Nathalia Candido Stutz Gomes
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 17, n. 1, e1195, 2022
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A Comissão Mista Brasil-Estados Unidos
para o Desenvolvimento Econômico
(CMBEU) (1951-1953) à luz
do Programa Ponto Quatro (1949)
do governo Truman
1
The Joint Brazil-United States
Economic Development Commission
(JBUSEDC) (1951-1953) in the light
of Truman’s Point Four program (1949)
La Comisión Mixta Brasil-Estados
Unidos para el Desarrollo Económico
(CMBEU) (1951-1953) a la luz
del Programa Punto Cuatro (1949)
del gobierno de Truman
10.21530/ci.v17n1.2022.1195
Nathalia Candido Stutz Gomes*
Resumo
Este artigo explora como a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos
para o Desenvolvimento Econômico (CMBEU) (1951-1953) refletiu as
concepções do programa Ponto Quatro de Harry Truman (1945-1953).
Com base em arquivos brasileiros e norte-americanos, demonstra-se
1 Informações sobre financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil
(CAPES) — Código de financiamento 001. A pesquisa de campo nos arquivos
norte-americanos foi financiada pela Truman Library Institute.
** Mestra em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, Doutoranda
no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais da
Universidade de São Paulo (nstutz@usp.br)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9403-5532.
Artigo submetido em 04/05/2021 e aprovado em 03/10/2021.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
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que o enquadramento da CMBEU no Ponto Quatro se deu por meio da coordenação das
múltiplas atividades do programa no Brasil, da concepção de que investimentos privados
teriam um papel fundamental no processo de desenvolvimento e das preocupações de
segurança internacional dos norte-americanos na Guerra Fria. Nesse sentido, os EUA
fizeram esforços para aliar os projetos de desenvolvimento da CMBEU às necessidades de
acesso a materiais estratégicos brasileiros.
Palavras-chave: Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico,
cooperação técnica, Guerra Fria, Ponto Quatro.
Abstract
This article explores how the Joint Brazil-United States Economic Development Commission
(JBUSEDC) (1951-1953) mirrored the conceptions of Harry Truman’s Point Four program
(1945-1953). Based on Brazilian and American archives, this study demonstrates that,
reflecting Point Four’s premises, the JBUSEDC coordinated the multiple activities of this
program in Brazil, postulated that private investments should have a primary role on
promoting development, and reflected US concerns on Cold War international security
issues. Indeed, the US made efforts to align JBUSEDC’s development projects with their
need to grant access to Brazilian strategic materials.
Keywords: Joint Brazil-United States Economic Development Commission, technical
cooperation, Cold War, Point Four.
Resumen
Este artículo explora cómo la Comisión Mixta Brasil-Estados Unidos para el Desarrollo
Económico (CMBEU) (1951-1953) reflejó las premisas del Punto Cuatro de Truman (1945-
1953). Apoyándose en archivos brasileños y estadounidenses, este trabajo demuestra
el encuadramiento de la CMBEU al Punto Cuatro, no solo por la coordinación de las
actividades del programa en Brasil, sino también por concepciones compartidas, favorables
a la participación privada en la promoción del desarrollo y a las prioridades de seguridad
internacional de los EEUU en la Guerra Fría. En ese sentido, los EEUU hicieron esfuerzos
para sumar los proyectos de la CMBEU a su necesidad de acceso a materiales estratégicos
brasileños.
Palabras-clave: Comisión Conjunta Brasil-Estados Unidos para el Desarrollo Económico,
cooperación técnica, Guerra Fría, Punto Cuatro.
Nathalia Candido Stutz Gomes
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Introdução
Nos anos iniciais da Guerra Fria, o Ponto Quatro (1949) foi concebido pela
administração de Harry Truman (1945-1953) como um programa de cooperação
técnica internacional que, ao compartilhar conhecimentos e técnicas norte-
americanas, pretendia evitar influências de ideias comunistas em países do então
chamado “Terceiro Mundo”. Além de promover empreendimentos de assistência
técnica bilateral, o programa previa a possibilidade de constituir comissões mistas
nos países receptores. Instalada sob os auspícios dessa iniciativa, a Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico (CMBEU) tinha o
objetivo de elaborar estudos sobre os principais gargalos para o desenvolvimento
econômico do Brasil e submeter projetos de melhorias de infraestrutura para
organizações internacionais de financiamento, como o Banco Mundial (BIRD) e o
Banco de Exportação e Importação (Eximbank) dos Estados Unidos. A iniciativa
foi negociada e anunciada publicamente durante o governo de Eurico Gaspar
Dutra (1946-1951), sendo instalada no Rio de Janeiro na gestão de Getúlio Vargas
(1951-1954). No final de 1950, quando Brasil e EUA concluíram formalmente o
acordo para estabelecer a CMBEU, as autoridades norte-americanas, satisfeitas,
ressaltaram que o Brasil foi o “primeiro país da América Latina (na verdade, do
mundo) a concluir um acordo no âmbito do Ponto Quatro e a estabelecer uma
Comissão Mista para o Desenvolvimento Econômico” (TPL 1951a).2
O Ponto Quatro foi o primeiro programa dos EUA que institucionalizou, de
forma sistemática, a cooperação técnica internacional especificamente voltada aos
países do “Terceiro Mundo”. Diante do aumento de tensões com a União Soviética,
a ajuda externa constituiu ferramenta de contenção ao comunismo internacional
da administração Truman. Modesto em termos de recursos financeiros, o Ponto
Quatro foi direcionado para regiões que, na perspectiva estadunidense, estavam
menos sujeitas a riscos imediatos de influências soviéticas. Nesse aspecto, a
América Latina ocupava um papel secundário na política externa estadunidense.
