Daniela Vieira Secches; Marina Nunes Bernardes; Pedro Diniz Rocha
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021
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A Construção do Pensamento
sobre o Internacional na Rússia:
identidades, projetos
político-pragmáticos e o Ocidente
The Construction of Thought
about the International in Russia:
identities, political-pragmatic
projects, and the West
La Construcción del pensamiento
sobre el Internacional en Rusia:
identidades, proyectos
político-pragmáticos y el Occidente
DOI: 10.21530/ci.v16n1.2021.1000
Daniela Vieira Secches
1
Marina Nunes Bernardes
2
Pedro Diniz Rocha
3
Resumo
A compreensão sobre o internacional no século XX e o
desenvolvimento do campo das Relações Internacionais ecoam
particularidades do ambiente sociopolítico no qual são construídos.
Isso pode ser percebido no caso da Rússia, onde a construção
1 Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Minas. Coordenadora da Graduação
em Relações Internacionais da PUC-Minas/Praça da Liberdade. Minas Gerais,
Brasil. (drvieira@gmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4682-4665.
2 Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Minas Gerais, Brasil. (marinabernardes22@hotmail.com).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5261-1354.
3 Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em
Relações Internacionais Santiago Dantas (UNESP–UNICAMP–PUC/SP). São Paulo,
Brasil. (pd.rocha@unesp.br). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1365-3292.
Artigo submetido em 12/09/2019 e aprovado em 06/03/2020.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ISSN 2526-9038
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científica do campo está atrelada a projetos de nação que buscam imitar o Outro Ocidental, ou
contrapor-se a ele. O objetivo deste artigo é compreender o quadro contemporâneo das escolas
de pensamento sobre o internacional naquele país. Para tanto, serão incorporados conceitos
da sociologia do conhecimento e do construtivismo aplicado às Relações Internacionais
a partir da noção de epistemologias geoculturais. Análises matriciais sobre a literatura
revista serão o principal recurso de comparação das classificações propostas pelas obras
selecionadas, com vistas a entender o impacto dos diferentes contextos sociopolíticos
sobre a Academia. Conclui-se que o caso russo é um interessante exemplo no qual é
possível observar a confluência de inclinações identitárias, projetos político-pragmáticos
e a constituição dessa área do saber em torno do elemento Ocidental.
Palavras-chave: Relações Internacionais; Academia Russa; Identidades; Projetos Político-
Pragmáticos; Política Externa.
Abstract
In order to understand the development of disciplinary International Relations (IR) during
the 20
th
century it is important to consider the sociopolitical reality that compose the
context in which the discipline was built. What is particularly true for Russia, where IR
was coupled with competing national projects that aimed to imitate the Western “other”,
or counteract it. Having said that, the main goal of this article is to understand the
contemporary framework of International Relations schools of thought in Russia. To do
so it will discuss concepts from sociology of knowledge and constructivism, applied to IR
from the idea of geo cultural epistemologies. A Matrix analysis will be the method used to
compare and categorize the schools of thought extracted from the specialized literature,
and by doing so understand the impact of distinctive sociopolitical contexts over Russian
IR. The article concludes that disciplinary International Relations in Russia is embedded
with identity trends and political-pragmatic projects that move around the Western element
in order to imitate it, or oppose it.
Keywords: International Relations; Russian Academy; Identities; Political-pragmatic Projects;
Foreign Policy.
Resumen
La comprensión de lo internacional en el siglo XX y el desarrollo del campo de las Relaciones
Internacionales se hacen eco de particularidades del entorno sociopolítico en el que se
construyen. Ello se percibe en el caso de Rusia, donde la construcción científica del campo
está ligada a proyectos nacionales que buscan imitar a los otros occidentales, o debe. Dicho
esto, el propósito de este artículo es entender el marco contemporáneo de las escuelas de
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pensamiento sobre lo internacional en ese país. Para ello, se incorporarán conceptos de la
sociología del conocimiento y del constructivismo aplicados a las Relaciones Internacionales
a partir de la noción de epistemología geocultural. Los análisis de matriz sobre la literatura
revisada serán el principal recurso para comparar las clasificaciones propuestas por las
obras seleccionadas, con la intención de comprender el impacto de los diferentes contextos
sociopolíticos en la academia. Se concluye que el caso ruso proporciona un ejemplo
interesante en el que es posible observar la confluencia de las inclinaciones de identidad,
los proyectos político-pragmáticos y la constitución de esta área de conocimiento alrededor
del elemento occidental.
Palabras clave: Relaciones Internacionales; academia rusa; identidades; proyectos político-
pragmáticos; política exterior.
“Vê, meu caro, no século XVIII houve um velho pecador que declarou que
se Deus não existisse seria preciso inventá-lo: s’il n’existait pas Dieu il
faudrait l’inventer. (...) Quanto à mim, há tempos que decidi não pensar na
questão: foi o homem que criou Deus ou Deus que criou o homem? É claro
que não vou ficar examinando todos os axiomas que os rapazinhos russos
de hoje formulam a esse respeito, todos derivados de hipóteses europeias;
pois o que lá é hipótese no rapazinho russo se transforma imediatamente
em axioma, e não só nos rapazinhos, mas talvez até em seus professores,
porque até hoje os professores russos são, muito amiúde, esses mesmos
rapazinhos russos.”
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov, 1821-1881
No século XIX, Ivan Karamázov, memorável personagem de Dostoiévski em
Os Irmãos Karamázov, causa polêmica em meio a um mosteiro ao argumentar
sua indiferença quanto à relatividade da existência de Deus no contexto de um
Dostoiévski que, à época, também estava envolto no debate sobre o limite da
religião dentro do Estado e da própria ideia de um poder judiciário teológico,
fundado na ortodoxia. O autor, com seu brilhantismo usual, chama a atenção para
a profunda influência do pensamento europeu, até mesmo em uma questão tão
sensível e central para o cotidiano russo há séculos – a religião. Além de indicar
com acidez o tamanho da influência da Europa Ocidental sobre a Academia
russa, Dostoiévski atesta a incorporação dessa visão de mundo pelos estudantes
e professores russos de forma acrítica e pouco reflexiva.
