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80 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
Democracia cercada. Uma análise sobre os muros
de fronteira com base no “paradoxo da
legitimidade democrática” de Seyla Benhabib
Fenced democracy. A border walls analysis based on
Seyla Benhabib’s “paradox of democratic legitimacy”
DOI: 10.21530/ci.v15n1.2020.1001
Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
1
Resumo
Este artigo analisa os processos de cercamento de fronteiras estatais nos últimos trinta
anos, de modo a compreender em que medida eles integram uma dinâmica contraditória
própria da democracia liberal, acentuada a partir dos impactos que a interconexão entre
os sistemas políticos, sociais, culturais e econômicos, proporcionada pela globalização,
impuseram ao Estado-nação. O texto está redigido em duas seções, sendo a primeira
dedicada à exposição sobre os processos de cercamento físico de fronteira a partir de
1989. A análise desenvolvida na primeira seção acentua o aumento numérico e a mudança
de funcionalidade dos muros de fronteira como aspectos contraditórios à concepção de
globalização cosmopolita. A segunda seção se apropria da ideia de paradoxo da legitimidade
democrática, de Seyla Benhabib, para desenvolver a abordagem teórico-analítica acerca dos
efeitos da globalização sobre o modelo do Estado soberano vestifaliano, relação essa que
permite compreender não só a dinâmica de cercamentos como aspectos não explícitos da
própria globalização.
Palavras-chave: Democracia; Muros de fronteira; Globalização; Soberania.
1 Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia. Doutorando em Ciências Sociais pela
Universidade Federal da Bahia na Linha Democracia, Estado e Movimentos Sociais, Eixo temático: Democracia
Contemporânea, Globalização, Movimentos Sociais e Contestações Políticas. Integra atualmente o Grupo de
pesquisa Territórios, Poder e Desigualdades Sociais do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH/Ufba).
Pesquisador no Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa: SSEETU — Sociedade Solidária, Educação, Espaço
e Turismo, do(a) Universidade do Estado da Bahia, na linha de pesquisa em Mobilidades, Fronteiras, Fluxos e
Comunidades: Identidades, Diversidade e Hospitalidade. Bolsista FAPESB — Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado da Bahia. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2969-335X; email: ricardogesteira@hotmail.com
Artigo submetido em 13/09/2019 e aprovado em 25/11/2019.
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Abstract
The article aims to analyse the state border fencing processes over the last thirty years
in order to understand how they integrate a contradictory dynamic of liberal democracy,
enhanced by impacts that the interconnection between the political, social, cultural and
economic systems arising from globalization were imposed to the nation state. The text is
presented in two sections, the first dedicated to expose a brief analysis of physical border
fencing processes since 1989. The analysis of the first section proposes to emphasize the
numerical increase and the change in functionality of boundary walls as contradictory aspects
to the conception of cosmopolitan globalization. In the second section, the article uses Seyla
Benhabib’s idea of the paradox of democratic legitimacy to develop a theoretical-analytical
approach to the effects of globalization on the westphalian sovereign state, a relation that
allows to understand not only the dynamics of enclosures but also non-explicit aspects of
globalization itself.
Keywords: Democracy; Border walls; Globalization; Sovereignty.
Introdução
Os últimos anos têm testemunhado aumento nos discursos, movimentos e
experimentos de governos alegadamente nacionalistas — muitas vezes xenofóbicos
— em uma dimensão que já pode ser classificada como global. Uma das
características comumente associada a esse nacionalismo contemporâneo se
concretizaria na defesa de práticas de fechamento territorial dos limites geográficos
dos países, explicitados de modo flagrante pela criação de barreiras físicas à
circulação de pessoas. Em certa medida, a consolidação dessa dinâmica contraria
as expectativas depositadas na globalização, mais especificamente a concepção
normativa de uma globalização cosmopolita, que supõe agregação pacífica entre
os povos, na constituição ideal de uma “sociedade global”.
Não existe consenso conceitual acerca da globalização, que compreende
múltiplos eventos e fenômenos que transitam desde a informática à política,
passando pelas finanças e economia em geral. Assim, seria mais apropriado falar
em globalizações, ou tratar de seus aspectos mediante adjetivações — globalização
econômica, política, cultural, legislativa etc. A existência de divergências relevantes
sobre o conceito de globalização, bem como sobre as ferramentas teóricas para
sua melhor compreensão, não impede que se identifiquem pontos de inegável
convergência. Dentre eles, Robinson (2004) destaca que as duas últimas décadas
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82 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
do Século XX foram marcadas por transformações em ao menos duas dimensões
da vida social: uma dimensão objetiva, caracterizada pelo crescimento da
conectividade mundial entre pessoas e países; e uma dimensão subjetiva,
consistente no reconhecimento mundial dessa conectividade. Essas dimensões
podem ser sintetizadas na compreensão de processos combinados de “compressão
do espaço-tempo” (Harvey 2008).
O que se trata aqui por concepção normativa de uma globalização cosmopolita,
diz respeito às perspectivas que, como destacam Villa e Tostes (2006, 81), a
partir da década de 1980, vislumbraram na globalização um fenômeno capaz de
gerar o “[...] esgarçamento das fronteiras (de comunicação, de bens de capital,
de poder)” com potencial de agregação pacífica entre povos. Tais posições se
pautaram por eventos concretos registrados nas décadas seguintes ao colapso da
União Soviética, dentre os quais se destacam a proeminência das organizações
internacionais, bem como um resgate da concepção kantiana de cosmopolitismo,
a partir da elaboração de uma agenda de Direitos Humanos, que reforçou a crença
na viabilidade de um projeto de construção de uma sociedade global (Kaldor
2005). Assim, as mudanças remetiam às ideias de livre circulação de pessoas, bens,
serviços, mercadorias, conhecimento e capital, ou seja, ao ideal de constituição de
uma sociedade mundial, que seria o referente do próprio conceito de globalização
(Rosenberg 2005).
Nos termos de Ivo (1996), uma das dimensões fundamentais para compreensão
da globalização consiste no reconhecimento de sua contribuição para configuração
de um “sistema de acumulação internacional, hegemonizado pelo capital financeiro
internacional” (17/18). No entanto a autora destaca temporalidades e ritmos
distintos entre o avanço técnico e as capacidades sociais entre países que podem
resultar em processos de assimetria e dominação. No campo da vida social e
política Ivo considera ainda que a globalização é constitutiva de uma:
[...] “representação cognitiva acêntrica da sociedade, que orienta crenças
(favoráveis ou desfavoráveis) atuando como guia na ação dos atores sociais,
governos e instâncias políticas internacionais. Enquanto crença favorável
— pensamento dominante — esta idéia leva à ilusão da eqüidade (sic!)
das trocas entre blocos e a uma suposta democratização das oportunidades
entre países e segmentos sociais, pelo acesso fácil à informação globalizada”
(Ivo 1996, 18, grifos no original).