Contudo, isso não significou que os EUA negligenciaram o interesse em manter
sua influência na América do Sul (Baily 1976). O anúncio do Ponto Quatro
e as negociações para instalar a CMBEU foram recebidas com otimismo pela
administração de Vargas. Ademais, os oficiais norte-americanos que negociaram
2 Todas as citações diretas retiradas de arquivos históricos norte-americanos encontram-se originalmente em
inglês e foram traduzidas pela autora. No original, “Brazil was the first country of Latin America (indeed of the
world) to conclude a Point Four general agreement and to set up a Joint Economic Development Commission”.
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com os brasileiros caracterizaram a CMBEU como o “coração do Ponto Quatro
no Brasil”, colocando o país como peça central na estratégia dos EUA para a
região (NACP 1951a).3
A literatura sobre relações Brasil e Estados Unidos é unânime ao ressaltar
a importância política da CMBEU. A Comissão é apresentada como uma
iniciativa importante de reaproximação dos norte-americanos ao governo Dutra
(1946-1951), que demonstrava crescente irritação com a falta de apoio financeiro
dos EUA ao desenvolvimento brasileiro no pós-2ª Guerra Mundial (1939-1945)
(Bandeira 2011 e 1973; Cervo e Bueno 2011; Hilton 1981; Hirst 1990 e 2013).
As frustrações brasileiras tornaram-se mais evidentes quando o Brasil, tradicional
aliado dos EUA, recusou-se a enviar tropas para a Guerra da Coreia (1950-1953).
Especialistas de história econômica também destacam a relevância da iniciativa,
afirmando que a CMBEU era crucial para a implementação do Plano Nacional de
Reaparelhamento Econômico da administração Vargas, elaborado pelo Ministro
da Fazenda Horácio Lafer (1951-1953) (Bastos 2012; Ianni 1971; Malan 2007;
Vianna 1987 e 1986).
Contudo, poucos trabalhos se aprofundaram especificamente na CMBEU. Os
estudos que têm a CMBEU como objeto apresentam a iniciativa concomitantemente
como um fracasso político e um sucesso técnico (Ribeiro 2012; Weis 1986). O
primeiro teria se dado por conta do término da CMBEU em 1953, sem que os
financiamentos para os projetos tivessem sido concretizados em sua totalidade.
4
Isso teria contribuído para o processo do “fim das relações especiais” entre Brasil
e EUA nas primeiras décadas da Guerra Fria (Hilton 1981). O sucesso técnico,
por outro lado, teria resultado dos estudos setoriais, dos projetos elaborados e
do seu impacto em planos de desenvolvimento em governos subsequentes, como
o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-1961) (D’Araújo 1982; Ioris
2013, 2017; Lafer 1970; Ribeiro 2012; Scaletsky 1988, Weis 1986).5 Finalmente,
ressaltam também a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
3 No original, em inglês, o trecho completo é “The JBUSEDC was the heart of Point IV program with Brazil and,
should it prove successful it [held] promise of marking a major step forward in not only Brazilian economic
development but in our [U.S.] relations with Brazil”.
4 Dos 41 projetos de infraestrutura elaborados pela CMBEU, 14 receberam financiamentos do BIRD ou do
Eximbank. Os custos estimados de todos os projetos eram de US$ 387,3 milhões e aproximadamente
Cr$ 14 bilhões em despesas locais. No entanto, o total de financiamentos recebidos foi de US$181,9 milhões
(CMBEU 1954b, 104A-105B).
5 Cabe notar que, ainda que a literatura seja unânime em afirmar que a CMBEU teve impactos no Plano de
Metas, ela não explora como e quais projetos específicos foram reapresentados por JK nas negociações com
os EUA. Essa questão é analisada em Gomes (2019, 101-104).
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em 1952, — ainda atuante — como desdobramento institucional da iniciativa
(D’Araújo 1982; Ribeiro 2012; Scaletsky 1988; Weis 1986).
Porém, essa literatura não explorou como a iniciativa espelhou objetivos
e premissas do Ponto Quatro no Brasil. Explorar esse tema é importante, pois
lança luz sobre a gênese, desde a concepção da CMBEU, de um dos aspectos que
contribuíram para a frustração dos brasileiros com a Comissão: a divergência de
expectativas entre brasileiros e norte-americanos. Essas diferenças impactaram
no resultado da iniciativa, cujos financiamentos dos projetos ficaram aquém do
esperado, fortalecendo grupos no Brasil que viam com ressalvas o potencial de
cooperação econômica com os EUA.
Este artigo argumenta que as premissas do Ponto Quatro se materializaram
na CMBEU em dois aspectos: um prático-operacional e outro no campo das
ideias. Esses pontos são desenvolvidos em quatro tópicos. O primeiro apresenta
as premissas do programa Ponto Quatro de Truman. O tópico seguinte aborda
o enquadramento prático e operacional da CMBEU ao Ponto Quatro e evidencia
como a CMBEU centralizou e coordenou todo o esforço das atividades do Ponto
Quatro no Brasil no período. O terceiro demonstra como ideias e discursos do
Ponto Quatro se materializaram na CMBEU. Do ponto de vista das ideias, as
premissas de “self-help”, uma perspectiva que enfatizava que os países receptores
de ajuda deveriam propiciar um ambiente atrativo para investimentos privados
(considerados cruciais no processo de desenvolvimento), e de segurança
internacional da Guerra Fria materializaram-se na CMBEU. Essa é evidente
nas considerações de autoridades norte-americanas, que procuravam conciliar
projetos de infraestrutura da CMBEU às possibilidades de escoamento e produção
de materiais estratégicos brasileiros. Finalmente, a conclusão expõe resultados
da CMBEU e suas consequências para as relações Brasil-EUA.
