada pela rejeição ao momento
anterior. A ruptura com autores ocidentais é frequentemente colocada como um
aprofundamento da crítica, sugerindo uma superação em relação à literatura
do pós-colonialismo canônico. Outro ponto de tensão entre os dois momentos
está nas distintas abordagens quanto à relação entre colonizador e colonizado:
Ballestrin (2013, 91) afirma que o pós-colonialismo surgiu de uma relação
antagônica por excelência” entre colonizador e colonizado, porém aponta que
certos expoentes da fase canônica romperam com a concepção de uma relação
binária entre identidades essencializadas — algo que viria a ser recuperado
por Mignolo através da noção de “diferença colonial”. Tal retomada também
se manifesta em críticas de intelectuais decoloniais à utilização de categorias
2 É relevante notar que, ainda que autores decoloniais como Mignolo e Grosfoguel critiquem seus pares do
sudeste asiático por suas influências ocidentais, estes também são sujeitos a críticas pela forma que articulam
influências de autores indígenas e negros e por não reconhecerem suas próprias ligações com o Norte global.
Silvia Rivera Cusicanqui (2010) os acusa de não reconhecerem devidamente suas posições privilegiadas na
economia política do conhecimento” em universidades dos Estados Unidos e de estarem desconectados
das lutas políticas e da produção intelectual do Sul. Uma breve resposta à crítica da autora é encontrada em
On Decoloniality de Mignolo e Walsh (2018, 99).
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como “hibridismo” por parte do pós-colonialismo canônico, a qual promoveria
uma visão excessivamente culturalista e negligenciaria assimetrias econômicas
e formas de dominação sob uma suposta síntese entre colonizador e colonizado
(Ballestrin 2017, 51; Mignolo 2003, 103; Castro-Gómez & Mendieta 1998, 16;
Grosfoguel 2008).
Além das ênfases distintas no caráter hierárquico das relações entre colonizador
e colonizado, Gurminder Bhambra (2014) realça a importância das diferenças
espaciais e temporais que marcam as trajetórias coloniais desses dois grupos,
tanto do ponto de vista de suas próprias localidades geo-históricas quanto das
distintas experiências coloniais que configuram espaços enunciativos diversos.
Sobretudo, o pós-colonialismo se refere principalmente aos séculos XIX e XX,
enquanto autores decoloniais enfatizam processos que se iniciaram com a chegada
de europeus nas atuais Américas a partir do final do século XV. Na busca por
compreender o potencial inexplorado de diálogo entre abordagens pós-coloniais
e decoloniais, a autora assinala a importância de produzir uma “sociologia
conectada” (Bhambra 2014, 115) que permita explorar o seu potencial radical de
desmantelar e reconstituir modelos convencionais de produção de conhecimento.
Assim, aliado a esse projeto e em um esforço diverso em relação a perspectivas
que enfatizam a ruptura entre os momentos do pós-colonialismo canônico
e do pensamento decolonial, o presente artigo propõe uma leitura orientada
pelo potencial de complementaridade entre as duas literaturas. Para tanto, será
realizada uma análise necessariamente seletiva, balizada nas obras de Homi
Bhabha e Walter Mignolo enquanto representantes de cada uma dessas versões
do pensamento pós-colonial. Tomando como fio condutor seus conceitos de
“hibridismo” e “pensamento liminar”, respectivamente, buscaremos enfatizar
como esses conceitos são capazes de contribuir conjuntamente para a capacidade
de incorporar não apenas a temática da colonialidade como objeto de pesquisa,
mas também de questões associadas a violências epistêmicas, de gênero e raça
de forma interseccional.
A escolha desses autores se sustenta pelo fato de estes serem, por vezes,
associados a propostas apresentadas como distintas apesar de ambos enfatizarem,
em suas obras, os temas da relação entre colonizador e colonizado e do potencial de
crítica emergindo da fronteira, articulados com projetos de intervenção intelectual
que desafiam noções universalistas da modernidade. Em particular, a insistente
busca de Mignolo (2003; 2007) por radicalizar um projeto de descolonização
epistêmica (delinking) a partir de uma crítica profunda da noção de “hibridismo”,
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a qual ocultaria a colonialidade do poder no imaginário moderno/colonial (Mignolo
2003, 71), nos leva, em um primeiro momento, a ver uma oposição em suas
propostas epistemológicas. Sem buscar produzir uma forçosa homogeneidade
entre suas narrativas, contudo, iremos salientar o potencial ético e político que
emerge de um diálogo profundo e complexo entre suas propostas epistemológicas.
Para tanto, em um primeiro momento, objetivamos identificar como as escolhas
e as influências teóricas de cada autor fundamentam seus contrastes, sobretudo a
respeito de suas concepções da relação colonizador-colonizado e de seus projetos
intelectuais de crítica ao universalismo moderno. Posteriormente, serão destacados
seus pontos de convergência e seus efeitos produtivos, revelando as contribuições
que a leitura de cada autor pode oferecer à obra do outro. Finalmente, teceremos
algumas considerações finais sobre a importância desse diálogo para o projeto
mais amplo de crítica aos moldes de produção de conhecimento vigentes nas
ciências sociais.
Hibridismo e a superação da lógica binária
A influente obra de Homi Bhabha, O Local da Cultura, publicada nos anos
1990, surgiu em um contexto marcado pelo fim da Guerra Fria e a ascensão
da narrativa da globalização. Tal cenário — marcado pelo afastamento das
singularidades de classe ou gênero enquanto categorias conceituais e políticas
básicas, enquanto essências que pautariam uma identidade estável do sujeito
— trouxe a exigência de considerar a condição de sujeitos ocupando diferentes
posições em uma matriz atravessada por relações e hierarquias de raça, gênero,
classe, geração, ou orientação sexual (Bhabha 1998, 19-20).
