Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1083, 2021
1-27
Geografia e arquitetura institucional
da cooperacão ambiental brasileira
na América do Sul
1
Geography and institutional architecture
of the brazilian environmental
cooperation in south America
Geografía y arquitectura a institucional
de la cooperación ambiental Brasileña
en Sudamérica
DOI: 10.21530/ci.v16n1.2021.1083
Ademar Pozzatti
2
Henrique Rogovschi
3
Resumo
A partir das lentes da joint discipline que transpassa categorias
de análise das disciplinas do Direito Internacional e das Relações
Internacionais, a presente pesquisa radiografa a geografia e a
arquitetura institucional da cooperação ambiental brasileira na
América do Sul. Para radiografar a geografia, a pesquisa indaga
onde esta cooperação está localizada, o que ela estabelece e quais
1 Pesquisa financiada com recursos do Edital Universal CNPq e do Edital ARD
FAPERGS.
2 Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina – UFSC. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
(PPGD) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI)
da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. (ademar.
pozzatti@ufsm.br). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8552-1507. Os autores
agradecem as contribuições dos revisores anônimos.
3 Estudante do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI)
da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Rio Grande do Sul Brasil.
(henriquejrogovschi@gmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5206-0510
Artigo submetido em 11/05/2020 e aprovado em 07/09/2020.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
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são os atores cujos interesses a envolvem. Ao investigar a arquitetura, foca-se em entender
como ela operacionaliza o seu conteúdo normativo, o que envolve compreender o papel
do direito internacional em operar políticas públicas ambientais transversais a diversos
Estados. A exploração documental analisa os regimes bilaterais na matéria, e, através de
levantamento, sugere que esta cooperação é descentralizada e difusa, ao mesmo tempo
que inova no seu modus operandi.
Palavras-chave: Cooperação Internacional; Meio-Ambiente; Direito Internacional; América
do Sul; Transdisciplinaridade.
Abstract
From the lenses of the joint discipline that cuts across categories of analysis of the disciplines
of International Law and International Relations, this investigation radiographs the geography
and the institutional architecture of the Brazilian environmental cooperation in South
America. By analyzing its geography, the study inquires where this cooperation is situated,
what it establishes and which are the actors whose interests involve it. By investigating
its architecture, it focuses on understanding how it operationalizes its normative content,
which involves understanding the role of international law in operating environmental
public policies that are transversal to different States. The documentary exploration analyzes
bilateral regimes in this sector, and, through survey, suggests that this cooperation is
decentralized and diffuse, while innovating in its modus operandi.
Keywords: International Cooperation; Environment; International Law; South America;
Transdisciplinarity.
Resumen
Con base en los lentes de la joint discipline que atraviesa categorías de análisis de las
disciplinas del Derecho Internacional y Relaciones Internacionales, esta investigación
examina la geografía y la arquitectura institucional de la cooperación ambiental brasileña en
América del Sur. Para radiografiar la geografía, la investigación se pregunta dónde se ubica
esta cooperación, qué establece y cuáles son los actores cuyos intereses la involucran. Al
investigar la arquitectura, se enfoca en comprender cómo opera su contenido normativo,
lo que implica comprender el papel del derecho internacional en la operación de políticas
públicas ambientales en varios Estados. La exploración documental analiza los regímenes
bilaterales en la materia y, a través de un levantamiento, sugiere que esta cooperación es
descentralizada y difusa, al mismo tiempo que innova en su modus operandi.
Palabras clave: Cooperación Internacional; Medio ambiente; Derecho internacional; América
del Sur; Transdisciplinariedad.
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Introdução
O aprofundamento da globalização é um ponto de inflexão na história
recente das relações internacionais sob diversos aspectos, tanto temáticos
quanto operacionais. No aspecto temático, ela opera movimentos antagônicos,
frequentemente concorrentes, visto que intensificou o comércio de bens e serviços,
vulgarizou investimentos externos e, muito em função disto, expandiu a (des)
regulação dos sistemas financeiros locais e regionais, ao mesmo tempo que
acentuou desigualdades e conflitos nas esferas dos direitos humanos e ambientais.
Neste cenário, a temática ambiental foi objeto de investigação de distintas
perspectivas alocadas em diferentes unidades de análise, como aquelas relacionadas
à segurança (Barnett e Adger 2007), ao desenvolvimento econômico (Queiroz
2011), à política externa (Fonseca 2011) e ao direito internacional (Dubois 2009).
Do ponto de vista operacional, essas questões são tratadas via cooperação
internacional, institucionalizada por atos internacionais frutos de diversas instâncias
normativas (Kennedy 2007). Para entender a complexidade deste fenômeno, as
relações internacionais têm demandado mudanças no modus operandi do direito
internacional, visto que ele cada vez mais envolve a atuação das instituições
domésticas dos Estados para atingir, em nível local, as respostas aos desafios
globais (Slaughter e Burke-White 2006). Assim, para além de um gerencialismo
legislativo e judicial (Koskenniemi 2009), o direito internacional precisa projetar
“programas de ação governamental voltados à concretização de direitos” (Bucci
2001, 13), a fim de atingir a mudança desejada na tutela ambiental.
Se historicamente a formação da politica externa brasileira esteve a cargo
quase que exclusivamente do Itamaraty, atualmente ela tem dado protagonismo
aos atores domésticos vinculados a outros Ministérios, os quais têm sido chamados
cada vez mais a internacionalizar as políticas públicas das suas pastas (Dri
2016). Essa transnacionalização das políticas públicas, operada via cooperação
internacional, é altamente institucionalizada, ainda que sejam raros os estudos
acerca desse fenômeno nas disciplinas do Direito Internacional (DI) e das Relações
Internacionais (RI) ou mesmo no âmbito de uma joint discipline (Slaughter,
Tulumello e Wood 1998).
Para contribuir com o debate acerca do papel do direito internacional na
governança ambiental regional, a presente pesquisa investiga como ele impulsiona
a cooperação internacional e a transnacionalização de políticas públicas na
matéria, a partir do levantamento dos atos internacionais firmados entre o
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Brasil e os demais países da América do Sul que estão em vigor. Ao investigar
a geografia desta cooperação, quer-se entender onde ela está localizada e o que
compõe o seu objeto, bem como quais instituições participam desses acordos.
Por sua vez, explorar a arquitetura desta cooperação envolve entender como
ela é operacionalizada e questionar os padrões através dos quais os atores a
implementam. Entender esse modus operandi a partir de um referencial analítico
transdisciplinar permitirá tirar lições sobre o papel do direito nesta empreitada.
Este artigo está estruturado em três seções. A primeira trata da delimitação
teórica da investigação, quando são explorados os recursos analíticos da joint
discipline (1). A segunda explica a metodologia da pesquisa e a geografia da
cooperação analisada (2). A terceira seção debate os resultados obtidos, a fim de
entender quais atores, ideias e instituições têm um papel na estruturação desta
cooperação, e, através da análise desta arquitetura cooperacional, tenta inferir
sobre o papel do direito neste processo (3).