As referências documentais deste trabalho foram coletadas em pesquisa
de campo nos arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de
Janeiro, no National Archives and Records Administration (NACP), em College
Park (MD), e na Truman Presidential Library (TPL), em Independence (MO).
O programa do Ponto Quatro e suas premissas
O objetivo do Ponto Quatro era transferir know-how e tecnologia norte-
americana por meio de cooperação técnica com países do “Terceiro Mundo” (Erb
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1985; Paterson 1973; Picard e Karazsia 2015). À medida que as tensões entre
Estados Unidos e União Soviética aumentavam, a política de ajuda externa dos
EUA se institucionalizava, tornando-se ferramenta da estratégia de contenção
do comunismo internacional. Nesse sentido, o maior engajamento financeiro
dos EUA estava no Plano Marshall para reconstrução da Europa no pós-2ª
Guerra Mundial, no Oriente Médio e na Ásia, áreas de embate entre as duas
superpotências (Baily 1976; Loureiro 2017). O programa do Ponto Quatro era
uma iniciativa modesta em termos financeiros: o Congresso dos EUA aprovou
a legislação do programa em 1950, autorizando uma dotação de 34,5 milhões
de dólares para a iniciativa naquele ano, dos quais apenas 5 milhões seriam
direcionados para o Brasil (Paterson 1973). As apropriações para o Ponto Quatro
eram insignificantes quando comparadas com os 2,25 bilhões aprovados para o
Plano Marshall para o mesmo período (Paterson 1973)
Essa modéstia financeira era consequência da importância secundária da
América Latina para os EUA nos anos iniciais da Guerra Fria e do alinhamento
do Ponto Quatro com a premissa do “self-help”. Segundo essa concepção, cabia
aos Estados beneficiados promover o desenvolvimento localmente (Paterson
1973; Macekura 2015 ). Para a administração Truman, os países receptores de
ajuda deveriam atuar com protagonismo na implementação dos projetos de
cooperação (TPL 1949a). Além disso, a ideia de “self-help” conferia centralidade
para o setor privado. No caso da América Latina, apontava-se que a iniciativa
privada que sanaria entraves específicos para o desenvolvimento na região
(Green 1970). De fato, para o International Development Advisory Board (IDAB),
um grupo executivo do Legislativo norte-americano, o Ponto Quatro havia sido
concebido para depender igualmente da cooperação técnica e da iniciativa privada
(TPL 1952a).
De acordo com esses princípios, os avanços e as capacitações técnicas
promovidas pelo programa deveriam tornar o ambiente dos países receptores de
ajuda atrativo para o investimento privado internacional, que seria fundamental
para a promoção do desenvolvimento econômico. Um relatório divulgado em
1953 pela Divisão de Indústria e Comércio da Administração de Cooperação
Técnica (a agência do Ponto Quatro nos EUA) afirmava que o “clima favorável”
para atração de capital privado dos EUA nesses países incluía a necessidade
de adaptação de leis e regulamentações locais nos campos de transferência de
capitais e de lucros, de taxas de importações, códigos comerciais, industriais e de
mineração, de leis trabalhistas, e garantia de propriedade privada (TPL 1953a).
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Embora reconhecesse que a mudança efetiva dessas leis fosse difícil em um
contexto de nacionalismos crescentes, destacava a importância de uma postura
“simpática” e “solícita” por parte dos países receptores em relação a problemas
relacionados a esses temas (TPL 1953a, tradução nossa).
O Ponto Quatro aliava política de ajuda externa às necessidades da segurança
nacional dos EUA. A Guerra da Coreia (1950-1953) reforçou o argumento de
que o programa era parte do esforço necessário na luta contra o imperialismo
comunista (Paterson 1973; Picard e Karazsia 2015; Zeiler 2015). As tensões
entre União Soviética e Estados Unidos, especialmente a partir desse conflito,
foram cruciais para as autoridades norte-americanas nas negociações da CMBEU
(Bandeira 2011; Bastos 2012; D’Araújo 1982; Haines 1989; Priest 1999; Skidmore
1967; Weis 1986). O maior interesse dos EUA em relação à América Latina nessa
conjuntura se referia à garantia de fornecimento de materiais estratégicos, como
manganês, areias monazíticas e minério de ferro (Bastos 2012; D’Araújo 1982;
Rabe 1978).
Essas premissas tiveram impactos na CMBEU. Os documentos demonstram
como a Comissão Mista refletiu premissas do Ponto Quatro, tanto do ponto de vista
organizacional quanto de suas ideias. Em suma, enquanto para os EUA a Comissão
Mista era uma iniciativa típica de Guerra Fria, do tipo que buscava resultados
com pouco investimento financeiro, a administração de Vargas considerava a
Comissão crucial no projeto de desenvolvimento do país.
CMBEU e Ponto Quatro: enquadramentos práticos e operacionais
A ligação da CMBEU ao Ponto Quatro sob o aspecto prático-operacional se
refletiu em sua organização institucional, nas suas atividades cotidianas e em
toda a organização da cooperação técnica internacional para o desenvolvimento
entre Brasil e EUA no período. O acordo para criar a CMBEU foi finalizado
por meio de troca de notas diplomáticas entre os governos brasileiro e norte-
americano. O Brasil aderiu formalmente ao programa do Ponto Quatro por meio
de um Acordo Geral de Cooperação Técnica (1950) com os EUA e depois firmou
o acordo subsidiário que constituiu a CMBEU. A lei que estabeleceu o Ponto
Quatro nos Estados Unidos, o Ato para Assistência Econômica Internacional,
previa a possibilidade de criação de comissões mistas a fim de lidar com desafios
específicos de desenvolvimento econômico. Após 1951, além do Brasil, os EUA
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estabeleceram comissões mistas com Paraguai, Libéria e México (TPL 1951b, 63).