Nesse sentido, Bartelson (2000) sustenta que a globalização não pode ser
compreendida como fenômeno unidimensional, como processo linear que conduz
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ao encurtamento das distâncias do mundo e contribui para a constituição de
uma sociedade cosmopolita global. Ao contrário, sua compreensão pressupõe
o reconhecimento de suas contradições. Um elemento de análise que notabiliza
algumas dessas contradições são os muros
2
de fronteiras, que não só aumentaram
significativamente após a desconstrução do muro de Berlim, como também se
configuraram dotados de nova funcionalidade.
Quais razões explicariam a intensificação das medidas de cercamento
de fronteiras no contexto de expansão dos processos de globalização? Seria
razoável atribuir essa dinâmica a um novo e controverso contexto da relação
entre globalização e o estado nação? Qualquer tentativa de resposta pressupõe
a compreensão da dinâmica de cercamentos físicos de fronteiras a partir de um
recorte temporal mais amplo, que abarque, ao menos, o que se convencionou
denominar de Era da Globalização.
3
Ainda que nos detenhamos somente no
aumento numérico, quando isolamos processos de cercamento físico de fronteiras
para fins de análise, chama atenção o fato de que, desde 1989, ano da queda do
muro de Berlim, o número de muros separando países ao redor do mundo cresceu
consideravelmente, o que induz a questionar a caracterização dessa dinâmica
como pura e simplesmente resultado de um elemento tipificador de governos
antidemocráticos contemporâneos.
O presente artigo tem por objetivo, portanto, analisar e explicitar em que
medida as práticas de cercamento e de caracterização de um “outro” não cidadão
compõem uma dinâmica contraditória de delimitação de espaços políticos própria
da democracia liberal, acentuada justamente durante os últimos trinta anos, que
coincidem com o que se convencionou denominar de Era de Globalização. O
artigo está dividido em duas seções. Na primeira, faz-se uma breve análise sobre
os processos de cercamento físico de fronteira a partir de 1989 aos dias atuais, de
modo a acentuar alguns aspectos contraditórios relativos ao aumento numérico
2 Embora parte da doutrina distinga conceitualmente as barreiras físicas de fronteira entre muros, cercas e mesmo
virtual walls, nesse artigo trataremos indistintamente como “muros” toda e qualquer barreira física de fronteira
construída pela ação humana, com técnicas de fortificação ou assemelhadas, que se constituam em elemento
de restrição de mobilidade entre Estados. Essa opção assume um propósito retórico e denunciativo, uma vez
que a denominação oficial atribuída a muitas das barreiras físicas de fronteira atuais evidenciam o intuito de
dissimular sua real função, como destaca Brown (2010, 80) a respeito da “security fence” de Israel, da “border
marker” estadunidense e mesmo das “peace lines” da Irlanda do Norte.
3 Delimita-se como “Era da Globalização”, na presente análise, o período que compreende de 1989 às décadas
seguintes, marcado pela gama de processos políticos, sociais, culturais, tecnológicos e econômicos que embora
mais acentuados a partir do colapso da União Soviética, demarcam o avanço global das políticas encetadas pelo
Reaganomics e Thatcherism já a partir de 1970.
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84 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
e à mudança de funcionalidade dos muros no recorte temporal selecionado; em
seguida o texto apresenta uma abordagem teórico-analítica acerca dos efeitos da
globalização sobre o modelo do Estado soberano vestifaliano e discute como tal
relação pode contribuir para a compreensão do processo de intensificação dos
cercamentos registrado nos últimos trinta anos.
A edificação dos muros de fronteira nos últimos 30 anos:
breve síntese
Na afirmação de Kolossov (2012, 27), o processo de reerguimento de barreiras
físicas de fronteira é, acima de tudo, resultado de uma decisão política. Esse
processo, que remonta a meados dos anos 1980, tem se mostrado repleto de
contradições e, em relevante medida, acentua uma desconexão em relação às
expectativas de liberdade de fluxo de pessoas e mobilidade idealizadas a partir
da globalização. Como se pode observar no Quadro1, abaixo, dos 73 muros de
fronteira construídos entre 1945 e 2019, apenas 17 o foram antes de 1990 — período
que compreende os 45 anos posteriores à Segunda Guerra Mundial e a chamada
Guerra Fria. Todos os demais 56 novos muros foram erguidos justamente entre 1991
e 2019. Atualmente são 67 barreiras físicas separando países pelo globo (Vernon
e Zimmermann 2019). Não obstante se deva reconhecer que alguns muros de
fronteira, embora levantados fisicamente há pouco tempo, simbolizam conflitos
e questões históricas de longa data, em sua grande maioria eles evidenciam,
de modo bastante claro, que a globalização tem se pautado por um caráter
estritamente comercial e econômico, enquanto se mostra bastante restritiva
quanto ao fluxo e à integração de pessoas. O papel desempenhado pelo Ocidente,
mais especificamente pelos Estados Unidos e pela União Europeia, mostra-se
determinante na caracterização desse processo contraditório de intensificação
dos cercamentos.
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85Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
Quadro 1 — Fortificações de Fronteiras construídas de 1945 a 2019
Países
Data aproximada
de construção
1 França (Argélia) — Tunísia 1957
ANTES
DE 1990
5 Alemanha Oriental — Alemanha Ocidental; Hungria — Austria; Checoslováquia —
Alemanha Ocidental; Rússia/URSS — Finlândia; Rússia/URSS — Noruega
1960
1 Cuba — EUA (Guantánamo) 1961
1 Hong Kong — China 1962
1 Israel — Síria 1973
1 Chipre — Chipre do Norte 1974
1 África do Sul — Moçanbique 1975
1 Israel — Líbano 1976
1 Coreia do Norte — Coreia do Sul 1977
1 Tailândia — Malásia 1978
1 Marrocos — Saara Ocidental 1980
1 África do Sul — Zimbábue 1984
1 Índia — Paquistão 1988
1 EUA — México 1993
ENTRE
1990 E
2001
4 Índia — Bangladesh; Israel — Gaza; Kuwait — Iraque; Usbequistão — Afeganistão 1994
1 Espanha — Marrocos/Ceuta 1995
1 Espanha — Marrocos/Melilla 1998
1 Usbequistão — Quirguistão 1999
1 Turquemenistão — Usbequistão 2001
1 Israel — Cisjordânia 2002
APÓS
2001
3 Botsuana — Zimbábue; Irã — Afeganistão; Arábia Saudita — Iéman 2003
2 Índia — Myanmar; Lituânia — Bielorrússia 2004
3 Brunei — Malásia; Emirados Árabes — Omã; Emirados Árabes — Arábia Saudita 2005
2 Cazaquistão — Usbequistão; Arábia Saudita — Iraque 2006
2 Irã — Iraque; Irã — Paquistão 2007
3 Jordânia — Iraque; Joradânia — Síria; Rússia — Geórgia 2008
2 Egito — Gaza; Myammar — Bangladesh 2009
2 Israel — Egito; Cazaquistão — Quirguistão 2010
1 China — Coreia do Norte 2011
1 Grécia — Turquia 2012
1 Bulgária — Turquia 2013
4 Argélia — Marrocos; Omã — Iémen; Turquia — Síria; Turquemenistão — Afeganistão 2014
12 Áustria — Eslovênia; Azerbaijão — Armênia; Hungria — Croácia; Hungria —
Sérvia; Quirguis
2015
3 Israel — Jordânia; Noruega — Rússia; Tunísia — Líbia 2016
4 Estônia — Rússia; Lituânia — Rússia; Paquistão — Afeganistão; Turquia — Irã 2017
1 Iraque — Sìria 2018
Fontes: Elaboração própria com base em Hassner e Wittenberg (2015); Vernon e Zimmermann (2019)
4
4 Em 1989 foram demolidos os muros da Alemanha Oriental — Alemanha Ocidental; Hungria — Áustria;
Checoslováquia — Alemanha Ocidental. Em 1992 os da Rússia/URSS — Finlândia e Rússia/URSS — Noruega.
