Gilberto Carvalho de Oliveira; Luan do Nascimento Silva; Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1095, 2021
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A confluência entre virada local e
virada estética nos estudos para a paz:
uma abordagem heterodoxa para a
consolidação da paz
The confluence between local and
aesthetic turns in peace studies:
a heterodox approach for peacebuilding
La confluencia entre el giro local y
el giro estético en los estudios de paz:
un enfoque heterodoxo para la
consolidación de la paz
DOI: 10.21530/ci.v16n1.2021.1095
Gilberto Carvalho de Oliveira
1
Luan do Nascimento Silva
2
Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann
3
Resumo
Este artigo posiciona-se na interseção entre as viradas local e
estética nos Estudos para a Paz, procurando examinar como a
arte pode contribuir para transformar as dinâmicas dos conflitos
violentos através do estímulo à reflexão crítica das pessoas e
1 Doutor em Relações Internacionais (Universidade de Coimbra, Portugal).
Professor-Adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil.
(gilbertooliv@gmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6713-1126
2 Doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Rio de Janeiro, Brasil.
(luandonascimentosilva@gmail.com).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2425-4227
3 Doutor em Ciência Política na USP. Coordenador do Programa de Pós-graduação
em Relações Internacionais da UEPB. Paraíba, Brasil.
(prlkuhlm@gmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7821-9086
Artigo submetido em 03/06/2020 e aprovado em 26/10/2020.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
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comunidades locais sobre os fatores estruturais e culturais que restringem suas possibilidades
de vida. A discussão é ilustrada através de performances influenciadas pelo teatro do
oprimido realizadas pelos teatros Rafiki e Badilika em zonas de conflitos violentos no
continente africano, procurando destacar, finalmente, alguns aspectos críticos relacionados
às possibilidades e limitações da interação entre arte e consolidação da paz.
Palavras-chave: Consolidação da Paz; Intervenções Artísticas; Transformação de Conflitos;
Virada Estética; Virada Local.
Abstract
This article positions itself at the intersection between the local and aesthetic turns in
Peace Studies, seeking to examine how art can contribute to transform the dynamics
of violent conflicts by encouraging local people and communities to reflect critically on
the structural and cultural factors that restrict their possibilities of life. The discussion is
illustrated through performances influenced by the theater of the oppressed carried out by
Rafiki Theatre and Badilika Theatre in areas of violent conflicts in the African continent,
seeking to highlight, finally, some critical aspects related to the possibilities and limitations
of the interaction between art and peacebuilding.
Keywords: Aesthetic Turn; Artistic Interventions; Conflict Transformation; Local Turn;
Peacebuilding.
Resumen
Este artículo se posiciona en la intersección entre el giro local y el giro estético en los
Estudios de Paz, buscando examinar cómo el arte puede contribuir a transformar la dinámica
de los conflictos violentos al estimular la reflexión crítica de las personas y comunidades
locales sobre los factores estructurales y culturales que restringen sus posibilidades de
vida. La discusión se ilustra a través de actuaciones influenciadas por el teatro del oprimido
realizadas por el Teatro Rafiki y el Teatro Badilika en áreas de conflicto violento en el
continente africano, buscando resaltar, finalmente, algunos aspectos críticos relacionados
con las posibilidades y limitaciones de la interacción entre arte y construcción de paz.
Palabras clave: Consolidación de la Paz; Giro Estético; Giro Local; Intervenciones Artísticas;
Transformación de Conflictos.
Gilberto Carvalho de Oliveira; Luan do Nascimento Silva; Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann
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Introdução
As artes exercem um papel fundamental nas relações sociais, em especial
no que diz respeito à comunicação e à expressão dos seres humanos. Contudo,
apesar dessa capacidade, as funções sociais das artes, particularmente o seu
potencial emancipatório e transformador no campo da ação social e política, são
constantemente marginalizadas pelas abordagens tradicionais da Ciência Política
em geral e das Relações Internacionais em particular. Esse aspecto tem sido
destacado por diversos analistas que, nas últimas duas décadas, têm chamado a
atenção para a relevância política das mais diversas formas de expressão artística
cinema, música, dança, teatro, fotografia, artes plásticas, literatura, etc. ,
produzindo nas Relações Internacionais uma virada estética que procura desafiar
a orientação positivista e racionalista que predomina nesse campo disciplinar
(Bleiker 2001, 2009).
4
Este artigo segue essa virada estética das Relações Internacionais, trazendo
para a área particular dos Estudos para a Paz uma abordagem que procura
examinar a importância do uso das expressões artísticas nos discursos e práticas
de peacebuilding (consolidação da paz) e de transformação de conflitos. Ao
mesmo tempo, o artigo incorpora a crescente demanda por uma virada local nos
Estudos para a Paz que dê maior centralidade às dinâmicas locais e às práticas
do dia a dia das pessoas, defendendo a noção de que os agentes locais são parte
ativa dos processos de transformação da realidade e, consequentemente, das
iniciativas de transformação de conflitos e de consolidação da paz.
Ao situar-se nessa zona de confluência entre as viradas estética e local,
lançando sobre os Estudos para a Paz um olhar atento às experiências artísticas
e ao papel das pessoas comuns enquanto agentes de transformação social, este
artigo procura examinar até que ponto o envolvimento estético das comunidades
locais que vivem sob condições de violência pode contribuir para alterar as
dinâmicas dos conflitos, estimulando não só a reflexão crítica sobre os fatores
estruturais e culturais que restringem as suas possibilidades de vida, mas também
a busca de alternativas de promoção da justiça social e de uma cultura de paz
que, em seu conjunto, contribuam para a construção de uma paz positiva e
emancipatória nos contextos de conflitos violentos. Para ilustrar empiricamente
4 As edições temáticas das seguintes publicações oferecem um amplo panorama sobre essa produção: Alternatives,
2000, v. 25, n. 3; Peace Review, 2001, v.13, n.2; Millenium, 2001, v. 30, n. 3; Millenium, 2006, v. 34, n. 3; Review of
International Studies, 2009, v. 35, n. 4; Security Dialogue, 2007, v. 38, n. 2; Social Alternatives, 2001, v. 20, n. 4.
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essa discussão, o artigo examina duas iniciativas de intervenções artísticas no
continente africano: Teatro Rafiki e Teatro Badilika.
O termo “virada”, no sentido empregado neste artigo, tem-se tornado usual
nas Relações Internacionais (como aparece, por exemplo, em virada estética,
virada local, virada pragmática, virada normativa, virada linguística, etc.),
sendo utilizado para designar a emergência de agendas alternativas que tentam
reorientar o debate em determinadas áreas temáticas para novas perspectivas
epistemológicas e metodológicas ou se posicionar criticamente em relação às
agendas mais tradicionais e ortodoxas da disciplina. Geralmente influenciadas
pelos desenvolvimentos metateóricos introduzidos pela teoria crítica, pelo pós-
estruturalismo, pelo pós-colonialismo ou pelo feminismo, essas diversas viradas
não se relacionam a um corpo teórico rigidamente delimitado ou à obra de
um autor específico, mas sim a um conjunto heterogêneo e diversificado de
abordagens que convergem, em alguma medida, para uma proposta crítica ou
epistemológica comum.