O objetivo primordial da CMBEU era o de elaborar projetos de infraestrutura
de acordo com as exigências técnicas do BIRD e do Eximbank.6 Os projetos
prioritários da CMBEU focavam em transportes (especialmente ferrovias), no
reaparelhamento e ampliação de portos, no aumento da oferta e distribuição de
energia elétrica, e na capacidade de armazenamento de produtos agrícolas. Os
empreendimentos correspondiam a gargalos de infraestrutura no país, sendo
fundamentais para o Plano de Reaparelhamento Econômico de Vargas. No setor
de energia, apagões em estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São
Paulo eram ocorrências comuns (CMBEU 1954a, 263). O sistema de transporte
ferroviário também estava deteriorado e não recebia investimentos desde os
anos de 1930. Ademais, grande parte da infraestrutura portuária era obsoleta e
ineficiente, não atendendo às necessidades das regiões mais densamente povoadas
(CMBEU 1954a, 135-137).
A CMBEU guardava uma relação financeira com o Ponto Quatro. Na Comissão
Mista, 42 técnicos brasileiros e 42 norte-americanos trabalharam para elaborar
projetos de infraestrutura. Era composta por uma Seção brasileira e uma norte-
americana. A primeira contava com um presidente, com um Conselho, uma
Secretaria-geral e um Escritório regional em São Paulo. Além do Conselho,
outro grupo composto pelos Ministros da Economia, das Relações Exteriores,
da Agricultura, Transportes e Obras Públicas eram responsáveis pelas diretrizes
gerais. A segunda, além de ter um presidente, contratava regularmente nos EUA
consultorias de empresas que atuavam nos setores-alvo da CMBEU. Os estudos e
elaboração dos projetos que seriam submetidos ao Eximbank ou ao BIRD eram
realizados por Subcomissões, também constituídas por técnicos de ambos os
países e que correspondiam aos setores prioritários: Transportes Ferroviários,
Transporte Sobre Água, Energia Elétrica, Agricultura, Portos, Indústria, Assistência
Técnica (CPDOC-FGV 1953a). Todos os recursos para os custos de manutenção
dos especialistas dos EUA provinham das dotações aprovadas para o Ponto Quatro
pelo Congresso dos EUA, enquanto os custos referentes aos técnicos brasileiros
eram de responsabilidade do Brasil.
Aspecto adicional do enquadramento operacional da CMBEU ao Ponto Quatro
se refere a sua outra função, até então não explorada pela literatura, que era a
6 Durante as negociações para a instalação da CMBEU, o BIRD havia sinalizado que poderia fornecer 250 milhões
de dólares (podendo chegar a 300 milhões) em empréstimos para projetos da CMBEU ao longo de 5 a 7 anos,
enquanto o Eximbank limitaria sua participação a 100 milhões de dólares em empréstimos (NACP 1950a).
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de centralizar, coordenar e estabelecer as prioridades para todas as iniciativas do
Ponto Quatro no Brasil. O Acordo Geral de Cooperação Técnica (1950) estabelecia
que Brasil e EUA deveriam coordenar todas as atividades de cooperação técnica
no país. Para reforçar essa característica, o Departamento de Estado determinou
que o presidente da seção norte-americana da CMBEU acumularia na Embaixada
no Brasil também o cargo de representante da Administração de Cooperação
Técnica (Technical Cooperation Administration, TCA), agência dos EUA responsável
pelo Ponto Quatro (NACP 1951b e 1952a). Do lado brasileiro, essa finalidade
da CMBEU foi reforçada pela Portaria de 24 de outubro de 1951 do Ministério
das Relações Exteriores, que regulou as atividades da Seção brasileira. Além de
formalizar as prioridades de projetos de desenvolvimento econômico no setor
de infraestrutura, a Portaria estabelecia que a Comissão teria o papel de difusão
e utilização eficientes da assistência técnica, além de receber e estudar pedidos
de assistência técnica feitos por órgãos da União, dos Estados e dos Municípios
e outras entidades (CPDOC-FGV 1953a). Ao coordenar a multiplicidade de
atividades do Ponto Quatro no país, a CMBEU ficaria responsável pela consulta
com instituições brasileiras interessadas em cooperação técnica com os EUA
e, a partir disso, recomendaria os projetos para o governo norte-americano
(CPDOC-FGV 1953b).
Essa função da CMBEU é evidente nos relatórios anuais da Seção Norte-
Americana que, além de comunicar à Washington o andamento dos estudos de
projetos de infraestrutura e suas perspectivas de financiamento, informava sobre
todas as iniciativas de cooperação técnica no Brasil (NACP 1952b e 1952c). Em
1953, antes do término da CMBEU, as autoridades brasileiras estavam preocupadas
com o vácuo que o fim da Comissão deixaria na coordenação das atividades de
cooperação técnica do Ponto Quatro. Assim, assinaram com os EUA o Acordo sobre
Serviços Técnicos Especiais, que garantiu que os projetos de assistência técnica
do Ponto Quatro não seriam interrompidos, estabelecendo um enquadramento
para iniciativas futuras (CPDOC-FGV 1953c; NACP 1953a).
De fato, o Ponto Quatro havia herdado projetos de cooperação técnica bilateral
já existentes e que, até então, eram desenvolvidos pelo Instituto de Assuntos
Interamericanos (IAIA), criado, em 1942, sob coordenação de Nelson Rockefeller
(Erb 1985). O objetivo do IAIA era prover cooperação técnica, estimulando a
solidariedade hemisférica durante a 2ª Guerra Mundial. A instituição promovia
diversos projetos na América Latina, especialmente nas áreas de saúde, saneamento
e habitação (Erb 1985). No contexto da implementação do Ponto Quatro, o IAIA
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se tornou o escritório regional da Administração da Cooperação Técnica (TCA)
nos outros países da América Latina, sendo responsável pela coordenação das
atividades do Ponto Quatro. No Brasil, contudo, essa função coube à CMBEU.