O muro entre Argélia e Tunísia, conhecido como Linha Morice foi formalmente desativado em 2017.
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86 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
Uma abordagem retrospectiva dos processos de construção e edificação de
muros não pode desprezar a relevância do evento de 11 de setembro de 2001,
especialmente para o contexto estadunidense, que deflagrou políticas antiterroristas
que implicaram controle mais severo de fronteiras. A curva do Gráfico 1 explicita
essa expressiva aceleração do número de muros após 2001. Todavia, como esclarece
Kolossov (2012, 28), embora esse episódio tenha representado elemento relevante
dessa aceleração, a construção dos muros não pode ser reduzida a este ponto
de partida, tampouco ele explica as contradições presentes nesse processo que,
mesmo no caso estadunidense, originam-se desde o final dos anos 1980.
Gráfico 1 — Evolução do número de muros de fronteira de 1945 a 2019
11 de Setembro
Queda do Muro de Berlim
70
60
50
40
30
20
10
0
1957
1960
1963
1966
1969
1972
1975
1978
1981
1984
1987
1990
1993
1996
1999
2002
2005
2008
2011
2014
2017
Fontes: Elaboração própria com base em Hassner e Wittenberg (2015); Vernon e Zimmermann (2019).
O ex-presidente estadunidense Ronald Reagan, que em 1987 discursava
perante o portão de Brandemburgo sobre a necessidade de derrubada do muro
de Berlim, argumentando que essa questão concernia a toda humanidade; que
congratulava a mudança e a abertura, afirmando a crença de que liberdade e
segurança caminham juntas; que asseverou que todo avanço da liberdade humana
representa fortalecimento na causa da paz mundial
5
; foi também o chefe de
governo responsável pela subscrição do IRCA — Immigration Reformand Control
Act, documento cujo conteúdo, apenas um ano antes, impôs seríssimas restrições
à circulação de pessoas, essencialmente trabalhadores rurais, pela fronteira sul
5 “Congratulamo-nos com a mudança e abertura, pois acreditamos que a liberdade e a segurança caminham juntos,
que o progresso da liberdade humana só pode reforçar a causa da paz no mundo” (Reagan 1987, tradução livre).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
87Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
dos Estados Unidos (Kolossov 2012). A construção de uma barreira física entre
México e Estados Unidos teve início menos de um ano após a queda do Muro de
Berlim, em 1990, sob a denominação de “cerca de San Diego”, e se acelerou em
plena vigência do NAFTA, North American Free Trade Agreement, a partir de 1994.
Já em 1991, os Estados Unidos, líder da coalisão que encetou a campanha
militar para “libertação” do Kwait dos intentos ditatoriais de Saddan Hussein,
com aprovação do Conselho de Segurança da ONU (Resolução 678), ao final da
guerra reaproveitou, como matéria prima do muro de fronteira com o México,
placas de aço que serviram como pistas de pouso improvisadas no deserto. Placas
de aço que, quando dispostas na horizontal, permitiram a aterrissagem de aviões
e serviram aos discursos democráticos de libertação do povo iraquiano, agora
alinhadas na vertical passam a constituir barreiras físicas que obstam o fluxo
de pessoas entre o México e os Estados Unidos, duas democracias com relações
formalmente pacíficas. Vale lembrar que mesmo antes disso, já a partir de 1986,
parte do aparato tecnológico de segurança repatriado aos Estados Unidos após a
guerra do Vietnã passou a compor os instrumentos de vigilância de fronteira com
o México, no contexto da chamada “Guerra às drogas” (Kolossov 2012).
Embora o aumento considerável do ritmo de edificação do muro entre Estados
Unidos e México se faça notar a partir de 1996, conforme mostra o Gráfico 2 , em
2006, por meio do Secure Fence Act, editado pelo Presidente Bush, intensificou-se
a construção do muro na fronteira com o México, que em 2009 já contava com
pouco mais de 800km — dos atuais 1130km. A redação deste ato governamental
demonstra a dificuldade na construção de um discurso coerente que pudesse
justificar, em um contexto de globalização, a adoção de medidas que visavam
obstar o fluxo de pessoas.
Fazendo uso inteligente de barreiras físicas e implantando a tecnologia do
século 21, podemos ajudar nossos agentes de patrulhamento a fazer seu
trabalho e tornar nossa fronteira mais segura.
[...]
Desde que o presidente Bush assumiu o cargo, temos:
— Apreendido e enviado para casa mais de 6 milhões de pessoas que entram
ilegalmente na América; e
— Estamos adicionando milhares de novos leitos em nossas instalações
de detenção, para que possamos continuar trabalhando para acabar com
“pegar e soltar” em nossa fronteira sul.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
88 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
[...]
Os americanos estão unidos por nossos ideais compartilhados, pela
consideração de nossa história, respeito pela bandeira que empunhamos e
pela capacidade de falar e escrever o idioma inglês. Quando os imigrantes
assimilam e avançam em nossa sociedade, eles realizam seus sonhos,
renovam nosso espírito e contribuem para a unidade da América. (The White
House: President George W. Bush 2006, tradução livre)
6
Gráfico 2 — Extensão total do muro de fronteira EUA-México (em milhas, por ano)
Secure Fence Act of 2006
T
o
t
al
m
i
l
e
s
o
f
U
.