Diálogo entre as categorias de análise da joint discipline
Analisar a geografia e a arquitetura da cooperação ambiental brasileira
na América do Sul a partir dos atos internacionais que a institucionalizam
envolve mobilizar referencial teórico tanto das RI quanto do DI. Não se trata de
performar uma dupla empreitada de pesquisa, tentando trazer a política para
gabaritar a disciplina jurídica, ou levando o direito para dar novo verniz à Teoria
das Relações Internacionais, mas de desenvolver a análise proposta a partir de
uma joint discipline (Slaughter, Tulumello e Wood 1998). Trata-se de entender
alguns vocábulos comuns às duas disciplinas que são objeto desta pesquisa a
partir de um conjunto analítico transdisciplinar, a fim de compreender o impacto
do “direito internacional” no processo de fomentar, através da “cooperação”,
“políticas públicas”.
Na perspectiva que adotamos, a cooperação e o direito estão comprometidos
com a transformação da realidade não porque “gerenciam” os Estados, mas porque,
ao estimular o “enviesamento estrutural” (Koskenniemi 2009), participam do
processo iterativo que (con)forma a política. Assim, para produzir a radiografia
proposta, é necessário recorrer às categorias analíticas das RI, mas sem pressupor
que a observação por si só é um fim, mas porque a precisão da análise de
como o direito é utilizado pelos diversos atores para, através da cooperação,
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institucionalizar as suas propostas de resolução de problemas comuns, pode
melhorar este processo ou até mesmo ser replicado por outros atores para resolver
outros problemas. Em uma frase: o rigor analítico tem um forte componente
normativo. E talvez esta seja o maior potencial transformador da joint discipline.
Na perspectiva da tradicional agenda dual, uma primeira preocupação comum
às duas disciplinas era saber se – e não o nosso como – as regras promoviam
mudanças nos comportamentos dos atores, o que ficou conhecido como “desafio
realista” (Slaughter 1993). Apartando-se desse enfoque, este trabalho não se
propõe a dar uma resposta empírica a este desafio a partir das micronarrativas
institucionais da América do Sul. Igualmente, do ponto de vista da retórica jurídica,
nosso objetivo não é resolver os problemas linguísticos do direito internacional,
reforçando o gerencialismo “que sugere que os problemas internacionais […]
deveriam ser resolvidos através do desenvolvimento de vocabulários técnicos
altamente complicados para a formulação de políticas institucionais” (Koskenniemi
2009, 08
4
). Não se trata, portanto, de aprimorar a retórica do “Estado de direito
internacional”, mas tão somente de conseguir extrair algumas lições de como o
direito internacional opera para, através da cooperação, fomentar políticas públicas.
Em uma difusão teórica bastante conhecida no campo, os Estados se
comportariam como os únicos atores racionais e atuariam no plano externo de
acordo com suas preferências, em busca de poder. Nesta perspectiva, a inexistência
de uma autoridade central no sistema internacional não limitaria a cooperação,
visto que o auto interesse dos Estados orientaria as suas ações externas a fim
de a alcançarem. Em meio a esta complexidade sistêmica, Axelrod e Keohane
(1985) argumentam que o sucesso da cooperação dependeria de três variáveis
centrais: mutualidade de interesses, número de jogadores e sombra para o futuro.
Quanto à mutualidade de interesses, os referidos autores afirmam que a
estrutura de payoff influencia no alcance da cooperação, visto que a previsão da
divisão dos custos possui relevância central para o sucesso do projeto. Quanto
ao número de jogadores, eles afirmam que a percepção dos atores em relação
aos outros é central para a persecução da cooperação, de forma que, para além
dos fatores objetivos, os subjetivos também ganham importância. Por sua vez,
a sombra para o futuro se refere às condições que permitem vislumbrar o futuro
da cooperação, e têm como variáveis para sua análise os horizontes de longo
prazo, a regularidade das apostas, a confiabilidade das informações sobre as
4 No original “that suggests that international problems […] should be resolved by developing increasingly
complicated technical vocabularies for institutional policy-making”.
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ações dos outros e o rápido feedback sobre mudanças nas ações dos outros
(Axelrod e Keohane 1985).
A partir do momento que estas variáveis são institucionalizadas em um acordo
internacional, “afetam as expectativas dos atores [...] [e] podem alterar a medida
em que os governos esperam que suas ações possam afetar o comportamento
dos outros em questões futuras” (Axelrod e Keohane 1985, 234
5
). Ao fomentar
consenso, Keohane (2002) sustenta que as instituições passaram a ocupar um
lugar chave na cooperação internacional, justamente porque alteram a percepção
em relação ao futuro dos atores, modificam o payoff e reduzem os seus custos.
Neste contexto, Slaughter (1993) mostra que Keohane redescobre o direito
internacional justamente por ressaltar que a função das instituições é ajudar os
governos a encalçarem seus objetivos via cooperação, ao invés de determinar
o que eles devem fazer.
Contudo, o institucionalismo clássico encontra limites analíticos, entre outras
razões, por não adentrar na membrana estatal e insistir em ganhos absolutos.
No contexto ambiental, a maior complexidade do sistema internacional exigiu
um alargamento do referencial analítico, visto que “os Estados pareciam estar
imiscuídos em uma rede institucional em um sentido mais amplo, em regras
implícitas e explícitas que contribuíam para a modificação do comportamento
estatal” (Barros-Platiau, Varella e Scheleicher 2004, 110). Assim, estudiosos de
inclinação liberal popularizaram a ideia de regimes como variáveis que interferiam
tanto no poder do Estado quanto nos resultados internacionais (Keohane 2002).
Por serem “princípios, normas e regras implícitos ou explícitos e procedimentos
de tomada de decisões de determinada área das relações internacionais em torno
dos quais convergem as expectativas dos atores” (Krasner 2012, 94), os regimes
configuram estruturas de cooperação que superam os arranjos temporários. Esta
ideia ajuda a entender os diversos regimes ambientais, os quais se caracterizam
por um maior dinamismo quanto à sua estrutura de organização, da mesma
forma que alarga as potencialidades de entender o modus operandi do direito
em implementar a cooperação, pois ao focar em regras e procedimentos, torna-o
um processo, e não um dado. Para Slaughter, Tulumello e Wood (1998), esta
poderia ser justamente a maior contribuição da joint discipline: qualificar o
direito internacional como um processo de articulação político-institucional que
mobiliza peças dos tabuleiros internacionais e domésticos.
5 No original: “affect actors' expectations. Thus institutions can alter the extent to which governments expect
their present actions to affect the behavior of others on future issues”.