As viradas estética e local que embasam a discussão proposta neste artigo
seguem essa característica geral, pautando-se na obra de diversos autores, a serem
oportunamente referidos ao longo do texto, que, de alguma forma, chamam a
atenção para o papel da sensibilidade, da criatividade e das emoções e para o papel
das comunidades e populações locais na reflexão sobre as estruturas e culturas
de violência que restringem as suas possibilidades de vida, bem como sobre as
suas possibilidades de transformação. Nesta proposta, o artigo dialoga com a
crítica ao projeto intervencionista da paz liberal, que hoje ocupa uma posição
central dentro dos Estudos para a Paz. Ao chamar a atenção para a importância
da arte e do envolvimento das pessoas e comunidades locais nos processos de
mudança social através de uma abordagem que traz as iniciativas de paz para
uma escala microssocial, centrada em ações pluralistas, criativas, sensíveis e
emocionais, a abordagem aqui proposta desafia a receita predominantemente
estatocêntrica, elitista, militarizada e externa que tem orientado os esforços
internacionais de consolidação da paz (Duffield 2001, 2007; Mac Ginty 2008;
Richmond 2007, 2011; Richmond e Mitchell 2012).
Do mesmo modo, este artigo insere-se no debate sobre transformação de
conflitos. Posicionando-se como uma crítica às perspectivas convencionais de
resolução de conflitos – que olham o conflito como uma patologia social a ser
controlada ou anulada pelos mecanismos formais e oficiais, diplomáticos e
militares, através da manipulação das manifestações superficiais da violência –, a
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abordagem da transformação de conflitos olha para o conflito como uma dinâmica
inerente às relações sociais, com raízes estruturais e culturais profundas que
precisam ser identificadas, compreendidas e transformadas de forma holística,
atenta à complexidade e comprometida com a construção de relações sociais
mais justas e não violentas. Deste ângulo, o conflito é visto de uma perspectiva
dialética, onde dinâmicas destrutivas coexistem com potencialidades construtivas,
o que significa que dentro do mesmo contexto que produz relações de violência
estão presentes elementos que podem ser mobilizados para produzir relações
mais positivas e não violentas. Essa perspectiva sobre os conflitos faz com que
a abordagem da transformação de conflitos se abra às possibilidades de ação
mais espontâneas, informais e não oficiais, envolvendo as mais variadas escalas
espaciais e temporais, incluindo a esfera microssocial da vida cotidiana das
pessoas e os impactos de médio e longo prazo nos processos de consolidação
da paz (Väyrynen 1999; Galtung 1996; Lederach 1995, 2005).
Para os propósitos deste artigo, os termos consolidação da paz e transformação
de conflitos são empregados como se formassem um bloco conceitual interligado.
Ainda que se reconheçam suas nuances específicas com a noção de consolidação
da paz concebida, em meados dos anos 1970, como uma via para a superação
da violência estrutural e a construção de uma paz positiva (Galtung 1976), e o
surgimento posterior do debate sobre transformação de conflitos, em meados dos
anos 1990, incorporando uma visão dialética e construtiva dos conflitos e uma
perspectiva multidimensional, multinível e multitemporal sobre as formas de
lidar com os conflitos violentos (Väyrynen 1999; Galtung 1996; Lederach 1995) ,
pode-se dizer que ambos os conceitos se interpenetram e se sobrepõem em
muitos aspectos.
Entre esses pontos de sobreposição, estão a preocupação com a construção
de uma paz duradoura e autossustentável, indo além das medidas de força e de
contenção das manifestações superficiais e imediatas da violência; o compromisso
com a transformação das raízes estruturais e culturais do conflito e com a
construção de uma paz assentada na justiça social; e o restabelecimento das
relações de confiança e de reconhecimento mútuo entre as pessoas e grupos sociais,
que são geralmente dilaceradas pelos ciclos persistentes de violência. Se as questões
estruturais e as reformas institucionais e econômicas são importantes dentro
desse quadro, igualmente centrais são os esforços dedicados ao desenvolvimento
de relações sociais mais justas, à promoção do diálogo e da reconciliação, ao
desenvolvimento da autoconfiança e ao florescimento do potencial de vida das
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pessoas sendo nesse segundo grupo de esforços onde se pode situar o maior
potencial das intervenções artísticas no campo da transformação de conflitos e
consolidação da paz.
Dentro de uma bibliografia predominantemente marcada por obras escritas
em língua inglesa, a discussão proposta neste artigo adquire particular relevância
não só porque contribui para preencher a lacuna existente na bibliografia em
português sobre abordagens estéticas nos Estudos para a Paz reforçando as
raras iniciativas já existentes nesse sentido (Kuhlmann, Ramos e Araújo 2019) ,
mas também porque procura destacar algumas fontes intelectuais do pensamento
social brasileiro, sobretudo as obras do educador Paulo Freire e do teatrólogo
Augusto Boal, cujas contribuições crítico-pedagógico-estéticas, somadas aos
conhecimentos acumulados no campo dos Estudos para a Paz, formam um
importante quadro de referência para uma abordagem heterodoxa à consolidação
da paz, que desafia o modelo liberal de peacebuilding que se tornou dominante
desde que a ONU introduziu esse conceito em seu modelo de operações de paz
no início da década de 1990 (ONU 1992).
Feitas essas considerações introdutórias, o artigo segue dividido em três seções.
A primeira conecta a virada estética e a virada local no campo da transformação
de conflitos e da consolidação da paz, procurando destacar os insights estéticos
da obra de John Paul Lederach e suas conexões com as obras de Paulo Freire e
Augusto Boal. A segunda seção ilustra empiricamente a interação entre arte e
consolidação da paz através das iniciativas do Teatro Rafiki e do Teatro Badilika,
implementadas em zonas de conflitos persistentes no continente africano. Com
base nas seções anteriores, a terceira seção discute alguns aspectos críticos
relacionados às possibilidades e limitações da interação entre arte e consolidação
da paz, chamando a atenção para a necessidade de que as intervenções estéticas
se mantenham fiéis às qualidades intrínsecas ao fazer artístico, sob pena de se
transformar em instrumentos de pacificação e controle.