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Hoje é possível notar a persistência da mesma tensão com o Outro quando se
investiga a situação do pensamento russo sobre o internacional e o desenvolvimento
do campo científico das Relações Internacionais no país. Em geral, percebe-se
que a construção científica do campo na Rússia está atrelada a projetos de nação
que buscam imitar o Outro Ocidental, como na crítica de Ivan Karamázov, ou
contrapor-se a ele. Em qualquer situação, ao final do dia, têm-se a forte referência
da alteridade para a edificação das episthèmes. Tal característica é recorrente
na ciência quando pensada em termos de sociologia do conhecimento, mas é
possível percebê-la de forma mais arraigada e indiferenciada no caso russo a partir
de um viés contextualista. Observa-se que, ao longo dos anos de consolidação
da área, a tensão com o outro foi absorvida de formas distintas em diferentes
momentos sociopolíticos por meio dos projetos estatais.
Com essa hipótese em mente, o objetivo deste artigo é compreender o quadro
contemporâneo das escolas de pensamento sobre o internacional na Rússia.
O que parece relevante para a academia brasileira afeta às Relações Internacionais
(RI), que desconhece, em grande medida, o debate acadêmico das RI na Rússia.
As discussões aqui levantadas podem servir como introdução ou ponto de partida
para discussões dessa natureza no cenário brasileiro. Ademais, acredita-se que
o artigo possa contribuir para o debate contemporâneo dentro das Relações
Internacionais relativo à forma pela qual o campo evoluiu e é praticado em
diferentes partes do globo (ver, por exemplo, Tickner e Waever 2009; Tickner e
Blaney 2012; 2013).
Em termos metodológicos, optou-se por realizar revisão bibliográfica seguida
de análise matricial sobre as escolas de pensamento que discutem o internacional
na Rússia, a fim de contrapô-las ao processo de constituição do campo das
Relações Internacionais nesse país. A partir do quadro geral institucional delineado
previamente, a comparação dos textos busca validar a hipótese sobre a presença
constante do elemento da alteridade no pensamento sobre o internacional na
Rússia e, por conseguinte, em sua Academia, dada a relação próxima entre a
política e a produção científica nessa área. Isto é, tentar-se-á, perceber como a
comunidade acadêmica russa hoje reflete sobre o tipo de poder preferido pelo
Estado em sua projeção internacional; sobre as tendências globais nas quais o
Estado Russo está inserido; e sobre quais seriam as prioridades do relacionamento
russo com o internacional (Kuchins e Zevelev 2012).
Foram escolhidas para análise as seguintes obras: Anne Clunan, The Social
Construction of Russia Ressurgence: aspirations, identity, and security interest (2009);
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Christian Thorun, Explaining Change in Russian Foreign Policy: the role of ideas
in post-Soviet Russia conduct toward the West (2009); Andrei Tsygankov, Russian
Foreign Policy: change and continuity in national identity (2010); e Andrew Kuchins
e Igor Zevelev, Russia Contested National Identity and Foreign Policy (2012). Foram
adotados como critérios de seleção das obras: sua contemporaneidade, o perfil
dos autores, e a frequência de citações absolutas e cruzadas entre eles. A partir
da construção de uma matriz, buscou-se encontrar os tipos mais recorrentes de
escolas de pensamento sobre o internacional presentes na literatura analisada
acerca da inserção externa da Rússia. A tipologia serviu, assim, de parâmetro para
refletir sobre a próxima relação entre o político e o acadêmico na constituição
do campo das Relações Internacionais no país como um espaço de construção
do próprio self russo.
O artigo segue em duas seções, para além desta breve introdução e das
conclusões a primeira seção faz considerações meta-analíticas sobre o campo das
Relações Internacionais pautadas na sociologia do conhecimento que possibilitarão
reflexão crítica e aprofundada acerca de sua formação e evolução em um dado país,
nos termos contidos em uma epistemologia geocultural (Tickner e Waever 2009).
Em seguida, será apresentado o quadro institucional das RI na Rússia, bem como
breve historiografia de suas escolas de pensamento desde a Guerra Fria, por
entender que, apesar da ruptura nos anos 1990, trata-se de um período que deixou
heranças importantes para a constituição das escolas de pensamento desde o final
do século XX, bem como do próprio campo. A segunda seção realiza a análise
matricial das categorias retiradas das obras de Clunan (2009), Thorun (2009),
Tsygankov (2010) e Kuchins e Zevelev (2012). Buscar-se-á compreender suas
semelhanças e divergências com vistas a apreciar a hipótese, ora assumida, sobre
o papel das referências no Outro europeu e/ou Ocidental para a formatação do
campo no país.
A formação do campo das Relações Internacionais e as escolas
de pensamento sobre o internacional na Rússia
Uma visão mais tradicional acerca da história das Relações Internacionais
como ciência indica como marco para seu surgimento a Cátedra Woodrow Wilson,
na Universidade de Aberystwith, País de Gales. Em 1919, alarmados pela perda
de trinta e um jovens estudantes nos campos de batalha da então chamada
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Grande Guerra, mobilizaram-se recursos para fundar uma linha de investigação
que fosse capaz de criar um projeto de paz mais duradouro para o ambiente
internacional, com vistas a evitar que conflito de tamanha proporção voltasse a
ocorrer. No entanto, como ressaltam Carvalho et al. (2011), é preciso entender
essa narrativa no contexto sociológico no qual essa empreitada científica ganha
corpo, a fim de melhor compreender seu caráter mitológico, e, enquanto tal,
elemento que expressa determinadas percepções.
4
Primeiramente, é preciso considerar que alocar o mito de origem do campo
das Relações Internacionais no contexto de um projeto de paz a ser realizado no
pós-Primeira Guerra reflete visões de mundo prevalecentes no espaço sociopolítico
do início do século XX. As primeiras teorizações sobre o internacional como ente
próprio trazem, portanto, uma marca fortemente anglo-estadunidense. Quando se
observa o grupo denominado teorias clássicas sobre as Relações Internacionais,
sejam aquelas de matriz realista ou de matriz liberal, nota-se a prevalência de
produções originais nos países do Norte, em especial Estados Unidos da América
(EUA) e Reino Unido.
5
Partindo de uma epistemologia mediativa, torna-se inevitável compreender
que o espaço sociopolítico no qual o pensamento teórico é formado interage com
aqueles envolvidos na empreitada científica de um dado campo de forma a co-
constituir o que se produz academicamente. Pensada como linha de investigação
que traz de forma tão forte as interações sociais em suas dimensões cooperativas
e conflitivas, as Relações Internacionais são espaço fértil para que se perceba
esse tipo de desdobramento. Especialmente quando se considera a juventude do
campo, torna-se de suma importância promover o enraizamento de reflexões sobre
a sociologia do conhecimento por trás de sua constituição e desenvolvimento,
como proposto Karl Mannheim (1954), e debatido por tantos outros.