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Nesse sentido, para compreender os fins do direito internacional, torna-se
necessário entender a dinâmica da sua criação. Segundo Abbott (1989, 408
6
), as
lentes das RI emprestam rigor analítico a esta empreitada, visto que permitem
compreender as “condições estruturais que favorecem ou entravam a cooperação
internacional”, as “técnicas através das quais os Estados buscam alcançar
cooperação e cumprimento dos acordos, dentro das condições existentes” e
as “estratégias através das quais os Estados conseguem modificar condições
prevalentes e melhorar as possibilidades de cooperação”.
De fato, esta abordagem “realista” do direito internacional é um importante
ponto de inflexão na empreitada de uma joint discipline, pois evidencia a dimensão
doméstica tanto da cooperação quanto do direito internacional. Se o direito
internacional busca responder a problemas que surgem dentro dos Estados, há de
se entender o processo pelo qual um determinado problema, ou demanda, acaba
por se tornar pauta para a sua ação. Nessa seara, inspirados pelos elementos
descritos por Abbott (1989), pode-se utilizar do modelo formulado por Pozzatti
e Farias (2019), para pensar quais variáveis interagem na transformação da
demanda doméstica em ação do direito internacional. Para os autores,
três variáveis distintas interagem nesse processo: o problema, a solução, e a
política — ou processo político. Nessa interação, os atores são responsáveis
por perceber e interpretar um problema, e por pensar uma solução, que é
a política pública, que deverá passar por processos políticos nas instâncias
responsáveis por realizá-la (Pozzatti e Farias 2019, 367).
Estes processos políticos operam circularmente nos tabuleiros internacionais
e domésticos, razão pela qual o direito internacional passa na atualidade por
uma reorganização dos mecanismos pelos quais opera. Isso porque “se as regras
respondem a problemas concretos, e há uma nova geração de problemas mundiais
que surgem de dentro dos Estados e não da sua ação interestatal” (Pozzatti e
Farias 2019, 365), “para oferecer uma resposta eficaz a esses novos desafios, o
sistema jurídico internacional deve ser capaz de influenciar as políticas domésticas
dos Estados e aproveitar as instituições nacionais na busca de objetivos globais”
(Slaughter e Burke-White 2006, 328, tradução nossa
7
).
6 No original: “structural conditions that favor or hinder international cooperation […]; techniques by which
states seek to achieve cooperation and compliance under existing conditions […]; strategies through which
states can modify prevailing conditions and improve the possibilities for cooperation”.
7 No original: “To offer an effective response to these new challenges, the international legal system must be able
to influence the domestic policies of states and harness national institutions in pursuit of global objectives”.
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Assim, ao direito internacional que se propõe materializar políticas públicas
não compete somente a ação “inter”nacional, funcionando também como um
processo que emerge das e adentra nas questões “intra”nacionais em dois
momentos: o bottom-up e o up-down. Slaughter Tulumello e Wood (1998) afirmam
que a abordagem bottom-up complementa o foco tradicional na implementação
doméstica de regras internacionais e confronta cientistas políticos e advogados
internacionais com novos mundos para investigar. Assim, nesse primeiro momento,
o direito internacional é o
resultado da soma do problema, da solução e dos processos políticos.
Onde o problema depende dos interesses dos atores em reconhecê-los, e a
solução são as ideias dos atores para resolver um problema reconhecido,
enquanto o processo político corresponde ao crivo das ideias por um novo
grupo de interesses (Pozzatti e Farias 2019, 366).
Para os autores, “o produto dessa soma toma a forma de atos internacionais
— que apesar de dizerem muito sobre possibilidades, não são eficazes, se não
quando passam a ser parte de uma nova soma” (Pozzatti e Farias 2019, 366). Se
na dimensão bottom-up o ato internacional funciona como um input, na up-down
ele funciona como um output, já que “nesse novo cálculo, [...] o produto da soma
anterior precisa de instituições fortes. Ou seja, nela o ato internacional é fonte
de instrumentos, para que as instituições do aparelho estatal construam políticas
públicas” (Pozzatti e Farias 2019, 366). Dessa forma, o direito internacional passa
a “condicionar os países na busca de soluções para determinados problemas
comuns, através da difusão de boas práticas” (Bernardo 2016, 237).
Para entender como o direito internacional penetra a membrana estatal e se
torna efetivo, Slaughter (1993) propõe justamente entendê-lo como uma política
pública – ou pelo menos reconhecer aquele como um elemento do calculo desta
última. Assim, a materialização do conteúdo dos tratados internacionais pode
ocorrer através de “programas de ação governamental voltados à concretização
de direitos” (Bucci 2001, 13).
A aproximação do direito internacional das políticas públicas como forma de
traduzir o direito no vocábulo da política não é algo novo no campo (McDougal
e Reisman, 1980). No entanto, reconstruir empiricamente esta dinâmica importa
entender o processo pelo qual um determinado problema, ou demanda, acaba por
se tornar pauta para ação do direito internacional. Isto importa conhecer os atores
que estão atuando internacionalmente no fomento às políticas públicas locais,
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bem como os seus interesses e o processo político travado para implementar a
sua proposta de solução. Entender este diagnóstico em um contexto geográfico
e temático delimitado, importa entender quais são e de que modo determinadas
instituições estabelecem diálogo entre os níveis local e global. Isto tem demandado
cada vez mais do imaginário jurídico, já que “a ideia de que existe direito nacional
e direito internacional, direito público e direito privado, e que a ordem jurídica
é uma soma organizada dos quatro, não é mais plausível” (Kennedy 2007, 643,
tradução nossa
8
).
As intersecções entre os dois campos se expandem ainda mais a partir da
crítica construtivista, cuja abordagem considera de forma mais explícita o impacto
das normas jurídicas na determinação do comportamento dos Estados e nos
Estados (Slaughter 1993). Nesta perspectiva, o “mundo tal como o conhecemos é
artificial, ou seja, é resultado da ação dos atores” (Souza 2006, 154), de forma que
o conteúdo de categorias como direito e cooperação tem o seu conteúdo definido
a partir das ações humanas que dão significado aos mesmos. Dessa forma, os
interesses dos atores não estariam condicionados simplesmente pela estrutura,
mas seriam eles mesmos agentes na mudança das estruturas, já que “o poder e as
normas jurídicas internacionais são mutuamente constituídos” (Souza 2006, 155).
É justamente este substrato construtivista que permite Slaughter (1993, 239,
tradução nossa
9
) afirmar que “o direito informado pela política é a melhor
garantia de uma política informada pelo direito”.
A partir da perspectiva liberal, Slaughter (1993) afirma que entender as
relações funcionais entre os diferentes regimes permite entender ainda mais o
papel do direito na política internacional. Por sua vez, Rosenau (2000) argumenta
que princípios, regras e procedimentos de qualquer regime convergem para uma
issue-area. Assim, é correto afirmar que emergiram inúmeros regimes de mudanças
climáticas, o que leva Moravcsik (1997) a afirmar que regimes internacionais
que estimulam maior cooperação possuem conjunturas próprias e particulares.