Diante dessa complexidade, Bhabha (1998) identificou a necessidade de se
trabalhar além das narrativas de subjetividades originárias e essenciais: abordar
os “entre-lugares” — os interstícios entre as diferentes categorias que geralmente
articulam a diferença (gênero, raça, classe, etc.) — nos quais estratégias de
subjetivação dão início a novos signos de identidade e a relações de colaboração
e contestação. Nessa tarefa, o conceito de hibridismo, acompanhado de noções
como negociação e tradução, mostra-se essencial para se compreender como os
termos do embate cultural são produzidos performativamente: a representação da
diferença não é lida como reflexo de traços culturais ou étnicos pré-estabelecidos
inscritos na tradição, mas como um processo, uma negociação em andamento, a
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qual produz identidades híbridas (p. 20). Desse modo, o conceito de hibridismo
permite trabalhar os espaços liminares entre identificações fixas e reconhecer a
diferença inerente a sujeitos que habitam, necessariamente, realidades fronteiriças,
buscando articular novos signos e formas políticas a partir de tais espaços.
A noção de negociação aparece como um elemento fundamental para se
compreender o hibridismo enquanto processo de articulação da diferença cultural.
Tal conceito distancia-se da noção de “negação” — afastando-se da ideia de um
embate entre totalidades opostas — abrindo a política para uma temporalidade
alternativa, pautada na lógica da iteração3 e não da transcendência ou da superação
dialética. (Bhabha 1998, 52). Nota-se, aqui, um claro distanciamento de Bhabha
em relação a abordagens associadas a certas interpretações hegeliano-marxistas,
marcadas pela dialética como a dinâmica de polos opostos rumo a uma síntese
transcendental totalizante que neutralizaria as contradições e a diferença inerente
ao conflito entre tese e antítese.
Além disso, tal perspectiva também nos leva a considerar referenciais e
categorias políticas, a exemplo de gênero e raça, como elementos que não são
naturais, a priori, nem unitários e homogêneos. Estes emergem e fazem sentido
apenas quando construídos discursivamente em meio ao processo político, de
modo que não há uma verdade política pré-existente a ser apreendida, pois não
há uma forma unitária de representação e agência política, nem uma hierarquia
de valores políticos fixa (Bhabha 1998, 54).
Outra noção importante no pensamento de Homi Bhabha (1998, 62) está na
“tradução”. Trata-se de um processo que permite a abertura de um novo lugar
cultural e político de enfrentamento no cerne da representação colonial, de modo
que a língua e a autoridade do colonizador são hibridizados pelo encontro com o
colonizado no próprio exercício da dominação. Tal movimento pode ser observado
atualmente através das histórias dos imigrantes de ex-colônias que chegam ao
continente europeu, os quais colocam em prática um trabalho fronteiriço de
hibridismo cultural capaz de traduzir, ou seja, reinscrever o imaginário social
tanto da metrópole quanto da modernidade (p. 26). Dessa forma, a antiga
metrópole confronta sua própria história pós-colonial, reconhecendo a importância
e a presença do Outro colonial em seu próprio Eu. Trata-se da possibilidade
de reimaginar o significado dos impérios coloniais e de reconhecer o quanto a
3 Trata-se da noção de iterabilidade desenvolvida por Jacques Derrida (1988, 10) enquanto a possibilidade de
um signo ser repetido na ausência de seu referente e da intenção original de sua enunciação, o que constitui
sua própria legibilidade.
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história do Ocidente e da modernidade foi produzida não apenas no interior da
Europa, mas também na Ásia, na África, na Oceania e na América. Tal exercício
permite revisitar os elementos e as conotações atribuídos ao colonizado e ao
colonizador, observando-os sob uma nova luz e permitindo a emergência de
novos processos políticos e subjetividades.
Dito isso, pode-se melhor compreender o que Bhabha (1998, 63-65) entende
por “diferença cultural”. Tal conceito surge enquanto uma crítica à noção de
“diversidade cultural”, na qual as culturas aparecem como totalidades reconhecíveis
e comparáveis, pautadas em conteúdos e costumes pré-definidos. A diferença
cultural, por sua vez, apoiada no conceito de hibridismo, entende as culturas
enquanto produzidas performativamente: a partir de processos enunciativos e
iterativos — o que rejeita qualquer concepção de culturas enquanto totalidades
separadas e intocadas, fundamentadas em alguma forma de essência histórica.
Isso permite romper binarismos e observar o caráter híbrido das culturas, de
modo que “[n]enhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente
dualista na relação do Eu com o Outro” (p. 65).
A diferença cultural evidencia a impossibilidade de autossuficiência das
culturas devido à estrutura da representação simbólica, de modo que “o ato de
enunciação cultural — o lugar do enunciado — é atravessado pela différance
4
da
escrita” (Bhabha 1998, 65). Assim, “o pacto de interpretação nunca é simplesmente
um ato de comunicação entre o Eu e o Você designados no enunciado” (p. 66), de
modo que a produção de sentido requer uma terceira espacialidade que mobiliza
esses dois locais. Esse “Terceiro Espaço” representa tanto as condições gerais
da linguagem quanto a implicação específica do enunciado em uma estratégia
performativa e institucional da qual a produção de sentido não pode, em si,
ter consciência. Tal relação inconsciente introduz uma ambivalência no ato de
interpretação.
Assim, a intervenção do Terceiro Espaço torna impossível que qualquer
cultura seja coerente em si mesma, idêntica a si mesma. Tal operação evidencia
a fragilidade dos fundamentos de distinções ontológicas rígidas em separações
radicais entre Eu e Outro, colonizador e colonizado, dentro e fora, concebidos
como totalidades coerentes, polos imutáveis de uma relação dual estática. Dessa
forma, o Terceiro Espaço expõe o hibridismo das culturas não apenas em termos
de consistir em um local de encontro e de mútua constituição, mas também ao
4 A noção de différance de Jacques Derrida (1988) diz respeito à ausência do receptor que constitui a estrutura
da escrita. Para uma discussão mais detalhada, ver Derrida, 1988, 7.
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evidenciar a variabilidade causada pela différance no processo enunciativo, a qual
impossibilita a coerência e a autoidentificação de cada cultura (Bhabha, 1996).
Dessa forma, o Terceiro Espaço aparece como condição para a articulação
da diferença cultural e de seus efeitos produtivos através da negociação e da
tradução de signos que, devido à estrutura do processo enunciativo, nunca têm
seus significados definitivamente fixados. Assim, a noção do hibridismo permite
deslocar categorias e histórias constituídas, desestabilizando relações de poder,
identidades, e os próprios fundamentos da relação colonizador/colonizado —
dando abertura para o surgimento de novos signos e relações.