A Convergência entre a Estética e o Local no Campo
da Transformação de Conflitos
A virada local nos Estudos para a Paz ganhou ênfase no contexto da bibliografia
crítica ao modelo intervencionista da paz liberal, principalmente a partir da
década de 2000, procurando questionar o foco predominantemente externo desse
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modelo e a sua negligência em relação às dinâmicas contextuais dos conflitos
e ao papel das populações, das culturas e das instituições locais nos esforços
de paz. Ao olhar para a base ideológica da receita de consolidação da paz da
ONU, fundada numa concepção universalizante da chamada “teoria da paz
democrática”, e para o formato desse modelo, cada vez mais articulado através
de uma receita técnica de engenharia social espelhada na imagem institucional
do Estado liberal ocidental, diversos estudiosos da paz passaram a examinar
criticamente os impactos desse modelo nas sociedades que recebiam essas
intervenções (Chandler 2010; Duffield 2001, 2007; Mac Ginty 2008; Pugh 2005;
Richmond 2007, 2011; Richmond e Mitchell 2012). Para esse grupo de críticos,
o projeto intervencionista da paz liberal, ao concentrar-se na manutenção
da ordem liberal dominante, não só assumia características neocolonialistas
(Richmond 2007, 2011) e imperialistas (Chandler, 2010), mas também, em
consequência disso, produzia uma marginalização das populações, da cultura,
das instituições costumeiras e das experiências do dia a dia nos locais onde as
práticas da paz liberal efetivamente se materializavam (Cravo 2017; Gomes 2013;
Gomes e Blanco 2019).
É importante notar, porém, que muito antes da virada local reclamada no
âmbito da crítica à paz liberal ao longo da última década, as reflexões sobre
transformação de conflitos na obra de John Paul Lederach, ainda nos anos 1990,
já continham alguns elementos que hoje se associam à virada local nos Estudos
para a Paz, embora tivessem um foco centrado nas teorias de resolução de
conflitos e não assumissem o mesmo registro crítico ao projeto de reconstrução
de Estado que caracteriza o debate mais recente da crítica à paz liberal (Toledo e
Facchini 2017). Ao olhar para o modelo “elicitivo” de transformação de conflitos
proposto por Lederach (1995), nota-se a grande ênfase dada ao conhecimento
local, à valorização das pessoas enquanto agentes de mudança social e à busca de
caminhos que possam levar à transformação da realidade de uma forma criativa
e imaginativa. O local e as pessoas comuns assumem, dentro dessa abordagem,
uma posição central, o que faz com que as pessoas em suas comunidades locais
sejam vistas como agentes ativos em vez de meros receptores passivos dos
esforços externos de intervenção.
É no ponto onde essas demandas por uma virada local convergem para
as reivindicações de uma virada estética nos Estudos para a Paz onde se pode
situar a contribuição das intervenções artísticas para os esforços de consolidação
da paz e de transformação de conflitos. A obra de Lederach é a que oferece os
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primeiros insights para a análise dessa confluência entre a estética e o local.
Pode-se dizer que essas duas dimensões se mesclam na obra do autor, na medida
em que sua concepção de transformação de conflitos não apenas se apoia em
uma forte característica inventiva, que remete a elementos de sensibilidade,
imaginação e criatividade, mas também se sustenta no conhecimento e nas
habilidades locais para a condução dos processos de transformação social. Para
lidar com as raízes mais profundas da violência, argumenta Lederach, é preciso
fincar os pés no contexto do conflito e explorar a criatividade e a imaginação
de uma forma artística:
(P)recisamos explorar o processo criativo em si, não como uma investigação
tangencial, mas como uma fonte que alimenta a construção da paz. Em
outras palavras, devemos nos aventurar no território quase inexplorado do
percurso do artista, aplicando-o às mudanças sociais, nas telas e na poética
das relações humanas, na imaginação e nas descobertas e, finalmente, no
mistério da vocação daqueles que empreendem essa jornada (Lederach
2005, 5, tradução nossa).
5
A abordagem elicitiva proposta por Lederach (1995) cujo sentido conecta-
se originalmente às ideias de criar, provocar, fazer surgir algo novo culmina
mais recentemente na noção de que a superação dos ciclos de violência em
contextos de conflitos prolongados requer o desenvolvimento da capacidade da
“imaginação moral”:
Colocada de forma simples, a imaginação moral requer a capacidade de
imaginarmos a nós mesmos dentro de uma rede de relacionamentos que
inclui nossos inimigos; a habilidade de manter uma curiosidade paradoxal
que abrace a complexidade sem se fixar em polarizações dualistas; a crença
fundamental na busca do ato criativo; e a aceitação do risco inerente à
entrada no mistério do desconhecido que se encontra além da paisagem
familiar da violência (Lederach 2005, 5, tradução nossa).
6
5 No original: “we must explore the creative process itself, not as a tangential inquiry, but as the wellspring
that feeds the building of peace. In other words, we must venture into the mostly uncharted territory of the
artist’s way as applied to social change, the canvases and poetics of human relationships, imagination and
discovery, and ultimately the mystery of vocation for those who take up such a journey”.
6 No original: “Stated simply, the moral imagination requires the capacity to imagine ourselves in a web of
relationships that includes our enemies; the ability to sustain a paradoxical curiosity that embraces complexity
without reliance on dualistic polarity; the fundamental belief in and pursuit of the creative act; and the
acceptance of the inherent risk of stepping into the mystery of the unknown that lies beyond the far too
familiar landscape of violence”.
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Dessa perspectiva, a imaginação moral que está no núcleo definidor da
transformação de conflito tem mais a ver com arte do que com técnica, e o
envolvimento dos atores externos e das pessoas e comunidades locais na produção
do ato criativo pode contribuir de forma construtiva para a quebra dos ciclos da
violência, na medida em que a experiência estética que lhe é subjacente gera
novas dinâmicas de relacionamento e abre o horizonte de interações através da
imersão das pessoas em processos de reflexão e autorreflexão, de conhecimento
e autoconhecimento e de reconhecimento do Outro. A intuição e a imaginação
nesse processo são fundamentais, já que instauram uma forma de compreensão
do conflito que vai além da mera análise técnica e racional e se abre para as
expressões metafóricas, corporais e imagéticas que caracterizam as bases estéticas
da imaginação moral.
Esse tipo de imaginação, reconhece Lederach (2005), conecta-se àquilo que
o educador brasileiro Paulo Freire chama de “conscientização” entendida como
um tipo de intuição para a transformação social que emerge da autocompreensão
das pessoas sobre a sua própria realidade, sobre o seu papel na descoberta ou
invenção de respostas inovadoras e sobre o potencial que eles próprios têm,
enquanto sujeitos de ação, de atuar no contexto de mudança. O ponto que
parece central na obra de Paulo Freire, e que serve como fonte de inspiração para
Lederach, é a ideia de que a tomada de consciência sobre a condição de opressão
constrói o caminho para a libertação e, mais importante ainda, essa libertação
não é algo que surge de fora, mas é algo que se constrói a partir de dentro, a
partir do envolvimento individual e coletivo das próprias pessoas no processo de
desenvolvimento da consciência crítica sobre a sua realidade social, por meio da
autorreflexão e da práxis transformadora é esse processo de conscientização
do homem sobre sua própria condição, através da reflexão crítica sobre a sua
situação no mundo e do ímpeto para a luta por justiça social, que abre o caminho
para a libertação (Freire 1974).
De sua leitura da obra de Paulo Freire, Lederach deriva um insight fundamental
para a transformação de conflitos: a superação das contradições mais profundas
dos conflitos passa necessariamente pelo envolvimento das pessoas e comunidades
locais em um processo pedagógico crítico-reflexivo através do qual elas mesmas,
partindo da compreensão que têm da sua própria realidade, sejam encorajadas
a nomear os seus problemas, a tomar consciência do contexto de violências em
que se encontram inseridas e, a partir dessa conscientização, consigam imaginar
respostas criativas e originais para a transformação dessa realidade (Lederach 2005).