Deste modo, o modus operandi desses regimes é uma variável central para a
compreensão da sua ação “intra”nacional, já que
a perspectiva liberal do direito internacional sugere que as regras e normas
internacionais são implementadas com mais eficácia como “compromissos
horizontais” aplicados pelos tribunais e parlamentos nacionais, não como
8 No original: “The idea that there is national law and international law, public law and private law, and that
the legal order is a tidy sum of the four, is no longer plausible”.
9 No original: “law informed by politics is the best guarantee of politics informed by law”.
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compromissos verticais” aplicados pelos atores supranacionais, e que
tais compromissos horizontais podem gerar impulso autossustentável ao
longo do tempo, capacitando grupos domésticos específicos (Moravcsik
1997, 537-538, tradução nossa
10
).
No entanto, a implementação dos compromissos horizontais pode esbarrar
na diferenciação funcional, visto que a proliferação dos regimes temáticos pode
aumentar as searas de conflitos entre eles (Young 2011). Isso é especialmente
visível nos regimes ambientais, os quais frequentemente entram em colisão com
regimes comerciais, por exemplo. Para dar conta dessas intersecções e conflitos,
a abordagem da governança global oferta recursos analíticos extras para pensar
a cooperação e o direito, visto que “o aumento da interdependência transforma
o modo de fazer política, bem como os atores que participam do processo
político, e que a cooperação entre os atores internacionais tem maior chance de
sucesso nesse contexto que a ação unilateral” (Gonçalves e Inoue 2017, 29). Ao
aumentar a interação, aumenta-se também a iteração, de onde advém o forte
componente normativo e transformador dessa abordagem. Nesta perspectiva,
o direito também é um aspecto constitutivo na formação dos atores e de seus
interesses, visto que, justamente devido a pluralidade de atores que participam
desse jogo, não há que se falar em interesses fixos.
Assim, o debate transdisciplinar permite pensar o direito internacional como
um ponto de inflexão entre um primeiro jogo onde ele é visto como a síntese de
um processo que institucionaliza as preferências de uma série de atores, e um
segundo jogo onde ele projeta políticas públicas para materializar o conteúdo do
primeiro. Isso importa reconhecer que “os processos de criação, interpretação e
aplicação do direito internacional têm um impacto causal próprio nas relações
internacionais, que vai além daquelas que a teoria dos regimes consegue captar”
(Slaughter, Tulumello e Wood 1998, 379, tradução nossa
11
), justamente porque
transbordam às questões temáticas.
No entanto, como “a demonstração de que ‘tudo depende da política’ não
move um centímetro em direção a uma política melhor” (Koskenniemi 2009, 08,
10 No original: “the liberal account of international law [...] suggests that international rules and norms are
most effectively implemented as ‘‘horizontal commitments’’ enforced by national courts and parliaments,
not ‘‘vertical commitments’’ enforced by supranational actors, and that such horizontal commitments can
generate self-sustaining momentum over time by empowering particular domestic groups”.
11 No original: “the process by which international law is created, interpreted and applied has a distinctive effect
on international behavior that is not fully captured by regime theory”
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tradução nossa
12
) e o nosso objetivo não é reinventar o debate transdisciplinar
dos anos 1990, cumpre buscar as lições pretendidas em um contexto espaço-
temporal bastante delimitado. É o que se fará a seguir.
Geografia da cooperação ambiental brasileira na América do Sul
Esta sessão apresenta o levantamento realizado com base nos atos
internacionais, e, por meio das dimensões geográficas dos regimes formados,
ela informa quais são os interesses brasileiros e sul-americanos em termos
de tutela do meio ambiente na região. Ressalta-se que o banco de dados que
alicerça as lições seguintes foi feito a partir de critérios específicos, e, por isso,
possui limites. A pesquisa foi realizada junto ao Portal Concórdia do Ministério
das Relações Exteriores do Brasil (MRE) com atualização até o ano de 2019.
A investigação selecionou os atos bilaterais “em vigor” firmados pelo Brasil com
todos os outros Estados sul-americanos como “Parte do Acordo”, o que resultou
em 1681 atos. A pesquisa excluiu a Guiana Francesa, visto que o processo de
adoção de atos internacionais daquele país remetia à França, e, assim, extrapolaria
a delimitação territorial proposta acima.
Para afunilar os resultados para a matéria ambiental, a investigação se guiou
pela busca de agendas específicas, visto inexistir no Portal Concórdia marcadores
pré-estabelecidos de matérias reguladas. Dessa forma, a pesquisa orientou-se
pelos marcadores expressos ao longo do corpo dos atos internacionais, a partir
dos temas/marcadores disponibilizados no portal do Ministério do Meio-Ambiente
(MMA). Isto permitiu concatenar os atos firmados em matéria ambiental com
os temas da agenda setorial do MMA, visto que após a redemocratização do
Brasil houve significativa descentralização da capacidade de formulação da
política externa. Se inicialmente ela era competência quase que exclusiva do
Itamaraty, a partir dos anos 1990 ela acolheu cada vez mais os interesses dos
diversos grupos sociais, de forma que se aproximou das políticas públicas em
diversas matérias, mimetizando muitas relações entre os níveis internacional e
doméstico (Dri 2016).
O rol de documentos selecionados versa sobre a matéria ambiental de forma
estrita e incidental, seguindo critérios propostos por Pozzatti e Farias (2019) em
estudo semelhante, na área da saúde. Os atos “estrito” são aqueles cujo objeto
12 No original: “A demonstration that ‘it all depends on politics’ does not move one inch towards a better politics”.
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central trata de matéria ambiental, enquanto os “incidentais” são aqueles cujo
núcleo de seu conteúdo não se refere ao meio ambiente, mas que, no entanto,
impactam de maneira incidental na matéria. Desse modo, foram encontrados 216
atos internacionais em vigor firmados em matéria ambiental com os países da
América do Sul, sendo 79 estritos e 137 incidentais. Os 46 ajustes complementares
que constam dentre esses 216 atos advêm de 16 acordos-quadro, os quais não são
considerados durante a classificação dos indicadores do perfil cooperacional, pois
versam apenas sobre a abertura de programas de cooperação técnica, científica
ou tecnológica, e não positivavam nada em concreto na matéria ambiental.
Em relação à distribuição geográfica da cooperação ambiental brasileira na
América do Sul, o Mapa 1 mostra que o Brasil possui acordos firmados com
todos os países do subcontinente, não havendo adensamento de acordos em
uma determinada região. O parceiro com o qual esse regime temático ganha
maior densidade é a Argentina (34 atos), seguido do Uruguai (32 atos), Colômbia
(30 atos), Peru (26 atos), Bolívia (20 atos), Venezuela (15 atos) Equador e
Paraguai (14 atos cada), Chile (13 atos) e Guiana e Suriname (09 atos cada).