6
Ao observar a história de seu mainstream, pode-se notar que as Relações
Internacionais estão baseadas em certas condições sociais e premissas culturais
(Tsygankov e Tsygankov 2010). Essa inclinação rumo às cosmologias prevalecentes
no Ocidente, seja para incorporação ou para contestação, estão refletidas em
4 Os autores consideram 1648 e 1919 como datas míticas do campo que carecem de um tratamento revisionista
para serem mais bem compreendidas (ver Carvalho et al. 2011).
5 Um breve passeio pelos fundadores das vertentes teóricas das famílias realista e liberal no século XX permite
verificar a concentração da produção teórica do campo nos Estados Unidos e no Reino Unido, por meio dos
trabalhos de Hans Morgenthau, Kenneth Waltz, John Mearsheimer, Robert Keohante, Joseph Nye, entre tantos
outros.
6 Ver, por exemplo, Adorno (1981).
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conceitos como balança de poder, instituições, e na dicotomia exploração versus
emancipação da pessoa humana. Ainda a partir de uma abordagem construtivista,
é possível perceber que essas definições carregam uma tensão identitária. Andrei
e Pavel Tsygankov (2010) relembram que, em muitos dos caminhos teóricos sobre
Relações Internacionais percorridos no Ocidente, é possível notar uma preocupação
em definir o internacional a partir da relação percebida e/ou idealizada entre o
Self e o Outro, passando por projetos sociopolíticos referenciados no Estado e
em suas elites.
Contemporaneamente, a Academia de Relações Internacionais padece de
profundo desconhecimento sobre movimentos de teorização para além do que fora
feito ao longo dos séculos XX e XXI nos Estados Unidos (Hoffman 1977). Waever
e Tickner (2009) propõem o incentivo à reflexão sobre distintas epistemologias
geoculturais como forma de superar esse vácuo e ir além da crítica pós-positivista,
sociológica ou historiográfica. Por essa estratégia, seria possível compreender os
limites do campo entendido como entidade temporal e geograficamente localizada,
pensada e representada. Seus produtos intelectuais, por conseguinte, podem
representar tanto o padrão ocidental quanto desvios a essa normalidade. Uma
empreitada científica que de fato cumpra seu papel sistematizador e inovador
depende, então, de uma consciência informada sobre essas questões.
A investigação sobre as distintas epistemologias geoculturais que compõem
o campo dependeria de três questões centrais (Waever e Tickner 2009).
Primeiramente, deve-se questionar qual é a situação do campo das Relações
Internacionais nos diversos espaços globais, e quais são os temas e abordagens
mais utilizados. Em segundo lugar, cabe questionar quais são as razões que
levam a esse tipo de produção. Por fim, para melhor conectar prática e teoria,
conjecturas sobre as possibilidades de desenvolvimento futuro do campo no
local devem ser debatidas.
É a partir desse quadro meta-analítico que o presente artigo pretende discutir as
escolas de pensamento sobre o internacional na Rússia, com vistas a compreender
se elas refletem uma constante referência ao outro Ocidental a partir de pretensões
político-pragmáticas do contexto sociopolítico vivido em um dado momento.
As escolas de pensamento serão entendidas como episthèmes a partir das quais
se examina a extensão do discurso na sociedade acadêmica, seguindo Tsygankov
(2010; 2014), inspirado em Martin Wight (1991). No caso da presente proposta,
serão historicamente consideradas as atitudes que esse discurso sustenta em
relação ao Self e ao Outro em momentos distintos. Incialmente, entretanto, será
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traçado um breve quadro geral institucional do pensamento sobre o internacional
na Rússia. Serão consideradas as principais instituições de ensino e pesquisa na
atualidade e como seus perfis foram histórica e politicamente moldados.
A construção das escolas de pensamento sobre o internacional na Rússia
Considerando o século XX como o momento de início da constituição formal
do campo das Relações Internacionais como empreitada científica autônoma, três
períodos marcam a formação das escolas de pensamento sobre o internacional
na Rússia e o desenvolvimento acadêmico da disciplina – a Guerra Fria, o fim
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e o aprofundamento da
globalização no novo milênio (Sergounin 2009). O período da Guerra Fria e
os desdobramentos que inicialmente levaram a ela demonstram uma tradição
ainda arraigada nas episthèmes russas de uma relação bastante próxima às
auto narrativas oficiais do Estado e às suas preocupações político-pragmáticas.
Para Sergounin (2009), a década de 1970 traz uma mudança importante para
a Academia na Rússia soviética. Até então, era possível notar o predomínio de
modelos teóricos singulares (Waever e Tickner 2009), fornecendo uma visão
local sobre os preceitos marxistas para se pensar o internacional.
7
Nesse cenário,
o Estado-nação era visto como variável dependente e a ele era atribuído poder
explicativo parcial diante de unidades como classes e raças.
Essa interpretação predominante, dentro do que Sergounin (2009) chama
de paradigma globalista, contrariava o mainstream estruturalista do período na
Academia anglo-saxã, que tinha suas atenções voltadas para o neorrealismo de
Kenneth Waltz. Em Teoria de Relações Internacionais, por meio de instrumentais
microeconômicos, Waltz (2002) coloca o Estado como variável independente
central para a compreensão do sistema internacional. Tal visão estatocêntrica passa
a prevalecer na Academia russa apenas a partir dos anos de 1970, quando um
novo aquecimento das tensões com o Oeste levaram à necessidade de se pensar
um projeto de nação ideologicamente desvinculado, que pudesse recompor o
declínio do dinamismo soviético de outrora. Esse movimento trouxe o realismo
7 Waever e Tickner (2009, p.109) classificam quatro tipos de interação entre as teorias locais e globais sobre
Relações Internacionais: importação pura dos modelos globais, no qual teorias externas são incorporadas
sem modificações em relação à dinâmica local; tool-box, com adequação parcial de elementos que funcionam
diante do projeto de narrativa abraçado; singularidade local, com a adaptação de teorias globais a realidades
específicas; e teorias nascidas integralmente no próprio local, em grande medida distintas das externas.