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Para Lederach (2005), e este é o ponto fundamental para os propósitos deste
artigo, a transformação de conflitos requer uma pedagogia que valorize os
conhecimentos e os entendimentos dos atores locais, encoraje tais atores a se
conscientizarem sobre o seu papel transformador e os leve a penetrar, através do
ato criativo, o terreno inventivo, sensível e intuitivo da estética. Ainda que esse
tipo de discussão seja subvalorizado pela pedagogia técnica e orientada para a
gestão especializada de processos que predomina no campo da consolidação
da paz, Lederach considera que, não raras vezes, os insights mais construtivos
para a transformação do conflito surgem repentinamente, por intermédio da
imaginação estética, sob a forma inesperada de uma imagem ou de “algo que
só pode ser descrito como artístico” (2005, 69).
Um olhar sobre o “teatro do oprimido”, proposto pelo teatrólogo brasileiro
Augusto Boal e fortemente influenciado pela “pedagogia do oprimido” de Paulo
Freire, contribui para que o insight estético de Lederach seja elaborado em maior
grau de profundidade. Surgido de uma série de experimentações de Boal, iniciadas
ainda nos anos 1970, o teatro do oprimido desenvolveu-se a partir de diversas
técnicas como o “teatro invisível” (ações realizadas em ruas, praças, supermercados,
feiras e outros espaços públicos, representando situações cotidianas, porém
não reveladas ao público como teatro, e abertas à intervenção das pessoas para
discutir soluções para questões sociais e políticas tratadas), o “teatro-imagem”
(desenvolvido a partir do trabalho com indígenas de diferentes tribos, onde a
pluralidade de línguas levava à necessidade de um tipo de ação teatral sem palavras,
centrada no corpo, nas fisionomias, nos objetos, nos espaços e nas cores, a fim de
despertar a autorreflexão a partir do aparelho sensorial), o “teatro fórum” (onde
os recursos teatrais se expandiam através da inserção dos espectadores na ação
e a instauração de um debate entre atores e plateia, estimulado por uma espécie
de mestre de cerimônias, denominado Curinga, sobre alternativas de soluções
para as situações encenadas, geralmente envolvendo episódios de exploração,
sofrimentos e opressões), além de outras experimentações, todas elas guiadas
pelo compromisso de despertar a reflexão crítica dos participantes para o seu
papel crucial na transformação das condições de opressão que limitam o seu
potencial de vida. Dentre todas essas experiências, o teatro fórum é considerado
por Boal como a forma “mais democrática” de experimentação do teatro do
oprimido, além de ser a “mais conhecida e praticada em todo o mundo” (2008,
19; 2009). A conexão entre essa forma de experimentação estética e a pedagogia
do oprimido de Paulo Freire é profunda e procura provocar o espectador para a
conscientização sobre o seu papel central como agente de transformação.
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Um olhar sobre essas referências é relevante não apenas pela sua importância
dentro do pensamento crítico-pedagógico-estético brasileiro, mas principalmente
pela sua crescente influência entre os autores que se têm dedicado à reflexão
e às experimentações estéticas no campo da transformação de conflitos e da
consolidação da paz. Para além da influência anteriormente mostrada na obra de
Lederach, outros autores e praticantes têm recorrido a Paulo Freire ou Augusto
Boal como referências para as suas reflexões ou intervenções artísticas em
contextos de conflitos violentos (Burbridge e Stevenson 2020; Cohen, Varea e
Walker 2011; Grohs 2009; Premaratna 2020; Premaratna e Bleiker 2010; Schrowange
2015; Kuhlmamm, Ramos e Araújo 2019). Desse modo, ainda que Freire e Boal
tenham trabalhado com populações submetidas a contextos de opressão social,
econômica e política particulares do Brasil e de outros países da América Latina,
principalmente nos anos 1960/1970/1980 e, portanto, contextualmente distintos
das atuais guerras civis e conflitos persistentes ao redor do mundo , não se pode
deixar de notar, perante a influência por eles exercida na emergente bibliografia
sobre arte e peacebuilding, que os seus insights sobre conscientização, sobre
o papel crítico-pedagógico das artes e sobre o envolvimento das pessoas e
comunidades locais em práticas estéticas transformadoras são potencialmente
relevantes dentro de um esforço de reflexão sobre a paz que pretenda ir além
de medidas superficiais e imediatas de pacificação e do modelo de engenharia
social da paz liberal que passaram a definir a receita dominante das intervenções
internacionais contemporâneas.
Teatro Fórum para a Paz: Rafiki Theatre e Badilika Theatre
Para ilustrar a interação entre arte e peacebuilding, esta seção examina as
iniciativas implementadas pelos Teatro Rafiki e Teatro Badilika no continente
africano. Justifica-se essa escolha por dois motivos principais: em primeiro
lugar, elas representam casos típicos de intervenções artísticas explicitamente
influenciadas pelas fontes crítico-pedagógico-estéticas destacadas neste artigo,
particularmente pela obra do teatrólogo brasileiro Augusto Boal; em segundo
lugar, essas experimentações ocorrem em contextos de conflitos persistentes, o
que permite ilustrar a interação entre arte e peacebuilding nos contextos mais
complexos e desafiadores para os esforços de transformação de conflitos e de
consolidação da paz.
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Fortemente influenciado pelo teatro do oprimido de Boal, Claus Schrowange
teatrólogo e ativista pela paz e direitos humanos tem aplicado o método
do teatro fórum, com alguns elementos de teatro invisível e teatro imagem, em
ações de consolidação da paz. Suas primeiras experimentações com o teatro
fórum em contextos de conflitos violentos no continente africano surgiram em
2009/2010, quando fundou, juntamente com doze estudantes do Departamento
de Música, Dança e Drama da Universidade de Makerere, em Kampala, Uganda,
um grupo denominado Teatro Rafiki. Com o Teatro Rafiki, passou a atuar, durante
os quatro anos seguintes, em performances participativas, integrando teatro,
música, dança, movimentos, imagens e símbolos, em ações para a promoção da
paz, direitos humanos e desenvolvimento local. Nesses quatro anos, centenas de
performances foram realizadas em Uganda, Quênia, Ruanda e Sudão do Sul, em
zonas rurais e urbanas, além da multiplicação dessa iniciativa para sete novos
grupos de teatro fórum em Uganda e um no Sudão do Sul (Schrowange 2015).