Pensamento liminar e a busca pela descolonização epistêmica
Em sua obra, o autor argentino Walter Mignolo (2002, 59) parte do pressuposto
de que as histórias do capitalismo e da epistemologia ocidental — como esta
vem sendo construída desde o Renascimento — são paralelas e complementares,
de modo que a expansão do capitalismo pelo mundo desencadeou a difusão
de categorias epistemológicas, incluindo desde teorias do Estado até o próprio
arsenal crítico europeu. Dessa forma, epistemologias e histórias locais do Ocidente
foram transformadas em projetos globais, desde o universalismo cristão, a missão
civilizatória secular moderna, até o atual mercado global neoliberal (Mignolo
2003, 46-47).
Essa ênfase no campo do conhecimento como espaço de disputa traz a
centralidade do conceito de “pensamento liminar” como fundamento para uma
prática intelectual crítica, engajando saberes subalternizados pela epistemologia
ocidental. Nesse contexto, tais saberes estariam localizados no que Mignolo
(2003, 29) descreve como as “fronteiras externas” do sistema-mundo moderno/
colonial, caracterizadas pelo encontro entre cosmovisões, enquanto as “fronteiras
internas” do sistema diriam respeito a diferenças localizadas no contexto de
uma mesma cosmovisão. Segundo o autor, novas formas de conhecimento têm
transformado tais saberes, antes vistos apenas como objetos de estudo, em
novos loci de enunciação (p. 36), com potencial de deslocar formas hegemônicas
de conhecimento e de promover abertura para a descolonização e a liberação
daqueles que habitam a exterioridade do sistema moderno/colonial.
A posição de Mignolo enquanto um intelectual argentino o leva a destoar de
diversos autores do “pós-colonialismo canônico”, os quais frequentemente tomam
como referência o Esclarecimento do século XVIII para pensar a constituição da
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epistemologia moderna. O autor observa que tal estratégia o colocaria “fora do
jogo”, posto que sua educação e seu pensamento são atrelados ao legado dos
impérios coloniais ibéricos nas Américas (Mignolo 2003, 43 ). Assim, Mignolo
traça os princípios da constituição da modernidade e da colonialidade a partir do
final do século XV, com a presença dos europeus na América e o estabelecimento
do circuito comercial do Atlântico.
Assim, para recuperar esse momento crucial, Mignolo toma como ponto de
partida a noção de sistema-mundo moderno/colonial. Trata-se de uma articulação
entre a noção de sistema-mundo de Immanuel Wallerstein (2004) e o conceito
de colonialidade do poder de Aníbal Quijano (2000), permitindo a introdução
da perspectiva do colonizado e das histórias e saberes locais suprimidos pelos
projetos universalistas do ocidente, bem como o reconhecimento da diferença
colonial
5
(Mignolo 2003). Dessa forma, a colonialidade não é considerada uma
consequência posterior de uma modernidade europeia independente, mas um
elemento simultâneo e constituinte desta — seu lado obscuro (Mignolo 2002, 60)
—, de modo que modernidade e colonialidade aparecem como interdependentes
e constituídas mutuamente. Tal concepção permite observar a colonialidade
como um locus de enunciação, um espaço onde a tensão entre histórias locais e
o projeto global europeu gera a emergência de algo novo, o que Mignolo tratará
como “pensamento liminar”.
Para Mignolo (2003, 47), um projeto de crítica decolonial implica a necessidade
de se produzir macronarrativas da perspectiva da colonialidade. Não se trata de
substituir a macronarrativa moderna da história global por uma nova narrativa
universalista partindo da colonialidade, mas de deslocar o universalismo abstrato
da epistemologia moderna em prol de uma multiplicidade de histórias locais em
uma chave não universalista. Trata-se da noção de “diversalidade”: a diversidade
enquanto projeto universal, uma alternativa à totalidade capaz de promover novas
perspectivas progressistas e uma globalização alternativa (Mignolo 2002, 89-90).
O conceito de exterioridade é fundamental para a perspectiva epistemológica
de Mignolo (2007, 462): enquanto a modernidade Ocidental contém uma grande
diversidade interna de saberes, estes permanecem presos a uma “teo- e ego-
política do conhecimento” monotópica6. O autor argumenta que ainda que
5 A ideia de diferença colonial diz respeito à classificação do planeta no imaginário moderno/colonial através da
colonialidade do poder, de modo que diferenças são transformadas em valores, funcionando como legitimação
da dominação.
6 Monotópico refere-se à perspectiva universal de um sujeito do conhecimento homogêneo. Em contraposição, o termo
“pluritópico” remete à produção de conhecimento emergindo do conflito, das fissuras e dos espaços liminares.
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hoje não haja um “fora” absoluto do capitalismo e da modernidade ocidental,
existem muitas instâncias de exterioridade: o “fora” criado pela própria retórica
da modernidade, como o Islã ou conceitos indígenas — aquilo que precisa ser
colonizado, superado e transformado segundo os princípios do progresso e da
modernidade. Assim, contra essa epistemologia hegemônica e o apagamento
de saberes outros, o autor sugere que apenas um pensamento que parta da
exterioridade do sistema pode produzir as rupturas necessárias para uma verdadeira
descolonização epistemológica, um desprendimento (delinking) do pensamento
monotópico da modernidade ocidental.
A noção de pensamento liminar, portanto, diz respeito a formas de pensamento
emergentes nas margens do sistema moderno/colonial, nas fissuras do imaginário
moderno, onde saberes reprimidos pela epistemologia ocidental vêm à tona
(Mignolo 2003, 49). Trata-se de conhecimento produzido nas fronteiras externas
do sistema, onde cosmologias se chocam, de modo que o pensamento liminar
não segue uma lógica territorial — não se trata simplesmente de conhecimento
produzido no Terceiro Mundo: a fronteira em questão é a intersecção entre a
perspectiva das disciplinas ocidentais e as modernidades coloniais na Ásia, na
África, na América e no Caribe. Tais formas de conhecimento deslocam e absorvem
as formas hegemônicas de saber através da perspectiva do subalterno de uma
maneira que não consiste em hibridismo ou sincretismo, mas na abertura de um
campo de batalha na história da subalternização colonial do conhecimento (p. 35).