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estrutural e a econometria para as escolas de pensamento russas predominantes
no período, dentro do que Waever e Tickner (2009) chamam de tool-box – uma
importação de elementos e conceitos que pareceriam mais adequados ao projeto
russo. No âmbito da política externa, os governos soviéticos buscaram cooptar
aliados ideológicos para garantir apoio às suas políticas regionais e globais;
enquanto o seu diálogo doméstico utilizava a retórica nacionalista para a obtenção
de apoio popular.
O fim da União Soviética e da lógica de confrontação bipolar direta da Guerra
Fria abriu espaço para um pensamento teórico cada vez mais fundado em pura
importação, em especial do modelo liberal. É possível perceber que dentro do
governo russo nesse período passaram a existir três grandes vertentes políticas
sobre política externa: os pró-Ocidente, que defendem reformas sobre o sistema
político da Rússia usando o Ocidente como modelo; os adeptos ao conceito da
balança de poderes, que querem promover uma política externa multivetorial
separada da esfera doméstica; e os nacionalistas, que enxergam uma missão
especial da Rússia nas relações internacionais e procuram maior integração com
os seus vizinhos que faziam parte da URSS (Kuchins e Zevelev 2012). Em meio às
discussões dessas três vertentes dentro do governo, o New Political Thinking de
Mikhail Gorbatchev trazia uma versão oficial do pensamento internacional com uma
concepção mais abrangente sobre segurança, de certa forma adaptando o discurso
marxista a certos elementos ocidentais no formato tool-box (Tsygankov 2012).
A chegada ao poder de Boris Iéltsin, com Andrei Kozyrev à frente da chancelaria
do Kremlin, apresentou com mais força os elementos do pensamento liberal
ocidental às escolas russas, em especial até 1993. No entanto, o programa
econômico de “terapia de choque”, a primeira guerra da Chechênia e a decepção
gerada pela crise de 1998 em relação aos processos de liberalização e de abertura
ao capital estrangeiro levaram a uma ampliação das possibilidades de teorização
sobre o internacional. A partir da entrada de Putin na presidência, a economia
russa passou por uma fase de crescimento expoente devido à exportação de
commodities, ao mesmo tempo em que, no âmbito regional, o país lidava com
a expansão da OTAN e as chamadas revoluções coloridas, desenvolvendo ainda
outra vertente teórica sobre o internacional (Mielniczuk e Piccolli 2015).
Contemporaneamente, pensado a partir dos processos de globalização, o
internacional na academia russa pode ser entendido a partir de um olhar externo,
com reflexões sobre qual seria o papel da Rússia no pós-Guerra Fria na tensão
entre jogar segundo as regras ocidentais ou desafiá-las. Por outro lado, as escolas
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de pensamento também buscam compreender como internamente se entende os
fluxos internacionais – por meio de aceitação completa, seletiva ou de rejeição
radical dos mesmos (Tsygankov 2012). Os teóricos e as instituições que trabalham
no marco realista ou dentro dos debates sobre economia política internacional
incorporam parcialmente as reflexões ocidentais sobre a posição da Rússia no
sistema internacional. Por seu turno, os liberais, em linha com o liberalismo
político e econômico da década de 1990, tendem a incorporar completamente
a visão do Ocidente sobre o espaço devido à Rússia no pós-Guerra Fria. Por
fim, os que Tsygankov (2012) denomina como essencialistas culturais procuram
rejeitar completamente as visões externas sobre a vocação russa. A despeito
da rejeição, cabe lembrar que os próprios projetos alternativos construídos por
essa corrente mantêm a alteridade como referência, ou seja, a Rússia mereceria
um papel diferenciado na ordem internacional pós-1990 justamente pelas suas
diferenças em relação aos chamados ocidentais.
Outro elemento importante a ser percebido é a persistência do legado de uma
próxima relação entre o setor estatal e a Academia de Relações Internacionais
no país. A primeira Faculdade de Relações Internacionais (posteriormente, foi
transformada em um órgão separado, sob a direção do Ministério das Relações
Exteriores, e passou a se chamar Instituto Estatal de Moscou de Relações
Internacionais – MGIMO) foi criada em 1943 pela Universidade Estatal de
Moscou justamente para a formação diplomática russa e a estruturação de um
corpo docente para organizações soviéticas que lidassem com o internacional,
como o Ministério de Comércio Exterior e o Ministério de Relações Exteriores
(Lebedeva 2004). A emigração de cientistas ao longo do período da Guerra Fria
fez com que os próprios pesquisadores, então acostumados com essa relação
simbiótica entre a práxis política e a produção acadêmica durante o período anterior,
fossem justamente aqueles que assumiram cargos centrais nas universidades e
centros de pesquisa, tendo em vista que, em geral, os que seguiam uma linha
mais autônoma não mais residiam no país (Sergounin, 2009).
Somado a um contexto de crise econômica e pouco acesso ao ensino
universitário, a ideologização do campo persistiu de forma consideravelmente
forte.
8
A distância dos pesquisadores que seguiram uma linha politicamente
mais independente e a ausência de mecanismos institucionais que de fato
8 Sergounin (2009) relembra que em 2000 houve uma compreensiva reforma educacional, que aumentou o número
de estudantes matriculados nas universidades, inclusive nos cursos de graduação em Relações Internacionais.
No entanto, percebe-se que esse processo de renovação do público universitário ainda se encontra em curso,
e, em sua grande maioria, concentrado nos grandes centros como Moscou e São Petersburgo.
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solidificassemas contribuições para o campo dentro e fora da Rússia complicaram
ainda mais essa equação. O campo também tinha uma preocupação maior
com assuntos e sujeitos, e não com problemas em si; por esse motivo o curso
de Relações Internacionais se estruturou em torno de estudos de área e, mais
especificamente, de países. Isso aconteceu devido às necessidades pragmáticas
do governo em relação à sua política externa, já que ele tinha controle direto
sobre o ensino e as pesquisas da área. Em realidade, a próxima relação entre
o Kremlin e as Universidades de RI permaneceu por muitos anos após o fim
da URSS. Um exemplo disso foi a criação do Instituto de Economia Mundial e
de Política Mundial, para fomentar análises de acadêmicos sobre as relações
internacionais e aconselhar os tomadores de decisão do governo (Lebedeva 2004).