Com sua mudança para Ruanda, para trabalhar em uma ONG focada na
construção de capacidades locais para a paz e na promoção da reconciliação na
região dos Grandes Lagos Africanos, apoiada por igrejas protestantes de Ruanda,
República Democrática do Congo (RD Congo) e Burundi, Schrowange criou,
juntamente com o Centro para a Juventude Ruandesa, um novo grupo de teatro
fórum denominado Teatro Badilika, que realizou, durante o ano de 2014, mais de
50 performances, reunindo cerca de 6.000 pessoas em áreas diretamente afetadas
por conflitos armados na região limítrofe entre Ruanda e RD Congo (Schrowange
2015). Embora as limitações impostas pela extensão deste artigo impeçam uma
descrição detalhada da violência nessa região, um aspecto importante a destacar é
que essa área tem sido marcada por conflitos intercomunitários que se prolongam
há décadas, sob constantes crises humanitárias, pobreza, ódios, preconceitos,
estereótipos, mitos e ressentimentos enraizados. O genocídio contra Tutsis e Hutus
moderados cometido por radicais Hutus, em 1994, sob o olhar omisso da ONU,
é um trágico e conhecido episódio, politicamente organizado em bases étnicas
e identitárias, que não só deixou cicatrizes abertas até hoje em Ruanda, mas
também desdobramentos em partes do território da RD Congo, especialmente na
região leste do país, na fronteira com Ruanda, que tem sido marcada por grande
instabilidade política e pela atuação de diversos grupos armados que exploram as
narrativas identitárias para estimular atitudes de ódio e comportamentos violentos.
Seguindo as ideias de Boal, as performances do Teatro Rafiki e do Teatro
Badilika partem de uma determinada situação dramática relacionada ao cotidiano
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concreto de violências direta, estrutural e cultural vivenciadas pela população
local onde a ação é encenada, abrindo-se, em seguida, à participação da audiência
através de intervenções orientadas por um mestre de cerimônias o Curinga,
na terminologia de Boal que Schrowange prefere chamar de mediador ou
facilitador. Através desse processo interativo, a performance leva “a audiência a
constatar que se ela não intervier nada irá mudar”, pois os personagens atuando
como os perpetradores da violência continuarão em cena, a manter suas posições,
até serem convencidos, pelas intervenções positivas da audiência, a parar ou
mudar suas ações. As encenações são encerradas, habitualmente, com um debate
final entre atores e audiência, seguido de um ato simbólico pela paz, que pode
envolver música, dança, o plantio de uma árvore ou uma prece, dependendo do
contexto onde a performance é realizada (Schrowange 2015, 16-17).
A peça “Tomates Podres” (Rotten Tomatoes), criada por Schrowange em conjunto
com atores congoleses e ruandeses, em 2014, é uma ilustração emblemática da
forma como o Teatro Badilika trabalha os preconceitos, ódios, rumores, mitos e
estereótipos, bem como as dinâmicas políticas locais nas sessões de teatro fórum
realizadas em cidades de ambos os lados da fronteira entre Ruanda e RD Congo.
A abertura da peça é descrita por Schrowange nos seguintes termos:
Está escuro e silencioso. Ouve-se apenas música clássica ao fundo. Thérèse
entra lentamente em cena, lágrimas em seus olhos. Fotos de crianças-soldado,
de rebeldes da FDLR e do M23, bem como de soldados da MONUSCO estão
projetadas em cena. As fotos projetadas são tão grandes que cobrem não
somente as paredes, mas também o piso
7
(Schrowange 2015, 53, tradução
nossa).
8
O título “Tomates Podres” é uma referência à mercadora ruandesa de tomates
que entra em cena no início da peça, sendo, em seguida, confrontada, insultada
7 Em 2014, quando essas performances foram realizadas pelo Teatro Badilika, as Forças Democráticas para a
Liberação de Ruanda (FDLR) eram um dos grupos armados mais atuantes na região leste da RD Congo. Integrada
majoritariamente por milícias da etnia Hutu, que haviam fugido com suas famílias após o genocídio contra
Tutsis, em 1994, em Ruanda, os integrantes da FDLR eram percebidos não só como um fator desestabilizador da
região leste da RD Congo, devido a atrocidades cometidas contra populações civis nas áreas sob seu controle,
mas também como uma ameaça ao governo ruandês. O Movimento 23 de Março (M23) era um grupo militar
rebelde atuante, desde 2012, na região leste da RD Congo, que foi derrotado, em 2013, pelas Forças Armadas
congolesas, com o apoio da Brigada da Força de Intervenção da ONU (FIB), incorporada à MONUSCO (Missão
da ONU para a Estabilização da RD Congo), que se encontra no país até hoje.
8 No original: “It is dark and quiet. Classical music is playing. Thérèse slowly enters the stage, tears in her
eyes. Photos of child soldiers, FDLR and M23 rebels as well as MONUSCO soldiers are projected on the stage,
they are so large, that not only the wall but the floor is also covered by the projected photos”.
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e ameaçada por cinco personagens congoleses que gritam: “Vá embora!... Deixe
o nosso país!... Vá embora!... Deixe o nosso país!... Vá!.... O último grito de
expulsão é assustador, o que leva a mercadora ruandesa, aterrorizada, “a esmagar
os tomates nas mãos, o líquido vermelho espirra em seu vestido preto. Os tomates
caem no chão. Seu rosto expressa seu sofrimento, o choque é visível, lágrimas
em seus olhos” (Schrowange 2015, 57).
A partir desta situação dramática inicial, uma série de atores ruandeses e
congoleses se sucedem não só testemunhando experiências de sofrimento, mas
também expressando os preconceitos, as opiniões e os estereótipos que nutrem
um em relação ao outro. Os diálogos se desenvolvem fazendo menção às cicatrizes
dos conflitos na região, desde o genocídio de 1994 em Ruanda, e às consequências
que as narrativas de inimizade entre congoleses e ruandeses provocam nas
relações entre amigos, familiares, comunidades e grupos armados que exploram
a violência em ambos os lados. Os personagens também fazem referência às suas
percepções sobre as dinâmicas políticas locais; sobre a interferência dos países
vizinhos nas questões políticas internas uns dos outros e no apoio a grupos
armados que conduzem a violência armada em seus territórios. Os personagens
também tratam da violência contra civis provocada pelo movimento insurgente
M23, acusado na fala de um deles de ser um movimento apoiado por Ruanda, e
sobre o grupo armado FDLR, integrado por milícias Hutus fugidas de Ruanda após
o genocídio contra Tutsis, descrito por um dos personagens ruandeses como um
grupo apoiado, ou pelo menos tolerado, pelos congoleses. Outros personagens
apontam os dedos para a comunidade internacional e para a presença estrangeira
em seus países.
Em um dado momento, Nadine, uma personagem congolesa, entra em cena
contestando as próprias narrativas congolesas que culpam os ruandeses por
todos os seus problemas: “Temos que parar de culpar Ruanda por todas as coisas
ruins que acontecem no Congo. Nossa própria casa não está em ordem” (Schrowange
2015, 57). Os espectadores são crescentemente provocados por essas cenas, que
evidenciam os antagonismos e pontos de vista opostos entre os personagens, cujas
falas culpam uns aos outros pelos males em suas comunidades e em seus países.
Em um segundo momento da performance, a audiência passa a ser estimulada
pelo moderador a interagir, a intervir nos diálogos e, até mesmo, a substituir os
atores para reorientar a encenação segundo os seus próprios pontos de vista.