O objetivo em questão é a descolonização intelectual enquanto uma quebra
da rigidez de fronteiras epistêmicas e territoriais estabelecidas e controladas
pela colonialidade do poder (Mignolo 2003, 35). Trata-se de um desligamento
epistêmico (epistemic delinking) em relação à estrutura de conhecimento construída
pela teologia cristã e pela filosofia e ciências sociais seculares do Ocidente,
as quais mantêm a matriz de poder colonial (Mignolo 2007). Dessa forma,
emerge a possibilidade de reconstituição epistêmica partindo da perspectiva
subalterna da colonialidade, apoiando-se em formas de pensamento, saberes
e línguas antes apagadas ou desvalorizadas pela epistemologia ocidental. Tal
projeto simultaneamente mantém e desfaz a diferença colonial, reconhecendo
a heterogeneidade presente em uma humanidade comum, mas desfazendo a
conversão de diferenças em valores hierarquizados provocada pela colonialidade
do poder (Mignolo 2002, 71). A descolonização intelectual aparece, portanto,
como uma abertura para novas lutas por liberação (epistemológica, econômica,
política) através da multiplicação de loci de enunciação.
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Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 1, e1230, 2022
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Por fim, é interessante trazer certos apontamentos metodológicos a respeito
da forma que Mignolo trabalha a noção de pensamento liminar. O autor explicita
que tal conceito provém de uma história local do legado da colonização espanhola
na América (Mignolo 2003, 102) — sua experiência como intelectual latino-
americano. Assim, este rompe com a ausência da localização do pensamento
que caracteriza o universalismo da epistemologia moderna (Mignolo 2002, 65),
bem como a ideia de um sujeito do conhecimento que fala de um locus de
enunciação universalmente válido. Tal deslocamento da distinção sujeito/objeto
de conhecimento, rompendo com a concepção de um conhecedor puro, não
contaminado por seu objeto de estudo, permite a emergência de uma nova lógica
(Mignolo 2003, 42).
Seguindo essa lógica, Mignolo (2003) prefere, ao invés de oferecer uma
conceitualização “pura”, apresentar as nuances da noção de pensamento liminar
identificando sua prática na obra de outros autores. Assim, é traçado o paralelo
com a noção de dupla crítica (double critique) de Abdelhebir Khatibi: na história
local deste, o Ocidente é definido em oposição ao Islã e tal conflito toma a
forma de uma máquina de mútua incompreensão, de modo que é necessária
uma dupla crítica aos fundamentalismos ocidental e islâmico. A crítica ocorre
na intersecção, consistindo em uma forma de pensamento liminar que pensa,
ao mesmo tempo, a partir de ambas as tradições e de nenhuma delas. Trata-se
da emergência de um “outro pensamento” (an other thinking), localizado na
fronteira da colonialidade do poder no sistema-mundo moderno/colonial, o qual
é possível apenas quando diferentes histórias locais e suas relações de poder são
levadas em conta (102-103). Assim, Mignolo (2003, 71; 103) enfatiza que essa
intersecção entre saberes ocidentais e árabes não constitui uma “síntese feliz”
que ocultaria a colonialidade do poder, mas sim uma superação da epistemologia
monotópica moderna.
Enfim, a noção de pensamento liminar de Walter Mignolo aparece em oposição
ao universalismo abstrato da epistemologia moderna com a intenção de oferecer
uma contribuição que não toma a forma de um novo universal totalizante, mas
um conector capaz de trazer múltiplas histórias locais sob um projeto universal
de diversalidade (Domingues 2009, 115). Assim, através de um desligamento
em relação à epistemologia ocidental, a noção de pensamento liminar aparece
como um conceito-chave para o objetivo da descolonização epistêmica colocado
por Mignolo, apontando para um horizonte de liberação daqueles que habitam
as fronteiras externas no sistema-mundo moderno/colonial.
Caio Augusto Martins Simoneti; Natália Maria Félix de Souza
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Hibridismo, diferença colonial e o problema da fronteira:
negociando duas visões sobre o encontro colonial
Tanto Bhabha quanto Mignolo pretendem lidar com o problema da
possibilidade de produção de conhecimento para além dos moldes da epistemologia
ocidental e de suas concepções universalistas e totalizantes a respeito do saber e
do sujeito do conhecimento, associadas à pretensão de uma perspectiva emergindo
de uma “terra de ninguém universal” (Mignolo 2003, 42). Para tanto, ao realizarem
a crítica da rígida separação sujeito/objeto, ambos enfatizam a centralidade
da “localização” do conhecimento: enquanto Bhabha (1998) nos lembra da
importância de questionarmos o imaginário de fronteiras rígidas em busca
de novas formas de entendimento sobre “o local da cultura”, Mignolo (2003)
centraliza sua contribuição em torno da problemática do “locus de enunciação”,
chamando a atenção para a multiplicidade de histórias locais e a possibilidade
de produção de conhecimento nas fronteiras externas do sistema moderno/
colonial — o pensamento liminar.
Assim, enquanto o pensamento liminar provoca-nos quanto à necessidade de
uma rearticulação do projeto global ocidental pela perspectiva de sua exterioridade,
transformando a diferença colonial em potencial epistêmico — um novo locus
de enunciação —, Bhabha chega à ruptura com o pressuposto da separação
sujeito/objeto através da noção de hibridismo, de modo que a própria coerência
interna do sujeito do conhecimento é colocada em questão ao expor sua
multiplicidade interna e a coconstituição e presença mútua do Eu no Outro
e vice-versa. A atenção de Bhabha (1998, 52) para a dinâmica de negociação
problematiza a divisão entre o sujeito e o objeto da crítica, de modo que esta não
consistiria em uma nova verdade revolucionária unilateral da parte do sujeito,
mas emergiria de forma heterogênea no encontro.
Podemos aqui encontrar semelhanças com a visão de Mignolo (2003, 102)
do pensamento liminar enquanto uma dupla crítica que não é meramente uma
nova afirmação vinda do ponto de vista de uma história local, mas emerge na
exterioridade do sistema moderno/colonial, na fronteira entre duas tradições
— quando se pensa, ao mesmo tempo, a partir de ambas e de nenhuma delas.
Portanto, em ambos os casos, nota-se que tais propostas de crítica ao universalismo
europeu não aparecem como uma recuperação de alguma essência pré-colonial
intocada pela epistemologia moderna, mas justamente como um efeito da situação
do encontro e da diferença.