Atualmente, existem cerca de quarenta cursos de graduação em Relações
Internacionais na Rússia, com destaque para os programas da Universidade
Estatal de Moscou e da Universidade Estatal de São Petersburgo.
9
Com viés mais
pragmático, a Academia Russa de Ciências promove estudos por áreas geográficas.
Por sua vez, nove institutos e centros ministeriais envolvem-se diretamente
com a temática internacional e buscam consolidar e promover a versão oficial
a respeito do tema.
10
Centros de pesquisa, igualmente, costumam localizar-se
no eixo São Petersburgo-Moscou, e alguns deles trabalham em perspectivas
teóricas de importação pura por meio de financiamentos internacionais, como
é o caso do Moscow Carnegie Center e do East-West Institute. Uma visão mais
plural é conferida por outros think tanks, como o Clube Valdai.
11
A Southern
Political Science Association, fundada na década de 1990, é a associação de
classe que representa também os pesquisadores de Relações Internacionais, o
que denota a permanente dependência do campo em relação à Ciência Política.
Desde 1999, a Russian International Studies Association (RISA) tenta trilhar um
caminho mais independente para o campo com encontros a cada dois ou três
anos (Sergounin 2009).
12
9 Enquanto em Moscou prevalece uma proximidade patente com o Ministério das Relações Exteriores e uma
produção científica mais voltada para um projeto de nação putiniano, a Academia em São Petersburgo tem
um espaço maior para teorias importadas de matriz liberal, base para a fundamentação da atual oposição
política na Rússia (ver Lebedeva 2004).
10 Segundo Sergounin (2009), são eles: Academia Diplomática, Academia de Serviço Geral, Universidade Militar,
Academia do Serviço de Segurança Federal, Academia do Serviço de Inteligência Estrangeiro, Academia Russa de
Serviço Público, Academia de Economia Pública, Academia de Finanças, e Instituto Russo de Estudos Estratégicos.
11 Criada em 2004, a organização conta com representantes de várias origens e linhas de trabalho em uma
tentativa de desenvolver um diálogo global sobre a Rússia. No entanto, é possível perceber forte ligação de
seu trabalho com o Kremlin e a gestão de Putin. Para mais informações, ver (Valdai Club 2015).
12 Para mais informações sobre a Russian International Studies Association (RISA), consulte sua página oficial
(RISA 2015).
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As publicações no campo das Relações Internacionais são ainda bastante
tímidas na atual Academia russa. Além de carecer de diversidade temática e teórica,
bem como não serem edições tradicionalmente frequentes, os jornais científicos
não conseguem exercer sua típica função de socializar as ideias de uma dada
comunidade local (Sergounin 2009). O principal exemplo é o periódico Kosmopolis,
13
publicado desde 1999, pela Russian International Studies Association. Outras
revistas possuem perfil multidisciplinar, como Social Sciences and Modernity,
14
Polis,
15
Political Science,
16
World Economy and International Relations,
17
e Socio-
Political Journal.
18
Uma perspectiva de forte viés político é oferecida pelo jornal
do Ministério das Relações Exteriores russo – International Affairs.
19
Ainda institucionalmente, a cosmologia da Igreja Ortodoxa e a ideia eurasiana
marcam forte presença em muitas das escolas de pensamento, seja para
confrontação ou para concordância e sustentação de seus argumentos (Tsygankov
e Tsygankov 2010). Essas visões de mundo desaguam no complexo psicológico do
medo do Outro e na necessidade de consolidação do Self em versões variadas de
poder hegemônico com vistas à proteção, como pode ser notado na autonarrativa
da Terceira Roma
20
e no movimento de expansão e resguardo das terras russas
diante do reiterado domínio estrangeiro – hordas mongóis, turcos otomanos,
lordes feudais suecos, aristocracias da Polônia-Lituânia, capitalistas britânicos
e franceses, e barões japoneses.
21
A definição da identidade nacional russa e, por conseguinte, da forma como
o Estado vê a si próprio tem a Europa como principal referência de outro na
construção de seu self (Hopf 2008). Essa interface ganhou maior determinação a
partir do século XVI, com a administração moscovita do Estado, e, especialmente,
13 Seus exemplares podem ser acessados pelo site oficial da RISA (RISA 2015).
14 Mais informações sobre o periódico Social Sciences and Modernity podem ser obtidas no Portal Federal de
Educação.
15 Mais informações sobre o periódico Polis podem ser obtidas no site oficial da Editora NalicMag.
16 Mais informações sobre o periódico Political Science podem ser obtidas em sua página oficial (Political Science
2015).
17 Mais informações sobre o periódico World Economy and International Relations podem ser obtidas de sua
página oficial.
18 Mais informações sobre o periódico Socio-Political Journal podem ser obtidas de sua página oficial (Socio-
Political Journal 2015).
19 Mais informações sobre o periódico International Affairs podem ser obtidas em sua página oficial.
20 O mito da Terceira Roma surgiu no reinado de Ivan III por seu casamento com Sofia Paleologue, filha do imperador
bizantino. Ivan IV, neto do casal, trouxe à tona a autonarrativa da herança por direito de Moscou sobre o legado
do Império Romano, o que transformaria o centro da Rússia na sua terceira capital (Neumann 1996).
21 Descrição contida em famoso discurso de Joseph Stalin, relembrada por Sakwa (1999).
Daniela Vieira Secches; Marina Nunes Bernardes; Pedro Diniz Rocha
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021
13-22
quando o czar Pedro, o Grande, chegou ao poder, no século XVII, com suas
reformas modernizantes que possuíam os modelos europeus como referência.
A partir do Segunda Guerra Mundial, percebe-se uma expansão dessa concepção
de alteridade para o Ocidente, de forma a incluir também os Estados Unidos da
América e todo o modelo capitalista liberal.
O pensamento sobre o internacional na Rússia é profundamente influenciado
por essa definição identitária. Nesse sentido, é possível localizar escolas de
pensamento sobre o internacional que se consolidaram no pós-Guerra Fria de
forma a propor uma reflexão russa a respeito – todas elas tendo por espinha
dorsal a projeção do Estado em relação ao Ocidente, com suas concepções
específicas de visão sobre o outro. Por conseguinte, elas refletem formas distintas
de se pensar os processos de cooperação e de conflito entre atores com interface
no ambiente internacional, e possuem uma relação simbiótica com os projetos
sociopolíticos do contexto em que emergem.