Após cada intervenção, o moderador pergunta a opinião da audiência e do próprio
ator sobre a intervenção realizada, instaurando um processo dialógico que faz
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com que cada interação contribua para um processo de reflexão e autorreflexão
de todos os participantes sobre o conflito encenado. Esse processo de interação
dura, pelo menos, uma hora e meia e constitui, segundo Schrowange (2015),
uma parte importante do teatro fórum, pois permite que o objetivo fundamental
de dar voz às pessoas seja alcançado.
Na sequência desse momento interativo, Nadine, a personagem congolesa,
retorna à cena e se posiciona em um lado do palco, enquanto uma atriz branca,
em um vestido verde-oliva, entra do outro lado da cena. Sob o som de uma
música dramática instrumental, Nadine anda até o centro do palco, onde está
um pote fechado. O ritmo da música acelera, enquanto um personagem ruandês
surge do alto, descendo por uma corda, fazendo movimentos acrobáticos. Já no
chão, o homem se posiciona atrás de Nadine, enquanto executa movimentos
vigorosos de luta marcial. Nadine, com as feições tensas e lágrimas nos olhos,
abre o pote que se encontra no chão, onde coloca as mãos, que saem encharcadas
de sangue. Fixando o olhar atônito na direção da plateia, Nadine leva as mãos
ensanguentadas ao peito, traçando um “X” vermelho sobre a camiseta branca.
O personagem ruandês permanece atrás de Nadine, em seus movimentos frenéticos
de luta, contra a luz de um refletor que projeta suas sombras, em tamanho gigante,
na parede ao fundo. A mulher branca, vestida de verde-oliva, permanece muda
em um dos cantos do palco, indiferente, observando a cena sem interferir.
Ao serem levados a refletir sobre essa cena opressiva, que transcorre intei-
ramente sem palavras, os espectadores fazem, segundo Schrowange, diferentes
leituras:
Geralmente a audiência interpreta essa cena como se fosse uma mulher
sendo violada, uma vez que massas de mulheres têm sido brutalmente
estupradas durante as últimas duas décadas de conflitos violentos na região.
Outros a interpretam como uma agressão, um ataque violento envolvendo
guerreiros de Ruanda. A atriz branca é geralmente percebida como a
comunidade internacional, a MONUSCO ou as agências de desenvolvimento,
e seus papéis nos conflitos armados são discutidos com a audiência.
A cena provoca reações emocionais fortes na audiência e este é o objetivo
que buscamos! (Schrowange 2015, 60, tradução nossa).
9
9 No original: “Often the audience interprets this scene as a woman being raped, since masses of women were
brutally raped during the last two decades of violent conflicts in the region. Others interpret it as aggression,
a violent attack, involving fighters from Rwanda. The white actress is often perceived as the international
community, the MONUSCO or development agencies, and their role in armed conflicts is discussed with the
audience. The scene provokes emotional reactions from the audience—and this is what we are aiming at!”.
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Na cena final, cinco atores usando camisetas brancas com um “X”, na cor
vermelho-sangue, entram silenciosamente no palco. Um grande quadro com
cenas de guerra vivenciadas pela comunidade onde a performance é apresentada,
pintado por um dos atores durante a performance, é então queimado pela mesma
atriz que abre a peça, Thérèse, que deposita, em seguida, ao lado das cinzas
do desenho em chamas, algumas flores. Um caixão de madeira, cheio de flores,
está no centro do palco. Nadine, que manchara as mãos de sangue na cena do
pote, e a vendedora de tomates, com os frutos vermelhos ainda esmagados nas
mãos, também estão nessa cena final. Não há palavras; ouvem-se apenas os
lamentos das personagens que choram. A atriz branca continua ao longe, em um
canto do palco, imóvel e passiva, observando indiferente o que acontece. Nesse
ponto, a audiência é convidada a entrar no palco e modificar a composição dessa
cena final. As modificações, que obviamente variam em cada performance de
acordo com as ideias dos espectadores que atendem ao convite do moderador,
geralmente reorientam a cena final para um sentido mais positivo, pacífico e
alegre, e a performance então termina com um cerimonial coletivo pela paz
(Schrowange 2015).
Conforme argumenta Schrowange, essas performances são obras abertas e
participativas, que dão voz a pessoas que, muitas vezes, não encontram em seu
dia a dia o ambiente seguro e a liberdade de expressão que o espaço artístico
lhes oferece. Nesse espaço privilegiado, elas se envolvem no diálogo através de
“linhas horizontais de comunicação”, compartilhando ideias e opiniões sem os
freios que as iniciativas formais e oficiais de paz, geralmente top-down, lhes
impõem (2015, 67, 85-86). Isso possibilita que as pessoas se envolvam não
só em um processo crítico e reflexivo, mas também em um processo catártico
que lhes permite deixar as performances mais leves após expressarem suas
frustrações, raiva, tristeza, ódio e, acalmadas em suas emoções, possam refletir
com mais clareza sobre as causas mais profundas da violência e a busca de
soluções pacíficas para os conflitos. O objetivo das performances, portanto, não
é resolver o conflito apresentado em cena imediatamente, o que soaria irreal,
mas sim influenciar a atitude e o comportamento dos antagonistas, iniciando
um processo de transformação gradual e, principalmente, fazendo emergir, a
partir do debate estimulado pelo mediador, potenciais alternativas, estratégias
e conhecimentos locais que possam ser construtivamente mobilizados na vida
real para transformar a contradição de objetivos que se encontra na base dos
conflitos encenados.
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Ainda que se tenha um compromisso com a transformação social, enfatiza
Schrowange, não se deve esquecer que as performances são arte e não a situação
real vivida pelas pessoas; elas são um caminho sensível e emocional para
estimular a compreensão das pessoas sobre a sua própria condição e, através
desse processo de autorreflexão e conscientização, motivá-las a envolverem-se,
de forma criativa e construtiva, na busca de soluções para os seus problemas.
O teatro fórum funciona como uma espécie de espelho imaginário onde as
pessoas possam mirar as manifestações diretas, estruturais e culturais de
violência que as afetam e posicionar-se criticamente em relação a elas. As
performances, dentro desse processo, fortalecem “a capacidade de análise sobre os
problemas locais” e funcionam, como diria Boal, como um “ensaio para a ação”
(Schrowange 2015, 85-86).
Essas considerações de Schrowange indicam um ponto fundamental: as
performances são arte e precisam ser concebidas e implementadas como arte.
Assim, é a sua capacidade de cultivar a consciência crítica e a autorreflexão,
impulsionando e motivando as pessoas para o envolvimento em práticas
transformadoras e não transformação social em si que deve servir de parâmetro
para avaliar o papel da arte na transformação de conflitos e na consolidação da
paz. Dada a complexidade dos conflitos armados e dos contextos de violência
persistente onde essas encenações ocorrem, as mudanças sociais demandam uma
abordagem multitemporal, multinível e multisetorial, bem como o tratamento
das raízes mais profundas dos sistemas, das atitudes e dos comportamentos
violentos; a identificação e a mensuração dessas transformações são complicadas,
se não impossíveis a curto prazo.