S
.
b
o
r
d
e
r
f
e
n
c
i
n
g
FY 1996 FY 2003
600
400
200
0
Fonte: Bloomberg 2017. (“Ano fiscal 1996”; “Ano fiscal 2013”; “Total de milhas da cerca de fronteira dos Estados
Unidos”; “Ato cerca segura de 2016” — tradução livre)
Longe de se limitar à realidade da fronteira sul estadunidense, a intensificação
da construção de muros de fronteira tem se constituído também uma realidade
da União Europeia, mesmo em um contexto de globalização, caracterizada por
uma representação das ideias de abertura e mobilidade que lhe são atribuídas
com centralidade. Como no caso dos Estados Unidos, na Europa essa dinâmica
foi marcada por profundas contradições e dificuldades de coerência da prática
de levantamento de barreiras físicas com as concepções de construção de uma
6 “By Making Wise Use Of Physical Barriers And Deploying 21st Century Technology, We Can Help Our Border
Patrol Agents Do Their Job And Make Our Border More Secure. [...] Since President Bush took office, we have:
— Apprehended and sent home more than 6 million people entering America illegally; and
— We are adding thousands of new beds in our detention facilities, so we can continue working to end ‘catch
and release’ at our Southern border. [...] Americans are bound together by our shared ideals, an appreciation of
our history, respect for the flag we fly, and an ability to speak and write the English language. When immigrants
assimilate and advance in our society, they realize their dreams, renew our spirit, and add to the unity of America”
(The White House: President George W. Bush 2006).
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sociedade sem fronteiras, que normalmente se associa à ideia de intensificação
dos fluxos no processo de globalização.
A análise sobre os muros de Ceuta e Melilla, que separam a Espanha de
Marrocos, é exemplar dessa realidade. Antes da adesão da Espanha à União
Europeia, em 1986, as fortificações de separação entre os chamados enclaves
e Marrocos eram descritas como precárias ou, no mínimo, pouco relevantes
(Figueiredo 2012). Com efeito, 1986 é tido como um divisor de águas no processo
de cercamento e nas relações fronteiriças entre Espanha e Marrocos. Nos termos
analisados por Ferrer-Gallardo, o ingresso da Espanha na União Europeia traz
consigo a implicação de que os territórios espanhóis em Marrocos passam
automaticamente a significar a existência de fronteiras europeias na África
(Ferrer-Gallardo 2008), o que impõe, quase que imediatamente, nova relevância
geopolítica a essas linhas divisórias e, consequentemente, uma nova dinâmica de
cercamento, e, de modo mais amplo, a necessidade de imposição de uma nova
dinâmica dos fluxos transfronteiriços sobre tais territórios.
Essa sobreposição territorial — Espanha/Europa–Marrocos — ganha
complexidade ainda maior desde 1991, com a subscrição da Espanha ao Acordo
de Schengen
7
. Isso porque, com a abolição dos controles internos de circulação
de fronteira entre países integrantes do Espaço Schengen, foram adotados, em
contraposição, rigor extremo e maior controle das fronteiras externas dos países
membros. No caso da Espanha essa pressão se torna mais explícita, uma vez que,
como já destacado, suas posições em Ceuta e Melilla representam nada menos do
que a existência das únicas fronteiras externas da União Europeia (e do Espaço
Schengen) na África.
Diante desse novo cenário e sob pressão europeia, em 1993 a Espanha leva
a cabo o projeto de cercamento integral das duas cidades, evidentemente com
financiamento da própria União Europeia. Isso permite a substituição total das
cercas existentes desde 1991, com altura de 2,5 metros, por cercas de arame
7 Conforme descrito no website da legislação da União Europeia, “o espaço Schengen representa um território no
qual a livre circulação das pessoas é garantida. Os Estados signatários do acordo aboliram as fronteiras internas
a favor de uma fronteira externa única. Foram adoptados procedimentos e regras comuns no espaço Schengen
em matéria de vistos para estadas de curta duração, pedidos de asilos e controlos nas fronteiras externas. Em
simultâneo, e por forma a garantir a segurança no espaço Schengen, foi estabelecida a cooperação e a coordenação
entre os serviços policiais e as autoridades judiciais. A cooperação Schengen foi integrada no direito da União
Europeia pelo Tratado de Amesterdão em 1997.” (sic) (European Union 2009). Integram o Espaço Schengen:
Áustria, Bélgica, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Islândia,
Itália, Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Noruega, Polônia, Portugal, Eslováquia,
Eslovênia, Espanha, Suécia e Suíça.
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90 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
farpado e aço, com 3,10 metros de altura, concluídas em 1999. Atualmente, em
Melilla, as barreiras são compostas por um conjunto de três cercas paralelas,
sendo duas verticais de 6 metros de altura e uma intermediária, constituída por
diversos cabos de aço transpassados.
Desse modo, embora a intensificação dos discursos sobre fechamento físico de
fronteiras tenha atingido seu ápice efetivamente com a recente ascensão de políticos
e mesmo de governos autoritários, a existência dos cercamentos e dos muros de
fronteira nos últimos 30 anos, em plena Era da Globalização, demonstra que a
dinâmica desses cercamentos, prática permeada por contradições, manteve-se e se
intensificou mesmo em meio a governos democráticos, alinhados discursivamente
com os princípios da democracia liberal internacional. Tal constatação contradiz
a interpretação de uma correlação direta entre as práticas de cercamento das
fronteiras e a emergência de governos autoritários, ainda que nesses governos essas
práticas anti-imigratórias tenham se acirrado. O reconhecimento da anterioridade
desses muros em relação às práticas de cercamento adotadas por governos
antidemocráticos leva à necessidade de investigar esse fenômeno, contemplando
outros fatores, tais como os impactos da globalização sobre a própria concepção
de soberania territorial do Estado nacional.
Muros da democracia liberal: o paradoxo da legitimidade
democrática e a globalização
As características da soberania tradicional vestifaliana atribuem ao Estado
nacional a capacidade última de decisão e governo sobre um território determinado,
bem como sobre todas as relações jurídicas que se estabeleçam dentro dele.
O Estado soberano é responsável pelo destino dos seus cidadãos, os quais
representa, por meio de instituições e poderes constituídos. Por pressupor a não
submissão a nenhuma outra forma de autoridade exterior, essa concepção clássica
de soberania compreende uma ordem internacional na qual Estados livres e iguais
estabelecem relações não hierárquicas entre si. Desse modo, suas associações são
marcadamente voluntárias e transitórias (Benhabib 2006b, 23).
O princípio democrático se baseia na premissa de que todos os cidadãos de
um Estado, ou seja, todos os membros do demos
8
, estariam sujeitos a um sistema
8 Segundo Post, demos é a expressão escolhida por Benhabib para descrever the citizens and voters who are
authorized to determine the content of democratic law” (Post 2006, 4).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
91Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
de autogoverno que possibilitaria a sua participação como autores das próprias
regras às quais deveriam, em contrapartida, se submeter. Desse modo, seria
estabelecida uma relação caracterizada reciprocamente pela autoria e sujeição dos
membros/cidadãos às decisões tomadas em deliberação conjunta. Para Benhabib
(2006b) a isso se pode denominar soberania democrática.