O Outro nas escolas de pensamento sobre o internacional na
Rússia Contemporânea
A linha entre as escolas de pensamento academicamente produzidas e a
reflexão sociopolítica sobre identidade na Rússia contemporânea é muito tênue,
e por muitas vezes torna-se impossível separar o que é uma produção acadêmica
dos projetos de nação das elites políticas do país e da própria autopercepção
do Self enquanto constituição estatal da identidade nacional. O trabalho busca,
então, identificar as propostas político-pragmáticas das narrativas sobre o nacional
recorrentes na produção acadêmica russa de hoje. Não se quer, contudo, estabelecer
uma lógica de causalidade. Parte-se da premissa de que o contexto sociopolítico,
as percepções sobre identidade nacional, e a produção acadêmica compartilham
uma relação simbiótica de mútua constituição.
Para tanto, buscou-se fazer uma revisão bibliográfica sobre quatro classificações
de autores recentes, correntemente citados no campo,
22
a fim de entender o
que elas têm em comum quando se pensa na correlação entre tais episthèmes
22 O critério cronológico de seleção repousou sobre a necessidade de trabalhos que considerassem as mudanças
sociopolíticas russas e do contexto global no novo milênio. Sendo assim, optou-se por obras publicadas após
2008, para assim poder analisar ao menos o primeiro mandato de Vladimir Putin e as mudanças no predomínio
da importação liberal pura. A recorrência de citação dos autores foi compreendida a partir da leitura de cerca
de trinta obras contemporâneas sobre o tema que continham referência constante aos autores utilizados e a
partir da identificação de referências cruzadas entre os próprios autores.
A Construção do Pensamento sobre o Internacional na Rússia [...]
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Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021
sobre o internacional e o impacto sobre elas do Outro ocidental e da decorrente
necessidade defendida de sua confrontação ou imitação. São elas:
a) Anne Clunan The Social Construction of Russia Ressurgence: aspirations,
identity, and security interest (2009)
23
. Clunan parte de uma sustentação
teórica fundada no construtivismo aspiracional para refletir sobre as
autoimagens nacionais russas que se consolidaram em meio à elite
política do país durante os anos 1990 e persistem nas autonarrativas
contemporâneas. A autora identifica cinco categorias de autoimagens:
Ocidental, Estatista, Restauracionista, Neocomunista e Eslavófila;
b) Christian Thorun – Explaining Change in Russian Foreign Policy: the role
of ideas in post-Soviet Russia conduct toward the West (2009)
24
. Thorun
procura responder a três questões no que diz respeito às autonarrativas
russas sobre o internacional a partir da perspectiva dos discursos das
lideranças. Primeiramente, o autor questiona como se percebia a natureza
das relações internacionais. Em segundo lugar, pergunta-se qual seria
o status e o papel da identidade nacional russa em contraposição ao
Outro. Por fim, busca entender como se acreditava que os interesses
nacionais poderiam ser mais bem satisfeitos no ambiente externo. A partir
disso Thorun (2009) identifica quatro categorias de autoimagens: Ideias
Liberais, Realismo Geopolítico, Realismo Geoeconômico Pragmático
e Realismo Geoestratégico Cultural;
c) Andrei Tsygankov Russian Foreign Policy: change and continuity
in national identity (2010)
25
. Tsygankov parte da premissa de que o
comportamento russo e seu projeto de nação é influenciado especialmente
pelo comportamento dos Estados ocidentais. Dessa forma, a filiação russa
percebida ao mundo ocidental é uma variável central para determinar os
projetos político-pragmáticos, o que se entende aqui teria uma ligação
direta com a produção acadêmica. Tsygankov (2010) identifica períodos de
mudança e continuidade na história da Rússia em relação ao tema, e divide
23 De acordo com o mecanismo de busca do Google Scholar, até agosto de 2019 a obra de Clunan (2009) possuía
228 citações.
24 De acordo com o mecanismo de busca do Google Scholar, até agosto de 2019 a obra de Thorun (2009) possuía
104 citações.
25 De acordo com o mecanismo de busca do Google Scholar, até agosto de 2019 a obra de Tsygankov (2010)
possuía 647 citações.
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seu pensamento sobre o internacional em três correntes: Ocidentalismo,
Estatismo e Civilizacionismo;
d) Andrew Kuchins e Igor Zevelev – Russia Contested National Identity and
Foreign Policy (2012)
26
. Kuchins e Zevelev procuram identificar elementos
contínuos entre a identidade nacional russa e a política externa do Estado
e com isso em mente chegam a três escolas de pensamento: Liberais
Pró-Ocidentais, Balanceadores de Grandes Potências e Nacionalistas.
Tais categorias de interpretação sobre as forças identitárias na Rússia podem
ser entendidas como escolas de pensamento sobre o internacional do país,
na medida em que os projetos político-pragmáticos e a produção acadêmica
confundem-se em uma relação mediativa de co-constituição. Nesse sentido, a
Academia no país, co-constituída, ainda sob impacto do legado soviético, pelas
preocupações políticas de se instituir um projeto de nação sócio-historicamente
coerente no pós-Guerra Fria, encontra-se dividida entre leituras mimetizadoras e
de contraposição ao pensamento mainstream sobre o internacional, prevalecente
quando se considera o campo global das Relações Internacionais (ver figura 1).
Figura 1. Relação simbiótica entre a Academia de Relações Internacionais
na Rússia e projetos político-pragmáticos de nação
Episthèmes
Projetos
político-
pragmáticos
Dimensão
internacional
Outro -
Ocidente
Academia de
Relações
Internacionais
Fonte: Elaboração própria.
26 De acordo com o mecanismo de busca do Google Scholar, até agosto de 2019 o artigo de Kuchins e Zevelev
(2012) possuía 76 citações
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A partir dos trabalhos de Clunan (2009), Thorun (2009), Tsygankov (2010),
e Kuchins e Zevelev (2012) percebe-se, então, autonarrativas de duas naturezas –
mimetizadoras e confrontadoras. Quando pensada em termos de projetos político-
pragmáticos, a categoria confrontadora subdivide-se entre coexistência e conflito
existencial, na medida em que, diferentemente, entendem a confrontação como
espaço no qual Ocidente e Rússia, respectivamente, convivem como opositores ou
estão fadados a conflitar para garantia de suas próprias subsistências. O quadro
1 resume a localização das classificações segundo suas opiniões sobre o tipo de
poder preferido, a natureza das relações globais, e as propostas de posicionamento
russo diante desse cenário, categorias propostas por Kuchins e Zevelev (2012).