Além disso, houve expansão das atividades de assistência técnica, no país,
no período. Os programas de cooperação técnica do Ponto Quatro, no Brasil,
eram diversos, abrangendo setores como educação rural e agrícola, escolas de
produtividade industrial e de administração pública, iniciativas no setor da
geologia e treinamentos de técnicos brasileiros no exterior (TPL 1953b). No
setor agrícola, especialistas dos EUA passaram na Fazenda Ipanema, no Centro
de Demonstração Agrícola Federal e na Universidade Federal de Viçosa; no
educacional, estiveram no SENAI. Técnicos dos EUA também participaram de
iniciativas de estudos para a industrialização do babaçu e para a criação do
Escritório Técnico da Produtividade (estabelecido, em 1952, sob orientação do
Ministério do Trabalho). Outro exemplo da atuação da CMBEU envolve o envio
de pedidos para aumento da contribuição financeira dos governos brasileiro
e norte-americano ao Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), importante
programa bilateral que atuaria no país até o ano de 1990. Em 1953, estimou-se
que no período de dois anos 263 especialistas brasileiros foram aos EUA para
realizar estágios e treinamentos nas áreas de agricultura, administração pública,
transportes, economia, entre outros (CPDOC-FGV 1953b).
Esses achados explicitam que a CMBEU, além de suas atividades primordiais
de elaboração de projetos de infraestrutura para superação dos principais gargalos
de desenvolvimento do país, centralizou e coordenou todas as variadas iniciativas
de cooperação técnica do Brasil com os Estados Unidos. Isso evidencia a conexão
da Comissão Mista com o Ponto Quatro tanto do ponto de vista financeiro quanto
da operacionalização de suas atividades. O fato de a CMBEU, em contraste
com outros países da América Latina, ficar responsável pela coordenação das
iniciativas no âmbito do Ponto Quatro reforça que ela teve um papel central na
estrutura prática e operacional da cooperação técnica com os EUA no período.
CMBEU, o Ponto Quatro e o enquadramento filosófico:
as premissas do “self help” e da segurança internacional
da Guerra Fria
Para as autoridades estadunidenses, as deficiências em infraestrutura do
Brasil eram fatores que limitavam investimentos privados e o fornecimento
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de materiais estratégicos para os EUA. Nesse sentido, as premissas de “self-
help” e da segurança internacional da Guerra Fria, ideias centrais na concepção
do programa do Ponto Quatro, estiveram presentes no desenrolar da CMBEU.
Isso explicita que Brasil e EUA tinham expectativas divergentes em relação à
iniciativa. Para os EUA, a CMBEU, na esteira do Ponto Quatro, deveria melhorar
as relações bilaterais com o Brasil, levando a ganhos estratégicos com pouco
investimento financeiro. Para Vargas, a iniciativa era central para seu programa de
desenvolvimento, que via a CMBEU como caminho para receber financiamentos
internacionais necessários para a implementação dos projetos de infraestrutura
considerados fundamentais para o país.
Em consonância com a concepção de “self-help”, os EUA afirmavam que os
países receptores seriam os responsáveis por promover um ambiente atrativo
para a iniciativa privada, que teria papel central no processo de desenvolvimento
desses países. Na prática, autoridades dos EUA evitavam se comprometer com
promessas de que recursos seriam disponibilizados para concretização dos projetos
da Comissão Mista. Durante negociações com autoridades brasileiras sobre os
financiamentos para as obras de infraestrutura sugeridas pela CMBEU, um oficial
estadunidense justificou que os EUA não poderiam fornecer garantias pois,
segundo a oposição no Congresso norte-americano, o Ponto Quatro não deveria
ser construído como promessa de que capitais seriam liberados (NACP 1950b).
Embora houvesse um acordo informal entre BIRD, Eximbank e Departamento de
Estado sobre a estimativa de financiamento em moeda estrangeira que poderia
ser disponibilizado para projetos da CMBEU, a responsabilidade de implementar
os conhecimentos, as técnicas, e de realizar as obras recaía sobre o Brasil. De
fato, com a finalidade de arcar com custos locais dos projetos de infraestrutura
da CMBEU, Vargas criou, em 1952, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico (BNDE), capitalizado com um aumento no imposto de renda no país
(Vianna 1986; 1987).
A perspectiva de que investimentos privados teriam papel central ficou
evidente quando Merwin Bohan, presidente da Seção norte-americana da CMBEU
e entusiasta da iniciativa, reportou à Washington em 1951 que nenhum programa
na área industrial do Brasil seria necessário pois, se a CMBEU fosse bem sucedida
nos campos de transportes e de energia, a iniciativa privada assumiria a parte
da indústria (NACP 1951c). A participação do capital privado na execução de
projetos da CMBEU é notável também sob o ponto de vista da obtenção de
financiamentos. O maior empréstimo concedido para um projeto elaborado pela
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CMBEU, no valor de 41,14 milhões de dólares, foi liberado pelo Eximbank em
benefício de uma subsidiária da empresa norte-americana American Foreign
Power no país, correspondendo a 40,2% dos financiamentos fornecidos para o
setor energético brasileiro no período e a 22,7% de todos os empréstimos para
projetos da CMBEU (Bastos 2012; Gomes 2019). Outro exemplo é o da Light
Company, também subsidiária norte-americana do setor elétrico, que recebeu
o primeiro empréstimo do BIRD ao Brasil, em 1949, e obteve 58% de todos
os empréstimos estrangeiros direcionados ao país até 1958 (Bastos 2012). No
contexto de projetos elaborados pela CMBEU, a empresa recebeu 18,790 milhões
de dólares em empréstimos do BIRD (CMBEU 1954b).