Como esclarecem Villa e Tostes, essa concepção intrínseca à teoria liberal
da democracia descreve, entretanto, “um processo que visa funcionar em bases
nacionais — porém o fenômeno da regionalização e da globalização e seus
níveis de interdependência contestam questões-chave da teoria da democracia
contemporânea” (Villa e Tostes 2006, 78). A origem dessa concepção moderna de
democracia, segundo Benhabib (2006b, 32), remonta às ideias do contrato social
de Rousseau, cuja assimilação e influência se encontram na obra de Kant. Ocorre
que “a idéia (sic!) do consentimento através das eleições e a idéia (sic!) de que
os constituintes relevantes de um acordo voluntário são as comunidades de um
território passa a ser problemática quando consideramos os níveis de interconexão
regional e global.” (Villa e Tostes 2006, 78).
A globalização impôs, ademais, cenário extremamente volátil para o
desempenho das funções administrativas estatais. Os processos associados à
emergência da economia global, que implicaram incremento do fluxo mundial
de capitais, mercadorias, conhecimento e trabalho, somados ao crescimento da
influência de atores sub e transnacionais, resultaram também na redução do
poder de decisão dos Estados nacionais. O mesmo ocorre na redução da esfera
de influência das suas decisões sobre os resultados pretendidos. Desse modo, em
última análise, a globalização teria posto em xeque o modelo do Estado soberano
vestifaliano que, segundo Benhabib, se basearia justamente “em uma autoridade
política unificada e dominante cuja jurisdição sobre uma parcela territorial
inequivocamente delimitada é suprema” (Benhabib 2004, 4, tradução livre)
9
.
Partindo desse pressuposto da crise da soberania tradicional de Vestefália, a
autora não defende, entretanto, o fim do sistema de Estados ou a constituição de
uma cidadania mundial. Ao invés disso, Benhabib (2004, 2/3) retorna a Kant na
busca de entender novos vínculos democráticos
10
, que não se limitem somente
aos proporcionados pelas estruturas do Estado nacional. Como justificativa da
necessidade de reconhecimento do direito à inclusão política, Benhabib se atém,
9 “The “westphalian model” presupposes that there is a dominant and unified political authority whose jurisdiction
over a clearly marked piece of territory is supreme.” (Benhabib 2004, 4).
10 No original “democratic attachments”.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
92 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
em especial, ao conceito de “hospitalidade universal”, trazido por Kant em A Paz
Perpétua, como fundamento último de um direito cosmopolita.
Tal pertencimento implica: reconhecer a reivindicação moral de refugiados
e asilados à primeira admissão; um regime de fronteiras porosas para
imigrantes; uma determinação contra a desnacionalização e a perda dos
direitos de cidadania; e a reivindicação do direito de todo ser humano “de
ter direitos”, isto é, de ser um sujeito de direitos, sendo-lhe reconhecidos
direitos inalienáveis, independentemente do status de pertencimento
político. O status de estrangeiro não deve obstar direitos fundamentais.
(Benhabib 2004, 3, tradução livre)
11
A referência ao direito de first admittance é, inegavelmente, uma inspiração
na ideia kantiana de hospitalidade universal. A abordagem de Benhabib (2004, 25)
constitui, portanto, uma releitura do direito cosmopolita de Kant na qual se
atribui centralidade à ideia de hospitalidade. É preciso esclarecer, entretanto, que
Benhabib propõe nova interpretação da ideia de hospitalidade.
Benhabib sustenta que a inovação conceitual da proposta de cosmopolitismo
de Kant reside na formulação do direito cosmopolita “no sentido jurídico do
termo” (Benhabib, 2006b, 21, tradução livre)
12
. Em outros termos, Kant concebe
o direito cosmopolita como uma terceira esfera do jurídico que leva em conta as
“relações entre as pessoas civis entre si, bem como destas com entidades políticas
organizadas em uma sociedade civil global” (Benhabib, 2006b, 21, tradução livre)
13
.
Essa terceira esfera ou dimensão do direito vigeria ao lado do direito positivo
interno e do direito internacional.
Seguindo sua análise da obra de Kant, Benhabib (2006b, 21) aponta que o
termo Weltbürgerrecht (direito cosmopolita) é associado ao dever de hospitalidade
universal. Nesse ponto é possível observar a centralidade desse conceito na
construção argumentativa da autora, uma vez que a questão toca o tema essencial
do indivíduo externo que se põe em contato com uma entidade política delimitada
(bounded political entity).
11 “Such just membership entails: recognizing the moral claim of refugees and asylees to first admittance; a regime
of porous borders for immigrants; an injunction against denationalization and the loss of citizenship rights;
and the vindication of the right of every human being ‘to have rights’, that is, to be a legal person, entitled to
certain inalienable rights, regardless of status of their political membership. The status of alienage ought not to
denude one of fundamental rights.” (Benhabib 2004, 3, grifo do autor).
12 “[…] in the juridical senses of the term.” (Benhabib 2006b, 21).
13 “[...] third is cosmopolitan right, which concerns relations among civil persons to each other as well as to organized
political entities in a global civil society.” (Benhabib 2006b, 21).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
93Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
Benhabib relembra que, na formulação kantiana, “hospitalidade é um direito
que pertence a todo ser humano na medida em que o vemos como potencial
participante em uma república mundial” (Benhabib 2006b, 22, tradução livre)
14
.
Entretanto, segundo a autora, ao regular a relação entre membros e não membros
de uma determinada comunidade política, o direito de hospitalidade ocupa as
fronteiras do político e dificulta a sua caracterização e a definição clara dos seus
contornos enquanto direito, no sentido jurídico do termo. O direito de hospitalidade,
como direito que diz respeito a todo ser humano enquanto potencial integrante de
uma sociedade civil global, é, ainda assim, direito que se exerce concretamente
em face de um determinado Estado soberano, o que o posicionaria no delicado
espaço entre os Direitos Humanos (direito atribuível a todo ser humano) e os
Direitos Políticos (direito exercitável pelo cidadão de uma república específica)
(Benhabib, 2006b).
Esse dilema não teria sido claramente respondido por Kant (2008). A Paz
Perpétua mostra uma clara pretensão do seu autor em apresentar o direito
cosmopolita com natureza efetivamente jurídica. Entretanto, a solução kantiana,
por não sobrepassar os limites da soberania dos Estados nacionais, não soluciona
os impasses relacionados ao efetivo cumprimento desse direito e aos meios de
coerção para garantir o seu respeito e observação.
O direito de hospitalidade implica uma reivindicação moral com potenciais
consequências jurídicas, na medida em que a obrigação dos Estados
receptores de conceder residência temporária a estrangeiros está ancorada em
uma ordem cosmopolita republicana. Tal ordem não tem uma lei executiva
suprema que a governe. Nesse sentido, a obrigação de mostrar hospitalidade
a estrangeiros não pode ser imposta; continua a ser uma obrigação assumida
voluntariamente por parte do soberano político. (Benhabib 2006b, 23,
tradução livre)
15
Desse modo, a ordem cosmopolita proposta por Kant esbarraria nos limites da
soberania do Estado nacional. Benhabib (2006b, 23) ressalta, entretanto, que ao
14 “[…] hospitality is a right that belongs to all human beings insofar as we view them as potential participants
in a world republic.” (Benhabib 2006b, 22).