Quadro 1. Sobreposições entre as classificações trabalhadas na revisão bibliográfica
sobre Clunan (2009), Thorun (2009), Tsygankov (2010), e Kuchins e Zevelev (2012)*
Mimetização do Outro
Confrontação com o Outro
pela coexistência
Confrontação com o Outro
pelo conflito existencial
Ocidental Estatistas Restauracionista
Ideais Liberais Neocomunistas Eslavófila
Ocidentalismo Realismo geoeconômicos pragmáticos Realismo geopolítico
Liberais Pró-Ocidentais
Realismo geocultural
Civilizacionismo
Estatismo
Nacionalistas
Balanceadores de Grandes Potências
Fonte: Elaboração própria.
* Legenda:
Clunan (2009) Thorun (2009) Tsygankov (2010) Kuchins; Zevelev (2012)
Em termos de mimetização, identifica-se em uníssono entre os quatro
autores uma autoimagem da Rússia como parte integrante do Outro Ocidental
e que compartilha com o Ocidente valores fundamentais como a democracia,
o liberalismo, o respeito aos direitos humanos e a defesa do meio ambiente.
Seja definida como Ocidental (Clunan 2009), Ideias Liberais (Thorun 2009),
Ocidentalismo (Tsygankov 2010) ou Liberais Pró-Ocidentais (Kuchins e Zevelev
2012), os adeptos desta autoimagem percebem a política internacional como
um ambiente de cooperação facilitado pela afinidade intrínseca da Rússia com
o Ocidente e, por isso, defendem maior aproximação do país com as grandes
potências europeias e com os Estados Unidos. Nesse sentido, destaca Clunan
(2009, p.63) ser objetivo primordial da Rússia adentrar de forma ativa em
organizações internacionais predominantemente ocidentais, como a OMC e o
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FMI, ou em fóruns de cooperação economica como o G20 e o G7. Ponto também
destacado por Thorun (2009), Tsygankov (2010) e Kuchins e Zevelev (2012).
No que diz respeito ao aspecto da confrontação com o Outro pela coexistência,
é possível identificar seis classificações sobrepostas de autoimagens russas, cada
uma com suas particularidades. São elas: Estatistas (Clunan 2009), Neocomunistas
(Clunan 2009), Realismo Geoeconômico Pragmático (Thorun 2009), Realismo
Geocultural (Thorun 2009), Estatismo (Tsygankov 2010), Balanceadores de Grandes
Potências (Kuchins e Zevelev 2012). Essas vertentes têm uma visão comum
de interação e cooperação entre atores estatais para criar equilíbrio entre eles,
com a Rússia ocupando o status de potência internacional. Clunan (2009), por
exemplo, em sua auto-imagem estatista, destaca a responsabilidade do país na
esfera internacional, já que ela seria, àquele ator, capaz de mediar a relação
do ocidente com o oriente por compartilhar valores com ambas as partes. Da
mesma maneira, no que concerne a autoimagem neocomunista, o autor destaca
o papel russo de grande potência regional, que deve exercer sua influência
principalmente sobre os países que formavam a URSS. A balança de poder é
aqui uma estratégia essencial para evitar conflitos, sendo o papel da Rússia o
de balanceador internacional.
Thorun (2009), por sua vez, aponta que houve mudanças na política externa
da Rússia no pós-Guerra Fria que evidenciam as distintas autoimagens do país de
acordo com o contexto político internacional do momento. Em termos do Realismo
Geoeconômico Pragmático, o mundo é visto como multipolar e competitivo
mas o foco está nos aspectos econômicos da política internacional, além dos
geoestratégicos. Por exemplo, a expansão da OTAN para o Leste Europeu, entre
2000 e 2004, teve menos espaço na agenda russa e outros temas como competição
econômica extrema e exclusão econômica e comercial entraram em ascensão. No
que concerne ao Realismo Geocultural, este abrange também uma preocupação
com competição de ideias na esfera internacional, onde valores ocidentais liberais
como a democracia entravam em choque com a cultura russa. Desse modo, essa
visão reconhece um mundo multipolar e altamente competitivo, mas com os
aspectos econômicos e culturais somados ao estratégico, pois o Oeste passou a
apresentar ameaças mais diversificadas à esfera de influência russa.
De acordo com Kuchins e Zevelev (2012) os Balanceadores de Grandes
Potências percebem o sistema internacional de forma estatocêntrica, com uma
atenção importante aos “interesses nacionais russos”, e a política de balança
de poder como estratégia essencial na relação da Rússia com os demais países.
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Aqui, é importante destacar que a posição de destaque russa não significa,
necessariamente, menor importância do Oeste, e sim que os dois devem coexistir
sem que o último exceda seus poderes. Os balanceadores também defendem
o aprendizado com os países do Oeste, principalmente no que diz respeito à
tecnologia ocidental, em matéria de competição e investimento externo direto.
Ademais, Tsygankov (2010) ainda aponta que, apesar das tensões com o Ocidente,
a confrontação pela coexistência não significa a rejeição do Outro Ocidental, e
sim a busca pelo reconhecimento próprio através da ênfase nas capabilities. A
existência de uma ameaça externa é uma ideia intrínseca ao Estatismo percebido
por esse autor, além do modo como a jornada russa não deve ser espelho da
ocidental, pois a ideia de Estado forte seria mais prudente para a Rússia do que
a democracia e o liberalismo.
Em pólo oposto à autoimagem mimetizadora, e embora em certos aspectos
diferentes, as autoimagens Restauracionista (Clunan 2009), Eslavófila (Clunan
2009), Realismo Geopolítico (Thorun 2009), Civilizacionismo (Tsygankov 2010)
e Nacionalista (Kuchins e Zevelev 2012) têm em comum a construção de uma
identidade particularizada da Rússia que rivaliza a todo momento com o Outro
ocidental em um conflito existencial. A política internacional é vista como um
jogo de soma zero em que a sobrevivência da Rússia enquanto civilização está
em risco. Nesse sentido, há pouca margem para a cooperação com o Ocidente,
há que se proteger a hegemonia do país na Eurásia, diversificar parceiros não
ocidentais e construir uma ordem internacional que não seja fundada na imagem
das grandes potências europeias e dos Estados Unidos (ver, por exemplo, Clunan
2009; Thorun 2009; Tsygankov 2010; e Kuchins e Zevelev 2012).
