
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 3, 2020, p. 105-128
Roberta Cerqueira Reis
113
genocídio sejam evitados e que, se ocorrerem, seus autores não fiquem
impunes. Esse interesse comum implica que tais obrigações dizem respeito
a qualquer Estado em relação a todas as demais partes na Convenção.
A decisão da Corte sobre as obrigações erga omnes, oponíveis indivisivelmente
a todos os atores por protegerem valores por eles compartilhados, a aproxima do
conceito de “comunidade internacional” trazido por Buzan (2004). As expectativas,
direitos e obrigações que emergem dessa “comunidade”, por sua vez, foram
influenciados pela ordem do pós-Segunda Guerra e o processo de internacionalização
dos Direitos Humanos, que deu voz a indivíduos e grupos sociais, inserindo suas
demandas na agenda internacional. (Weiss e Forsythe 2014; Weiss e Daws 2018).
A liberdade irrestrita dos Estados e o seu descompromisso com a proteção de
suas próprias populações levou a humanidade a alguns de seus piores momentos
no início do século XX. A ordem internacional pós-1945, por sua vez, atrelou a
estabilidade do sistema a um conjunto de normas que limitam os poderes estatais,
estabelecendo parâmetros para comportamentos legítimos e aceitáveis. Temos,
nesse sentido, uma espécie de ordem pública internacional
25
que se coloca como
limite à liberdade irrestrita (e, por vezes, criminosa) dos Estados. (Weatherall 2017)
Os comportamentos dos Estados precisam estar de acordo com essas normas
26
para terem legitimidade (Duffield 2007). Em um sistema internacional erguido das
cinzas do Holocausto, é ilegítimo e inaceitável que um Estado, por exemplo, trafique
escravos ou cometa genocídio. Houve um tempo em que o Direito Internacional
encontrava validade na simples vontade estatal
27
, porém, o século XX viria a
demonstrar que o Estado possui amarras postas pelos valores compartilhados no
sistema internacional. As normas que representam esses valores são imperativas
e cogentes (jus cogens), irrevogáveis pela mera vontade estatal. No século XXI,
de fato, “a nenhum Estado é dado considerar-se acima do direito internacional.”
(Cançado Trindade 2004, 35)
25 Ordem pública é um conceito no Direito que denota os valores e interesses de uma sociedade capazes de
restringir a autonomia da vontade dos indivíduos. No direito dos contratos, por exemplo, as partes possuem
autonomia contratual (voluntarismo), contudo, essa liberdade não pode ferir a “ordem pública”. Os interesses
mais importantes da coletividade não podem ser suplantados pela vontade de um particular. (Weatherall 2017)
26 “Normas” contemplam um conjunto de expectativas, entendimentos e padrões de conduta construídos
intersubjetivamente entre os atores. (Duffield 2007)
27 É bom lembrar que as correntes mainstream do Direito Internacional, popularizadas no decorrer do século XIX,
reafirmavam a visão de que o Direito era fruto da vontade estatal (Neff 2014). O voluntarismo jurídico reforçava a
lógica de que a verdadeira ciência do Direito se expressava na dinâmica das relações entre Estados, não havendo
espaço para considerações sobre as relações que esses Estados mantinham com suas populações civis.