15 “The right of hospitality entails a moral claim with potential legal consequences, in that the obligation of the
receiving states to grant temporary residency to foreigners is anchored in a republican cosmopolitical order. Such
an order does not have a supreme executive law governing it. In this sense, the obligation to show hospitality
to foreigners and strangers cannot be enforced; it remains a voluntarily incurred obligation on the part of the
political sovereign..” (Benhabib 2006b, 23).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
94 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
delinear o espaço conceitual entre normas morais universais e o direito positivo
com respeito às ações e interações entre indivíduos em uma comunidade mundial,
Kant estabelece as fundações para uma ordem legal pós-vestifaliana. Nas palavras
de Benhabib, A Paz Perpétua estabelece um divisor de águas entre duas concepções
de soberania e pavimenta o caminho para a transição da primeira, designada por
ela como “soberania vestifaliana”, para a segunda, que ela denomina “soberania
liberal internacional” (Benhabib 2006b, 23, tradução livre,)
16
.
Essa concepção da soberania liberal internacional pressupõe que o
reconhecimento da igualdade formal entre os Estados guarda relação com o nível
de assunção de valores e princípios comuns, tais como o respeito aos direitos
humanos e aos valores do estado democrático de direito (Benhabib 2006b, 23).
Nesse sentido:
Soberania não mais significa a última e arbitrária autoridade sobre um território
circunscrito; Estados que ameaçam seus cidadãos com a violação de certas
normas, fecham suas fronteiras, impedem as liberdades de mercado, discurso
e associação, possivelmente comprometerão possibilidades de aliança; a
ancoragem de princípios domésticos com instituições compartilhadas com
outros é crucial. (Benhabib 2006b, 24, tradução livre)
17
Em outros termos, o cosmopolitismo preconizado por Kant pavimentaria a
trilha para uma mudança significativa na ordem internacional, por meio da previsão
de “um espaço conceitual e jurídico” (Benhabib 2006b, 24) que permite, em certa
medida, a reconfiguração da soberania. Isso ocorre a partir do reconhecimento
da juridicidade de normas que transcendem o direito positivo dos Estados e cujos
exemplos atuais mais eloquentes seriam as normas de direitos humanos. Como
complementa Cohen, embora as normas de direitos humanos imponham uma nova
cultura política que tensiona a soberania, tendo contribuído com o que se pode
chamar de sua reconfiguração, não se pode afirmar que a soberania tenha “sido
substituída pelos direitos humanos como princípio básico da ordem internacional”
(Cohen 2012, 162). Nesse sentido, concluiu Cohen (2012) que a relação que se
16 “[…] according to conceptions of liberal international sovereignty the formal equality of states increasingly is
dependent on their subscribing to common values and principles, such as the observance of human rights, the
rule of law, and respect for democratic self-determination.” (Benhabib 2006b, 23).
17 “Sovereignty no longer means ultimate and arbitrary authority over circumscribed territory; states which treat their
citizens in violation of certain norms, close their borders, prevent freedoms of market, speech, and associations
and the like are through not to belong within a specific society of states or alliances; the anchoring of domestic
principles in institutions shared with others is crucial.” (Benhabib 2006b, 24).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
95Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
estabelece entre normas universais de direitos humanos e a soberania possibilita
a emergência do que se pode chamar de um novo regime de soberania, que de
igual modo contribui para a configuração de um sistema internacional mais justo.
Segundo Benhabib (2006b, 27), o atual regime internacional de direitos
humanos deve ser compreendido como conjunto de regimes globais e regionais,
inter-relacionados e sobrepostos, que englobam os tratados de direitos humanos,
bem como o direito internacional consuetudinário. Sua generalização tem se
dado, segundo a autora, por meio de processos de “colisão e confluência” com as
legislações internas dos Estados nacionais. Nisso residiria o aspecto mais promissor
dos processos contemporâneos de globalização política (Benhabib 2006b, 27).
A defesa dessa assertiva se daria por meio da análise de três exemplos que
seriam representativos do desenvolvimento de normas universais determinantes do
comportamento de estados soberanos: crimes contra a humanidade; intervenções
humanitárias, migrações transnacionais. Os três exemplos são oportunos à proposta
teórica da autora, uma vez que implicariam possibilidade de intervenção direta,
inclusive na esfera de autoridade de Estados soberanos, no intuito de garantir a
aplicação de normas de caráter universal.
A evolução do direito cosmopolita e a transição da soberania vestifaliana para
uma soberania liberal internacional não pode ser tida, entretanto, como processo
isento de contradições. Como sustenta Benhabib (2006b, 31), a contradição
central reside no fato que, se por um lado a ascensão do cosmopolitismo reduz a
autoridade do estado, ou ao menos lhe retira a exclusividade da decisão sobre o
destino de pessoas e bens no seu território; por outro, o direito cosmopolita amplia
sua legitimidade exatamente na medida em que conta com a presença dos Estados
como principais subscritores dos tratados e convenções sobre direitos humanos.
Por meio de tal processo, esclarece a autora que “o Estado é, ao mesmo tempo,
negado e reforçado em sua autoridade” (Benhabib 2006, 31, tradução livre)
18
.
Essa contradição e duplo papel dos Estados justifica a afirmação de que o
moderno sistema de Estados se localiza atualmente na tensão entre a soberania e a
hospitalidade, entre a prerrogativa de decidir ser parte de uma ordem cosmopolita
regida pelos direitos humanos e o dever de estender o reconhecimento desses direitos
a todos (Benhabib 2006b, 31). O tensionamento entre soberania e hospitalidade
se apresenta de modo mais acentuado nas chamadas democracias liberais, que
necessitam lidar com a negociação constante entre normas constitucionais de
18 “In this process, the state is both sublated and reinforced in its authority.” (Benhabib, 2006b, 31).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
96 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
caráter universalista que demandam o dever de respeito e promoção dos direitos
humanos e, de outro lado, a soberania territorial, que estabelece a autoridade
última do Estado sobre seu território.
Atenta a essa problemática, Benhabib (2006b, 32) esclarece que a legitimidade
da decisão democrática não reside apenas e tão somente no ato de constituição,
mas também no grau de conformidade desse ato com os princípios universais
dos direitos humanos que, em certo sentido, precederiam a vontade soberana por
meio da qual a comunidade se vinculou e se constituiu a si mesma. O processo
histórico de reconhecimento de juridicidade ao direito cosmopolita, que se acentua
a partir da globalização, contribui para a consolidação desse papel legitimador
dos direitos humanos.
O paradoxo que se constitui nessa relação reside no fato de que, enquanto a
legitimidade democrática pressupõe a adequação das decisões políticas e normas
jurídicas aos direitos humanos, ela também depende de uma decisão local que
se articula nos limites territoriais de uma comunidade específica e delimitada.