Em Clunan (2009) a confrontação com o Outro pelo conflito existencial se
reflete por um lado na autoimagem Restauracionista (Clunan 2009), pela ideia
de restauração dos antigos impérios Russo e Soviético e no papel do país na
liderança de uma ordem internacional não-Ocidental; e por outro, na autoimagem
Eslavófila (Clunan 2009), pela exaltação da origem Eslava e Ortodoxa da Rússia,
que imbui o país a liderar o mundo eslavo frente a um ocidente secular que lhe
ameaça. As duas autoimagens propostas por Clunan (2009) são incorporadas
por Kuchins e Zevelev (2012) sob a nomenclatura Nacionalista, composta tanto
por neoimperialistas (ou Restauracionistas), quanto por étnico-nacionalistas (ou
Eslavófilos). Ideia também captada pela autoimagem Civilizacionista proposta
por Tsygankov (2010), composta tanto por Eurasianistas (ou Eslavófilos) quanto
por Civilizacionistas Soviéticos (ou Restauracionistas).
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Por fim, destaca-se também em Thorun (2009), a partir da autoimagem
Realismo Geopolítico, um predomínio da ideia de confrontação do outro pelo
conflito existencial. No entanto, apesar de ressaltar a herança eslava da Rússia como
propulsora da hegemonia do país na Eurásia, dá-se maior ênfase às características
próprias do ambiente internacional (anárquico, incerto, ameaçador) para justificar
uma confrontação ostensiva ao bloco ocidental e a necessidade de sustentar sua
posição na região (Thorun 2009). Thorun (2009) destaca ainda a ideia de que,
segundo proponentes dessa autoimagem, a Rússia possui capacidade militar
suficientemente grande para jogar o jogo das grandes potências e, portanto,
deve conduzir suas relações exteriores de maneira assertiva ao risco de perder
seu status geopolítico caso não o fizer.
Conclusão
Ao se retomar a periodização de Sergounin (2009) sobre a formação do
campo das Relações Internacionais na União Soviética e na Rússia a partir do
século XX, é possível perceber um predomínio da confrontação com o outro
pelo conflito existencial enquanto imagem identitária prevalecente nos projetos
político-pragmáticos e na Academia. Nesse cenário, as produções científicas,
em larga medida cooptadas pelo Estado, viam em paradigmas globalistas a
possibilidade de sustentação do enfrentamento ideológico, com espaço para
investigações sobre o internacional, por exemplo, a partir do viés marxista.
A partir de 1970, na chamada segunda fase da Guerra Fria, a retomada das
tensões impuseram ao Kremlin um projeto político-pragmático que fosse capaz
de consolidar o poder soviético de forma a sustentar sua posição de hegemonia
(Sergounin 2009). Nesse cenário, abre-se espaço para visões de mundo fundadas
na confrontação pela coexistência. Essa opção aproxima o campo das Relações
Internacionais na Academia soviética aos modelos de importação teórica via
adaptação, levados pela forte influência do mainstream estruturalista e behaviorista
da época, com foco nos debates sobre hard power e balança de poder.
O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas levou a um movimento
paradoxal de abertura dentro da Academia (Sergounin 2009). Por um lado, a
opção pela rápida introdução dos elementos de livre mercado impôs modelos
teóricos de importação pura fundados na cartilha liberal ecoados nas visões de
mundo mimetizadoras – foco no poder econômico, ações multilaterais, e filiação
A Construção do Pensamento sobre o Internacional na Rússia [...]
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e participação mais intensas nos organismos internacionais. No entanto, a crise
econômica de 1998 trouxe à tona os limites tanto teóricos quanto político-
pragmáticos da liberalização, levando a expansão de projetos de nação mais
confrontadores. Como é possível perceber uma continuidade na sobreposição
entre Estado e Academia, a incorporação desses renovados elementos conflitivos
ao discurso oficial pós-1998 também se reflete em opções teóricas mais diversas
para as investidas científicas sobre o internacional na Rússia do novo milênio.
Dessa forma, considerando os fatores históricos que influenciaram a formação
da Academia de Relações Internacionais na Rússia no século XX, pode-se perceber
que o legado soviético foi de fundamental importância para a tradição próxima entre
as versões políticas oficiais sobre a percepção do Outro e a produção acadêmica,
como denota a periodização de Thorun (2009), contraposta às demais classificações.
No que diz respeito ao arcabouço institucional, é possível observar, hoje, maior
aproximação entre a produção da Universidade Estatal de São Petersburgo e dos
centros de pesquisa ocidentais com o Moscow Carnegie Center das autonarrativas
mimetizadoras. Por outro lado, a Universidade Estatal de Moscou, a Academia
Russa de Ciências, e as escolas governamentais apresentariam, atualmente, uma
produção mais voltada às autonarrativas confrontadoras.
O objetivo do presente artigo era traçar breves considerações sobre a
importância do outro para a formação do campo das Relações Internacionais na
Rússia e seus desdobramentos dentro de distintos projetos político-pragmáticos
de nação, premissa derivada da sociologia do conhecimento em uma perspectiva
construtivista. Refletiu-se, então, sobre os fatos históricos que marcaram a
constituição do campo no país, sua estrutura institucional, e autonarrativas
presentes em obras a respeito que reproduzem visões de mundo onde a perspectiva
da academia sobre o internacional encontra-se com projetos político-pragmáticos
para mimetizar ou confrontar o Outro ocidental.
Um próximo passo, que fugia ao escopo do presente trabalho pela necessidade
de mobilização de recursos in loco, seria analisar a produção acadêmica dos
referidos centros a partir das categorias propostas e contrapô-las aos projetos de
nação vigentes no contexto sociopolítico de sua produção. De qualquer forma,
a partir das conclusões aqui traçadas, o texto literário de Dostoievski segue
encontrando eco no campo das Relações Internacionais na Rússia, na medida em
que uma de suas orientações mestras repousa sobre exaltar o Ocidente enquanto
axioma ou contestar tal postura, aproximando-se da crítica magistral deixada
pelo seu personagem, Ivan Karamázov.
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