Epistemologias do Interstício: Hibridismo, Pensamento Liminar e Conexões Pós/Decoloniais
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 1, e1230, 2022
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Esse momento do encontro é, contudo, observado de formas diferentes
por cada autor, culminando em abordagens distintas ao se tratar da divisão
colonizador/colonizado. No caso de Bhabha (1998, 65), a noção de hibridismo
procura justamente deslocar as categorias que sustentam tal divisão, expondo a
própria inconsistência dos termos que a constituem ao apontar a multiplicidade
e diferença internas a toda cultura, causadas pela própria estrutura do processo
enunciativo. Assim, apresenta-se a fragilidade da separação ontológica colonizador/
colonizado, oriunda da própria insustentabilidade da concepção de seus termos
enquanto totalidades com fronteiras definidas — as culturas, assim como o
colonizador e o colonizado, nunca são idênticas a si próprias.
No caso de Mignolo, o foco na existência de fronteiras internas e externas ao
sistema moderno/colonial e a consequente demanda pela descolonização do saber
através de um conhecimento partindo da exterioridade reproduz uma ênfase na
manutenção do par binário colonizador/colonizado — mesmo quando não localiza
as fronteiras entre histórias locais com precisão. Assim, pode-se identificar certa
tensão no tratamento de Mignolo (2003) a respeito da constituição de culturas e
histórias locais: apesar de mencionar que “as ‘autenticidades’ já não estão em
causa” (p. 28), sua afirmação de que cada cultura tem seu próprio imaginário
(p. 48) sugere alguma possibilidade de coerência interna e autoidentificação
que destoa de Bhabha.
De forma semelhante, a noção de fronteira externa do sistema moderno/
colonial enquanto um ponto de encontro entre diferentes cosmovisões implica
a pressuposição de algum grau de identidade interna de cada cosmovisão. Tal
formulação adota uma divisão ontológica dentro/fora, cujo efeito é uma concepção
rígida da separação colonizador/colonizado. Assim, a noção de pensamento liminar
diz respeito a um pensamento que ocorre na fronteira, pensando simultaneamente
a partir de ambas e de nenhuma das histórias locais envolvidas (Mignolo 2003,
102), mas que não problematiza a consistência de cada um dos polos envolvidos
na relação, nem a impermeabilidade de suas fronteiras.7
Portanto, o ponto fundamental que causa essa diferença entre as abordagens
de Mignolo e Bhabha está no fato de que a noção de pensamento liminar não
7 Um exemplo da prática de pensamento liminar como diversalidade aparece na discussão de Tostlanova e
Mignolo (2012) sobre a interculturalidade como fundamento da Universidade Intercultural das Nacionalidades
e Povos Indígenas Amawtay Wasi (ver https://www.uaw.edu.ec). A instituição comunitária é liderada por
pensadores indígenas e funciona a partir da subsunção e da reformulação de conhecimentos ocidentais a partir
da perspectiva e no interior de cosmologias indígenas. Assim, a "pluriversidade" é uma forma de coexistência
na diversidade que não contesta integralmente suas fronteiras.
Caio Augusto Martins Simoneti; Natália Maria Félix de Souza
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problematiza as histórias locais da mesma forma que o hibridismo de Bhabha
desestabiliza as culturas. Assim, enquanto a problematização da divisão rígida
entre colonizador/colonizado é um dos efeitos principais do projeto intelectual,
ético e político de Bhabha, no caso de Mignolo, essa separação aparece como um
ponto de partida fundamental de seu projeto crítico, de modo que a fundamentação
de tal divisão permanece inquestionada e inquestionável. Contudo, isso consiste
em uma escolha e um posicionamento conscientes do autor, e não um descuido
argumentativo. Tal estratégia fica evidente em sua discussão das obras de Jacques
Derrida e Abdelhebir Khatibi. Em sua crítica à desconstrução de Derrida, Mignolo
(2003, 123) aponta sua resistência ou cegueira à diferença colonial, afirmando que:
A variabilidade interna da differe/a/nce não pode transcender a diferença
colonial, onde a desconstrução tem de ser absorvida e transformada
pela descolonização. Em outras palavras, somente se pode transcender a
diferença colonial da perspectiva da subalternidade, da descolonização e,
portanto, de um novo terreno epistemológico que o pensamento liminar
está descortinando (Mignolo 2003, 76).
Assim, para Mignolo, a diferença colonial coloca uma distinção que está além
da produção da diferença contida no processo enunciativo. O autor esclarece a
irredutibilidade da diferença colonial apontando que a variedade das metafísicas
ocidentais — na qual Derrida está inserido — é monolíngue, enquanto Khatibi
encontra-se em uma situação bilíngue, relacionada às metafísicas ocidental e
islâmica, possibilitando a dupla crítica enquanto pensamento liminar (Mignolo
2003, 122). Assim, para Mignolo, quando Derrida considera que “toda cultura
é originariamente colonial” (Derrida apud Mignolo 2003, 123), este estaria
cego à diferença colonial ao passo que insistiria em uma perspectiva universal,
mobilizada em uma crítica monotópica ao logocentrismo moderno como uma
categoria universal, desvinculada do sistema-mundo moderno/colonial. Derrida
não enxergaria a perspectiva histórica e a experiência colonial de onde a obra
de Kathibi emerge: a diferença colonial e o potencial epistêmico gerando uma
perspectiva bilíngue e pluritópica capaz de falar a partir da desconstrução e da
descolonização — e da descolonização enquanto uma forma de desconstrução
(Mignolo 2003, 123-124). Assim, nas palavras de Mignolo (2003, 124), “Kathibi
e Derrida não estão do mesmo lado da diferença colonial”.
Essa digressão a respeito da crítica de Mignolo a Derrida é importante para
se explorar que tipo de relação seu pensamento estabelece com o de Bhabha.
Epistemologias do Interstício: Hibridismo, Pensamento Liminar e Conexões Pós/Decoloniais
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Posto que a obra deste é profundamente influenciada por Derrida, sobretudo ao
tratar da produção da diferença na estrutura do processo enunciativo — uma base
para sua noção de hibridismo —, é interessante analisar o quanto os argumentos
de Mignolo podem ou não ser aplicados ao trabalho de Bhabha. Tal operação
levanta questões interessantes a respeito das tensões entre diferentes formas de
projetos epistemológicos que pretendem sustentar novos projetos universais com
alternativas ao universalismo abstrato totalizante da epistemologia ocidental.