Ainda que se levem em conta esses aspectos, as intervenções estéticas de
Schrowange indicam que, pontualmente e em situações contextuais específicas,
as performances conseguem levar a resultados mais imediatos e verificáveis,
como a “formação de grupos de trabalho” para a construção de “planos de
ação para resolver questões concretas” (2015, 19), ou, até mesmo, a processos
informais de reconciliação, como ilustra o seguinte episódio documentado por
Schrowange em uma ação realizada no Sudão do Sul:
Em maio de 2013, eu estava trabalhando com a nossa trupe local de teatro
fórum em Kuron, Sudão do Sul. Um grupo rebelde ameaçava a região,
tentando combater o exército nacional. A população vivia sob medo constante.
Os Jie, um dos grupos étnicos locais, sofreram um ataque dos rebeldes
e se deslocaram, procurando refúgio entre os Toposa, seus “tradicionais
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inimigos”. Uma conversação de paz foi organizada entre os dois grupos e
o nosso teatro fórum local foi usado para facilitar o diálogo. 100 pastores
Toposa, a maioria portando armas, posicionaram-se diante de 20 homens da
etnia Jie, separados por 30 metros um grupo do outro. Nossa trupe realizou
a performance nesse espaço entre os grupos. Quando Emmanuel (um dos
atores locais, cuja participação na performance consistia em narrar a morte
do irmão no conflito) realizou o seu monólogo em lágrimas, acusando os
guerreiros de ambos os lados, eu notei que três homens da audiência secavam
lágrimas em seus olhos. Após a performance, ambos os grupos aceitaram
sentar-se lado a lado, estabelecendo um primeiro passo na direção certa.
Após quatro horas de discussão, em que ambos os lados extravasaram os
seus sentimentos, culpando um ao outro por roubar e matar, as primeiras
decisões práticas foram tomadas, como por exemplo, quem compensaria
quem com quantas vacas e ovelhas, etc. Decidiram também que juntos iriam
compartilhar o mesmo território, enquanto perdurasse a insegurança. Os
anciãos e chefes assumiram a responsabilidade de acalmar e controlar os
jovens guerreiros e fizeram um acordo para atuar em conjunto, em caso de
um eventual ataque pelos rebeldes, e para cooperar com o exército nacional
(Schrowange 2015, 87-88, tradução nossa).
10
Se esse episódio específico pode ser avaliado por seus impactos práticos
imediatos, o que o conjunto de intervenções artísticas documentado por Schrowange
indica é que o maior potencial das performances de teatro fórum em contextos de
conflitos violentos é instaurar um espaço seguro e criativo, onde atores e público
possam imaginar alternativas para sair das situações opressivas e violentas em
que vivem, sendo encorajados a aplicá-las na realidade. A grande contribuição
das performances, portanto, está em fomentar a discussão e cultivar a consciência
crítica objetivos que não se esgotam em si mesmos, mas constituem o “primeiro
passo de um processo de mudança” que vai além de resultados mensuráveis de
curto prazo (Schrowange 2015, 86, 88).
10 No original: “In May 2013 I was working with our local forum theatre troupe in Kuron, South Sudan. A rebel
group was threatening the region, trying to fight the deployed national army. People were living in constant
fears. The Jie, one of the ethnic groups, were attacked by the rebels, running away and seeking refuge with
the Toposa, their “traditional enemies”. A peace talk was organized between the two groups and our local
forum theatre troupe was used to facilitate the dialogue. 100 Toposa herdsmen, most of them carrying a
gun, were facing 20 Jie, with 30 meters space between the two groups. Our troupe performed in the middle
of it. When Emmanuel did his monologue in tears (…), accusing the warriors of both sides, I saw three of
them wiping tears out of their eyes. After the performance they agreed to sit together, a first step in the right
direction. After four hours of discussion, both sides had emptied their hearts, blaming the other for stealing
and killing. First practical decisions were taken, for example, who should compensate whom with how many
cows or goats etc. And they decided together to share one territory for the period of insecurity. The elders
and chiefs took the responsibility to calm down and control the young warriors. They agreed to act together
in case of any attack by the rebels and to cooperate with the national army”.
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Colaboração entre Arte e Consolidação da Paz:
Potencialidades e Limitações
Ao observar as intervenções artísticas examinadas na seção anterior, à luz
das fontes crítico-pedagógico-estéticas que lhe servem de base, dois aspectos
fundamentais precisam ser notados. Em primeiro lugar, o potencial da arte
para a transformação de conflitos e consolidação da paz não deve ser buscado
na transformação social em si i.e, em um efeito transformativo concreto e
mensurável que possa ser conectado, por uma relação necessária de causalidade,
a uma performance ou a um conjunto de intervenções artísticas particulares ,
mas deve ser buscado dentro da própria experiência estética e ser avaliado pelos
seus parâmetros internos, ou seja, pelo seu sucesso em estabelecer as condições
de possibilidade de expansão dos limites do pensamento sensível, abrindo as
margens para o envolvimento das pessoas e comunidades locais em processos de
reflexão e autorreflexão sobre as condições de violência e opressão que afetam
o seu dia a dia. Se esse processo de conscientização instaurado pela experiência
estética resultará ou não em transformações sociais concretas, eis uma questão
que foge ao controle do artista. Enquanto agentes cognitivos, encorajados a agir
de forma livre e autônoma pela própria experiência estética, os participantes
da audiência é que decidirão, em última análise, sobre o seu envolvimento ou
não na práxis transformadora. Essa é uma decisão que não pode ser controlada
e muito menos lhes ser roubada.
Desse modo, ainda que os aspectos examinados nas seções anteriores reforcem
a tese de que existe um nexo entre as experiências artísticas e a transformação
social, é importante sublinhar que esse nexo possui um caráter contingente,
que não permite concluir ou realizar previsões a respeito de efeitos diretos
produzidos nos agentes e nas estruturas sociais que se pretende transformar.
Ainda que algumas experiências estéticas em contextos sociais específicos possam
gerar transformações positivas de rápido impacto e as ilustrações empíricas
deste artigo mostram uma situação desse tipo, particularmente na performance
de teatro fórum realizada por Schrowange em uma comunidade do Sudão do
Sul , nada indica que essas transformações ocorreriam no mesmo sentido em
contextos submetidos a outras dinâmicas de violência ou a outras condições
estruturais e culturais.