Figura 1 – Distribuição geográfica (216 atos)
Fonte: Adaptado de MRE (2020).
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O grande alcance de países no processo de cooperação suscita questionamentos
acerca da predisposição brasileira ao exercício da liderança na região. Enquanto
alguns estudos, ainda que relacionados a outros temas de cooperação, apontam
entre os motivos desta projeção a possibilidade de tradução de soft-power (Dri
e Pittas 2017), outros apontam para o papel da burocracia estatal em projetar
externamente a sua capacidade de resolução de problemas (Pozzatti e Farias
2019). Ainda, existem trabalhos que justificam a cooperação pelo fato de que, “na
América do Sul, onde as guerras são raras, o poder talvez tenha um significado
mais suave do que em outros lugares, e as opções políticas podem, portanto, ser
estruturadas de maneira diferente” (Malamud 2011, 4, tradução nossa
13
). Investigar
os motivos desta cooperação, é evidente, necessitaria outras pesquisas, a partir
de outras fontes e técnicas de investigação, e foge ao escopo deste trabalho. De
qualquer forma, a intensificação da cooperação não é um fenômeno exclusivo
na América do Sul, visto que “as soluções para muitas questões atuais da
interdependência transnacional exigirão ação coletiva e cooperação internacional”
(Nye 1990, 163, tradução nossa
14
).
Quanto à dimensão temática, a análise qualitativa do acervo, sistematizada
no Gráfico 1, evidencia a existência de pelo menos 10 regimes temáticos
densos, composto de 3 ou mais atos internacionais agrupados a partir da temática
principal – ou o principal problema que eles querem resolver. Os atos que não
formaram regime, pois são únicos na temática que regulam, ou cujas disposições
não são adstritas a um regime específico ou que regulam mais de uma temática
concreta em matéria ambiental, foram agrupados em “Regimes Temáticos Plurais”.
13 No original: “In South America, where wars have been rare, power has perhaps a softer meaning than
elsewhere, and policy options may thus be framed differently”.
14 No original: “The solutions to many current issues of transnational interdependence will require collective
action and international cooperation”.
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Gráfico 1 – Regimes temáticos (216 atos)
71
40
23
21
16
13
9
8
6
3
3
3
01020304050607
08
0
Regimes Temácos Plurais
Biodiversidade
Desenvolvimento Sustentável
Recursos dricos
Acordos-Quadros
Desenvolvimento Rural
Biotecnologia
Informações Ambientais
Energias Limpas e Renováveis
Mudança do Clima
Cidades Sustentáveis
Áreas Protegidas
Fonte: Elaboração própria com base em MRE (2020).
Qualitativamente, evidencia-se a constituição de uma agenda difusa, permeada
por um prisma multifacetado de temas regulados. O regime mais robusto – que
traduz os principais problemas que os atores têm interesse em resolver – é o de
Biodiversidade (40 atos), seguido pelo de Desenvolvimento Sustentável (23 atos)
e de Recursos Hídricos (21 atos), o que era de se esperar se considerarmos que a
América do Sul é o local de maior biodiversidade e berço da maior reserva de água
potável do planeta. O que chama a atenção, no entanto, é a sobreposição destes
regimes temáticos às áreas preferenciais de interesse do MMA, evidenciando a
perspectiva bottom-up, no caso de a política externa brasileira emular políticas
do MMA, via cooperação, ou top-down, no caso de o MMA mimetizar em nível
doméstico os aprendizados de outros países. A investigação da posição do Brasil
na relação, a ser investigado na próxima sessão, ajudará a esclarecer este vetor.
Ao considerar que o maior percentual de acordos é o de “Regimes temáticos
plurais” (33% dos atos analisados) e que há prevalência de tratados incidentais
em meio ambiente (63%) pode-se concluir que a cooperação ambiental transborda
para além da issue-area. Assim, ao transbordar as questões temáticas, e, com
isso, adensar a institucionalidade, a dinâmica do direito internacional tem um
impacto causal próprio nas relações internacionais, o que parece corroborar
Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1083, 2021
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com a tese de que ele funciona como um processo, na medida em que conjuga
instrumentalismo com formalismo (Koskenniemi 2003).
Ao verificar o mimetismo da agenda do MMA com a agenda ambiental do
MRE e também o contundente transbordamento temático envolvendo a matéria
analisada, surgem alguns insights sobre o papel do direito internacional neste
processo. Ao evidenciar a fragmentação do direito internacional, a abordagem da
governança global expõe o funcionamento do enviesamento estrutural (structural
biasis), por meio da qual “a prática jurídica vem sendo fatiada em projetos
institucionais que atendem públicos especiais com interesses e princípios também
especiais” (Koskenniemi 2009, 09, tradução nossa
15
). Desta forma, “o objetivo
de criar estas instituições especializadas [ou regimes] é precisamente afetar o
outcome que está sendo produzido na esfera internacional, [já que] muito pouco
é totalmente aleatório por aí, como advogados praticantes sabem muito bem,
direcionando seus casos para as instituições onde eles podem esperar receber a
audiência mais compreensiva” (Koskenniemi 2009, 09, tradução nossa
16
).
Por sua vez, quanto à dimensão temporal do acervo de atos, o Gráfico 2
evidencia um crescimento progressivo no número de atos firmados a partir da
retomada democrática. Destaca-se que no intervalo de 1990-1999 foram firmados
48 atos e, de 2000-2009, 79 atos, o que permite afirmar que a preocupação
global com a proteção ambiental encontra consonância institucional na América
do Sul (Dubois 2009). Contudo, pode-se inferir também que a consolidação
da Onda Rosa foi um movimento significativo para a aproximação dos países
do subcontinente em diversas searas, dentre elas, a ambiental (Fonseca 2011).
Neste sentido, o aperfeiçoamento de políticas sociais e ambientais constitui
característica importante deste fenômeno.
15 No original: “legal practice is being sliced up in institutional projects that cater for special audiences with
special interests and special ethos”.
16 No original: “The point of creating such specialized institutions is precisely to affect the outcomes that are
being produced in the international world. Very little is fully random out there, as practising lawyers know
very well, directing their affairs to those institutions where they can expect to receive the most sympathetic
hearing”.
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Gráfico 2 – Data de assinatura (216 atos)
Fonte: Elaboração própria com base em MRE (2020).
O maior número de atos firmados na primeira década dos anos 2000
possui correspondência direta com o projeto de política externa instituído a
partir da eleição de Lula da Silva (Fonseca 2011). Ao passo que a conjuntura
regional propiciava maior homogeneidade no espectro político da região, outras
variáveis emergiam no cenário internacional. Assim, “se o primeiro mandato
de Lula, em 2003, começou com a afirmação da importância da América do Sul
e da região, rapidamente as relações extra-regionais se sobrepuseram a essas,
devido às vantagens que apresentavam para a afirmação internacional do Brasil”
(Fonseca 2011, 41), diminuindo progressivamente o número de atos assinados
em meio ambiente a cada ano. Mas se, até 2018, o Brasil ainda firmava atos de
cooperação em matéria ambiental, atualmente o contexto político brasileiro mudou
drasticamente. O governo Bolsonaro, a partir de 2019, desestruturou políticas
públicas de preservação da biodiversidade conduzidas pelo IBAMA e ICMBio
e perdoou diversas infrações ambientais, o que denota a pouca importância
dessa pauta no seu governo, e a correspondente indisposição em promover a
cooperação regional nessa matéria.