Primeiramente, pode-se questionar se, para Mignolo, o pensamento de
Bhabha, ao se apropriar da desconstrução derridiana, seria também considerado
um pensamento monotópico apesar de sua experiência enquanto um indiano no
Ocidente. Ou, no caso inverso, seria a perspectiva de Bhabha considerada por
Mignolo uma voz que fala do locus de enunciação da diferença colonial — uma
mobilização pluritópica emergindo entre a colonialidade e a metafísica ocidental?
Em suma, se Derrida e Khatibi estão em lados diferentes da diferença colonial
(Mignolo 2003, 124), de que lado estaria Bhabha, considerando sua influência
derridiana e sua vivência na exterioridade do sistema-mundo moderno/colonial?
Tal questionamento permite ainda formular uma crítica à forma pela qual Mignolo
toma rapidamente Jacques Derrida como um representante de um pensamento
monotópico francês: dada sua experiência enquanto judeu nascido na Argélia e
vivendo na França, não estaria Derrida, também, habitando a exterioridade do
sistema e produzindo uma perspectiva da diferença colonial?
Observa-se, portanto, como o caráter irredutível da diferença colonial em
Mignolo (2003, 47) instala uma perspectiva dualista com uma divisão clara e
rígida entre o colonizador e o colonizado apesar da interdependência expressa
pelo binômio modernidade/colonialidade: ainda que os termos da relação sejam
mutuamente constitutivos, estes aparecem apartados pela irredutibilidade da
diferença colonial. Dessa forma, nota-se como a proposta de Mignolo de pensar
na fronteira (pensamento liminar) diz respeito a um pensamento que emerge
entre dois polos distintos e opostos — e não de uma problematização de tal
separação. Isso difere da visão de Bhabha (1998, 65), para o qual os dois lados
da relação nunca se constituem enquanto unidades autoidênticas em uma relação
dualista entre Eu e Outro. A constante rejeição do termo “hibridismo” por parte
de Mignolo (2003, 71; 103) é um indício dessa postura, assim como a observação
de que o pensamento liminar não é uma síntese que ocultaria a colonialidade
do poder.
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Quadro 1 — Quadro síntese
Pós-colonialismo de Bhabha Pensamento decolonial de Mignolo
Conceito-chave Hibridismo Pensamento liminar
Influências e autores
associados
Jacques Derrida
Frantz Fanon
Gayatri Spivak
Dipesh Chakrabarty
Stuart Hall
Edward Said
Immanuel Wallerstein
Aníbal Quijano
Enrique Dussel
Ramón Grosfoguel
Catherine E. Walsh
Abdelhebir Khatibi
Perspectiva sobre colonização
e localidades geo-históricas
Colonização da África e da Ásia
nos séculos XIX e XX.
Invasão das Américas no século XV.
Conceito de fronteira Ruptura com qualquer noção de
fronteira como linha divisória.
Ênfase na fronteira como Terceiro
Espaço, entre-lugar da produção
das culturas, aquilo que impede
a identidade ou totalidade de
qualquer cultura, incluindo a
própria dissolução da separação
entre colonizador/colonizado.
Mobilização dos conceitos de fronteiras
internas e externas do sistema-mundo
moderno/colonial, enfatizando as
fronteiras externas como espaço
privilegiado para a descolonização
epistêmica. Ainda que mobilize a
fronteira como espaço de produção de
conhecimento, e não linha divisória,
o pensamento liminar não
problematiza a divisão e coerência
interna das tradições como faz o
hibridismo de Bhabha.
Perspectiva sobre diferença Diferença cultural como crítica do
conceito de diversidade (culturas
como totalidades), enfatizando
sua produção performativa na
fronteira, ou Terceiro Espaço.
Diferença colonial como novo locus de
enunciação, que emerge nas fronteiras
externas do sistema-mundo moderno/
colonial: entre diferentes tradições e
histórias locais.
Crítica à Universalidade Negociação e tradução como
estratégias de deslocamento da
lógica binária entre colonizadores/
Colonizados.
Geopolítica do conhecimento e
diversalidade como uma alternativa à
universalidade abstrata moderna.
Projeto ético e político Contesta o legado da colonização
ao problematizar a própria
possibilidade de separação rígida
entre colonizador/colonizado e
todo o modelo representacional
que essa lógica binária introduz.
Contesta o legado da colonização
a partir de uma demanda pela
descolonização epistêmica partindo da
perspectiva da colonialidade, mantendo
portanto a ênfase na divisibilidade entre
colonizadores/colonizados; fronteiras
internas/externas.
Principais críticas Pensadores decoloniais,
especialmente Mignolo, destacam
a proximidade/familiaridade
de Bhabha com pensamento
eurocêntrico, em particular de
pensadores pós-estruturalistas,
como Derrida, que produzem
sua crítica a partir das fronteiras
internas do sistema-mundo
moderno/colonial, reproduzindo
padrões de colonialidade
denunciados pelo pensamento
decolonial.
Críticas como a de Cusicaqui ilustram
algumas limitações do projeto
decolonial de Mignolo que, se por
um lado, desloca-se para as fronteiras
externas do sistema-mundo moderno/
colonial, enfatizando a geopolítica do
conhecimento, por outro lado, ignora
a economia política do conhecimento
ao reafirmar saberes logocêntricos e
nominalistas, com claros alinhamentos
ao Norte Global, negligenciando
(e, por vezes, objetificando) vozes
subalternas e tradições orais andinas.
Fonte: elaboração própria.
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Neste momento, é interessante abordar a questão do quanto o hibridismo
rejeitado por Mignolo, de fato, corresponde ou não ao conceito de hibridismo de
Bhabha. O termo hibridismo aparece, em Mignolo (2003), associado a “sincretismo”
(p. 35) e “enxertadura” (p. 71) (cross breeding, no original), aparecendo em
contraste ao pensamento liminar enquanto “campo de batalha” (p. 35) e à noção
de “crioulização” de Édouard Glissant:
Se a crioulização não é uma “enxertadura” é porque concebe-se não como
híbrida, mas novamente como uma rearticulação de projetos globais na
perspectiva de histórias locais. A história local a partir da qual e sobre a
qual fala Glissant é a colonização do Caribe; ele está pensando a partir da
diferença colonial. Em contraste com isso, a hibridez é o resultado visível
que não revela a colonialidade do poder inscrita no imaginário do mundo
colonial/moderno (Mignolo 2003, 71).