Em segundo lugar, é importante notar que embora as experiências estéticas
em contextos de conflitos violentos pretendam ser uma forma de intervenção
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normativamente orientada para a construção da paz, tais intervenções não podem
perder de vista que elas se definem, sobretudo, por suas qualidades artísticas,
mantendo-se fiéis à natureza aberta da obra de arte, à pluralidade de interpretações,
à possibilidade de dissenso, resistência e contestação. A afirmação de Schrowange
de que as performances em contextos de consolidação da paz demonstram que
“o teatro se torna um instrumento estético de mudança”, sem desconsiderar,
porém, que o teatro “é arte e deve se manter sempre como tal” (2015, 19), reforça
essa constatação e indica que a ênfase nas qualidades tipicamente associadas
às artes como criatividade, liberdade, imaginação, sensibilidade, emoção,
ambiguidade e, porque não dizer, radicalidade não devem ser colocadas em
segundo plano em prol de objetivos instrumentais. Esse é, possivelmente, um
dos grandes desafios da arte politicamente engajada: veicular a sua orientação
normativa sem, contudo, cair nas armadilhas do universalismo, das fórmulas
prontas, dos maniqueísmos e, principalmente, de abordagens que, em vez de
estimular a liberdade, a reflexão crítica e a conscientização sobre as formas de
opressão e violência, provocam, ao contrário, a sujeição, o conformismo e a
acomodação.
É essa radicalidade criativa que dá à arte a sua característica peculiar no
campo da consolidação da paz e na transformação de conflitos, sem a qual
as intervenções artísticas correm o risco de assumir um perfil instrumental,
orientado para a solução de problemas,
11
aproximando-se daquilo que a própria
virada estética aqui defendida pretende criticar. Talvez esteja nisso a maior
potencialidade da arte no campo da transformação de conflitos e de consolidação
da paz: a valorização do pensamento complexo; a busca incessante pelo original;
um incômodo perante as soluções de acomodação; uma visão dialética que não
sufoca o conflito, mas procura tirar de dentro do próprio conflito, conforme
sugere Lederach (2005), o ato criativo que faz surgir o inusitado, aquilo que
ainda não existe.
Esses aspectos levam-nos a uma segunda discussão, mais pragmática,
relacionada ao modo como o campo da consolidação da paz se organiza
institucionalmente. Tanto Schrowange (2015) quanto Lederach (2005) convergem
para um posicionamento crítico sobre a obsessão por projetos, gestão técnica de
processos e resultados de curto impacto que estruturam e capturam grande parte
11 Entendendo a abordagem de solução de problemas em oposição à abordagem da teoria crítica no sentido
pensado por Robert Cox (1996).
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da energia da comunidade de consolidação da paz. Esses aspectos tornam-se ainda
mais problemáticos quando apreciados em conjunto com as observações de outros
autores, entre eles Mark Duffield (2001, 2007) e Séverine Autessere (2014), que,
embora não se dediquem especificamente ao debate sobre arte e peacebuilding,
têm exposto a lógica instrumental, geralmente oportunista e autointeressada,
que orienta a rede de atores governamentais e não-governamentais que se
mobiliza no campo da consolidação da paz para atingir seus próprios objetivos
estratégicos em detrimento das necessidades de desenvolvimento e segurança
em microescala das pessoas e comunidades locais mais afetadas pelos conflitos.
Essa perspectiva crítica sobre as organizações de consolidação da paz sugere
que alguma cautela deve ser observada na relação colaborativa entre artistas e
tais organizações. Embora alguns autores defendam uma forma de cooperação
mais estratégica e instrumental entre artistas e as organizações de consolidação da
paz, argumentando que esse tipo de relação pode levar a resultados mais efetivos
na transformação das realidades sociais em zonas de conflitos (Shank e Schirch
2008), outros autores alertam para o risco de que essas relações instrumentais
e estratégicas acabem fazendo com que a introdução da arte nesse processo
tenda a ser condicionada pelos objetivos institucionais das organizações de
consolidação da paz e não pelas qualidades da arte propriamente dita (Culbertson
2020). Desse modo, ainda que essa cooperação se torne útil para a obtenção de
recursos, apoio logístico ou proteção para que as performances artísticas possam
se realizar em segurança, não se devem perder de vista os problemas envolvidos
nesse tipo de colaboração instrumental, especialmente os sacrifícios que podem
resultar para a autonomia e as qualidades estéticas das intervenções artísticas.
O que esse posicionamento crítico sugere, quando aplicado à questão aqui em
análise, é que os objetivos de grande parte das organizações governamentais e não-
governamentais que financiam e tomam decisões no campo da consolidação da paz
podem condicionar, devido à sua lógica externamente orientada e autointeressada,
os projetos artísticos que se inserem nesse campo. Dada a lógica de gestão
de projetos e a busca de resultados previsíveis e quantificáveis que orienta as
organizações que geralmente se envolvem no campo da consolidação da paz, é
questionável se tais organizações são capazes de absorver as dinâmicas libertárias,
o tipo de construção colaborativa, a característica aberta e a imprevisibilidade de
resultados das performances artísticas. Considerando que as artes se expressam
através de diferentes camadas de significado, mobilizando símbolos carregados
de múltiplos sentidos que escapam a interpretações totalizantes, é preciso avaliar
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até que ponto essas qualidades, que são intrínsecas ao fazer artístico, podem
se deixar instrumentalizar pelos mecanismos institucionais de peacebuilding
sem sacrificar a liberdade e a ambiguidade que lhes são inerentes (Burbridge e
Stevenson 2020; Culbertson 2020).
Conclusão
Posicionando-se na interface entre as viradas estética e local nos Estudos para
a Paz, este artigo examinou algumas intervenções artísticas inspiradas nas fontes
crítico-pedagógico-estéticas do teatro do oprimido, conduzidas em contextos de
conflitos violentos no continente africano pelos Teatros Rafiki e Badilika.
A discussão realizada no artigo nos leva a duas conclusões fundamentais. Em
primeiro lugar, ainda que se reconheça que as intervenções estéticas apresentam um
potencial para a transformação de conflito e a consolidação da paz, é igualmente
importante reconhecer que grande parte desse potencial não se realiza através de
transformações sociais que possam ser identificadas e mensuradas imediatamente.
Assim, as intervenções artísticas precisam ser avaliadas por sua contribuição
para ampliar, através de processos críticos e reflexivos, a conscientização das
pessoas e comunidades locais sobre as estruturas e culturas de violência que
condicionam as suas possibilidades de vida. Até que ponto esse processo leva
ao envolvimento efetivo da audiência com a práxis transformadora, isto é algo
que não pode ser mensurado por resultados de curto prazo e muito menos ser
objetivamente controlado pelo artista, mas depende do impacto das performances
no juízo crítico de cada participante, a quem cabe, em última análise, posicionar-
se reflexivamente sobre a inaceitabilidade das condições de violência direta,
estrutural e cultural a que estão submetidos e engajar-se nas práticas coletivas
de transformação social e política.
Em segundo lugar, é preciso olhar com alguma dose de cautela para a
colaboração estratégica entre as intervenções artísticas e os mecanismos
institucionais e formais de consolidação da paz. É crucial que as intervenções
artísticas em contextos de violência não sacrifiquem, por razões instrumentais,
suas qualidades estéticas e seu compromisso com a conscientização das populações
locais, devendo manter a sua autenticidade e o seu compromisso com o ato criativo.
É através da radicalidade da arte, e não da sua domesticação e instrumentalização,
que se abre o maior potencial para a emergência de uma abordagem heterodoxa
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à consolidação da paz que ofereça uma alternativa ao modelo ortodoxo de
peacebuilding liberal que se tornou dominante.
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