Essa concepção divergia das expectativas de Vargas. O Plano Nacional de
Reaparelhamento Econômico previa o equilíbrio das finanças públicas e a realização
de empreendimentos de infraestrutura (Vianna 1986). A CMBEU era central para
esse projeto. A partir de seus trabalhos, esperava-se receber os financiamentos
em moeda estrangeira para implementação das obras públicas. Para o governo
Vargas, o financiamento em moeda estrangeira para os projetos nos setores de
transportes e de energia era crucial para a superação da natureza restringida do
processo de industrialização do Brasil (Bastos 2012).7 A prioridade era “remover
as insuficiências de infraestrutura inibidoras do crescimento industrial” (Lessa
e Fiori 1983, 193). Essa proposta incluía a participação do capital estrangeiro
(D’Araújo 1982; Lessa e Fiori 1991). Nesse sentido, a CMBEU reuniu um grupo
de técnicos brasileiros que defendiam que o capital estrangeiro teria um papel
importante no processo de desenvolvimento do país (D’Araújo 1982; Ribeiro
2012). Na esteira do plano de reaparelhamento, além da diversidade de projetos
elaborados pela CMBEU, outras iniciativas da administração Vargas, como o Plano
do Carvão Nacional, o Plano Nacional de Eletrificação, a criação da Eletrobrás
e o fortalecimento do Fundo Rodoviário Nacional, eram fundamentais para essa
proposta de superação de gargalos de infraestrutura (Lessa e Fiori 1991).
A premissa de segurança internacional do Ponto Quatro também apareceu
na CMBEU, reforçando a divergência das expetativas de Brasil e EUA. Os norte-
americanos procuraram aliar os projetos de infraestrutura propostos pela Comissão
Mista às necessidades de garantir importação de materiais estratégicos do Brasil.
7 A ideia de industrialização restringida ressalta que, apesar dos avanços desde os anos de 1930, a industrialização
do país era um processo incompleto, pois setores mais intensivos em tecnologias, como bens de produção,
bens de capital e intermediários eram pouco desenvolvidos. Isto é, não havia recursos para que se avançasse
na industrialização de forma mais completa (Tavares 1998).
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Isso se materializou nas negociações para o estabelecimento da CMBEU, para
a liberação de financiamentos e nas discussões sobre quais projetos seriam
prioritários. Nas negociações da IV Conferência dos Ministros das Relações
Exteriores, que seria realizada em Washington, D.C., em março e abril de 1951,
os “EUA pretendiam persuadir a América Latina a mobilizar suas respectivas
economias para o conflito coreano” (Rabe 1978, 293). Vargas, recém-eleito
presidente do país, aproveitou a oportunidade para tentar garantir que seus
programas de industrialização e obras públicas fossem beneficiados como
contrapartida a eventuais contribuições do Brasil. Assim, apresentou 14 projetos
de desenvolvimento em infraestrutura nos setores de energia, saneamento,
transportes e indústrias, com os quais seu governo pretendia contar com apoio
dos EUA para obter financiamentos em moeda estrangeira (NACP 1951d).
A maior parte desses projetos foi incorporada às propostas da CMBEU nos anos
subsequentes.8
Não era a primeira vez que Vargas tentava uma estratégia de barganha com
os EUA em meio a uma situação de emergência internacional. No período do
Estado Novo (1937-1945), Vargas negociou o apoio do Brasil aos Aliados na
Segunda Guerra Mundial. Naquele contexto, o sucesso da abordagem garantiu
um empréstimo do Eximbank para estabelecer a Companhia Siderúrgica Nacional
(Bastos 2012; D’Araújo 1982; Moura 1980; 2012). Contudo, no contexto de Guerra
Fria, e embora a Guerra da Coreia fosse apresentada como uma situação de
emergência, Vargas não obteve sucesso diante da rigidez político-ideológica da
administração Truman. Embora os EUA tivessem interesse em garantir acesso aos
materiais estratégicos da América Latina, a região era de importância secundária
para a estratégia estadunidense no período.
A reação dos norte-americanos à proposta de Vargas foi imediata e, embora
não houvesse unanimidade sobre como responder às demandas, os debates
internos apontavam para a necessidade de conciliar, dentro do possível, os projetos
de melhorias de infraestrutura do Brasil ao esforço de defesa estadunidense
(NACP 1951e). Willard Thorp, Secretário de Estado Adjunto para Assuntos
Econômicos (1946-1952), evocou o relatório NSC-68, elaborado pelo Conselho
8 Entre os projetos apresentados por Vargas estavam a construção de usinas hidrelétricas no alto São Francisco
(MG) e no Rio Grande do Sul, projetos de saneamento, transportes ferroviários (incluindo a eletrificação das
ferrovias), urbanização no Vale do São Francisco, refinarias de petróleo, expansão da usina siderúrgica em
Volta Redonda, infraestrutura para processamento e industrialização de matérias-primas (especialmente o
manganês), entre outros. Os projetos refletiam os setores que seriam tratados como prioridade pela CMBEU
nos anos subsequentes (NACP 1951d).
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de Segurança Nacional, argumentando que a ajuda econômica deveria ter em
conta os requerimentos do Brasil e das Américas como um todo, como partes
de uma configuração global (NACP 1951f). Segundo o NSC-68, lançado em abril
de 1950 e que se tornaria referência para a política externa de Guerra Fria dos
EUA, o país deveria investir fortemente em suas capacidades militares para
fazer frente ao aumento de tensões com a União Soviética. Quando a Coreia do
Norte, apoiada pelos soviéticos, invadiu a Coreia do Sul no final daquele ano, o
NSC-68 ganhou apoio doméstico. Quanto ao então chamado “Terceiro Mundo”,
o relatório apontava que os EUA deveriam estimular a produção e exportação
de materiais estratégicos nesses países (Priest 1999).