A expansão da concepção cosmopolita de direitos universais, em grande medida
estimulada pelos processos de globalização, que avançam, inclusive, por sobre
a soberania do estado nacional, contribuiu para uma maior explicitação dessa
tensão. Como destacam Vitale, Spécie e Mendes (2009, 162/163), o paradoxo
se evidencia no momento em que “de um lado os temas substantivos da
política se globalizam, de outro as instituições do processo político permanecem
territorialmente orientadas, nacional ou localmente”.
Com tais argumentos, a autora sustenta que a legitimidade democrática
implica potencial constante de conflito entre a reinvindicação universalista
por direitos humanos e as características particulares constitutivas da cultura
e identidade nacionais. A essa relação conflitiva ela denomina de Paradoxo
da Legitimidade Democrática (Benhabib 2006b, 32). Um aspecto constitutivo
desse paradoxo, ressaltado pela autora citando Habermas
19
, consiste em que
cada ato de autolegislação é também um ato de autoconstituição. ‘Nós, o povo’
que concordamos em atar-nos a nós mesmos pelas leis, também nos definimos
como ‘Nós’ no próprio ato de autolegislação (Benhabib 2006b, 33, tradução livre).
19 Nos exatos termos da autora: “We, the people” refers to a particular human community, circumscribed in space
and time, sharing a particular culture, history, and legacy; yet this people establishes itself as a democratic body
acting in the name of the “universal” […] Modern democracies act in the name of universal principles, which
are then circumscribed within a particular civic community. This is the “Janus face of the modern nation”, in
words of Juergen Habermas (Benhabib 2006b, 32).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
97Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
Em sentido assemelhado, Mezzadra e Neilson ressaltam a paradoxal relevância
da delimitação territorial na globalização e, mais especificamente, o papel das
fronteiras na constituição política. Segundo esses autores, sem a clara distinção
entre inside/outside, proporcionada pelas fronteiras, não se poderia falar da
existência de espaços políticos delimitados. “Especialmente na Era da chamada
globalização, há uma necessidade de se esclarecer onde começa e termina a
sociedade. (Mezzadra e Neilson 2011, 7, tradução livre)
20
O tema concernente às migrações transnacionais explicita de modo mais
flagrante o paradoxo da legitimidade democrática, uma vez que envolve diretamente
decisão relativa ao ingresso de um não-cidadão em determinada comunidade
política. Mais que isso, as migrações transnacionais e o controle de fronteiras
envolvem a matéria alusiva aos direitos de participação ou inclusão política.
Segundo Benhabib, a afirmação de Kant sobre a impossibilidade de negativa
do direito de primeiro ingresso (first entry) àqueles que o almejam em situação
de risco de morte
21
teria sido incorporada à Convenção de Genebra de 1951
22
por
meio do princípio da não expulsão (non-refoulment)
23
. Entretanto, a própria autora
alude que isso não tem impedido, na prática, que esse princípio seja desrespeitado
inclusive por países signatários da Convenção, bem como do Protocolo de 1967
24
(Benhabib, 2004, 11).
Isso decorre, dentre outros motivos, do fato de o controle migratório ser
elemento crucial para a soberania estatal, mesmo (ou principalmente) em
um contexto de crise da soberania vestifaliana, impulsionada pelas dinâmicas
do processo de globalização. O controle migratório se constituiria, então, um
dos últimos campos para o exercício da soberania por um modelo de Estado
que se vê subtraído de suas competências e da possibilidade de controle de
resultados.
20 “Especially in the era of so-called globalization, there is a need to ask where society begins and ends.”
(Mezzadra e Neilson 2011, 187).
21 A expressão utilizada por Kant é untergang, cuja tradução de Benhabib para o inglês é destruction
(Benhabib 2004, 35).
22 Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados.
23 O direito de asilo foi reconhecido formalmente desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),
em seu artigo 14. Em verdade, o artigo 13 da Declaração Universal de Direitos Humanos assegurava, inclusive,
a liberdade de emigrar, embora não avançasse no sentido de apresentar a garantia correlata ao exercício dessa
liberdade, qual seja: o direito de imigrar.
24 O Protocolo de 1967 aditou a Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados ampliando formalmente
a sua abrangência, inclusive no que se refere à retirada de referências a limites geográficos.
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
98 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
O Estado-nação é muito pequeno para lidar com os problemas econômicos,
ecológicos, imunológicos e informacionais criados pelo novo ambiente;
mas é, ainda assim, muito grande para acomodar aspirações identitárias,
sociais e movimentos regionalistas. Sob essas condições, a territorialidade
se tornou uma delimitação anacrônica de funções materiais e identidades
culturais; no entanto, mesmo em face do colapso dos conceitos tradicionais
de soberania, o monopólio sobre o território é exercido através de políticas
de imigração e cidadania. (Benhabib 2004, 4/5, tradução livre)
25
A questão das migrações transnacionais ressalta, assim, a tensão explícita
entre os direitos humanos e a soberania nacional, especialmente porque, embora
se tratem efetivamente de direitos universais, tanto o direito de asilo, quanto
o princípio da não expulsão, como ainda o direito à emigração, têm o seu
exercício dependente em alto grau de decisões soberanas de Estados individuais
(Benhabib 2004, 11). Ademais, toda e qualquer questão relativa às migrações
transnacionais perpassa, necessariamente pelo debate acerca da inclusão do outro
— estrangeiro, refugiado, requerente de asilo — em uma comunidade política
delimitada. Em se tratando de Estados democráticos, isso implica definição ou
delimitação de quem participa ou pode vir a participar das deliberações do demos.
Em tom crítico, Kolossov assevera que “um desafio central à democracia liberal
será a governança democrática de suas fronteiras e a abertura para a diferença
cultural, precisamente porque esses valores são envolvidos nas constituições da
maioria (mas não de todos) dos Estados liberais” (Kolossov 2012, 42, tradução
livre)
26
. No caso dos Estados nacionais modernos, como ressalta Benhabib,
a principal categoria de regulação do ingresso e participação política segue sendo
a do cidadão nacional (Benhabib 2004, 1).
O argumento de Benhabib é que, embora “a soberania popular não possa
ser reduzida à soberania territorial, as duas estariam histórica e normativamente
ligadas de maneira íntima” (Benhabib 2004, 20, tradução livre)
27
. Isso porque, dado
25 “The nation-state is too small to deal with the economic, ecological, immunological, and informational problems
created by the new environment; yet is too large to accommodate the aspirations of identity driven social and
regionalist movements. Under these conditions, territoriality has become an anachronistic delimitation of material
functions and cultural identities; yet, even in the face of the collapse of traditional concepts of sovereignty,
monopoly over territory is exercised through immigration and citizenship policies.” (Benhabib 2004, 4-5).
26 “[...] a major challenge to liberal democracy will be the democratic governance of its borders and openness to
cultural difference, precisely because these values are enshrined in the constitutions of most (but no all) liberal
states.” (Kolossov 2012, 42).