Esta sessão mostrou quais ideias resistiram aos embates políticos e materia-
lizaram-se em soluções para os problemas pelos quais os atores manifestaram
Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1083, 2021
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interesses. A análise da geografia evidencia que a cooperação ambiental alcança
um rol extenso de países na América do Sul, performando uma agenda difusa que
teve o seu apogeu na primeira década dos anos 2000. A próxima sessão investiga
a arquitetura desta cooperação para mensurar o padrão do seu funcionamento
e inferir o papel do direito internacional neste processo.
Arquitetura da cooperação e a possibilidade de construção de
políticas públicas
Para pensar como a cooperação internacional impacta o processo político
doméstico, e explorar o papel do direito internacional nesse percurso, é necessário
investigar o que os atores estão dispostos a aportar ao projeto cooperativo, e
pensar isto exige uma joint discipline, pois “essa abordagem rejeita a simples
dicotomia direito/poder e, ao invés disso, argumenta que regras e normas operam
mudando os interesses e, assim, remodelando os objetivos pelo qual poder é
exercido” (Slaughter, Tulumello e Wood 1998, 381, tradução nossa
17
). Dessa
forma, para construir o panorama sugerido por Abbott (1989), soma-se ao
contexto geográfico, analisado anteriormente, de onde se inferem as condições
estruturais nas quais opera o direito, a identificação das técnicas e das estratégias
implementadas pelos atores.
Para formular os indicadores da investigação qualitativa, partiu-se das
dimensões do sucesso da cooperação identificadas por Axelrod e Keohane
(1985) e dos indicadores adotados por Pozzatti e Farias (2019) para analisar a
cooperação sanitária na América do Sul, a qual também se insere no âmbito da
cooperação Sul-Sul (CSS) e difere, ao menos em tese, com a clássica cooperação
internacional para o desenvolvimento, de vetor Norte-Sul (Burges 2012). Em
função das dinâmicas dessa cooperação em setores específicos, optamos pelos
seguintes indicadores, que também são claros marcadores de horizontalidade:
“distribuição dos encargos financeiros”, “posição na relação”, “consenso na
publicidade” e “formas de avaliação”. Estes indicadores permitem inferir sobre
a circularidade entre instrumentalismo e formalismo que caracteriza o direito
internacional entendido como um processo de articulação entre as esferas
domésticas e internacionais (Koskenniemi 2003).
17 No original: “This approach rejects a simple law/power dichotomy, arguing instead that legal rules and norms
operate by changing interests and thus reshaping the purposes for which power is exercised”.
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A partir da “aldeia” delimitada na sessão anterior, fez-se um recorte dos 79
atos estritos em matéria ambiental para, através da analise qualitativa dos mesmos,
tirar algumas lições sobre este processo. O primeiro indicador diz respeito à
“distribuição dos encargos financeiros”, o qual, para Axelrod e Keohane (1985),
é central para a consolidação da cooperação, o que parece ser especialmente
decisivo no contexto Sul-Sul, em que um Estado dificilmente tem condições de
arcar sozinho com os custos da cooperação. A analise qualitativa verificou que
35 atos dispõem de uma divisão expressa de custos, ao passo que 44 deles não
versam acerca dessa divisão ou expressamente se isentam mutuamente destes
custos. Cabe destacar que nenhum dos atos analisados dispunha de um Estado
como único ou principal fonte de financiamento, o que sugere que a estrutura
de pagamento se insere em uma lógica de CSS, atendendo ao princípio de
horizontalidade. Ainda, a não existência de uma política de paymaster em meio-
ambiente encontra-se em consonância com o standard da cooperação brasileira
em matéria sanitária para a região (Pozzatti e Farias 2019).
O desempenho ou não da função de paymaster também se relaciona com
o papel dos atores no que tange à “posição na relação”, indicador que ajuda a
compreender se há horizontalidade no projeto cooperacional ou se, por outro
lado, há agentes capacitantes e agentes capacitados. Dos 79 atos analisados,
09 deles preveem atividades de capacitação em conjunto, 33 positivam o Brasil
como agente capacitante e em nenhum deles o Brasil ocupa o papel de agente
capacitado. Ademais, 37 atos não preveem qualquer ação de capacitação ou não
há qualquer informação sobre posição na relação. Dessa forma, ainda que não
se possa ignorar certa horizontalidade, os resultados evidenciam uma liderança
técnica do Brasil na matéria ambiental. Para Schmitz e Rocha (2017), tal posição
é representativa de uma tentativa de protagonismo do país:
O Brasil é um importante ator no processo de adensamento e reformulação
de políticas de governança global. O país não possui capacidade material
ou vontade política para fazer valer suas posições na cena global. Vale-se,
no entanto, com bastante recorrência, de sua habilidade como ator político
de influenciar indiretamente o comportamento ou os interesses de outros
atores da comunidade por meios culturais ou ideológicos. Adensar, fortalecer,
reformar e traçar uma melhor inserção nos processos de governança global
devem ser uma prioridade (Schmitz e Rocha 2017, 19).
É importante conceber a inter-relação entre os dois marcadores previamente
analisados: ao passo que o Brasil exerce certa liderança técnica nos atos de
Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
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meio-ambiente através de uma posição de agente capacitador, não dispõe de
uma política de paymaster nestes projetos. Esses dados sugerem que o Brasil se
compromete com a cooperação na região na medida em que isso não envolve
alocação de recursos financeiros. As evidências sugerem estar correta a ideia de
que “ao jogar a carta regional para alcançar objetivos globais, o Brasil acabou em
uma situação inesperada: enquanto sua liderança regional cresce no papel, na
prática encontra uma resistência crescente” (Malamud 2011, 19, tradução nossa
18
).
Ainda quanto aos dois primeiros marcadores, foi verificado que em diversos
atos as partes referem-se mutuamente como parceiros, e não como doador e
receptor. A percepção dos atores em relação à reciprocidade e horizontalidade
dos outros possui uma centralidade para o seu compromisso na cooperação,
de forma que não somente os fatores práticos, mas também os subjetivos, têm
importância (Axelrod e Keohane 1985). A reciprocidade ocupa um papel central na
promoção da aproximação entre os atores, o que indica uma possível prevalência
de sucesso na cooperação bilateral, objeto desta investigação empírica.