A partir dessa passagem, é possível observar como o hibridismo sugere um
movimento de união de partes distintas, resultando no que parece ser uma nova
identidade monolítica, homogênea e estável — uma síntese harmoniosa que
neutralizaria a relação de diferença entre histórias locais. O hibridismo, portanto,
realizaria uma operação de conversão da diferença em identidade, ocultando a
colonialidade do poder inscrita no imaginário do sistema-mundo moderno/colonial
e implicando uma cegueira à diferença colonial — consistiria, possivelmente,
na “síntese feliz” que reproduz a epistemologia ocidental monotópica. (Mignolo
2003, 71; 103)
No trabalho de Homi Bhabha (1998, 35), por sua vez, o hibridismo aparece
de uma forma bastante distinta. Longe de realizar qualquer tipo de neutralização
da diferença, o compromisso do autor está justamente em revelar a diferença
interior aos sujeitos habitando a borda de uma realidade intervalar. Não se
trata da promoção de uma totalidade harmoniosa resultante de cada termo
da relação, mas da exposição do caráter híbrido inerente a cada cultura e cada
sujeito, revelando a diferença e o conflito internos em cada um dos polos do
encontro.
É interessante apontar, ainda, que, ao se adotar o conceito em sua formulação
desenvolvida por Bhabha, o distanciamento entre hibridismo e pensamento liminar
fortemente apontado por Mignolo passa a ser questionável. Em ambos os casos,
trata-se de conceitos que valorizam os interstícios como espaços produtivos (ainda
que de formas diferentes) e têm um compromisso ético, político e epistemológico
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para com a diferença e a heterogeneidade em oposição a categorias e concepções
de conhecimento totalizantes da epistemologia moderna.
Para ilustrar essas convergências, vale observar o tratamento de Walter
Mignolo dado à figura do converso8 no contexto da Espanha do século XVI,
período da expulsão de judeus e mouros. Segundo o autor,
Foi realmente o “converso” que instaurou a região fronteiriça, lugar onde nem
as fronteiras externas nem as internas têm validade, embora sejam condição
necessária para a existência de regiões fronteiriças. O/a “converso/a” nunca
ficará em paz consigo, nem será confiável do ponto de vista do Estado.
O “converso” não foi tanto um híbrido como [foi] um lugar de medo
e passagem, de mentira e terror. As razões para a conversão poderiam
facilmente ser tanto convicção profunda quanto mera conveniência social.
Em qualquer caso, ele ou ela saberia que os governantes sempre suspeitariam
da autenticidade dessa conversão. Ser considerado ou considerar-se judeu,
mouro ou cristão era algo claro. Ser “converso” era navegar nas águas
ambíguas dos indecisos (Mignolo 2003, 55)
Observa-se aqui a negação do “híbrido”, uma vez que esse termo — em
Mignolo (2003) — contradiz a situação de instabilidade e de conflito interno do
converso. Contudo, é notável como essa situação de ambivalência, instabilidade e
incerteza do converso se assemelha fortemente à dos sujeitos híbridos trabalhados
por Bhabha (1998, 35), os quais são marcados por uma existência fronteiriça,
habitando o interstício e carregando uma relação de diferença interna. Assim,
curiosamente, Mignolo, ao tratar do converso, rejeita o hibridismo (em sua
concepção), mas termina por desenvolver uma interpretação próxima ao conceito
de hibridismo de Bhabha. Dessa forma, Mignolo aponta uma figura que não
pode ser reduzida a uma categoria identitária estável e que negocia elementos
culturais contraditórios, vivendo entre códigos do judaísmo e do cristianismo.
Além disso, as ideias de ambiguidade e indecisão que marcam o espaço da
região fronteiriça aberto pelo converso ressoam o efeito da ambivalência no ato
de interpretação provocada pela intervenção do Terceiro Espaço, como abordada
por Bhabha (1996; 1998). Em ambos os casos, observa-se um tipo de sujeito
marcado por uma multiplicidade e incerteza ontológica.
Por fim, serão discutidos os projetos políticos atrelados aos conceitos de
pensamento liminar e de hibridismo na obra desses dois autores. Em sua obra,
8 Nome atribuído aos judeus convertidos ao cristianismo, na Espanha e em Portugal, no período em questão.
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Walter Mignolo (2002; 2003) propõe o exercício da descolonização epistemológica
com o objetivo da diversalidade enquanto um projeto universal de diversidade
como uma alternativa ao universalismo abstrato totalizante da epistemologia
ocidental. Trata-se de promover multiplicação de energias epistêmicas emergindo
de diferentes histórias locais. O pensamento liminar, assim, libera um potencial
epistêmico, permitindo que a colonialidade apareça não mais como objeto de
conhecimento, mas um locus de enunciação.
Homi Bhabha (1998, 69), por sua vez, apresenta a noção de uma cultura
internacional, a qual se basearia “não no exotismo do multiculturalismo ou na
diversidade de culturas, mas na inscrição e articulação do hibridismo na cultura”.
Tal horizonte torna-se possível a partir do reconhecimento teórico do Terceiro
Espaço como espaço da enunciação, o qual é a condição para a articulação da
diferença cultural. Dessa forma, a ambivalência interpretativa desencadeada
pelo Terceiro Espaço, impedindo qualquer fixidez primordial dos significados
da cultura, permite que estes sejam apropriados, recombinados e traduzidos
devido à variabilidade da estrutura de iteração do processo enunciativo. Assim, a
concepção de cultura internacional de Bhabha, trazendo a inscrição do hibridismo
na cultura, consiste em uma cultura universal (nota-se o uso de cultura no
singular) da heterogeneidade e da diferença.