27 “Popular sovereignty is not identical with territorial sovereignty, although the two are closely linked, both
historically and normatively.” (Benhabib 2004, 20)
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
99Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
que a soberania popular pressupõe que todos os membros do demos são titulares
do direito de participação na elaboração das leis pelas quais se rege a comunidade,
é inegável que o exercício dessa regra democrática acaba por contribuir para a
delimitação do próprio corpo coletivo (comunidade, Estado etc.) sobre o qual as
leis livremente constituídas devem, em primeira mão, incidir. “Fronteiras políticas
definem uns como membros outros como estrangeiros. Pertencimento, por seu
turno, ganha sentido somente quando acompanhado de rituais de entrada, acesso,
pertença e privilégio” (Benhabib 2004, 1, tradução livre)
28
. Em outros termos, todo
demos se constituiria a si próprio através de processos de deliberação por meio
dos quais se reconhecem alguns como membros titulares de direitos integrais de
participação e outros como não membros.
Nos termos de Benhabib, o conceito de “Soberania Democrática” repousa
sobre três ideias básicas. A primeira consiste na assunção de que o povo é, ao
mesmo tempo, autor e sujeito das leis que cria por meio de procedimentos delibe-
rativos próprios. A segunda implica reconhecimento de que esse povo integra um
corpo comum e unificado (the ideal of a unified demos). Já a terceira premissa se
baseia na concepção de que esse demos tem sua competência legislativa e gover-
namental reconhecida sobre um território delimitado, autônomo e autoconstituído
(Benhabib 2004, 216).
No entanto, a própria autora sustenta que a ideia de um demos unificado não
se confunde com uma imaginária harmonia de sua constituição. Ao contrário,
Benhabib compreende que a autoconstituição de uma comunidade política
democrática envolve sempre processos de colisão e confluência, “lutas mais ou
menos conscientes de inclusão e exclusão” (Benhabib 2004, 216, tradução livre)
29
.
No mesmo sentido, a ideia de autonomia e competência exclusiva sobre uma
porção territorial delimitada foi duramente desafiada pelo aumento inegável da
interdependência que a globalização representou para diversas esferas da vida
social, econômica, política, tecnológica e informacional.
Por seu turno, nem mesmo a globalização teria sido capaz de criar novo
locus ou novos vínculos democráticos que pudessem prescindir totalmente da
soberania territorial.
28 “Political boundaries define some as members, others as aliens. Membership, in turn, is meaningful only when
accompanied by rituals of entry, access, belonging, and privilege.” (Benhabib 2004, 1).
29 “The unity of the demos ought to be understood not as if it were a harmonious given, but rather as a process of
self-constitution, through more or less conscious struggles of inclusion and exclusion” (Benhabib 2004, 216).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
100 Democracia cercada. Uma análise sobre os muros de fronteira [...]
As leis democráticas requerem fechamento precisamente porque a
representação democrática se justifica a partir de um povo específico.
A legislação imperial, ao contrário, se emitia a partir de um centro e era
obrigatória até onde o poder daquele centro controlava sua periferia.
Impérios têm fronteiras; as democracias têm limites. (Benhabib 2004, 219,
tradução nossa)
30
Nesse sentido, embora a globalização tenha acentuado discrepâncias de tal
modo que se torna impossível negar a necessidade de reconfiguração do conceito de
soberania democrática, para Benhabib não existe maneira de eliminar por completo
o vínculo entre territorialidade, representação e vontade (voz) democrática, o que
fica bastante evidente na explanação do seu conceito de paradoxo da legitimidade
democrática. Diante de tais pressupostos, a proposta de Benhabib (2006a) consiste
na adoção do cosmopolitismo como filosofia normativa que cumpra justamente
o papel de expandir as normas de caráter universal para além dos limites do
Estado nacional, já que a eliminação dessas fronteiras, ao menos no contexto
contemporâneo, se mostraria inviável.
Considerações finais
O presente artigo buscou, por meio da análise dos processos de cercamento
de fronteiras registrados nos últimos trinta anos, compreender em que medida a
construção de barreiras físicas e junto com elas a construção de um “outro” —
imigrante e/ou inimigo — comporia uma dinâmica funcional e, contraditoriamente,
essencial à própria democracia liberal no contexto da globalização. Buscou-se
explicitar que, embora a ascensão recente de governos considerados de tendências
nacionalistas e mesmo de viés autoritário tenha um efeito amplificador sobre
as práticas e discursos de fechamento de fronteiras e imobilidade migratória,
essa dinâmica antecede tais governos e pode ser melhor compreendida a partir
dos efeitos que a multiplicidade de interconexões políticas, sociais, culturais,
tecnológicas e econômicas, proporcionadas pela globalização, impuseram ao
Estado nação, desafiando a sua soberania territorial e política.
30 “Democratic laws require closure precisely because democratic representation, must be accountable to a
specific people. Imperial legislation, by contrast, was issued from a center and was binding as far as the
power of that center to control its periphery extended. Empires have frontiers; democracies have boundaries.”
(Benhabib 2004, 219).
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 15, n. 1, 2020, p. 80-103
101Ricardo Gesteira Ramos de Almeida
A partir da análise procedida na segunda seção, destaca-se que, devido ao
fato de o controle migratório se constituir elemento crucial para a soberania
estatal — ao influenciar diretamente a determinação da composição do demos —,
o cercamento físico de fronteiras passa a representar um dos poucos campos para
o exercício da soberania por um modelo de Estado nacional que se vê subtraído
de suas competências e da possibilidade de controle de resultados políticos,
especialmente em um contexto de crise da soberania vestifaliana que acompanha
processos de integração e globalização.
Em outros termos, com base na formulação teórica de Benhabib (2004, 2006a,
2006b) explicitou-se que, embora os eventos caracterizadores da globalização
representem potencial de esgarçamento dos limites da comunidade política, por meio
da criação de condições para a ampliação do demos, — cuja maior concretização
se consubstanciaria no atual regime internacional de Direitos Humanos —, esse
processo contém contradições. Não obstante a globalização tenha conduzido
ao reconhecimento da necessidade de reconfiguração do próprio conceito de
soberania, esse movimento implicaria constituição de um paradoxo de legitimidade
democrática, uma vez que a ideia de democracia pressuporia o reconhecimento
da soberania democrática de uma comunidade politicamente delimitada.
A intensificação dos cercamentos, expressa no aumento numérico dos muros
e barreiras de fronteira ao redor do mundo, permite questionar a potencialidade
dos processos de mundialização para a reconfiguração da soberania estatal, no
sentido do surgimento de um modelo de soberania liberal internacional — ou
com maior participação popular —, e voltado para a flexibilização das fronteiras.
Os muros de fronteira apontam para uma dialética distinta, caracterizada pela
ausência de criação de novos loci ou vínculos democráticos efetivamente capazes
de flexibilizar a soberania estatal em direção a uma soberania transnacional real.
Referências
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