Uma análise qualitativa das posições na relação previstas nos atos evidencia
que o fortalecimento institucional é objeto preferencial desta cooperação
ambiental, atravessando os diversos regimes temáticos. É expressivo o número de
Ajustes Complementares cujo objetivo é “fortalecer”
19
diversos órgãos nacionais
responsáveis pela tutela ambiental ou o “desenvolvimento de capacidades”
20
locais.
Dessa forma, não é incorreto afirmar que a cooperação analisada é arquitetada
de forma a estruturar sistemas conjuntos de proteção ambiental (envolvendo
política pública transnacional) e, em algum grau, capacitar os sistemas nacionais
dos países envolvidos (emulando políticas públicas locais).
Em relação ao espaço geográfico em que o Brasil atua como agente capacitante,
uma analise interseccional dos dados revela que dos 33 atos em que o Brasil é
agente capacitante, a América Andina é o foco de 64% deles, o Suriname e a
Guiana juntos concentram 24%, enquanto o Cone-Sul concentra os outros 12%.
18 Do original: By playing the regional card to achieve global aims, Brazil has ended up in an unexpected
situation: while its regional leadership has grown on paper, in practice it has met growing resistance.
19 Por exemplo, o “Ajuste Complementar ao Acordo Básico de Cooperação Técnica entre o Brasil e o Equador
para implementação do Projeto Apoio a criação de um sistema de informação nacional de recursos hídricos
florestais”, firmado em 18/02/2011, tem por finalidade “fortalecer a Secretaria Nacional das Águas equatoriana,
por meio de cursos de capacitação para o desenvolvimento de pesquisas em hidrologia florestal e para a
implementação de um Sistema de Informação Nacional de Recursos Hídricos” (MRE 2020).
20 Por exemplo, o “Ajuste Complementar ao Acordo de Cooperação Técnica entre o Brasil e a Argentina para
implementação do projeto “Desenvolvimento de capacidades na área de gestão de recursos hídricos”, firmado
em 21/02/2008 (MRE 2020).
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Em relação ao período, dos 33 atos, a maior parte foi firmada entre 2000-2009
(22 atos) e entre 2009-2018 (10 atos). No que se refere a capacitação mútua, o
Cone-Sul representa 67% dos atos que vislumbram este marcador, em que pese
componha 39% dos atos em relação ao total de atos estritos. Dos 09 atos nos quais
há capacitação mútua, 4 são com a Argentina, 2 com o Peru, 2 com o Uruguai e
1 com a Bolívia.
A proeminência na cooperação para fortalecimento institucional (42 atos)
sugere a existência de uma cooperação estruturante em matéria ambiental. Este
conceito deriva da experiência da cooperação em saúde, através de bases comuns
que fomentavam uma interação horizontal entre os atores, “no panorama do
que hoje vem sendo apli cado como capacity building por estar direciona da para
o treinamento de recursos humanos e a construção de capacidades” (Ferreira e
Fonseca 2017, 2130). A existência deste fenômeno revela a forma como o direito
internacional, ao institucionalizar a cooperação estruturante, pode impulsionar
políticas públicas locais, já que:
mais que oferecer assessorias diretas por especialistas estrangeiros ou trocas
de ‘experiên cias’ e ‘boas práticas’, implica no esforço dos res ponsáveis
locais, para que, com possível orienta ção externa, possam participar no
processo de in trodução das transformações necessárias para o aprimoramento
pretendido (Ferreira e Fonseca 2017, 2131).
A avaliação deste aprimoramento, no entanto, fica prejudicada quando
analisada a “forma de avaliação” das atividades da cooperação, as quais podem
ser atividades de monitoramento ou de avaliação. Do acervo, 39 atos preveem
avaliações não periódicas e apenas 10 deles referem-se a avaliações periódicas
(monitoramento). Ainda, 30 atos não fazem qualquer referência a estes mecanismos.
Tal indicador evidencia o reduzido nível de acompanhamento das atividades
e suscita o questionamento sobre de que maneira a cooperação internacional
pode ser efetiva e projetar sombra para o futuro se não há uma metodologia
aplicada à avaliação.
Por fim, o último indicador analisado diz respeito ao “consenso na publicidade”
dos relatórios de avaliação das atividades decorrentes do ato internacional, e
informa sobre a transparência dos atores envolvidos em evidenciar os seus
interesses visíveis na empreitada cooperacional. Em 44 atos consta a previsão do
consenso ao passo de que 35 não contêm informações relativas a este indicador,
permitindo às partes a ampla e livre divulgação de quaisquer resultados e para
Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
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qualquer fim. Em que pese haja preponderância de horizontalidade, o que
impacta positivamente na percepção dos atores sobre a mutualidade dos interesses
também nas estratégias de comunicação, é considerável o número de atos que
não investem em estratégias para regular este indicador. O Gráfico 3 sintetiza
os resultados do levantamento realizado.
Gráfico 3 – Indicadores de horizontalidade (79 atos)
Fonte: Elaboração própria com base em MRE (2020).
Pelos dados produzidos, é possível traçar a arquitetura da cooperação ambiental
brasileira na América do Sul. Apesar da proeminência de horizontalidade, o que
indica a solidez das empreitadas de construção de políticas públicas transversais e,
talvez, a transferência delas por parte do Brasil, a baixa incidência de mecanismos
de monitoramento poderia sugerir que a cooperação seria altamente retórica. Ainda,
cerca de 43% dos atos preveem o Brasil como agente capacitante, evidenciando
o seu possível papel em emular políticas públicas na região, ao mesmo tempo
que o Brasil não exerce a política de paymaster na região.
Ao constatar a grande incidência de atos que envolvem capacitação (seja
unilateral ou mútua), e, portanto, contribuem com o fortalecimento institucional,
Geografia e arquitetura institucional da cooperacão ambiental brasileira na América do Sul
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verifica-se que a cooperação ambiental tem significativo perfil estruturante.
Isso encontra respaldo em outras pesquisas feitas em outros setores, as quais
constatam que CSS brasileira não se baseia em vastas doações de recursos
financeiros, mas na transferência de um conjunto de conhecimentos e soluções
técnicas que tiveram um impacto positivo no desenvolvimento brasileiro e que
podem ser replicados em países com desafios semelhantes (Pozzatti e Farias
2019). Assim, pode-se inferir que a cooperação opera mudanças institucionais
nos Estados envolvidos, as quais podem repercutir no aprimoramento de políticas
públicas locais. Para Burges,
O elemento interessante da cooperação Sul-Sul é que em vários casos as
agências que costumavam coordenar os fluxos de entrada da cooperação
para o desenvolvimento estão agora sendo utilizadas para organizar as
saídas. Em alguns casos, isso significou apenas pequenas mudanças
institucionais, muitas vezes dentro dos Ministérios das Relações Exteriores,
mas em outros, resultou em um fortalecimento significativo das instituições
internacionais de cooperação e na discussão do estabelecimento de agências
de desenvolvimento permanentes [...] (Burges 2012, 249).