Diante disso, definiram que alguns dos projetos elencados por Vargas, como
os de manutenção e expansão da infraestrutura nos setores de transportes, de
energia e de produção e conservação de alimentos, eram essenciais, pois afetavam
a produção de materiais estratégicos exportáveis aos EUA. Outros projetos, porém,
foram avaliados como impróprios para empréstimos de governo a governo, fosse
por suas características de longo-prazo, ou porque não se qualificavam como
“inadiáveis” nas condições de emergência. Os projetos apresentados por Vargas
que foram categoricamente considerados ‘urgentes’ pelos norte-americanos
eram aqueles considerados “essenciais para a produção de defesa dos EUA
(NACP 1951g).
Ainda no contexto das negociações para estabelecer a CMBEU, a premissa
de segurança internacional do Ponto Quatro também apareceu nos debates
para solucionar o problema do conflito de jurisdição entre Eximbank e BIRD
acerca do fornecimento de empréstimos. O conflito de jurisdição entre as duas
instituições era global. O então recém-criado BIRD argumentava que caberia
a ele fornecer empréstimos para promoção do desenvolvimento econômico e
que a concorrência do Eximbank nessa função minaria as condicionalidades
econômicas que normalmente acompanhavam os empréstimos do BIRD.9 No
caso do Brasil, como resultado das negociações entre Departamento de Estado e
o BIRD, acordou-se que o Eximbank limitaria sua participação nos empréstimos
a projetos da CMBEU a US$100 milhões, o que tornou o BIRD o emprestador de
primeira instância para projetos da Comissão. O BIRD, por sua vez, anunciou
sua disposição de emprestar até US$250 milhões, podendo chegar a US$300
9 Para informações sobre os impactos disso na CMBEU, ver Gomes (2019, cap. 2). Sobre o histórico da atuação
do BIRD, ver Kappur e Lewis (1997).
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milhões, desde que a avaliação individualizada de cada projeto e das capacidades
de endividamento do Brasil fossem positivas (NACP 1950d).
As autoridades estadunidenses que intermediaram essas negociações
esforçaram-se para alinhar a solução às necessidades de acesso dos EUA aos
materiais estratégicos brasileiros (Priest 1999). Diante dessas discussões, algumas
autoridades dos EUA contrárias à proposta que limitava a atuação do Eximbank
argumentavam que era necessário resguardar as atividades do banco no Brasil, pois
alguns projetos correspondiam diretamente ao interesse nacional estadunidense
e, portanto, deveriam ser financiados pelos norte-americanos, como era o caso
da proposta de instalação de uma mina de manganês em Urucum, no Mato
Grosso (NACP 1950c). A preocupação dos norte-americanos era garantir que
os projetos considerados urgentes para o esforço de emergência decorrentes da
Guerra da Coreia fossem priorizados.
Em 1951, um relatório de inteligência dos EUA sobre a América Latina
reforçou que os interesses na região estavam focados no aumento da capacidade
de produção de materiais estratégicos, ainda que isso acarretasse uma mudança
de prioridades nos programas de industrialização desses países (NACP 1951h).
Nessa linha, em 1952, a Administração para Cooperação Técnica (TCA), agência
norte-americana responsável pelo programa do Ponto Quatro, afirmava em
documento oficial que, caso ocorresse uma guerra geral com a União Soviética,
haveria provável corte no fornecimento de materiais estratégicos da África,
Europa e extremo Oriente e, portanto, a fim de manter sua vitalidade industrial
e militar, os EUA precisariam contar com a América Latina para a importação
desses insumos (TPL 1952b). Naquele período, havia receio de que o conflito
na Coreia pudesse se desdobrar em uma conflagração mundial (TPL 1952b).
O documento afirmava categoricamente a necessidade de estabelecer um
programa que pudesse combinar desenvolvimento do setor energético e de
transportes com a capacidade de fornecimento de materiais estratégicos. Ao destacar
que 70% do manganês importado pelos EUA era proveniente do Hemisfério Leste,
justificava a necessidade de aumentar a produção em países não soviéticos. No
período, o Brasil, além de possuir as maiores reservas de manganês do Ocidente,
contava com enorme potencial de exploração na reserva de Urucum, no Mato
Grosso, e no Amapá. O relatório citava também as tradicionais reservas de
manganês e de minério de ferro de Minas Gerais. Para todos esses casos, a falta de
transportes adequados para o escoamento era apontada como a causa do atraso
no desenvolvimento desses repositórios no Brasil (TPL 1949b). O investimento
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em certos projetos no setor energético também era considerado fundamental para
que o Brasil pudesse arcar com seus compromissos de exploração e fornecimento
de matérias-primas no contexto dos esforços de defesa interamericanos. Foi
com esse argumento que Edward G. Miller, então Secretário de Estado Adjunto
para as Repúblicas Latino-Americanas no Departamento de Estado, advogou
pela liberação de financiamentos para projetos da CMBEU referentes à Usina de
Paulo Afonso (NACP 1951i).
A diretriz da administração Truman em relação ao Brasil foi que, tendo em
vista as necessidades de defesa com o aumento de tensões na Guerra Fria, os
projetos da CMBEU que impactariam na capacidade de produção de energia, no
aprimoramento dos sistemas de transportes (incluindo portos) e na produção
de alimentos deveriam ser considerados prioridades, porque aumentariam a
capacidade de produção e exportação de materiais estratégicos brasileiros para
os EUA. No contexto da CMBEU, as fontes empíricas explicitam como os Estados
Unidos se esforçaram para conciliar e favorecer projetos de infraestrutura com
as suas necessidades estratégicas. Ainda que essas diretrizes, na prática, não
tenham resultado numa correspondência exata com os financiamentos de fato
realizados para projetos da CMBEU, elas demostram como, no plano das ideias,
a iniciativa se enquadrou em princípios basilares do programa Ponto Quatro.