Nesse ponto, é fundamental reconhecer a importância ética e política do
debate decolonial — articulado em torno dos conceitos de colonialidade do poder,
do saber, do ser e do gênero (Quijano 2000; Lander 2005; Maldonado-Torres
2007; Lugones 2010) — para a centralização da América Latina como condição
de possibilidade para a articulação do sistema-mundo moderno/colonial e como
locus de enunciação de um processo de descolonização epistêmica. Assim,
entendemos a importância de promover um diálogo produtivo entre a profunda
problematização das fronteiras proposta pelo hibridismo de Bhabha — a qual nos
desafia a pensar além das relações de poder herdadas de um imaginário colonial,
possibilitando um projeto político, ético e epistemológico transformador — e a
crítica radical do pensamento decolonial às hierarquias que continuam a reproduzir
uma “matriz de poder colonial” (Quijano 2000; Mignolo 2007; Grosfoguel 2008)
profundamente desigual e violenta. Entendemos o poder desse diálogo para o
projeto proposto nos termos de Grosfoguel (2008): encontrar novos conceitos
para abordar as relações entre hierarquias de gênero, raça, sexo e classe nos
processos globais do sistema-mundo moderno/colonial, no qual a acumulação
de capital é constitutiva e constituída por tais desigualdades.
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A combinação dessas duas perspectivas permite compreender a diferença
colonial de forma radicalmente crítica, como articulada por Mignolo, ao mesmo
tempo evitando limites provocados por uma visão rigidamente binária, através da
consideração do hibridismo de Bhabha: a diferença colonial como um fenômeno
de múltiplas iterações, com atenção à fluidez e à instabilidade de fronteiras
do sistema-mundo moderno/colonial. Tal articulação permite compreender
a multiplicidade de posições ocupadas simultaneamente por sujeitos latino-
americanos, atravessadas tanto por dinâmicas de gênero, raça, sexo e classe, quanto
por questões relacionadas à espoliação de terras e aos direitos de povos indígenas.
Partindo da inerente hibridez dessas múltiplas diferenças coloniais, é possível
identificar convergências e incomensurabilidades entre diversas lutas sociais,
possibilitando uma melhor compreensão dos desafios envolvendo articulações
de projetos epistêmicos e políticos. Por exemplo, tal perspectiva nos permite
compreender as tensões emergentes entre as reivindicações por inclusão de grupos
sociais desfavorecidos através do Estado e a resistência de povos indígenas ao
Estado moderno — conflitos que marcaram projetos neodesenvolvimentistas de
governos progressistas latino-americanos dos anos 2000. Diante disso, ao invés
de uma fronteira binária entre o mundo moderno/colonial, é possível conceber
como tensões moderno-coloniais pautam a política internacional de forma não
dualista e fluida. Assim, a produção de novas práticas políticas e epistemologias
emergem de diversas intersecções entre relações de poder em um campo sempre
diverso e dinâmico.
Conclusão
Este artigo procurou realizar uma articulação entre as obras de Homi Bhabha
e Walter Mignolo com o objetivo de ampliar suas potencialidades e trazer novos
questionamentos, tanto através de suas convergências quanto de suas tensões.
Longe de um embate voltado a apontar a superioridade argumentativa de uma
das teorias, procuramos nos inspirar em suas proposições e tentamos ao mesmo
tempo operar como a dupla crítica que caracteriza o pensamento liminar —
pensando simultaneamente a partir de ambas e de nenhuma delas — e realizar
uma negociação entre os termos dos dois autores, propiciando um espaço
de hibridismo onde é possível encontrar os elementos de cada um na obra
do outro.
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Apesar das diferenças entre ambas as abordagens, observa-se a persistência
de certos pontos de encontro notáveis a respeito de suas posturas diante do
universalismo moderno, favorecendo uma nova noção do universal enquanto um
espaço de diferença e de heterogeneidade. Além disso, é interessante notar como
certas convergências podem estar mascaradas por trás de diferentes entendimentos
a respeito de termos específicos: a discussão a respeito dos diferentes significados
do hibridismo em ambos os autores levou à identificação de uma possível
afinidade de Mignolo com o hibridismo nos termos de Bhabha — um detalhe
importante que corria o risco de ser perdido em meio à constante rejeição do
termo hibridismo por parte de Mignolo. Observa-se, aqui, um exemplo do próprio
efeito da iterabilidade do signo trabalhada por Derrida, a qual pode gerar tanto
efeitos produtivos quanto “armadilhas” sutis na discussão teórica.
Tal questão nos leva a interrogar a problematização do termo “pós-
colonialismo” colocada por Mignolo (2007), a qual afirma que, em termos
conceituais, o “pós” nos mantém prisioneiros de uma concepção unipolar
de tempo. Diante da elaboração de Bhabha a respeito da temporalidade da
negociação e da tradução como uma possibilidade de ressignificação da história,
essa declaração parece discutível. Observa-se, portanto, a abertura para uma
discussão com foco na questão da temporalidade nesses dois autores — algo
que não pôde ser desenvolvido com maior profundidade neste artigo. Também
se mostra interessante expandir a presente discussão articulando os conceitos de
hibridismo e de pensamento liminar para além das obras de Bhabha e Mignolo,
em diálogo com seus predecessores ou contemporâneos.
As propostas desenvolvidas por Homi Bhabha e Walter Mignolo através
dos conceitos de hibridismo e pensamento liminar podem ser interpretadas não
apenas como um arsenal teórico para a análise de eventos de encontro colonial
e suas consequências, mas também a partir de uma dimensão metateórica, o
que nos abre para uma indagação mais ampla sobre as possibilidades éticas
e políticas de nossas pesquisas. As ciências sociais continuam marcadas pela
hegemonia de abordagens comprometidas com uma concepção moderna de
ciência, cuja ascensão foi acompanhada pelo silenciamento de epistemologias
e ontologias alternativas. Contudo, o momento atual apresenta uma crescente
sensibilidade a respeito das origens e do legado colonial tanto na teorização
quanto nas práticas da política internacional. Dessa forma, as propostas de
Bhabha e Mignolo podem ser lidas como uma contribuição para tal movimento:
um convite às possibilidades analíticas, éticas e políticas emergentes de uma
Caio Augusto Martins Simoneti; Natália Maria Félix de Souza
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renovação da disciplina, pautada no reconhecimento da pluralidade de mundos
e de formas de conhecimento existentes.
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