Dessa forma, as instituições que antigamente operavam basicamente o output
dos processos políticos cujo input era performado no Norte global, hoje estão
elas mesmo jogando os dois jogos (Pozzatti e Farias 2019). E isso é revolucionário
porque o resultado advindo das mudanças na atuação do direito internacional na
contemporaneidade – nas fronteiras entre as esferas doméstica e internacional,
que agora se cruzam e até conflitam – “será jogos de dois níveis cada vez mais
elaborados, mas cada jogo permanecerá em seu próprio tabuleiro, não importando
o quão complexos e densos sejam os elos entre eles” (Slaughter e Burke-White
2006, 350, tradução nossa
21
).
Deste modo, constata-se que a cooperação é um elemento chave para a
proteção ambiental, visto que o direito internacional que a operacionaliza, ao
estruturar os regimes protetivos do meio ambiente, tem uma dupla função:
internacional e intranacional. Pela perspectiva “inter”nacional o direito tutela
os interesses preponderantes dos atores públicos e privados desta esfera, bem
como sintetiza a mutualidade de interesses acerca de como é possível mobilizar
a organização social e política para tratar das questões que ele ilumina. Por sua
21 No original: “Will be ever more elaborate two-level games, but each game will remain on its own board, no
matter how complex and dense the links between them”.
Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1083, 2021
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vez, na perspectiva “intra”estatal o direito projeta a construção ou a melhora de
políticas públicas locais para dar viabilidade aos valores e interesses tutelados
pelos acordos.
A partir da substancial horizontalidade que caracteriza o regime analisado,
percebe-se que a cooperação internacional em setores específicos contribui com
o enviesamento estrutural, o que é exatamente a função do direito internacional
entendido a partir da joint discipline. Nesta perspectiva, ele não exerce uma
função gerencial, pois não vem de cima e constrange os Estados. Ao contrário,
participando do enviesamento estrutural, o direito internacional se torna um
processo de articulação das condições de possibilidade de conciliação dos interesses
dos diversos atores envolvidos. Por isso, os indicadores de horizontalidade dizem
muito sobre a sua possibilidade de atuar como um processo que, ao mesmo
tempo que é uma ferramenta do poder, cria e delimita poder (Koskenniemi 2003).
Assim, o direito internacional tende a ser mais efetivo quanto mais for capaz de
operacionalizar a mutualidade de interesses dos atores envolvidos.
Contudo, é preciso avançar no que tange ao acesso das informações dos
atos internacionais firmados pelo Brasil. Mesmo que o Portal Concórdia possua
um acervo significativo de acordos em sua base de dados, o mesmo apresenta
classificações temáticas inadequadas. Ademais, a indisponibilidade de informações
relativas aos projetos de execução firmados pelos Estados no âmbito desses
acordos constitui-se um entrave para o aprofundamento da investigação. Uma
eventual avaliação dos impactos últimos desses atos internacionais na execução de
políticas públicas necessitaria destas outras fontes ou de relatórios de resultados,
além, é evidente, do uso de metodologias de pesquisa distintas da documental,
como as entrevistas.
Conclusão
Uma joint discipline surge quando há a formação de um campo de
conhecimento novo, a partir da superação dos níveis da interdisciplinaridade.
Nesse sentido, ao transpassar as disciplinas de RI e DI, o estudo da geografia
e da arquitetura da cooperação ambiental brasileira na América do Sul a partir
das evidências do direito internacional, e justamente inquirindo o seu papel
neste processo, é uma empreitada para o qual a transdisciplinaridade pode ser
invocada. A abordagem aqui proposta não transpôs simplesmente os resultados
Geografia e arquitetura institucional da cooperacão ambiental brasileira na América do Sul
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1083, 2021
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da disciplina legal ou política para o outro lado, ou traduziu os seus vocábulos
e métodos. Ao contrário, o diagnóstico proposto só foi possível a partir do
abandono da ideia de que existem lados (e, portanto, disciplinas primárias) e
que a governança ambiental regional possível (e positivada nos atos) é fruto de
uma circularidade constitutiva que agrega dimensões legais e políticas.
Assim, o panorama proposto por Abbott (1989) foi desdobrado no estudo
da geografia e da arquitetura da cooperação, o que nos permitiu diagnosticar,
respectivamente, as condições estruturais que favorecem ou entravam a cooperação
internacional e as técnicas usadas pelos atores para alcançar a cooperação e as
estratégias para modificar condições prevalentes. A partir dessa dupla dimensão,
foram apreendidas algumas lições de como o direito internacional opera para,
através da cooperação internacional, fomentar políticas públicas.
A análise quantitativa da geografia cooperacional evidenciou que ela alcança
todos os países da América do Sul, performando uma agenda difusa que teve o seu
apogeu na primeira década dos anos 2000. Os 216 atos analisados materializam
10 regimes temáticos densos dentro da matéria ambiental, o que sugere forte
demanda por políticas públicas regionais. Somando-se isso ao mimetismo
verificado entre estes regimes e a agenda do MMA, infere-se que cada ato é a
síntese, ou o input, do embate político travado pelos diversos grupos sociais
preocupados com o tema em voga. Assim, a cooperação internacional emerge
como importante mecanismo de articulação entre os interesses congruentes dos
atores subnacionais em questão.
O exame da arquitetura da cooperação permitiu a identificação das técnicas e
estratégias utilizadas pelos atores de como implementar o que foi positivado. Dos
79 atos submetidos à investigação qualitativa, em 35 deles há uma distribuição
horizontal dos encargos financeiros, ao passo que em 33 atos há a presença do
Brasil como agente capacitante. No entanto, se é verdade que o Brasil exerce
certa liderança técnica nos atos de meio-ambiente, o país não dispõe de uma
política de paymaster nestes projetos, o que sugere relevante horizontalidade
na empreitada cooperacional. Ainda, 49 atos preveem expressamente formas de
avaliação e monitoramento e em 44 deles há previsão do consenso na publicidade
destes relatórios, o que acentua a horizontalidade do perfil cooperacional.
Somando as duas dimensões, infere-se que o direito internacional fomenta
– através da cooperação – políticas públicas, na medida que ele se coloca como
um processo que articula o input e o output. Dessa forma, para além de ser
simples objeto de estudo da ciência política, ele desempenha importante papel
Ademar Pozzatti; Henrique Rogovschi
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1083, 2021
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normativo, com forte potencial transformador da realidade social. Os resultados da
investigação sugerem que o direito internacional opera políticas públicas na medida
que atua como um processo circular que agrega as dimensões “inter”nacional e
“intra”nacional, as quais pavimentam o caminho para a efetivação de um direito,
“desde o seu nascimento, quando é previsto na norma, até a sua emancipação,
quando é encartado em determinado programa de ação de um governo e passa
a integrar medidas de execução” (Bucci 2001, 12).
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