Finalmente, ressalta-se que os motivos que dificultaram a liberação dos
financiamentos para implementação dos projetos da CMBEU são diversos.
O BIRD, instituição que, após avaliar cada projeto, deveria aprovar (ou não) a maior
parte dos empréstimos, impôs condicionalidades de natureza macroeconômica
ao Brasil (Gomes 2019). Além disso, não se deve perder de vista que, naquele
período da Guerra Fria, a América Latina não era prioridade nos esforços de
ajuda externa dos EUA. A partir disso, pode-se inferir que a própria modéstia dos
recursos destinados ao Ponto Quatro e, consequentemente, à CMBEU, contribuiu
para o desfecho de dependência de um terceiro ator, o BIRD, para obtenção
de recursos para implementação dos empreendimentos. Contudo, o fato de
a CMBEU ter sido encarada pela alta cúpula da administração Truman sob a
perspectiva de segurança internacional no contexto do Ponto Quatro contribuiu
para a frustração dos brasileiros, deixando evidente as expectativas divergentes
das partes. A morosidade para liberação de financiamentos e as desgastantes
negociações envolvidas no processo, uma vez que Vargas não concordava com
as condicionalidades do BIRD, impactaram negativamente as relações de sua
administração com os EUA. De fato, a frustração com a CMBEU contribuiu para
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fortalecer, dentro do governo, o grupo que via com ressalvas as perspectivas de
cooperação econômica com os Estados Unidos (Bastos 2012; D’Araújo 1982).
Conclusão
Nos anos iniciais da Guerra Fria, o Ponto Quatro (1949) foi concebido pela
administração de Harry Truman (1945-1953) como um projeto de cooperação técnica
internacional que, ao compartilhar conhecimentos e técnicas norte-americanas,
pretendia evitar influências de ideias comunistas em países do “Terceiro Mundo”.
Instalada sob os auspícios desse programa, a CMBEU é amplamente reconhecida
pelos seus impactos técnicos na formatação de estudos e na elaboração de
projetos de infraestrutura que seriam submetidos para análise do Eximbank
e, principalmente, do BIRD. Embora os financiamentos dos projetos tenham
ficado aquém do esperado, a minúcia técnica dos estudos resultou em relatórios
detalhados sobre os desafios de desenvolvimento do Brasil e nos 41 projetos
de infraestrutura elaborados pela CMBEU. Conceitos presentes nas análises da
Comissão, como “pontos de germinação” e “pontos de estrangulamento”, que
descreviam a gravidade dos gargalos de infraestrutura nos setores de transportes,
energia, navegação e de armazenamento foram posteriormente incorporados no
Plano de Metas de JK (1956-1961). Todos os projetos da CMBEU que não foram
contemplados com empréstimos foram reapresentados pela administração JK ao
governo Eisenhower (1953-1961), permanecendo na pauta das relações bilaterais
entre os dois países (Gomes 2019). Além disso, o BNDE, estabelecido em 1952
e ainda atuante no país, foi um desdobramento institucional da CMBEU.
O artigo explicitou como a CMBEU espelhou as premissas do programa do
Ponto Quatro. Estabelecida como “o coração do Ponto Quatro no Brasil”, a CMBEU
se enquadrou nas concepções desse programa em aspectos prático-operacionais e
no campo das ideias. O primeiro é evidente na organização estrutural da CMBEU,
que contava com as dotações do Ponto Quatro para o financiamento da equipe
norte-americana no país. Além disso, em contraste com outros países da América
Latina, no Brasil, a CMBEU centralizava e coordenava todos os esforços de
assistência técnica do programa Ponto Quatro no país. Assim, além de trabalhar
nas atividades diretamente ligadas ao seu objetivo central de elaboração de projetos
de infraestrutura, a atuação da CMBEU administrou iniciativas de assistência
técnica em áreas como saúde, administração pública, educação, agricultura. No
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campo das ideias, as premissas de “self-help” e de segurança internacional, que
concebiam o Ponto Quatro, materializaram-se na CMBEU. Para as autoridades
norte-americanas, a Comissão Mista replicaria a perspectiva de que caberia ao
Estado receptor de ajuda implementar as melhorias e os conhecimentos para
criar um ambiente atraente para o capital privado, que teria atuação importante
no processo de desenvolvimento. Além disso, na conjuntura da Guerra Fria, em
especial diante do conflito coreano, as considerações de policymakers norte-
americanos sobre os projetos evidenciam como os EUA procuraram conciliá-
los, especialmente no setor de transportes e de energia, com as necessidades
de importação de materiais estratégicos provenientes do Brasil. Em suma, mais
do que um programa de cooperação técnica bilateral de curta dura duração, a
Comissão Mista foi um empreendimento de Guerra Fria na região.
Deve-se ressaltar que vários são os motivos para o término frustrante
da CMBEU em 1953 sem que a maior parte dos financiamentos fossem
disponibilizados. Entre esses elementos está a dinâmica de negociações entre
Brasil, EUA e oficiais do BIRD, principal instituição financiadora da iniciativa. Além
disso, não se deve perder de vista que a região era de importância secundária para
os norte-americanos no período. Contudo, ao explorar o olhar norte-americano,
pautado por premissas do Ponto Quatro, sobre a CMBEU, pode-se entender como
as expectativas divergentes de Brasil e EUA sobre a iniciativa foram reforçadas,
o que levaria a uma piora nas relações bilaterais ainda na administração de
Vargas.
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